Open-access DuLocal: os desafios de uma startup de impacto social positivo

DuLocal: los retos de una startup de impacto social positivo

Resumo

Felipe teve contato com o conceito de sustentabilidade durante sua trajetória acadêmica e, ao longo da jornada profissional, resolveu empreender um modelo de negócio que gerasse impacto socioambiental positivo crescente e diretamente ligado à parte econômica do negócio. Direcionando seus desafios e etapas profissionais de modo a acumular expertise e bagagem, conseguiu estruturar uma startup de alimentação plant based, com um modelo de negócio que o levasse a atingir um impacto socioambiental positivo. Quando conseguiu investimentos para continuar escalando sua startup em busca do necessário crescimento, veio um obstáculo inesperado: a pandemia de covid-19. A partir daí, alguns desafios foram surgindo: como chegar a um ponto de equilíbrio financeiro e fazer o negócio se sustentar? É mais importante manter o negócio funcionando, mesmo que se tenha de abdicar de alguns dos propósitos de impacto positivo? Com base nesse caso dinâmico e complexo, o que você faria no lugar do jovem empreendedor social?.

Palavras-chave:
Empreendedorismo social; Modelos de negócios híbridos; Negócio social; Startup

Abstract

Felipe encountered the concept of sustainability during his academic career, and throughout his professional journey, he decided to start a business model that would generate a growing positive socio-environmental impact directly linked to the economic side of the business. Directing his challenges and professional steps to accumulate expertise and experience, he managed to structure a plant-based food startup with a business model that would lead him to achieve a positive socio-environmental impact. When he secured investment to continue scaling his startup in search of the necessary growth, an unexpected obstacle came up: the COVID-19 pandemic. From then on, several challenges arose: how could he reach a financial break-even point and make the business sustainable? Is it more important to keep the business running, even if you have to give up some of the positive impact purposes? Based on this dynamic and complex case, what would you do in the place of the young social entrepreneur?

Keywords:
Social entrepreneurship; Hybrid business models; Social business; Startup.

Resumen

Felipe entró en contacto con el concepto de sostenibilidad durante su carrera académica y, a lo largo de su trayectoria profesional, decidió emprender un modelo de negocio que generase un impacto socioambiental positivo creciente y directamente vinculado a la vertiente económica del negocio. Dirigiendo sus retos y pasos profesionales de forma que acumulara conocimientos y experiencia, consiguió estructurar una startup de alimentación vegetal con un modelo de negocio que lo llevara a lograr un impacto socioambiental positivo. Cuando consiguió inversión para seguir escalando la startup en busca del crecimiento necesario, surgió un obstáculo inesperado: la pandemia de COVID-19. A partir de entonces, surgieron una serie de retos: ¿cómo alcanzar un punto de equilibrio financiero y hacer sostenible el negocio? ¿Es más importante mantener el negocio en marcha, aunque haya que renunciar a algunos de los propósitos de impacto positivo? A partir de este caso dinámico y complejo, ¿qué harías en el lugar del joven emprendedor social?

Palabras clave:
Emprendimiento social; Modelos de negocio híbridos; Negocios sociales; Startup

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE FELIPE ATÉ DEFINIR A IDEIA DE NEGÓCIO

Felipe cresceu em contato com a natureza. Em visita a familiares, ficava numa casa em Visconde de Mauá, ao lado do Parque Nacional de Itatiaia, no estado do Rio de Janeiro, onde passava as férias quando criança. Essa conexão com cachoeiras e formações rochosas o fez entender seu privilégio e despertou nele uma vontade de que mais pessoas pudessem ter acesso a um ecossistema saudável.

Essa vivência com a natureza fez diferença nos caminhos e nos desafios de sua vida. Em 2010, com 22 anos, Felipe se formou em engenharia ambiental pela Universidade de São Paulo (USP), emendando um curso no Programa de Pesquisa em Desenvolvimento Local, na França, e um mestrado na mesma instituição na área de economia da energia e desenvolvimento sustentável. Ao retornar para o Brasil, desempenhou a função de consultor de projetos de desenvolvimento local em sustentabilidade na Fundação Getulio Vargas (FGV) por 1 ano. Durante esse período, trabalhou com pessoas importantes para sua formação, como Cecília Ferraz, que o ajudou na ideia de desenvolvimento local no território, isto é, o desenvolvimento humano vem quando se trabalha em território, ao considerar o conhecimento local. A experiência da FGV o permitiu consolidar o conhecimento adquirido no mestrado com o conhecimento das consultorias aplicadas localmente.

