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Construção de uma narrativa hegemônica sobre a adoção das IFRS no Brasil

Construcción de una narrativa hegemónica sobre la adopción de las NIIF en Brasil

Resumo

A convergência das normas contábeis brasileiras às Normas Internacionais de Contabilidade (International Financial Reporting Standards - IFRS) foi impulsionada pela criação do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), em 2005, e pela Lei n. 11.638/2007. Entretanto, os aspectos políticos desse processo, tais como o papel da academia na legitimação das IFRS, têm sido pouco explorados. Assim, propomos neste artigo uma análise crítica do discurso, tendo como objeto o capítulo de livro “Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro”, de autoria de Salotti, Carvalho e Murcia (2015), almejando identificar as principais estratégias discursivas empregadas para construir uma narrativa hegemônica sobre a adoção das IFRS no Brasil. No referencial teórico, discutimos os conceitos de ideologia e hegemonia, assim como os papéis dos intelectuais e da academia na construção e disseminação de narrativas ideológicas. Empiricamente, por meio da análise crítica do discurso, as propriedades formais do texto são descritas, apontando seus valores experienciais, expressivos e relacionais. Além disso, propomos uma interpretação do processo de produção e uma explicação das condições sociais de produção do texto. O silenciamento de vozes dissonantes, a omissão de agência e a representação da comunidade e das práticas contábeis brasileiras em condição de inferioridade técnica e cultural são identificados como principais estratégias discursivas empregadas no texto para reproduzir e ratificar discursos do campo profissional, valendo-se do capital simbólico possuído pelos autores em virtude da posição que ocupam no campo acadêmico para atribuir universalidade a entendimentos dos organismos normatizadores.

Palavras-chave:
Adoção das IFRS; Análise crítica do discurso; Ideologia; Hegemonia

Resumen

La convergencia de las normas contables brasileñas con las Normas Internacionales de Información Financiera (NIIF) fue fomentada con la creación del Comité de Pronunciamientos Contables, en 2005, y con la Ley 11.638/2007. No obstante, los aspectos políticos de este proceso, tales como el papel de la academia en la legitimación de las NIIF, han sido poco explorados. Así, proponemos en este artículo un análisis crítico del discurso, teniendo como objeto el capítulo de libro Convergência da Contabilidade Brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): Retrospectiva Histórica e Desafios para o Futuro, de los autores Salotti, Carvalho y Murcia (2015), con la intención de identificar las principales estrategias discursivas empleadas en la construcción de una narrativa hegemónica sobre la adopción de las NIIF en Brasil. En el marco referencial teórico, discutimos los conceptos de ideología y hegemonía, así como los roles de los intelectuales y de la academia en la construcción y difusión de narrativas ideológicas. Empíricamente, a través del análisis crítico del discurso, las propiedades formales del texto se describen, señalando sus valores experienciales, expresivos y relacionales. Además, proponemos una interpretación del proceso de producción y una explicación de las condiciones sociales de producción del texto. El silenciamiento de voces disonantes, la omisión de agencia y la representación de la comunidad y de las prácticas contables brasileñas en condición de inferioridad técnica y cultural se identifican como las principales estrategias discursivas empleadas en el texto para reproducir y ratificar discursos del campo profesional, valiéndose del capital simbólico poseído por los autores en virtud de su posición en el campo académico para atribuir universalidad a entendimientos de los organismos normalizadores.

Palabras clave:
Adopción de las NIIF; Análisis crítico del discurso; Ideología; Hegemonía

Abstract

The convergence of the Brazilian accounting standards to the International Financial Reporting Standards (IFRS) was boosted by the creation of the Accounting Pronouncements Committee, in 2005, and by Act 11,638/2007. However, political aspects of this process, such as the role of academia in legitimating the IFRS, have been little explored. This article proposes a critical discourse analysis of the book chapter “Convergência da Contabilidade Brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): Retrospectiva Histórica e Desafios para o Futuro” [Convergence of Brazilian Accounting to the International Accountacy Standards (IFRS): History and Challenges for the Future] by Salotti, Carvalho, and Murcia (2015), aiming to identify the main discursive strategies employed to construct a hegemonic narrative about the adoption of IFRS in Brazil. In the theoretical framework, we discuss the concepts of ideology and hegemony, as well as the roles of intellectuals and academia in constructing and disseminating ideological narratives. Empirically, through a critical discourse analysis, the formal properties of the text are described, pointing to their experiential, expressive, and relational values. We also propose an interpretation of the process of production and an explanation of the social conditions of production of the text. The silencing of dissonant voices, the omission of agency and the representation of the Brazilian accounting community and practices in a condition of technical and cultural inferiority are identified as the main discursive strategies employed in the text to reproduce and ratify discourses from the professional field. We take advantage of the symbolic capital possessed by the authors due to the position they occupy in the academic field to attribute universality to understandings of standard-setting bodies.

Keywords:
IFRS adoption; Critical discourse analysis; Ideology; Hegemony

INTRODUÇÃO

A contabilidade financeira vem passando por um processo de convergência internacional de normas que levou cerca de 120 países, até o momento, a permitir ou requerer a adoção, por parte das companhias sob suas jurisdições, das Normas Internacionais de Contabilidade (International Financial Reporting Standards - IFRS), emitidas pelo Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (International Accounting Standards Board - IASB) (IFRS FOUNDATION e INTERNATIONAL ACCOUNTING STANDARDS BOARD, 2017IFRS FOUNDATION; INTERNATIONAL ACCOUNTING STANDARDS BOARD. Who we are and what we do. 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.ifrs.org/-/media/feature/about-us/who-we-are/who-we-are-english.pdf >. Acesso em: 29 ago. 2017.
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). No Brasil, o processo de convergência às IFRS teve impulso a partir da criação do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), em 2005, e a entrada em vigor da Lei n. 11.638/2007, que alterou a parte contábil da Lei das Sociedades por Ações (Lei n. 6.404/1976), deu suporte legal à adoção das IFRS pelas companhias brasileiras a partir das demonstrações contábeis relativas ao exercício de 2010.

