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HISTÓRIA DE FAMILIARES SOBRE O CUIDADO DA PESSOA COM DEPENDÊNCIA QUÍMICA

RESUMO

Objetivo:

conhecer como o familiar vivencia o cuidado da pessoa com dependência química.

Método:

História Oral Temática Híbrida, com quatro colaboradores, tendo como local um hospital psiquiátrico localizado na cidade de Curitiba, Paraná, Brasil. Coleta de dados entre os meses de outubro e novembro de 2020. Os dados foram analisados seguindo os passos de transcrição absoluta, textualização e transcriação.

Resultados:

revelaram-se dois temas: A vivência sofrida do familiar com o tratamento do dependente químico e Espiritualidade e religiosidade como suporte para lidar com os desafios da dependência.

Conclusão:

a dependência química causa impactos nos familiares, que sofrem em virtude do surgimento dessa doença, gerando sofrimento, frustação e, por vezes, desesperança por parte dos familiares. Experiências diversas sobre o mesmo evento podem servir como reflexão e alerta para todos sobre a importância do cuidado voltado aos familiares.

DESCRITORES
Dependência Química; Enfermagem; Família; Saúde Mental; Profissionais de saúde.

ABSTRACT

Objective:

to know how family members experience the care provided to a person with a chemical addiction.

Method:

Hybrid Thematic Oral History, with four collaborators and having as locus a psychiatric hospital located in the city of Curitiba, Paraná, Brazil. Data collection took place between October and November 2020. The data were analyzed following the absolute transcription, textualization and transcreation steps.

Results:

two topics were revealed, namely: The family member’s experience regarding treatment of a person with a chemical addiction; and Spirituality and religiousness as support to deal with the challenges inherent to the chemical addiction.

Conclusion:

chemical addiction exerts a number of impacts on the family members, who suffer due to onset of this disease, leading to distress, frustration and sometimes hopelessness in the relatives. Various experiences regarding the same event can be useful as a reflection and warning for everyone about the importance of care targeted at the family members.

DESCRIPTORS:
Chemical Addiction; Nursing; Family; Mental Health; Health Professionals.

RESUMEN

Objetivo:

averiguar de qué manera los familiares experimentan el cuidado de personas con adicciones a sustancias químicas.

Método:

Historia Oral Temática Híbrida con cuatro colaboradores, realizada en un hospital psiquiátrico situado en la ciudad de Curitiba, Paraná, Brasil. La recolección de datos tuvo lugar durante los meses de octubre y noviembre de 2020. Los datos se analizaron siguiendo los pasos de transcripción absoluta, textualización y transcripción.

Resultados:

se hicieron evidentes dos temas, a saber: La experiencia de los familiares con respecto al tratamiento de personas con adicciones a sustancias químicas; y Espiritualidad y religiosidad como apoyo para lidiar con los desafíos de la adicción.

Conclusión:

la adicción a sustancias químicas ejerce diversos efectos en los familiares, que sufren a raíz de la aparición de esta enfermedad, generando angustia, frustración y, en ocasiones, desesperanza en los integrantes de la familia. Diversas experiencias con respecto al mismo evento pueden servir como reflexión y alerta para todos los involucrados en relación a la importancia del cuidado dirigido a los familiares.

DESCRIPTORES:
Adicción a Sustancias Químicas; Enfermería; Familia; Salud Mental; Profesionales de la Salud.

INTRODUÇÃO

O problema mundial das drogas é uma das questões mais desafiadoras enfrentadas na atualidade, visto que causa amplos impactos na saúde e no bem-estar de indivíduos, famílias e comunidades tal como na segurança e no desenvolvimento sustentável do mundo11 United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Relatório mundial sobre drogas: 35 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de transtornos por uso de drogas, enquanto apenas uma em cada sete pessoas recebe tratamento. [Internet]: Brasília: Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes; 2019. [acesso em 27 jun 2019]. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2019/06/relatrio-mundial-sobre-drogas-2019_-35-milhes-de-pessoas-em-todo-o-mundo-sofrem-de-transtornos-por-uso-de-drogas--enquanto-apenas-1-em-cada-7-pessoas-recebe-tratamento.html.
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. Segundo o mais recente relatório da United Nations Office on Drugs and Crime11 United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Relatório mundial sobre drogas: 35 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de transtornos por uso de drogas, enquanto apenas uma em cada sete pessoas recebe tratamento. [Internet]: Brasília: Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes; 2019. [acesso em 27 jun 2019]. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2019/06/relatrio-mundial-sobre-drogas-2019_-35-milhes-de-pessoas-em-todo-o-mundo-sofrem-de-transtornos-por-uso-de-drogas--enquanto-apenas-1-em-cada-7-pessoas-recebe-tratamento.html.
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, estima-se que, no mundo todo, cerca de 35 milhões de pessoas sofrem de distúrbios relacionados ao uso de substâncias químicas e, dessas pessoas, uma a cada sete recebe tratamento.