Embora, porém, o papel de consultor tivesse seu valor, Felipe ainda sentia que faltava algo. Ele gostaria de se tornar mais ativo na transformação sustentável ao seu redor, o que ia além do papel que exercia naquele momento: gerar mudanças sistêmicas. Sua formação, principalmente advinda do mestrado, fê-lo desenvolver uma visão crítica referente à economia e ao desenvolvimento sustentável, em especial à dicotomia entre ambos, como se fossem objetivos que se excluíssem, algo de que ele discordava.

O sistema que está aí foi a gente que criou, então é possível propor algo diferente. Precisamos trazer propostas e atuações na direção de criar algo diferente. O sistema atual se nutre de empresas em crescimento. Sempre pensei como a gente faz uma empresa que, ao crescer, gera impacto ambiental e social positivo. Foi assim que surgiu a ideia inicial do modelo de negócio, ao imaginar um produto que, quanto mais for feito, mais impacto positivo gerará (Felipe).

Foi na possibilidade de empreender que Felipe entendeu seu papel na geração dessa mudança sistêmica que estava por trás de sua inquietação. No entanto, ele percebeu a necessidade de desenvolver seu conhecimento sobre como montar um negócio. Assim, no fim de 2012, iniciou uma nova etapa como consultor de empreendedorismo na rede Endeavor, empresa que atua desde 2000 com suporte, fomento e aceleração de iniciativas ligadas ao empreendedorismo. Lá, seu papel era conectar empreendedores e mentores, compreendendo o gargalo do crescimento do negócio, a fim de encaminhá-lo ao mentor mais adequado. Para Felipe, tratou-se de uma fase de muito aprendizado em relação ao modo como criar e desenvolver modelos de negócio, bem como quanto ao amadurecimento de ideias, uma vez que coincidiu com uma importante iniciativa da Endeavor, o lançamento do primeiro programa de aceleração, que evoluiu e se tornou o Scale-Up Endeavor, o qual acelerou mais de 3 mil empreendedores de mais de 2 mil scale-ups - empresas que já passaram da fase de startup e têm como objetivo crescer rapidamente e manter esse novo ritmo - de todo o país.

A vivência na Endeavor permitiu que Felipe tivesse um relacionamento essencial com outros empreendedores, presenciando a relação entre estes e os desafios do dia a dia, como quais eram os dilemas e as dificuldades, o jogo de cintura necessário, além do que realmente fazia a diferença nos negócios. Para ele, “o empreendedor é o cara que consegue simplificar raciocínios a ponto de executá-los, sem nem sempre ter toda a informação necessária disponível”.

Felipe se lembra de vivências ricas de conhecimento e aprendizado. Um caso marcante foi o de uma empresa do setor de construção civil que, quando começou o atendimento na Endeavor, nem sequer existia. O empreendedor tinha cliente, uma ideia e investidores, mas estava iniciando fisicamente o negócio, de modo que Felipe, além de auxiliar nos contatos e nos relacionamentos com os agentes, participou da montagem do escritório. Assim, entendeu que ter uma ideia, clientes dispostos a comprá-la e dinheiro de investidor são os pontos-chave para fazer uma empresa. Uma curiosidade é que esse empreendedor foi o primeiro investidor da empresa que Felipe criaria durante sua trajetória e que é foco deste caso de ensino: a DuLocal.