Perry e Nöelke (2005PERRY, J.; NÖELKE, A. International accounting standard setting: a network approach. Business and Politics, v. 7, n. 3, p. 1-32, 2005.) argumentam que a principal mudança trazida pelas IFRS à contabilidade foi o aumento do uso de valores de mercado, na forma da contabilidade a valor justo, em detrimento do custo histórico como critério de mensuração contábil, o que contribui para reforçar o paradigma da maximização do valor dos acionistas. Segundo os autores, os procedimentos de consulta e as estruturas de governança do IASB revelam uma predominância de atores ligados à profissão contábil e ao setor financeiro, enquanto representantes do setor público ocupam posições secundárias e outros grupos de interesse sequer são representados. De acordo com Chua e Taylor (2008CHUA, W. F.; TAYLOR, S. L. The rise and rise of IFRS: an examination of IFRS diffusion. Journal of Accounting and Public Policy, v. 27, n. 6, p. 462-473, 2008.), as justificativas econômicas usualmente apresentadas para a expansão internacional das IFRS carecem de suporte empírico robusto - para os autores, a oferta global de normas contábeis por parte de uma entidade privada como o IASB, ao invés de uma entidade do setor público, é fruto de um arranjo político engendrado por uma coalização de grupos de interesse que inclui reguladores e firmas internacionais de contabilidade e auditoria. Os aspectos políticos da regulação contábil têm sido amplamente discutidos na literatura internacional, incluindo análises sobre as ações do IASB e de outros organismos para promover a convergência internacional às IFRS (ARNOLD, 2012ARNOLD, P. J. The political economy of financial harmonization: the East Asian financial crisis and the rise of international accounting standards. Accounting, Organizations and Society, v. 37, n. 6, p. 361-381, 2012.), e discussões sobre o papel das IFRS no processo de financeirização do capitalismo contemporâneo (CHIAPELLO, 2016CHIAPELLO, E. How IFRS contribute to the financialization of capitalism. In: BENSANDON, D.; PRAQUIN, N. (Ed.). IFRS in a global world: international and critical perspectives on accounting. New York: Springer, 2016. p. 71-84.).

No Brasil, embora a literatura acadêmica tenha se debruçado extensivamente sobre as consequências da adoção das IFRS nas práticas contábeis das companhias brasileiras, discussões sobre o processo político que levou a essa convergência ainda são escassas. Entretanto, mesmo na literatura internacional, um aspecto pouco explorado desse processo é o papel desempenhado pela academia na consolidação e legitimação das IFRS em diferentes contextos nacionais. Assim, propomos neste artigo uma análise crítica do discurso, tendo como corpus o capítulo de livro “Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro”, de autoria de Salotti, Carvalho e Murcia (2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20.), com o intuito de identificar as principais estratégias discursivas empregadas para construir uma narrativa hegemônica sobre a adoção das IFRS no Brasil.

IDEOLOGIA, HEGEMONIA E INTELECTUAIS

Ao discorrer sobre o conceito de ideologia, Gramsci (1999GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1., p. 237) se afasta da noção de falsa consciência, entendendo-a como uma concepção de mundo e apontando a necessidade de “distinguir entre ideologias orgânicas, isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalísticas, ‘voluntaristas’”. Assim, Antonio Gramsci propõe “uma teoria materialista das ideologias na qual as forças materiais são o conteúdo e as ideologias a forma, sendo essa distinção entre forma e conteúdo uma distinção metodológica e não orgânica” (BIANCHI, 2008BIANCHI, A. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008., p. 134). Desse modo, Gramsci foge de uma interpretação mecanicista da clássica proposição de Marx (1977MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977., p. 24), segundo a qual:

[...] na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral.

Para Gramsci, estrutura e superestrutura constituem um bloco histórico, havendo entre elas uma reciprocidade necessária que forma uma unidade dialética entre as forças produtivas, as relações sociais de produção e a superestrutura de dado momento histórico (BIANCHI, 2008BIANCHI, A. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008.). Quanto às superestruturas, Gramsci (1999, p. 20-21) entende que:

[...] podem-se fixar dois grandes "planos" superestruturais: o que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como "privados") e o da "sociedade política ou Estado", planos que correspondem, respectivamente, à função de "hegemonia" que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de "domínio direto" ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”.

O conceito de hegemonia de Gramsci é elaborado em diálogo, sobretudo com Lênin, sendo o principal ponto de confluência entre as obras de ambos (GRUPPI, 1978GRUPPI, L. O conceito de hegemonia em Gramsci. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1978.). Contudo, enquanto em Lênin o conceito de hegemonia aparece no contexto das discussões a respeito das alianças de classe a serem estabelecidas pelo proletariado para levar a cabo a revolução socialista, em Gramsci (1999, p. 21) ele também é utilizado para entender um dos aspectos do domínio de classe burguês, aquele

[...] do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção.

Cabe ressaltar, ainda, que Gramsci entende hegemonia "não apenas como direção política, mas também como direção moral, cultural, ideológica" (GRUPPI, 1978GRUPPI, L. O conceito de hegemonia em Gramsci. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1978., p. 11). E, sendo as ideologias um fenômeno superestrutural, é por meio daquelas orgânicas, ou seja, necessárias à estrutura, que se estabelece o vínculo que dá unidade ao bloco histórico, cuja tradução concreta é assegurada “pela camada social encarregada de gerir a superestrutura do bloco histórico - os intelectuais” (PORTELLI, 1977PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977., p. 48).

Ao discutir sobre os limites da acepção de intelectual, Gramsci (2001GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2001. v. 2., p. 18) considera um equívoco buscar um critério de distinção dessa categoria no que seja intrínseco às atividades intelectuais, ao invés de procurá-lo “no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto geral das relações sociais”. O exercício da direção ideológica do bloco histórico pelos intelectuais se articula em três níveis essenciais: "a ideologia propriamente dita, a ‘estrutura ideológica’ "isto é, as organizações que a criam e difundem " e o ‘material’ ideológico, isto é: os instrumentos técnicos de difusão da ideologia (sistema escolar, mass media, bibliotecas, etc.)” (PORTELLI, 1977PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977., p. 22).

A academia e a reprodução da ideologia

Enquanto Antonio Gramsci enfatiza a atuação dos intelectuais na articulação da ideologia das classes dominantes, outros autores atribuem ao sistema de ensino um papel de relevo no processo de disseminação ideológica. Althusser (2007ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. 10. ed. São Paulo: Graal, 2007.), por exemplo, aponta como principal aparelho ideológico de Estado o sistema educacional, que inculca indivíduos de todas as classes sociais com o conhecimento contido na ideologia dominante e prepara-os para cumprir seus papéis na sociedade de classes, seja como explorados, agentes da exploração, agentes da repressão ou ideólogos.