No Brasil, segundo os dados do III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira realizado pela Fiocruz com indivíduos entre 12 e 65 anos, as drogas mais usadas no país são, em ordem decrescente: a maconha seguida dos benzodiazepínicos, cocaína, opiáceos, crack, solventes e anfetamínicos. De acordo com o levantamento, entre os entrevistados, 3,2% usaram substâncias ilícitas nos últimos 12 meses anteriores à pesquisa, número esse equivalente a 4,9 milhões de pessoas. Os dados também revelaram que esse percentual é maior entre os homens e jovens de 18 a 24 anos22 Bastos FIPM, Vasconcellos MTL de, Boni RB de, Reis NB dos, Coutinho CF de S. III Levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. [Internet]: Rio de Janeiro: Fiocruz/ICICT; 2017 [acesso em 14 set 2019]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614.
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.

A dependência química reflete-se como um problema de saúde pública que envolve todos os níveis de escolaridade, classes sociais e faixas etárias em todo o mundo33 Lages RCN. A vivência do dependente químico com álcool. [dissertação]. Curitiba (PR): Universidade Federal do Paraná; 2018., acompanha prejuízos na saúde, vida profissional, financeira, no relacionamento com amigos e família e contribui para a violência44 Claus MIS, Zerbetto SR, Gonçalves AM de S, Galon T, Andrade LGZ de, Oliveira FC de. As forças familiares no contexto da dependência de substâncias psicoativas. Esc. Anna N ery. [Internet]. 2018 [acesso em 05 jun 2019]; 22(4). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v22n4/pt_1414-8145-ean-22-04-e10180180.pdf.
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. Danos associados à dependência química não estão restritos apenas ao usuário que faz o uso abusivo, mas também causa efeitos negativos sobre a família, amigos, colegas de trabalho e até estranhos55 Bortolon CB, Signor L, Moreira T de C, Figueró LR, Benchaya MC, Machado CA, et al. Family functioning and health issues associated with codependency in families of drug users. Ciênc. Saúde Coletiva. [Internet]. 2016 [acesso em 10 set 2019]; 21(1). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000100101.
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.

Compreender os problemas das pessoas neste cenário de vida e incorporar a família no cuidado e tratamento possibilitam construir uma rede de cuidado afetiva para a pessoa com necessidades decorrentes do uso de substâncias químicas, o que justifica a necessidade de mais estudos que façam a abordagem do tema no contexto familiar44 Claus MIS, Zerbetto SR, Gonçalves AM de S, Galon T, Andrade LGZ de, Oliveira FC de. As forças familiares no contexto da dependência de substâncias psicoativas. Esc. Anna N ery. [Internet]. 2018 [acesso em 05 jun 2019]; 22(4). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v22n4/pt_1414-8145-ean-22-04-e10180180.pdf.
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. Frente ao exposto, o objetivo deste estudo foi conhecer como o familiar vivencia o cuidado da pessoa com dependência química.

MÉTODO

Pesquisa qualitativa com o método da História Oral Temática Híbrida, que considera o sujeito do estudo o familiar que cuida e acompanha a pessoa com dependência química. Optou-se pelo referencial metodológico da História Oral Temática por ela ser a que mais se aproxima das expectativas acadêmicas. Por ser baseada em entrevistas, é a que melhor se adapta para discussões em torno de um assunto específico66 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2017..

A pesquisa foi desenvolvida em um hospital psiquiátrico que faz parte de um Complexo Integrado de Atenção à Saúde Mental e está localizado na região de Curitiba, Paraná. O hospital é uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, que tem como objetivo atuar no tratamento de transtornos mentais e dependência química.