Felipe, todavia, aprendeu também com casos de desafios e reveses em negócios, pois empreender não é sempre um mar de rosas. Houve um caso em que atuou junto a um empreendedor que decidiu comprar uma fábrica de blocos, ou seja, um negócio de natureza específica da construção civil, com natureza diferente de sua experiência. Por não ter um planejamento prévio, comprometeu drasticamente a situação financeira e a capacidade de crescimento do negócio, uma vez que drenou recursos que poderiam ser investidos em marketing. Apesar do revés, foi uma situação de muito aprendizado, pois ele fez parte do comitê de turnaround - processo de reestruturação profunda e abrangente, com vistas a reverter uma situação de declínio e recolocar a empresa no caminho do crescimento e da lucratividade -, aprendendo a agir em situações de mudança de rumo abrupta. Com isso, ele aprendeu a lição de que há momentos em que o empreendedor precisa manter a calma que, para superar as dificuldades, deve fazer algumas concessões. Essa experiência foi muito útil nos momentos difíceis da própria DuLocal.

É preciso saber medir o tamanho da pernada, entender que pode dar errado e compreender o que fazer quando isso ocorre. Nesse caso, ele conseguiu vender de novo a fábrica e recuperar uma parte do capital perdido (Felipe).

Com a experiência na Endeavor, Felipe entendeu como funcionavam os modelos de negócios e angariou conhecimentos, o que o levou a definir a área em que gostaria de empreender: alimentação, com foco no empreendedorismo social. Em sua visão, há uma relação clara de causa e efeito nesse setor, uma vez que cerca de 30% da superfície agrícola do planeta é dedicada à agricultura e 80% ou mais dessa superfície é dedicada à cadeia de carne e laticínios, sendo esta responsável por suprir menos de 20% das calorias consumidas pela humanidade. Assim, ele logo pensou: “Tem algo grande a ser feito aqui”.

Como não conhecia o setor, resolveu entendê-lo na prática. No fim de 2015, começou a trabalhar na cadeia de restaurantes de um famoso chef inglês, dedicando-se na ponta da operação em diferentes cidades, como São Paulo, Campinas e Londres. Foi nessa experiência que percebeu que, no geral, os restaurantes são negócios ineficientes em razão do alto desperdício de insumos, da operação de preparo e da mão de obra. Por exemplo, nos sábados à noite o restaurante é uma loucura, ao passo que, em um dia de semana à noite, a demanda é baixíssima. Então, a ideia de querer criar um negócio que equilibre oferta e demanda surgiu dessa vivência prática num restaurante tradicional.

Ao retornar de Londres para o Brasil, em julho de 2016, decidiu sair do restaurante por entender que atingira um nível satisfatório de conhecimento no setor. Então, resolveu empreender na área de alimentação, fundando, com a irmã, a Fazenda Malabar Itatiba, de produtos orgânicos, que atuava com sistema de assinaturas, atingindo até 100 famílias que recebiam cestas toda semana. Sua primeira experiência em empreender lhe fez entender a importância de ter uma demanda firme, um ponto que inspirou o modelo da DuLocal. É preciso pensar um negócio que tenha as receitas para absorver tudo o que o produtor for produzir, pois, ao adaptá-las, pode-se cobrir esse gap de produção a que o produtor está sujeito. Essa bagagem como produtor foi importante, visto que lhe permitiu considerar o lado do produtor de orgânicos no modelo de negócio.

Felipe, entretanto, ainda não estava satisfeito, já que entendia que aquele modelo de negócio não seria suficientemente escalável na questão do impacto positivo, algo que ele desejava desde que tivera a ideia empreendedora. Em 2018, durante um brainstorm com um grupo de pessoas da área de tecnologia em São Carlos, apresentados por outra produtora orgânica, Felipe chegou à ideia inicial do modelo de negócio que viria a se tornar a DuLocal: utilização de alimento orgânico para a fabricação de marmitas produzidas na periferia, gerando renda e oportunidades de trabalho, para depois ser vendido a um nicho de consumidores de maior poder aquisitivo.