Embora critique a visão estruturalista de Louis Althusser, Bourdieu (1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 10) também considera que a aceitação da cultura dominante é fundamental para “a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções”. Assim, Bourdieu e Passeron (1970)BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. La reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseingnement. Paris: Minuit , 1970. destacam o papel da educação na reprodução das desigualdades sociais, considerando que as ações pedagógicas, ao imporem a todas as classes sociais, por meio do sistema escolar, a cultura, os valores e as normas das classes dominantes, constituem uma forma de violência simbólica, inculcando nos dominados a aceitação do processo de dominação.

Ao longo de sua obra, porém, Bourdieu (1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 135) se afasta do conceito de classe social, entendido por ele como essencialista, e substitui-o pela noção relacional de espaço social, descrito como “um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição actual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes”. O espaço social é subdivido em vários campos, que podem ser descritos como redes ou configurações de relações objetivas entre diferentes posições. Cada campo é palco de uma disputa constante entre os agentes e instituições que nele operam, seguindo regras e regularidades constitutivas desse espaço de disputa que, em sociedades altamente diferenciadas, são específicas e irredutíveis àquelas que regulam outros campos (BOURDIEU e WACQUANT, 1992BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. J. D. An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1992.).

O acesso a um campo é dado pela posse de propriedades definidas como capitais, que se apresentam sob as seguintes formas básicas: capital econômico, que é direta e imediatamente conversível em dinheiro e pode ser institucionalizado na forma de direitos de propriedade; capital cultural, que é conversível em capital econômico, sob certas condições, e pode ser institucionalizado na forma de diplomas; e capital social, composto pelas conexões sociais de um indivíduo e que pode ser institucionalizado na forma de títulos de nobreza (BOURDIEU, 2002BOURDIEU, P. The forms of capital. In: BIGGART, N. W. (Ed.). Readings in economic sociology. Malden, MA: Blackwell, 2002. p. 280-291.); além do capital simbólico, “geralmente chamado prestígio, reputação, fama, etc. que é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital” (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 134-135).

No campo acadêmico, por exemplo, Bourdieu (1984BOURDIEU, P. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984.) identifica a prevalência de duas formas específicas de capital: o poder universitário, fundado no acúmulo de posições na burocracia universitária; e o prestígio científico, que se baseia no investimento bem-sucedido nas atividades de pesquisa. Já ao analisar o campo científico, Bourdieu (1976) identifica como sua principal característica o fato de que os produtores tendem, tanto mais quanto maior for a autonomia do campo, a não ter outros possíveis clientes que não seus próprios concorrentes na disputa pela autoridade científica - espécie particular de capital social que assegura poder sobre os mecanismos constitutivos do campo. Bourdieu (1976)BOURDIEU, P. Le champ scientifique. Actes de la Recherche En Sciences Sociales, v. 2, p. 88-104, 1976. considera, porém, que as ciências sociais enfrentam maiores obstáculos para sua autonomização, pois têm por objetivo a representação legítima do mundo social, que também é objeto de disputa no âmbito político da luta de classes, fazendo com que as classes dominantes busquem nelas um reforço ao arsenal simbólico que legitima a ordem estabelecida. Assim, elas estão mais sujeitas a se tornar campos produtores de discursos eruditos, valendo-se de jargão erudito para, sob uma aparência de autonomia, reafirmar o senso comum.

ANÁLISE DO DISCURSO: ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Van Dijk (1997)VAN DIJK, T. A. The study of discourse. In: VAN DIJK, T. A. (Ed.). Discourse as structure and process. London: SAGE , 1997. p. 1-34. afirma que o conceito de discurso é essencialmente difuso, sendo empregado por diferentes disciplinas e comportando diversas definições e terminologias. Pierre Bourdieu, por exemplo, parte do conceito de habitus, empregado para definir um senso prático socialmente constituído ao longo da trajetória de vida de cada indivíduo e que indica como as regras de um campo são incorporadas por agentes dotados de diferentes valências de capital (BOURDIEU e WACQUANT, 1992BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. J. D. An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1992.), e identifica como um de seus componentes o habitus linguístico, que implica a propensão a dizer certas coisas (interesse expressivo) e a capacidade de dizê-las, envolvendo tanto a competência linguística de gerar um número infinito de discursos gramaticalmente corretos como a capacidade de usar adequadamente essa competência em determinada situação social (BOURDIEU, 1991BOURDIEU, P. Language and symbolic power. Cambridge: Polity, 1991.).

Um dos princípios da análise do discurso, segundo Van Dijk (1997VAN DIJK, T. A. The study of discourse. In: VAN DIJK, T. A. (Ed.). Discourse as structure and process. London: SAGE , 1997. p. 1-34., p. 31, tradução nossa), é de que “além de regras, os usuários da linguagem também conhecem e aplicam estratégias mentais e interacionais no efetivo entendimento e consumação do discurso e na realização de seus objetivos comunicacionais ou sociais”. Assim, considerando o discurso como uma prática social, estratégias discursivas podem ser entendidas como práticas discursivas voltadas ao atendimento de objetivos específicos. Não obstante, a intencionalidade não é uma característica necessária à identificação de tais estratégias, pois, como assevera Bourdieu (1996BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9. ed. Campinas, SP: Papirus, 1996., p. 145):

O paradoxo das ciências humanas é que elas devem constantemente desconfiar da filosofia da ação inerente a modelos como os da teoria dos jogos, que aparentemente se impõem para a compreensão de universos sociais semelhantes ao do jogo. É certo que a maior parte das condutas humanas acontece dentro de espaços de jogo; dito isso, elas não têm como princípio uma intenção estratégica tal como a postulada pela teoria dos jogos. Dito de outro modo, os agentes sociais têm “estratégias” que só muito raramente estão assentadas em uma verdadeira intenção estratégica.