Foram participantes da pesquisa familiares cuidadores aqui designados colaboradores. Nas pesquisas em História Oral, os participantes são chamados de colaboradores dada a colaboração estabelecida entre pesquisador e pesquisado66 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2017..

Para o recrutamento dos colaboradores, foi realizada uma análise dos prontuários eletrônicos dos pacientes com histórico e diagnóstico de dependência química que se encontravam internados. Após análise e levantamento dos dados, foi realizado contato telefônico com 20 familiares e apenas quatro manifestaram interesse em participar da pesquisa. O agendamento do dia e horário da entrevista foi acordado por telefone.

A coleta de dados foi de outubro até novembro de 2020. Foi utilizado um roteiro semiestruturado com questões abertas para a condução das entrevistas, que foram gravadas mediante o uso de dois telefones celulares que possuíam recurso de gravador de áudio, buscando, assim, diminuir o risco de perda de material coletado.

Seguiu-se à análise dos dados em História Oral, que consistiu em três fases. A primeira é chamada de transcrição absoluta e consiste na transcrição do oral para o escrito de forma bruta, na sua totalidade, ou seja, as perguntas e respostas foram mantidas, assim como as repetições, os erros, palavras sem peso semântico, até mesmo sons de telefone, dentre outros sons do cotidiano, por exemplo.

A textualização, segunda fase, é caracterizada pelo processo de eliminação das perguntas, ruídos, erros gramaticais, em que se faz o ajuste de palavras sem peso semântico em favor de um texto mais claro e liso. É nessa etapa que também se obtém o “tom vital”. O “tom vital” é um recurso utilizado para extrair a essência da entrevista, é ele que determina o que pode ou não ser eliminado do texto.

A última fase consiste na versão final do texto, uma escrita mais completa e elaborada, em que ele é disposto em seu formato final. Após esse processo, o texto é devolvido ao colaborador para sua leitura e autorização para compor a sequência de entrevistas do projeto.

Ao considerar os aspectos éticos, os nomes dos colaboradores foram substituídos por nomes fictícios, ainda mantendo sua individualidade. O estudo respeitou os preceitos éticos de pesquisa envolvendo seres humanos. A pesquisa iniciou-se após o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná de número 4.114.951.

RESULTADOS

Apresenta-se a caracterização dos colaboradores, bem como o tom vital de cada entrevista, no quadro 1.

Quadro 1
Caracterização dos Colaboradores, Curitiba, PR, Brasil, 2020

Após a leitura dos textos e apreendidos os pontos de intersecção, elencaram-se os seguintes temas relevantes: A vivência sofrida do familiar com o tratamento do dependente químico e Espiritualidade e religiosidade como suporte para lidar com os desafios da dependência química.

A vivência sofrida do familiar com o tratamento do dependente químico

Os colaboradores justificaram - alguns de forma ambivalente - como disparadores do uso e/ou abuso de álcool e outras drogas o ambiente de trabalho, as decepções amorosas, a influência familiar e no ambiente escolar e universitário.

[...] ele é militar, se afundou - depois que eu fui saber mais - quando ele entrou nessa carreira [...] depois, fiquei sabendo que a mãe dele tinha problema com álcool e o pai tem até hoje. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] tudo começou no colégio. Ele dizia que ia ao colégio e acreditávamos nele, mas o colégio nunca nos avisou das faltas dele. (Colaborador 2, Roberto)

[...] ele é policial militar aposentado, tem 65 anos e vem, desde o início de sua carreira na polícia, se envolvendo com a bebida [...] a irmã do meu pai faleceu por causa da bebida alcóolica e acredito que o irmão dele esteja livre do álcool há seis anos. (Colaborador 3, Júnior)

[...] ele começou a fumar cigarro, acho que com uns 14 anos de idade, escondido da gente. A mãe dele fumava. Aliás, a mãe dele fuma até hoje. (Colaborador 4, Carlos)

Compreende-se, também, a relevância do familiar no tratamento da dependência química.