DO MVP AO CRESCIMENTO INIMAGINÁVEL

Após essa trajetória, Felipe desenvolveu a proposta de negócio da DuLocal, uma startup de gastronomia que entrega refeições saudáveis via delivery. O negócio tinha o propósito de ir além de produzir comida. Tratava-se de uma iniciativa com apelo social e inclusivo, conectando pequenos produtores de orgânicos a uma rede de cozinheiras/empreendedoras de periferias, de modo a construir um movimento de impacto socioambiental positivo em toda a rede. Segundo seu modelo de negócio, a DuLocal realizava a intermediação financeira entre os seguintes agentes: o produtor de alimento orgânico, as cozinheiras, o entregador e o cliente, criando uma cadeia de impacto social, ao praticar uma remuneração justa aos envolvidos.

Em agosto de 2018, iniciou-se o MVP - produto mínimo viável, uma versão simplificada de um produto ou serviço, apenas com as funcionalidades básicas necessárias para atender às necessidades dos clientes e testar a viabilidade da ideia de negócio - da DuLocal em São Carlos, com a contratação de duas cozinheiras no Jardim Zavaglia, bairro da periferia da cidade, que realizavam o preparo das comidas, sendo sua sócia à época, Fernanda, responsável pelo treinamento e pela conexão entre as produtoras de alimentos orgânicos e as cozinheiras. Nesse período de MVP, vendiam-se de 10 a 20 pratos por dia. No início de 2019, houve a primeira rodada de investimentos - processo de busca por captação de recursos financeiros de investidores para financiar o crescimento de uma empresa -, em que se arrecadaram 500 mil reais, com investidores-anjo da rede da Endeavor, visando levar a DuLocal para São Paulo, que tinha maior probabilidade de tornar o negócio escalável.

Em abril de 2019, iniciaram a comercialização de marmitas no período do almoço na cidade de São Paulo, ou seja, a DuLocal entrou em seu early stage, estágio operacional inicial de desenvolvimento da empresa que apresenta grande incerteza e risco, mas também com elevado potencial de crescimento. Como nessa fase não dava para manter duas operações, optou-se por encerrar os trabalhos em São Carlos, ficando somente com São Paulo, que no início daquele ano não produzia nem um prato por dia, mas que, no fim, passou a produzir mais ou menos 150.

A estrutura interna de decisões e atividades nesse início de operação em São Paulo era composta por um trio de líderes: Felipe, responsável por orquestrar os diferentes atores, como investidor, produtor, cozinheiras, clientes, fazendo essa conexão; Roberta, diretora de operações responsável pelas planilhas e pelos cronogramas da DuLocal; e Rafaela, chefe executiva responsável pelo desenvolvimento de portfólio de produtos e formação de mulheres para atuação no mercado de food service.

Rafaela iniciara sua trajetória na DuLocal em meados de 2018, quando a startup ainda estava em São Carlos, enquanto Roberta entrou no começo de 2019. Ambas foram muito importantes para a criação e o aprimoramento da empresa, tendo grande poder de decisão interna. Aos poucos, Rafaela e Roberta foram galgando espaço na DuLocal e tendo mais participação no negócio.

No início, a DuLocal manteve relação comercial com alguns produtores parceiros que faziam entrega em São Paulo, trabalhando com cooperativas de pequenos produtores na região de Sorocaba e outros produtores da região de Morungaba e Ipeúna. Trabalhar com produtores próximo a São Paulo foi uma decisão baseada na preocupação com a questão ambiental advinda da logística e dos modais de transporte. Além disso, buscavam-se produtores orgânicos que já tivessem algum tipo de certificação para garantir a origem dos alimentos, visando construir parcerias mais sólidas com esses produtores. O negócio foi desenvolvido para ser bom a cada um dos stakeholders.

Acho que nosso grande diferencial é nossa capacidade de adaptar a necessidade de ingredientes à disponibilidade dos produtores de alimento orgânico. Temos planilhas que calculam todas as quantidades que vamos precisar. Nosso cardápio é programado - já que temos 2 pratos por dia, que se alternam ao longo da semana. Com isso, sabemos quantos pratos vamos produzir até quarta-feira da semana seguinte. Assim fica fácil adaptar a receita. Essa produção planejada permite que a gente tenha essa relação direta com os produtores (Felipe).