Dentre as alternativas teórico-metodológicas que compõem os estudos discursivos, a Análise Crítica do Discurso (ACD), segundo Jørgensen e Phillips (2002JØRGENSEN, M. W.; PHILLIPS, L. J. Discourse analysis as theory and method. London: SAGE, 2002.), inclui diversas abordagens distintas, mas que comungam das seguintes características: a visão de que processos sociais e culturais têm um caráter parcialmente discursivo; de que o discurso é tanto constituído como constitutivo; de que o uso da linguagem deve ser analisado empiricamente em seu contexto social; de que o discurso tem uma função ideológica; e de que a pesquisa precisa adotar uma abordagem crítica, politicamente comprometida com mudanças sociais. Já para Santos, Bispo e Dourado (2014SANTOS, E. C.; BISPO, D. A.; DOURADO, D. P. A utilização da teoria social do discurso de Fairclough nos estudos organizacionais. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, v. 4, n. 1, p. 55-73, 2014., p. 56), “existe na ACD uma preocupação em descobrir, revelar e divulgar aquilo que está implícito, rejeitando a ‘naturalização’ dos processos sociais, permitindo que as ideologias subjacentes ao discurso, bem como relações de dominação instituídas por elas, sejam reveladas”. Nesse sentido, Fairclough (2001FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília, Brasília: UnB, 2001., p. 131) entende que “o discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significados”.

Em relação à ACD, Fairclough (2010FAIRCLOUGH, N. Critical discourse analysis: the critical study of language. 2. ed. New York: Routledge, 2010.) identifica nela três propriedades básicas: a) ela é relacional, no sentido de que seu foco primário não recai sobre entidades ou indivíduos, mas sobre relações sociais; b) ela é dialética, pois as relações entre discurso e outros objetos como o mundo físico, pessoas e relações de poder são concebidas em termos de continuidade, nenhum deles sendo completamente separado dos outros; e c) ela é transdisciplinar, uma vez que analisa as relações entre discurso e outros objetos, ultrapassando os limites convencionais entre disciplinas. Assim, o discurso é concebido como uma prática social determinada por estruturas sociais, compreendendo texto, interação e contexto, como ilustra a Figura 1.

Figura 1
Discurso como texto, interação e contexto

Em linha com o esquema da Figura 1, Fairclough (1989)FAIRCLOUGH, N. Critical discourse analysis: the critical study of language. 2. ed. New York: Routledge, 2010. propõe três estágios para a ACD: a) descrição das propriedades formais do texto; b) interpretação da relação entre texto e interação; e c) explicação da relação entre interação e contexto social. Na etapa de descrição, o autor distingue três tipos de valores que as propriedades formais de um texto podem assumir: a) experienciais, que se refletem nas alegações de verdade dos autores; b) expressivos, que apontam juízos de valor dos autores; e c) relacionais, que apontam a compreensão dos autores sobre as relações sociais dentre os sujeitos aos quais o texto se refere. Fairclough (2010)FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003. também reconhece três aspectos passíveis de análise nos eventos discursivos: a) os gêneros, definidos como modos específicos de produção textual; b) os estilos, que indicam os modos de ser, de construir e expressar as identidades dos participantes do evento; e c) os discursos em sentido estrito, caracterizados pelos modos de representar o mundo, expressando os pontos de vista dos participantes.

Ao investigar o corpus selecionado para esta pesquisa, nas próximas seções apresentamos: a) descrição das propriedades formais do texto, atentando para seus aspectos experienciais, expressivos e relacionais; b) uma interpretação sobre o processo de produção, apontando a representatividade do texto selecionado em relação ao campo acadêmico contábil brasileiro; e c) uma explicação sobre como o texto interage com o contexto social, baseada nas discussões prévias sobre ideologia, hegemonia e intelectuais.

Dentre as várias formas de críticas que podem ser distinguidas na análise do discurso, Misoczky (2005MISOCZKY, M. C. Análise crítica do discurso: uma apresentação. Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, v. 3, n. 2, p. 125-140, 2005., p. 129) aponta a crítica estratégica, que “focaliza [o] discurso como uma parte das estratégias desenvolvidas por grupos ou atores sociais para produzir modificações ou preservações no contexto social”. Assim, ao analisar os excertos selecionados no corpus investigado, identificamos as principais estratégias discursivas empregadas e apresentamos, com base na literatura acadêmica, contrapontos aos argumentos sustentados, a fim de ilustrar que as escolhas discursivas dos autores indicam uma concepção de mundo particular, dentre outras possíveis. Tal procedimento se justifica pelo entendimento de que, discursivamente, a construção de narrativas hegemônicas se dá pela atribuição de um caráter universal a visões e representações de mundo particulares (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.). Além disso, para evidenciar que os interesses da profissão contábil conferem o embasamento ideológico à concepção de mundo que permeia o corpus, apresentamos evidências de que os argumentos nele contidos reproduzem, sobretudo, posicionamentos de associações profissionais e de normatizadores contábeis. Dessa maneira, procuramos trazer à tona a intertextualidade do material analisado, seguindo a noção exposta por Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 47, tradução nossa), de que:

[...] para cada texto ou tipo de texto particular, há um conjunto de outros textos e um conjunto de vozes que são potencialmente relevantes, e potencialmente incorporadas no texto. Pode não ser possível identificar esses conjuntos com grande precisão, e eles podem ser extensos e complexos. Mas é analiticamente útil começar com uma ideia aproximada deles, pois uma questão inicial significativa é: quais textos e vozes são incluídos, quais são excluídos, e quais ausências significativas há?

DESCRIÇÃO DAS PROPRIEDADES FORMAIS DO TEXTO

Na sequência desta seção, a descrição das propriedades formais do texto é subdividida entre fragmentos discursivos com valores experienciais, expressivos e relacionais, nos quais analisamos a intertextualidade e o emprego de diferentes estratégias discursivas. Ainda que não esgotem a análise do material contido no corpus, em nosso entendimento os excertos apresentados são os mais representativos de cada uma das categorias analisadas. Ao final de cada um deles, indicamos a página e o parágrafo em que se encontram no corpus. Os destaques em itálico e em maiúsculas são originais e os destaques em negrito são nossos.

Valores experienciais

O texto evidencia o entendimento de que o propósito da contabilidade financeira é atender às necessidades de informações de investidores e credores para tomada de decisões econômicas, adotado pelos autores de maneira incondicional:

Com um mercado de capitais frágil, uma inflação galopante só contida em 1994 e uma incursão exacerbada das autoridades tributárias na contabilidade financeira ou societária, balanços para investidores e credores eram virtuais réplicas dos que serviam para instruir as declarações de impostos [...] (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 5, § 2, grifo nosso).