[...] hoje, a família dele é mais presente, ligam para saber como ele está, se importam mais. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] ele sempre pede ajuda, nós ajudamos e ele quer ser ajudado. Parece que ele quer ter força de uma reação e não consegue. (Colaborador 2, Roberto)

[...] os amigos se tornaram a família e a família se tornou as pessoas que não querem o mal dele. (Colaborador 3, Júnior)

Fala-se na importância do reconhecimento, pelo dependente químico, da adesão ao tratamento.

[...] quando a pessoa se conscientiza de que ela é doente, que precisa de ajuda, as coisas ficam mais fáceis. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] quando se é um dependente químico e quer ser ajudado, já é uma grande coisa, um grande passo. (Colaborador 2, Roberto)

Em alguns casos, o dependente químico não aceita a doença ou não se enxerga doente.

[...] somos nós, familiares de verdade, que não queremos o mal dele, que dizemos que ele precisa parar com a bebida e que precisa mudar de vida, mas ele não aceita. (Colaborador 3, Júnior)

[...] há uns três anos, a gente começou a falar para ele se tratar, mas ele não queria, ele achava que conseguia dominar a maconha [...] decidimos ir ao médico e o mesmo disse que Junior era dependente químico, mas meu filho não se enxergava assim. (Colaborador 4, Carlos)

Infere-se que a vontade precisa ser manifestada pela própria pessoa e que pedir ou levá-la à força ao tratamento não traz resultados positivos.

[...] logo no início, ele pediu clínica, ele não tinha noção do que era uma clínica. Depois, nas outras vezes, ele já ia contra a vontade dele, já chegou a ir dopado [...] não tem como você pegar a pessoa e levar à força para fazer, é complicado. (Colaborador 2, Roberto)

O tratamento forçado pode estar fadado ao insucesso.

[...] é a primeira internação forçada dele [...] agora, nessa última internação, ele não aceitou no momento, quis fugir, me agredir [...] ele ainda tem a ideia de que a família não serve para ele, que ele vai sair de lá, vai arrumar as coisas dele e vai embora para algum lugar. (Colaborador 3, Júnior)

[...] demos um ultimato para ele, que ele deveria se tratar [...] a conversa que tivemos com ele foi mais ou menos assim: sem tratamento, ele não viveria mais conosco. (Colaborador 4, Carlos)

A dependência química é uma doença de difícil resolução e tratamento e que pode durar muitos anos, sendo uns dos motivos de sofrimento tanto para a família quanto para o dependente e manifestada, muitas vezes, por frequentes recaídas.

[...] durante esses primeiros 12 anos, foi uma luta constante porque eu não sabia o que fazer. Com 12 anos de casado, ele já estava no fundo do poço. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] essa situação é como eu sempre digo: “é tipo marido traído, quando descobre, a coisa já está lá na frente” [...] e o tempo vai passando, e chega onde ele está hoje, no fundo do poço. (Colaborador 2, Roberto)

Foram relatados sentimentos de dor, tristeza e desesperança durante a dura jornada com seus familiares e suas recaídas.

[...] e aí, desde o ano passado (2019), ele começou com tratamentos, mas, no primeiro obstáculo que ele se deparava, ele tinha as recaídas. [...] você conviver com uma pessoa assim traz uma dor na alma, não tem um remédio que você tome que cure [...] são muitas coisas assim que me trazem uma tristeza muito grande. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] nessa caminhada, nesses anos todos, vivendo essa luta, para a família, é uma tristeza muito profunda porque não é só ele que sofre, mas a família também [...] ele fica bom de 30 a 90 dias, depois, recai e começa toda luta de novo. (Colaborador 2, Roberto)

O tempo de hospitalização foi, também, comentado por alguns colaboradores como insuficiente para o tratamento do dependente químico, levando-os a acreditar que, após a alta, o familiar terá recaídas.

[...] uma pessoa que faz uso de cocaína há 10 anos, ficar somente 28 dias internada, sair sem um acompanhamento, sem nada, vai fazer o quê? Vai voltar para as drogas de novo. (Colaborador 2, Roberto)

[...] disseram para gente que o tratamento será, no início, de 40 dias, mas não sei como está a situação lá. Acredito que 40 dias é muito pouco tempo. (Colaborador 3, Júnior)

Experiências com comportamentos adversos dos dependentes químicos também foram enunciadas.