Baseada nos investimentos iniciais, a DuLocal conseguiu escalar as operações, mantendo um ponto administrativo na região da Vila Olímpia e um time de 15 pessoas. Os pedidos eram feitos pelo site, que tinha a opção de uma assinatura mensal, a qual correspondia a mais de 50% das vendas. Isso permitia antecipar a receita em termos de fluxo de caixa, além de criar previsibilidade e recorrência, uma vez que a ideia sempre fora desenvolver um negócio com receita recorrente.

Além disso, o site da DuLocal permitia uma renovação automática, via cartão ou vale-refeição, de modo que o cliente ficava com um crédito referente à quantidade de pratos que indicou no site. Outro ponto importante nas operações da empresa é a produção de determinada quantidade de marmitas por dia, feita com base nos números das demandas. Esse modelo de negócio, por não depender da demanda de pedidos do dia, ajudava no planejamento e o controle dos ingredientes utilizados nos pratos, o que racionalizava custos e evitava perdas, permitindo o planejamento do uso de ingredientes orgânicos dos produtores locais.

A estratégia inicial de praça da DuLocal se deu em regiões de concentração de escritórios em São Paulo, como Vila Olímpia e Faria Lima, principalmente ao considerar a densidade populacional e o poder aquisitivo desses bairros. A empresa, nesse início, vislumbrou a escalabilidade e a consequente passagem para a fase de tração do negócio, ao empenhar um importante esforço na realização de visitas a empresas e degustações como ações de marketing voltadas à divulgação da empresa e do produto.

A DuLocal optou por 2 pratos definidos por dia, baseados no planejamento semanal, conhecendo a quantidade de alimento para cada prato e, caso necessário, sendo possível trocar algum componente ou ingrediente. Não ter um cardápio tão grande era um ponto fundamental no controle dos custos com os alimentos. Outro ponto interessante era o planejamento operacional. A comida já era pensada para delivery, ou seja, a embalagem da marmita foi desenvolvida pensando na conservação e no transporte. Ao considerar itens sustentáveis para a embalagem e o transporte, também se garantiu a otimização do número de viagens do entregador, que podia carregar até 25 marmitas na bag de entrega.

O foco da DuLocal sempre foi a capacitação das cozinheiras, microempreendedoras individuais da comunidade de Paraisópolis, bairro localizado na Zona Sul de São Paulo. Essa era a parte fundamental da inclusão social e financeira que o modelo de negócio da empresa almejava, mais do que investimento propriamente dito em equipamentos. O treinamento das cozinheiras/empreendedoras ocorria antes da atuação nas operações e focava no cardápio da DuLocal, contando com equipamentos fundamentais para o trabalho.

Antes da pandemia de covid-19, a comida era feita na casa das cozinheiras, onde eram produzidos até 25 pratos por profissional, cada uma recebendo 5 reais por marmita preparada. Desse modo, os alimentos orgânicos eram entregues num local na Vila Olímpia - que servia de entreposto tanto dos insumos quanto das refeições -, os insumos iam desse local até a casa das cozinheiras, que preparavam as marmitas. Depois, os entregadores recolhiam e as levavam até o escritório administrativo para, então, realizar a distribuição na área delimitada. Mesmo o modelo de negócio da DuLocal sendo top down, ou seja, com as decisões estratégicas tomadas pelos três principais gestores, direcionando os demais níveis da organização, havia a preocupação de incluir os agentes da cadeia, sobretudo as cozinheiras, na forma de usuárias do produto, colhendo feedbacks. O treinamento e o desenvolvimento das receitas eram realizados por Rafaela, chefe executiva da DuLocal. A importância dessa proximidade e da coleta de informações sobre o modelo de negócio dos principais agentes envolvidos tinha o intuito de ser transparente e melhorar as decisões tomadas internamente.

Figura 1
Modelo operacional da DuLocal antes da crise

No segundo semestre de 2019 ocorreram 2 eventos importantes para a DuLocal. O primeiro foi a participação na Estação Hack do Facebook e o envolvimento com a Artemísia, uma organização pioneira na disseminação e no fomento de negócios de impacto social no Brasil. Essas experiências ajudaram a dar legitimidade e estrutura a todo o modelo de negócio da DuLocal. Outro evento que auxiliou no reconhecimento da empresa e que ocorreu concomitantemente ao primeiro foi o reality show Planeta StartUp, em que a DuLocal ganhou o primeiro lugar e um prêmio de 500 mil reais. Isso foi uma grande vivência para Felipe e o time, que, na época, era formado por 15 pessoas.