Além disso, os autores adotam a premissa ontológica de que a realidade econômica existe objetivamente, intersubjetivamente, concretamente e independentemente das práticas contábeis, e de que a contabilidade financeira apenas reflete, espelha, representa ou mede esta realidade pré-existente (HINES, 1991HINES, R. D. The FASB’s conceptual framework, financial accounting and the maintenance of the social world. Accounting, Organizations and Society, v. 16, n. 4, p. 313-331, 1991.). Assim, eles sustentam que a contabilidade financeira deve (e, portanto, pode) representar fielmente uma realidade econômica que lhe é independente, devendo ater-se à essência sobre a forma:

Esse novo ordenamento contábil, onde a essência econômica dos eventos econômicos prevalece sobre a forma jurídica (substance over form), [...] É fato, portanto, que precisaremos deixar a zona de conforto das “regras contábeis” e aprender a emitir julgamentos e opiniões visando refletir a visão verdadeira e apropriada (true and fair view) das demonstrações contábeis (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 2, § 3, grifo do autor e grifo nosso).

Dessa maneira, por meio da intertextualidade, percebe-se que os autores ecoam manifestações discursivas do IASB e do CPC:

O objetivo do relatório contábil-financeiro de propósito geral é fornecer informações contábil-financeiras acerca da entidade que reporta essa informação (reporting entity) que sejam úteis a investidores existentes e em potencial, a credores por empréstimos e a outros credores, quando da tomada decisão ligada ao fornecimento de recursos para a entidade (CPC, 2011COMITÊ DE PRONUNCIAMENTOS CONTÁBEIS - CPC. Pronunciamento conceitual básico (R1): estrutura conceitual para elaboração e divulgação de Relatório Contábil-Financeiro. 2011. Disponível em: <Disponível em: http://static.cpc.aatb.com.br/Documentos/147_CPC00_R1.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2018.
http://static.cpc.aatb.com.br/Documentos...
).

Os relatórios contábil-financeiros representam um fenômeno econômico em palavras e números. Para ser útil, a informação contábil-financeira não tem só que representar um fenômeno relevante, mas tem também que representar com fidedignidade o fenômeno que se propõe representar (CPC, 2011).

O silenciamento de vozes dissonantes é uma das estratégias discursivas adotadas pelos autores para veicular a concepção de mundo dos normatizadores e da profissão contábil, atribuindo-lhe caráter universal. Assim, o texto dialoga com pronunciamentos oriundos do campo profissional, mas não com questionamentos que lhes são feitos na literatura acadêmica: Para Hines (1991HINES, R. D. The FASB’s conceptual framework, financial accounting and the maintenance of the social world. Accounting, Organizations and Society, v. 16, n. 4, p. 313-331, 1991.), por exemplo, a premissa de que a contabilidade financeira apenas reflete uma realidade econômica pré-existente é fruto de um processo de raciocínio mundano que ignora as especificidades culturais de conceitos como lógica, raciocínio e racionalidade, acabando por desempenhar um importante papel na constituição do mundo social e contribuindo para prover legitimidade social à profissão contábil.

Quanto ao entendimento de que o objetivo da contabilidade financeira é atender às necessidades de informações de investidores e credores para tomada de decisões econômicas, Young (2006)YOUNG, J. J. Making up users. Accounting, Organizations and Society, v. 31, n. 6, p. 579-600, 2006. afirma se tratar de ideia introduzida há poucas décadas no pensamento contábil, ainda que pouco se conheça sobre as necessidades informacionais e processos decisórios de usuários efetivos das demonstrações contábeis. No texto analisado, ao tomarem investidores e credores como categorias homogêneas e excluírem do escopo da disciplina os interesses de grupos outros que não os participantes dos mercados financeiros, os autores silenciam diversos enfoques possíveis ao estudo das práticas contábeis, tais como seus aspectos retóricos (CARRUTHERS e ESPELAND, 1991CARRUTHERS, B. G.; ESPELAND, W. N. Accounting for rationality: double-entry bookkeeping and the rhetoric of economic rationality. American Journal of Sociology, v. 97, n. 1, p. 31-69, 1991.) e seu papel na mediação de conflitos organizacionais e sociais (BURCHELL, CLUBB, HOPWOOD et al., 1980BURCHELL, S. et al. The roles of accounting in organizations and society. Accounting, Organizations and Society, v. 5, n. 1, p. 5-27, 1980.), dentre outros.

Valores expressivos

A adoção das IFRS no Brasil é recorrentemente caracterizada pelos autores como uma revolução:

O ano de 2010 foi considerado um verdadeiro divisor de águas da contabilidade brasileira. O processo de convergência para as Normas Internacionais de Contabilidade, as IFRS, foi, sem dúvida, a maior mudança ocorrida na contabilidade nacional desde a publicação da Lei nº 6.404, no ano de 1976 (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 1, § 2, grifo nosso).

O objetivo do presente capítulo, à luz da “Revolução Contábil” trazida pelas normas IFRS, foi apresentar um breve histórico do Modelo Contábil Brasileiro e igualmente reconhecer desafios futuros da disciplina Contábil no cenário nacional (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 19, § 1, grifo nosso).

Nesse caso, a omissão de agência surge como mais uma estratégia discursiva extensivamente empregada ao longo do texto: tal revolução é retratada como consequência de um processo de “evolução natural”, em que cada mudança ocorrida na regulação contábil brasileira representa uma necessária e evidente melhoria em relação à configuração anterior.

Por outro lado, o modelo contábil presente nesse decreto [Decreto-Lei n. 2.627/1940] era naturalmente bem inferior ao modelo atual (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 3, § 3, grifo nosso).

Como parte de um processo normal de evolução da economia e do mercado de capitais, esse modelo contábil foi profundamente modificado em 1976, com a edição da Lei nº 6.404/76, conhecida no Brasil com a Lei das Sociedades por Ações (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 3, § 4, grifo nosso).

Quando expressam sua rejeição à interferência estatal no processo de regulação contábil e quando se mostram entusiastas do arranjo regulatório engendrado a partir da Lei n. 11.638/2007, no qual predomina o CPC, um órgão privado, centralizado e baseado em expertise técnica, mais uma vez os autores empregam a omissão de agência como estratégia discursiva, afirmando que o “engessamento” e a pluralidade de emissores de normas contábeis são indesejados, mas sem explicitar por quem são indesejados.