[...] muitas vezes, ele tentou tirar a vida e Deus não permitiu. Muitas vezes, eu tinha que, eu e as crianças, pegar e sair escondendo a arma, porque ele queria tirar a própria vida [...] houve agressão uma vez. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] nós cansamos de passar noites sem dormir porque chegou ao ponto de ele tirar coisas de dentro de casa para levar para os traficantes [...] a cabeça dele é só suicídio: “se eu morrer, vai resolver para mim”. (Colaborador 2, Roberto)

[...] houve momentos de agressão contra mim, meus irmãos e minha mãe [...] recentemente, há mais ou menos quatro meses, ele começou a ter surtos psicóticos. (Colaborador 3, Júnior)

[...] ele começou com pequenos roubos [...] e o Junior começou a ter episódios psicóticos de, por exemplo, dizer que a mãe dele não era a mãe dele. (Colaborador 4, Carlos)

Apesar de alguns colaboradores terem relatado insatisfação com o tempo de internação de seus familiares, a maioria mostrou-se confiante e satisfeita com o tratamento atual.

[...] eu o sinto maduro e também percebo que ele teve umas experiências muito diferentes nesse internamento, algo que ajudou no crescimento e amadurecimento dele. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] pelo menos, onde ele está agora, tenho percebido que ele está tendo um tratamento muito bom. (Colaborador 2, Roberto)

[...] percebi melhorias, sem dúvidas, na conversa dele conosco. Está mais carinhoso também. (Colaborador 4, Carlos)

Apesar dos evidentes sentimentos de angústia, tristeza, insegurança, medo, entre outros, todos os colaboradores ressaltaram que, apesar de tudo, não vão desistir de seus familiares.

[...] se ele voltar e ter uma recaída, vou fazer tudo de novo e de novo. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] ele é meu progenitor e eu, como homem, sinto a obrigação de cuidar dele, afinal, ele se tornou uma pessoa doente. (Colaborador 3, Júnior)

[...] não desisto do Junior, ele é meu filho. (Colaborador 4, Carlos)

Espiritualidade e religiosidade como suporte para lidar com os desafios da dependência química

Os relatos apresentaram o apoio religioso na crença advinda de Deus como alicerce e fonte de força para persistir e lutar contra as dificuldades ocasionadas pela dependência química.

[...] então, no momento, somos nós (ele e a esposa) e Deus. Ajuda vem só de Deus. (Colaborador 2, Roberto)

[...] eu tinha que me agarrar em Deus o tempo todo. O meu alicerce era Deus na minha vida o tempo todo. Não sou uma fanática religiosa, mas, se não fosse Deus na minha vida e na dele também, ele não estaria aqui e eu já teria o abandonado, já teria desistido há muito tempo. (Colaboradora 1, Lúcia)

[...] apesar de tudo, sou uma pessoa muito temente a Deus e acredito que tudo o que aconteceu em nossas vidas teve um propósito. Por exemplo, eu enxerguei toda essa situação como uma oportunidade de aprendizado para não me tornar igual ao meu pai. (Colaborador 3, Júnior)

DISCUSSÃO

Muitos são os fatores envolvidos no desenvolvimento da dependência química. O impacto do uso de drogas nos relacionamentos familiares de dependentes químicos ocorre na medida em que a família é a unidade básica da sociedade e o primeiro agente de socialização do dependente químico. Por ser o primeiro agente de socialização, fatores orgânicos, psicológicos, socioculturais, espirituais e de drogadição podem fazer com que um membro da família responda de forma positiva ou não a estes fatores77 Nimtz MA, Tavares AMF, Maffum MA, Ferreira ACZ, Borba L de O, Capistrano FC. Impacto do uso de drogas nos relacionamentos familiares de dependentes químicos. Cogit Enferm. [Internet]. 2014 [acesso em 05 mar 2021]; 19(4):667-672. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/35721/2390.
https://revistas.ufpr.br/cogitare/articl...
-88 Kj M, Regmi B, Lama LD. Role of family in addictive disorders. Int. J. Psychosoc. Rehabil. [Internet]. 2018 [acesso em 10 ago 2019]; 22(1):65-75. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/326059939_Role_of_Family_in_Addictive_Disorders.
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.