No começo de 2020, a DuLocal estava conseguindo alcançar o almejado crescimento exponencial ao expandir o número de pedidos nos escritórios, efeito de repercussão no horário do almoço, e estava prestes a fazer 350 pratos por dia. Porém, em meados de março, veio o baque da pandemia, que resultou no fechamento e na interdição presencial dos escritórios, pulverizando o principal meio de captação de clientes.

Estávamos começando a atingir 350 pratos por dia quando vimos a situação no exterior. Meus amigos que moram na Europa me falaram o que estava acontecendo lá, olhei e falei: “Gente, vamos diminuir nossa produção para um terço do que era porque vai dar ruim.” [...] Essa crise prejudicou o negócio, pois, no mundo das startups, a prioridade é mostrar crescimento para conseguir captar a próxima rodada de investimentos. [...] As métricas financeiras de uma startup são diferentes de uma empresa convencional (Felipe).

O REVÉS DA CRISE GLOBAL NAS OPERAÇÕES DA DULOCAL

A crise advinda da pandemia foi um infortúnio, pulverizou o principal canal de clientes da DuLocal e a maioria dos escritórios foi fechado temporariamente. Então, apesar de a pandemia ter aumentado o consumo de delivery, a área de entrega do público habitual se dispersou, atingindo um ponto fraco para uma startup: acertar o canal de expansão de clientes. Portanto, quando a DuLocal conseguiu atingir esse ideal, precisou recalcular a rota. O dinheiro ganho com o reality show ajudou nesse momento de crise, mas o time que estava na expectativa do resultado da nova captação bridge - rodada de investimento para financiar o crescimento de uma startup -, que viabilizaria o grande crescimento e a mudança de patamar da DuLocal, a qual passaria a uma startup em fase de expansão, com modelo de negócio devidamente validado.

Enquanto pensava nas possibilidades de adquirir novos clientes e fechar a conta, Felipe precisou tomar decisões rápidas para não comprometer o caixa da empresa. Segundo ele, “esse é o tipo de decisão que, quanto mais tempo se leva para tomar, pior para o caixa da empresa, que vai sendo queimado”. Como já vinha acompanhando as notícias sobre a pandemia na Europa, ele conseguiu ter uma noção do que enfrentaria no Brasil quando surgiram os primeiros casos da doença. Então, em 20 de março de 2020, solicitou uma reunião com os investidores do conselho de investimento da DuLocal para decidir um plano de ação.

A decisão foi de contenção de gastos até uma próxima captação de investimentos, para poder continuar acelerando o crescimento, que, por fim, acabou nunca acontecendo. Outra decisão tomada foi o corte de gastos com o time, que estava grande demais para a redução de demanda que estava por vir. Assim, demitiu-se metade da equipe, reduzindo o time para 7 pessoas na operação, como forma de diminuir os custos fixos e evitar o comprometimento total do caixa. Essa decisão foi considerada pelos três players.

Inicialmente, a DuLocal teve um baixo investimento em marketing digital, principalmente por ser mais voltado ao posicionamento de marca. Porém, com toda a crise e a dispersão do principal canal de vendas, a ideia de um investimento mais pesado em marketing digital surgiu como alternativa, mas com um custo diferente do calculado e esperado para um negócio do setor de alimentação com baixa margem bruta, uma vez que o aumento de custos inesperados pode ser um risco grande.