Porém, a mesma legislação que trouxe modernidade às práticas contábeis adotadas no Brasil acabou sendo um entrave à necessária evolução do modelo contábil, pois ao inserir determinações mandatórias, no âmago da lei, de algumas práticas contábeis e de divulgação, acabou provocando um indesejado “engessamento” (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 4, § 2, grifo nosso).

Além disso, não apenas não havia um único órgão centralizador de emissão de normas contábeis, como de fato contávamos com uma indesejada pluralidade de tais órgãos emitindo normas contábeis sem coordenação e muitas vezes sem diálogo entre si [...] (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 5, § 3, grifo nosso).

Pela análise do evento discursivo em seu todo, porém, pode-se depreender que os agentes omitidos sejam os normatizadores contábeis, cujos interesses e pontos de vista são adotados como parâmetro pelos autores. A passagem a seguir, na qual a agência é explicitada, corrobora esse entendimento:

De qualquer forma, o processo de adoção das IFRS no ambiente regulatório local passa e irá continuar passando pelo desafio de uma adoção pura versus a adaptação do modelo, esta indesejada pelo IASB (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 16, § 5, grifo do autor e grifo nosso).

Já ao abordar a estrutura regulatória engendrada a partir da criação do CPC, a delimitação do escopo da disciplina e dos participantes legítimos no processo de regulação contábil a um conjunto restrito de interesses privados é representada como um avanço democrático.

Importante destacar que o CPC foi concebido de forma a incluir diversos e múltiplos interesses, porém, todos voltados ao foco das demonstrações financeiras. Foi formatado para incluir todos os principais players que PREPARAM, AUDITAM e ANALISAM demonstrações financeiras; essa pluridisciplinaridade impede que o processo de normatização seja “sequestrado” por um player isolado e permite que o consenso da utilidade por todos seja obtido num diálogo tecnicamente elevado, porém consensual. O CPC, desde a origem, é formado por seis órgãos que congregam preparadores de DFs, auditores, analistas, acadêmicos e, ainda, os reguladores da profissão contábil e a bolsa de valores [...] (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 7, § 1, GRIFO DO AUTOR e grifo nosso).

Com isso, uma vez mais o texto deixa de dialogar com questionamentos presentes na literatura acadêmica. Por exemplo, Nölke e Perry (2008NÖLKE, A.; PERRY, J. The power of transnational private governance: financialization and the IASB. Business and Politics, v. 9, n. 3, p. 1-25, 2008.) veem, no avanço das IFRS, a prevalência de uma abordagem despolitizada e baseada em expertise e que serve para proteger a contabilidade de um escrutínio público amplo. Em linha com esse entendimento, Botzem (2014BOTZEM, S. Transnational standard setting in accounting. Accounting, Auditing & Accountability Journal, v. 27, n. 6, p. 933-955, 2014.) entende que a produção de regras vinculativas, tais como os processos de normatização contábil, deveria se sujeitar ao escrutínio democrático e à participação social - e não apenas a consultas de caráter voluntário, como ocorre na elaboração das IFRS.

Valores relacionais

Ao longo do texto os autores constroem a ideia de uma coletividade um tanto quanto difusa, mas que se pode depreender como a comunidade contábil brasileira, que é representada em condição de inferioridade técnica e cultural em relação às estrangeiras:

De acordo com Martins, Diniz e Miranda (2012MARTINS, E.; DINIZ, J.; MIRANDA, G. Análise avançada das demonstrações contábeis. São Paulo: Atlas, 2012.), todo esse processo normativo novo tem uma filosofia completamente diferente da que nós, latinos, estávamos acostumados. É fato, portanto, que precisaremos deixar a zona de conforto das “regras contábeis” e aprender a emitir julgamentos e opiniões visando refletir a visão verdadeira e apropriada (true and fair view) das demonstrações contábeis (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 2, § 3, grifo do autor e grifo nosso).

Assim, mesmo quando atribuem sucessos “ao Brasil”, os autores sentem necessidade de recorrer à chancela de entidades estrangeiras e é com cautela que aventam a hipótese de que a comunidade contábil brasileira venha a ter participação efetiva no processo de elaboração das normas do IASB.

Nessa época, o Brasil desenvolveu uma metodologia contábil de reconhecimento dos efeitos da inflação bastante robusta, inclusive reconhecida pela UNCTAD/ISAR/ONU como o modelo de correção monetária mais avançado existente no mundo (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 4, § 3, grifo nosso).

Essa alteração do status quo resultou inevitavelmente em busca de soluções que, em um segundo momento, poderão inclusive ser levadas ao IASB para fins de aprimoramento e melhoria das IFRS, como, por exemplo, no caso da norma internacional que trata dos efeitos da inflação das Demonstrações Contábeis (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 2, § 2, grifo do autor e grifo nosso).

Intertextualmente, a caracterização do sistema contábil brasileiro em condição de inferioridade em relação aos estrangeiros ecoa modelos classificatórios apresentados na literatura acadêmica, tais como os de Ali e Hwang (2000ALI, A.; HWANG, L.-S. Country-specific factors related to financial reporting and the value relevance of accounting data. Journal of Accounting Research, v. 38, n. 1, p. 1-21, 2000.) e Nobes (1998NOBES, C. Towards a general model of the reasons for international differences in financial reporting. Abacus, v. 34, n. 2, p. 162-187, 1998.), por exemplo. Contudo, esses modelos possuem alguns traços marcantes de colonialidade: são desenvolvidos por pesquisadores vinculados a universidades de países anglo-saxões, veiculados em periódicos de países anglo-saxões e, adotam implícita ou explicitamente, a premissa de que os sistemas contábeis devam atender a necessidades dos mercados de capitais, cuja relevância nas economias dos países anglo-saxões é maior do que em outros países. Contudo, em uma aparente amenização da colonialidade com que representam essa comunidade que precisa aprender a emitir julgamentos e opiniões para poder levar soluções ao IASB em um segundo momento, por vezes, os autores se identificam com ela, colocando-se como seus porta-vozes por meio do uso da primeira pessoa.

Na prática, entretanto, poucas são as pequenas e médias empresas que aplicam o CPC-PME, apesar de essa norma já existir desde 2009, sendo inclusive requerida pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC). Conforme discutiremos na próxima seção deste capítulo, isso representa um grande desafio, pois para a convergência ser completa necessitamos levá-la também às pequenas e médias empresas brasileiras (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 12, § 2, grifo nosso).