Os colaboradores revelaram o entendimento sobre a importância do apoio da família no tratamento do dependente químico. Esse resultado vai ao encontro do achado no estudo realizado em Curitiba, Paraná - Brasil, no ano de 201899 Souza Y, Souza LS de, Júnior AA de O, Machado PGB. A influência da relação familiar na vida do dependente químico. Cad. Esc. Saúde. [Internet]. 2018 [acesso em 12 mar 2021]; 18(1):95-107. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/333647774_A_INFLUENCIA_DA_RELACAO_FAMILIAR_NA_VIDA_DO_DEPENDENTE_QUIMICO.
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, em que, de acordo com os autores, sentindo-se acolhido, o dependente químico pode experienciar um estímulo maior para aderir ao tratamento, sendo este um escudo contra a dependência química, servindo não somente para promover abstinência, mas também para buscar a melhoria da qualidade de vida desse indivíduo.

As recaídas, neste estudo, são retratadas, principalmente, por fatores intrínsecos. Esses fatores são a motivação, a força propulsora para a mudança comportamental e para a reabilitação1010 Ferreira ACZ, Borba L de O, Capistrano FC, Czarnobay J, Maftum MA. Fatores que interferem na adesão ao tratamento de dependência química: percepção de profissionais de saúde. REME - Rev. Min. Enferm. [Internet]. 2015 [acesso em 12 abr 2021]; 19(2):157-164. Disponível em: http://www.dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20150032.
http://www.dx.doi.org/10.5935/1415-2762....
. Infelizmente, apesar da importância da adesão ao tratamento no processo de reabilitação, alguns estudos demonstraram o baixo índice de adesão pelos dependentes químicos em que muitos iniciaram o tratamento, mas poucos o mantiveram1111 Monteiro CF de S, Fé LCM, Moreira MAC, Albuquerque IE de M, Silva MG da, Passamani MC. Perfil sociodemográfico e adesão ao tratamento de dependentes de álcool em CAPSad do Piauí. Esc. Anna Nery Rev. Enferm. [Internet]. 2011 [acesso em 12 abr 2021]; 15(1):90-95. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452011000100013.
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12 Araújo NB de, Marcon SR, Silva NG, Oliveira JRT de. Perfil clínico e sociodemográfico de adolescentes que permaneceram e não permaneceram no tratamento em um CAPSad de Cuiabá/MT. J Bras Psiquiatr. [Internet]. 2012 [acesso em 12 abr 2021]; 61(4):227-234. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0047-20852012000400006.
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-1313 Ferreira ACZ, Capistrano FC, Maftum MA, Kalinke LP, Kirchhof ALC. Caracterização de internações de dependentes químicos em uma unidade de reabilitação. Cogit Enferm. [Internet]. 2012 [acesso em 20 abr 2021]; 17(3): 444-451. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5380/ce.v17i3.29284.
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Sentimentos diversos e negativos emergem dos familiares quando precisam internar um familiar dependente. Quando isso ocorre, é porque já passaram por várias barreiras1414 Pereira BR, Cascaes N. O papel da família no tratamento da dependência química de usuários atendidos no CAPS AD de Tubarão /SC. [trabalho de conclusão de curso]. Tubarão (SC): Universidade do Sul de Santa Catarina; 2018.. Nesta pesquisa, não foram relatados sinais de doenças graves pelos colaboradores, tampouco eles relataram ter desenvolvido alguma doença. Contudo, os colaboradores expressaram seus sentimentos de dor, tristeza e desesperança durante a dura jornada com seus familiares e suas recaídas, sentimentos importantes a serem avaliados para evitar uma futura doença.