Como a empresa estava na fase de uma startup em crescimento, não atingiu seu ponto de equilíbrio. Além da preocupação com os custos fixos realizados num primeiro momento, havia também a preocupação com os custos variáveis, ou seja, o gasto para manter a empresa ao longo da sua vida média comparado com a margem bruta, que é a porcentagem da receita líquida que a empresa retém após deduzir os custos diretos de produção ou compra de produtos/serviços. O problema era que a margem bruta da DuLocal sempre fora muito baixa, algo em torno 20%, por causa da remuneração das cozinheiras e dos motoboys, quando o esperado seria algo em torno de 30%. Considerando esse contexto de crises e decisões, existiam 2 possibilidades: duplicar a receita do cliente, aumentando o preço das marmitas, ou dobrar a margem bruta do produto, reduzindo custos.

O primeiro conflito foi em relação ao preço das marmitas, que, até o momento em que este caso foi escrito, custavam 30 reais. Ao aumentar o valor do produto, tende-se a reduzir o público consumidor. O mercado de comidas orgânicas e veganas é um nicho que, mesmo em crescimento, ainda não está consolidado. Então, corre-se o risco de reduzir o total de clientes atuais e potenciais ao tomar esse tipo de decisão. O segundo conflito dizia respeito a dobrar a margem bruta do produto reduzindo a remuneração dos participantes da cadeia, porém isso afetaria todo o propósito do negócio com o impacto social positivo.

Nas palavras de Felipe: “Vivenciar momentos de crise é como estar com o taxímetro ligado: mantém-se o funcionamento de uma empresa com tecnologia e equipe, porém chega um momento em que não há mais caixa.” Essa situação, em determinado momento, exige uma priorização do empreendedor, uma vez que fazer uma empresa crescer e conter o caixa ao mesmo tempo são duas coisas opostas. Então, em meados de 2021, a DuLocal parou de investir em marketing digital e começou a cortar custos, chegando a ficar com uma equipe de 3 pessoas.

Além da instabilidade financeira, a incerteza da pandemia também impactou as relações de trabalho. Com o corte radical da equipe e o futuro da startup indefinido, as duas principais parceiras e braços direitos de Felipe nas tomadas de decisão internas, Roberta e Rafaela, saíram da empresa. Ambas tinham papel de sócias e optaram por sair, gerando uma importante lição para Felipe:

Sócio tem que estar no contrato social, para se comprometer também em momentos de crise. [...] Antes, o que importava era quem vestia a camisa e tinha atitude de sócio. Hoje, tenho uma opinião um pouco diferente, porque na hora que a coisa dá errado, o que vale é quem está no contrato social.

Já a relação com os investidores continuou similar, sobretudo por causa da questão contratual. Felipe teve um grande suporte e apoio para as tomadas de decisão, ainda que a palavra final fosse dele. Considerando o momento de crise, ele decidiu mudar o modelo operacional e logístico. Quando a DuLocal começou, espelhava-se na lógica do modelo de negócios da Uber, em que não se sabe como e quando vai dar dinheiro, mas vai-se fazendo ajustes ao longo do caminho. Porém, essa lógica era incompatível com o modelo de negócios da DuLocal, tendo em vista que, apesar de a Uber ser uma empresa de economia física, seu produto principal não lida com tantas particularidades quanto o setor de produtos perecíveis. Na visão de Felipe, “foi certa dose de ingenuidade achar que só com tecnologia dava para conseguir resolver os diversos aspectos desse tipo de negócio”, ou seja, cuidar da cadeia de orgânicos e das próprias cozinheiras.

Assim, a operação, que antes levava os alimentos orgânicos dos produtores à casa de cada cozinheira em Paraisópolis, para depois levar as refeições prontas até o centro de distribuição na Vila Olímpia, passou por uma revisão. Em 2021, foi feito um ajuste logístico de transição da produção da cozinha de cada cozinheira para uma cozinha central, na Vila Sônia, ao lado de Paraisópolis. Desse modo, unificava-se a entrega dos produtos orgânicos e a produção das cozinheiras num só local. O investimento nessa cozinha comunitária foi feito gradualmente, totalizando cerca de 30 mil reais. Todas as adaptações foram feitas para que o modelo pudesse ter, minimamente, uma perspectiva de tornar-se rentável.