Contudo, o contexto do evento discursivo sugere que essa identificação decorra de uma estratégia de condescendência. Para que haja condescendência, segundo Bourdieu (2003BOURDIEU, P. Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003., p. 132), “é necessário que haja distância objectiva: a condescendência é a utilização demagógica de uma relação de força objectiva uma vez que aquele que condescende se serve da hierarquia para a negar; no próprio momento em que a nega, explora-a”. Assim, embora ao logo do texto os autores por vezes se incluam na comunidade contábil brasileira em condição de igualdade, de modo geral, eles se distinguem dela ao se apresentarem na condição de conhecedores e propagadores das IFRS perante um público que precisa aprender a pensar e comportar-se de maneira adequada a tais normas. Nesse sentido, um traço textual marcante que pode ser associado à estratégia de diferenciação em relação à comunidade contábil nacional são os anglicismos, cujo emprego ao longo do texto serve para evidenciar o domínio da língua inglesa pelos autores, ao mesmo tempo que o português é considerado uma barreira à adoção das IFRS no Brasil.

Hoje, mais do que nunca, o preparo de demonstrações financeiras sob as IFRS é uma atividade colegiada, em que as decisões das áreas operacionais (Human Resources, Treasury, Risk Management, Production, IT, New Business, dentre outras) devem ser avaliadas CONJUNTAMENTE com a contabilidade para que sejam entendidos os impactos em financial reporting (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 15, § 1, grifo do autor).

O ensino das IFRS apresenta diversos desafios. Um deles é a barreira do idioma, já que, no Brasil, a língua oficial é a língua portuguesa. Porém, as normas internacionais e muitos dos materiais de apoio para ensino em IFRS se encontram em língua inglesa (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 15, § 6).

Para que a comunidade contábil brasileira mitigue sua condição de inferioridade e, assim como a regulação contábil, também “evolua” em direção às IFRS, os autores recorrem ao argumento de autoridade para atribuir um papel fundamental ao ensino e defender um programa de caráter marcadamente instrumental, advogando em favor de um “pensamento crítico” que nada critique nas, mas apenas de acordo com as normas elaboradas pelo IASB e traduzidas pelo CPC.

Nesse novo “paradigma contábil”, entendemos ser fundamental o papel da educação e do treinamento contábil. Professores e educadores em geral estão, portanto, diante de um imenso desafio: preparar profissionais dotados de pensamento crítico para interpretar normas, emitir julgamentos sobre transações e eventos econômicos de modo a produzir informações contábeis de qualidade que sejam úteis para a tomada de decisão econômica dos agentes do mercado (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 19, § 5, grifo nosso).

Uma vez mais, os autores ecoam manifestações do campo profissional, tais como a proposta do Conselho de Normas Internacionais de Educação Contábil (International Accounting Education Standards Board - IAESB), mantido pela Federação Internacional de Contadores (International Federation of Accountants - IFAC), associação que reúne 175 entidades de mais de 130 países e representa mundialmente quase 3 milhões de profissionais (IFAC, 2016INTERNATIONAL FEDERATION OF ACCOUNTANTS - IFAC. 2016. About IFAC. Disponível em: <Disponível em: https://www.ifac.org/about-ifac >. Acesso em: 28 nov. 2016.
https://www.ifac.org/about-ifac...
). Na visão do IAESB:

[...]

17. Os objetivos gerais da educação contábil profissional são (a) desenvolver a competência profissional de aspirantes a contadores profissionais, e (b) desenvolver e manter a competência profissional de contadores profissionais.

18. Competência profissional é a capacidade de desempenhar um papel de acordo com um padrão definido. A competência profissional vai além o conhecimento de princípios, padrões, conceitos, fatos e procedimentos; ela é a integração e aplicação de (a) competência técnica, (b) habilidades profissionais, e (c) valores, ética e atitudes profissionais (IAESB, 2015INTERNATIONAL ACCOUNTING EDUCATION STANDARDS BOARD - IAESB. Framework for international education standards for professional accountants and aspiring professional accountants. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://www.ifac.org/publications-resources/framework-international-education-standards-professional-accountants-and >. Acesso em: 28 nov. 2015.
https://www.ifac.org/publications-resour...
, p. 7, tradução nossa, grifo nosso).

INTERPRETAÇÃO DO PROCESSO DE PRODUÇÃO DO TEXTO

Das propriedades formais do texto, analisadas na seção anterior, é possível depreender que os autores consideram a adoção das IFRS no Brasil um processo ainda em curso, valendo-se da autoridade que suas posições acadêmicas lhes conferem para se colocarem na condição de propagadores das IFRS.

Conforme informações disponíveis no livro em que o capítulo se encontra, os três autores são professores do Departamento de Contabilidade e Atuária da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (EAC/FEA/USP), atuando no Programa de Pós-Graduação em Controladoria e Contabilidade (PPGCC) que o departamento oferta. Trata-se do programa de pós-graduação em contabilidade com maior nota na avalição trienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), bem como o mais antigo - inaugurado apenas com o mestrado em 1973, de 1978 até 2007 o PPGCC/FEA/USP foi o único programa a oferecer curso de doutorado em ciências contábeis no Brasil. Sendo ainda hoje o formador de grande parte dos doutores em contabilidade em atividade, é notável a atuação de egressos do PPGCC/FEA/USP como professores nos demais programas de pós-graduação em contabilidade do país. O texto selecionado para o corpus desta análise é o capítulo introdutório do livro IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais, cujos demais capítulos são de autoria de alunos e professores vinculados ao PPGCC/FEA/USP. Assim, tendo em vista a posição de destaque do PPGCC/FEA/USP, entendemos que a narrativa construída por Salotti, Carvalho e Murcia (2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20.) é representativa de um posicionamento central na comunidade acadêmica contábil brasileira.

Outro aspecto a ser levado em consideração é que, na condição de professores do EAC/FEA/USP, os autores têm direito a voto na eleição do Conselho Curador da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (FIPECAFI, 2018FIPECAFI. Governança Corporativa. 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.fipecafi.org/Fundacao/FundacaoGovernancaCorporativa >. Acesso em: 18 jan. 2019.
http://www.fipecafi.org/Fundacao/Fundaca...
), que provê suporte operacional e financeiro ao EAC/FEA/USP. Apresentada no texto como representante da comunidade acadêmica - ainda que seja dirigida tão somente por professores em exercício ou aposentados do EAC/FEA/USP - a Fipecafi é uma das seis entidades que compõem o CPC por meio de representantes com direito a voz e voto (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20.). Logo, mesmo não sendo explicitado ao longo do capítulo, tampouco no restante do livro, o vínculo institucional dos autores com a Fipecafi e, por conseguinte, com o CPC, é de amplo conhecimento na comunidade contábil.

A contradição existente entre a independência esperada de um campo acadêmico e o comprometimento oriundo de um vínculo institucional é explicitada na relação entre o gênero e o estilo do texto: embora apresentado em gênero acadêmico, como capítulo de um livro didático, seu estilo é permeado por um tom promocional, promovendo as qualidades superiores das IFRS de forma militante e conclamando os leitores a aderirem à causa. Segundo o texto, não há defeitos nas IFRS: quem os têm somos nós, latinos, que precisamos “aprender a emitir julgamentos e opiniões visando refletir a visão verdadeira e apropriada (true and fair view) das demonstrações contábeis” (SALOTTI, CARVALHO e MURCIA, 2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20., p. 2, grifo do autor e grifo nosso). Assim, entendemos que o texto não constitui exercício de reflexão a respeito das IFRS, mas apenas uma ferramenta de disseminação da concepção de mundo nelas imbuída.

Explicação das condições sociais de produção do texto

Além de apresentar uma narrativa triunfalista a respeito da adoção das IFRS no Brasil, o texto analisado propõe um programa de ensino voltado a condicionar toda a comunidade contábil brasileira a essa visão, propagando uma concepção de mundo e um modo de agir. Portanto, pode-se interpretar o texto como uma iniciativa hegemônica que busca construir um consenso favorável às IFRS. Assim, não apenas as posições acadêmicas ocupadas pelos autores, mas também a atuação em prol dessa construção e disseminação ideológica permite considerá-los intelectuais, na acepção gramsciana do termo. Entretanto, ainda cabe discutir o grau de organicidade dessa atuação, ou seja, se a ideologia presente no texto é necessária à estrutura do atual bloco histórico.

Análises do capitalismo contemporâneo sustentam a tese da financeirização, segundo a qual o circuito do capital financeiro tem ganhado, desde o início da década de 1980, prevalência sobre o circuito do capital produtivo, sujeitando a acumulação de capital à lógica da valorização financeira e da maximização do valor do acionista, situando o capital portador de juros no centro das relações econômicas e sociais (PAULANI, 2009PAULANI, L. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos Avançados, v. 23, n. 66, p. 25-39, 2009.). Ao discutir o conteúdo normativo das IFRS, Zhang e Andrew (2014)ZHANG, Y.; ANDREW, J. Financialisation and the Conceptual Framework. Critical Perspectives on Accounting, v. 25, n. 1, p. 17-26, fev. 2014. argumentam que a estrutura conceitual desenvolvida pelo IASB é representativa do sucesso da financeirização, excluindo do processo de divulgação contábil os interesses de grupos de usuários que não os ligados aos mercados financeiros e incentivando a adoção do valor justo, que coloca nos mercados financeiros, ao invés de nas transformações produtivas e nas trocas mercantis, a fundamentação dos critérios de avaliação contábil. Já para Müller (2014MÜLLER, J. An accounting revolution? The financialisation of standard setting. Critical Perspectives on Accounting, v. 25, n. 7, p. 539-557, out. 2014.), a contabilidade a valor justo promovida pelas IFRS não apenas reflete, mas também promove a financeirização, ao contribuir para a implementação da concepção de portfólio a firmas não financeiras. Portanto, considerando que a financeirização seja um movimento estrutural do capitalismo contemporâneo e que as IFRS refletem e promovem esse movimento no âmbito das superestruturas, concluímos que a ideologia veiculada por meio do texto analisado possui alto grau de organicidade.

COMENTÁRIOS FINAIS

Apresentamos neste artigo uma ACD, tendo como corpus o capítulo de livro “Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro”, de Salotti, Carvalho e Murcia (2015SALOTTI, B. M.; CARVALHO, N.; MURCIA, F. D.-R. Convergência da contabilidade brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS): retrospectiva histórica e desafios para o futuro. In: SALOTTI, B. M. et al. (Ed.). IFRS no Brasil: temas avançados abordados por meio de casos reais. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1-20.), a fim de elucidar como o texto em questão contribui para a construção de uma narrativa hegemônica a respeito da adoção das IFRS no Brasil. Por meio do ferramental teórico-metodológico da análise crítica do discurso, identificamos o silenciamento de vozes dissonantes, a omissão de agência e a colonialidade como as principais estratégias discursivas empregadas para reproduzir discursos particulares oriundos do campo profissional, atribuindo-lhes um caráter universal.

Ao longo do texto analisado, entendemos que os autores mobilizam o capital simbólico de que gozam em virtude da posição privilegiada que ocupam no campo acadêmico para reproduzir e chancelar discursos oriundos do campo profissional, sobretudo dos normatizadores, oferecendo indícios de que a comunidade acadêmica contábil brasileira comporta um campo produtor de discursos eruditos (cf. BOURDIEU, 1976BOURDIEU, P. Le champ scientifique. Actes de la Recherche En Sciences Sociales, v. 2, p. 88-104, 1976.). Ademais, a atribuição de universalidade aos discursos oriundos do campo profissional evidencia a ambição hegemônica dessas estratégias discursivas (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.).

Trabalhos futuros podem contribuir para avançar a análise sob a ótica da intertextualidade: Como o texto analisado se relaciona com outros discursos a respeito da adoção das IFRS no Brasil? Existe uniformidade dentre esses discursos ou o texto se insere em um contexto de disputa, de interpretações divergentes a respeito desse processo? Por fim, como ressaltam Jørgensen e Phillips (2002JØRGENSEN, M. W.; PHILLIPS, L. J. Discourse analysis as theory and method. London: SAGE, 2002.), a ACD se caracteriza pela adoção de uma postura politicamente comprometida com mudanças sociais. Assim, com esta análise, buscamos nos contrapor à agenda proposta pelos autores para a educação contábil, marcada por uma concepção instrumental do ensino e pela ausência de um olhar crítico sobre as IFRS em si e seu processo de adoção no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2017
  • Aceito
    07 Jan 2019
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