Figura 2
Modelo operacional da DuLocal pós-crise

Ao analisar o início da DuLocal, Felipe tentou abraçar muitas causas ao mesmo tempo e não considerou o fato de que, hoje, se convive com um sistema em que a concorrência espreme as pessoas em todas as pontas. Ou seja, o menor preço oferece uma competitividade maior, sendo o fato de reduzir o valor repassado a todos os participantes da cadeia. Prestar atenção à margem bruta gasta no negócio era um ponto importante para entender onde reduzir gastos, principalmente porque o mercado de marmitas orgânicas e plant based é um nicho pequeno, em comparação com cardápios mais variados.

Em relação à entrega dos pedidos, a empresa estava alocando o pedido para o entregador mais próximo, conforme os pedidos novos iam chegando. Era como se usufruísse de um estoque virtual que já estava disponível na rua, o que era um dos grandes diferenciais dessa adaptação do modelo operacional: a eficiência logística. Dessa forma, mesmo tendo uma remuneração igual à do IFood, de 5 a 6 reais por entrega, o entregador tinha uma remuneração maior pela forma de alocação das entregas, com ganho em escala, já que não era necessário ao entregador voltar ao restaurante. Essa mudança do modelo operacional e logístico foi uma forma de reduzir custos variáveis. Essas análises foram necessárias ao considerar a importância de uma sobra de caixa para ser reinvestido no crescimento. Para uma startup, manter o funcionamento da empresa e atingir um nível saudável financeiramente acaba sendo um ponto de dificuldade.

Quando começamos um negócio, queremos manter a essência da coisa, fazer de tudo para mostrar que funciona desse jeito. Mas o fato é que, dentro das minhas capacidades como empreendedor, do time que esteve presente na construção do negócio e dos contextos enfrentados, não conseguimos chegar a esse ponto. A gente tem um envolvimento dos investidores nessas conversas e tentativas de buscar ajuda no mercado para entender como fazer essas movimentações de forma a tornar o negócio sustentável no longo prazo. Esse é o momento em que a gente se encontra atualmente (Felipe).

Para entender o momento em que o Felipe estava e auxiliar na contextualização do dilema, apresentam-se a seguir algumas informações financeiras da DuLocal até o momento da escrita deste caso de ensino. O conceito de cash burn indica quanto de caixa a empresa queima mensalmente em sua operação. Atualmente, esse valor gira em torno 20 mil reais (quadro 1).

Quadro 1
Cash burn

Além disso, as dívidas superavam o caixa da empresa em cerca de 90 mil reais, e caso a situação perdurasse por mais tempo, a dívida poderia chegar a 300 mil, o que não seria factível sem novos investimentos, venda da operação ou alguma mudança em relação à situação atual (Gráfico 1).

Gráfico 1
Vendas x burn

Diante desse cenário, o que você faria no lugar de Felipe? Empreendedor social que desenvolveu e colocou em prática um modelo de negócio de impacto positivo, que estava “com os dois pés no acelerador”, com forte crescimento e engajando mais consumidores a cada dia, ele teve de enfrentar um revés inesperado que exigiu decisões rápidas, fazendo-o repensar o modelo de negócio aplicado e a hierarquia de causas a serem abraçadas. Como chegar a um ponto de equilíbrio financeiro e fazer o negócio parar em pé? É mais importante manter o negócio funcionando, mesmo que se tenha de abdicar de alguns dos propósitos de impacto positivo?

NOTAS DE ENSINO

As notas de ensino do caso possuem acesso restrito e estão disponíveis apenas para docentes e instrutores vinculados à instituição acadêmica mediante solicitação em: https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/93586/87502

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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  • DISPONIBILIDADE DE DADOS
    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
  • PARECERISTAS
    Ana Clara Aparecida Alves de Souza (Instituto Federal de Educação, Bento Gonçalves / RS - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5574-2560
  • PARECERISTAS
    Paula Luciana Sanches (Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa / PB - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7326-3480
  • PARECERISTAS
    Um dos revisores não autorizou a divulgação de sua identidade.
  • RELATÓRIO DE REVISÃO POR PARES
    O relatório de revisão por pares está disponível neste link: https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/93585/87501

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2023
  • Aceito
    07 Abr 2024
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