O tempo de hospitalização foi, também, comentado por alguns colaboradores como insuficiente para o tratamento do dependente químico, levando-os a acreditar que, após a alta, o familiar terá recaídas. Um estudo realizado na Ruanda, em 20211515 Kabisa E, Biracyaza E, Habagusenga JA, Umubyeyi A. Determinants and prevalence of relapse among patients with substance use disorders: case of icyizere psychotherapeutic centre. Subst Abuse Treat Prev Policy. [Internet]. 2021 [acesso em 14 abr 2021]; 16(13). Disponível em: https://substanceabusepolicy.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13011-021-00347-0.
https://substanceabusepolicy.biomedcentr...
, revelou resultados semelhantes em que o tempo de hospitalização foi significantemente associado à recaída e aqueles que são internados de um a três meses tiveram maior risco de recaída em comparação com os que foram hospitalizados por tempo superior a três meses. Estudos que examinam o tempo de permanência nas taxas de abstinência pós-tratamento encontraram relação direta entre a maior duração da estadia e as taxas de abstinência mais altas1616 Mcpherson C, Boyne H, Waseem R. Understanding the factors that impact relapse post-residential addiction treatment, a six month follow-up from a Canadian treatment centre. J Alcohol Drug Depend. [Internet]. 2017 [acesso em 10 ago 2019]; 5(3). Disponível em: https://doi.org/10.4172/2329-6488.1000268.
https://doi.org/10.4172/2329-6488.100026...
-1717 enon J, Kandasamy A. Relapse prevention. Indian J Psychiatry. [Internet]. 2018 [acesso em 14 abr 2021]; 60(suppl 4):S473-8. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5844157/.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
.

Os comportamentos adversos decorrentes da dependência química foram evidenciados por meio das falas dos colaboradores. Nesses comportamentos, ocorrem desde surtos psicóticos, furtos, comportamentos perigosos, até tentativa de suicídio. Sabe-se que o uso de álcool e outras drogas tem efeito sobre o cérebro do indivíduo e altera seu psiquismo, bem como leva à instalação de comportamentos inapropriados que não aconteciam antes, e seu uso duradouro faz com que habilidades antes executadas com facilidade sejam prejudicadas. Danos cognitivos podem afetar o comportamento, o psiquismo e a própria personalidade e tais aspectos devem ser levados em consideração no processo de tratamento1818 Garcia IP. A dependência química no contexto familiar: uma análise do relato de três mães. Psicologia.pt. [Internet]. 2018 [acesso em 13 abr. 2021]; ISSN 1646-6977. Disponível em: https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1198.pdf.
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Apesar dos evidentes sentimentos de angústia, tristeza, insegurança, medo, entre outros, todos os colaboradores ressaltaram que não vão desistir de seus familiares e alguns sentem-se na obrigação de cuidar, subentendendo-se que já estão adaptados à doença e que o apoio e a busca do incentivo para o tratamento são elementos fundamentais. Muitas vezes, por terem laços afetivos muito fortes com seus familiares, os colaboradores sentem-se responsáveis pelo cuidado, estando diretamente envolvidos no seu desenvolvimento saudável ou doente. No início, a convivência dos familiares com seus membros dependentes químicos é uma via de mão dupla, manifestada por intensa ambivalência, que acaba sendo afastada na medida em que a dependência química evolui1818 Garcia IP. A dependência química no contexto familiar: uma análise do relato de três mães. Psicologia.pt. [Internet]. 2018 [acesso em 13 abr. 2021]; ISSN 1646-6977. Disponível em: https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1198.pdf.
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.

A busca por fortalecimento interior para enfrentar as mudanças e os percalços impostos pela doença tem base, principalmente, na relação existente entre espiritualidade e religiosidade de modo que, para a superação do sofrimento do processo de saúde e doença, ambas são acessadas por pessoas enfermas e seus familiares1919 Soratto MT, Silva DM da, Zugno PI, Daniel R. Espiritualidade e resiliência em pacientes oncológicos. Rev Saúde e Pesquisa. [Internet]. 2016 [acesso em 13 abr. 2021]; 9(1):53-63. Disponível em: http://dx.doi.org/10.17765/1983-1870.2016v9n1p53-63.
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.Vivenciar os conflitos e sentimentos, entre eles, medo, angústia, tristeza e sentimento de culpa, pode levar o familiar ao desenvolvimento de doenças como a depressão2020 Fontes E dos S, Santos M da CQ dos, Yarid SD, Gomes RM, Santos MLQ dos, Souza IA, et al. Espiritualidade/religiosidade dos familiares de usuários de crack como processo na recuperação. REAS/EJCH. [Internet]. 2018 [acesso em 13 abr. 2021]; 19(supl):1-8. Disponível em: https://doi.org/10.25248/reas.e194.2019.
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. A adoção de hábitos de vida saudáveis e a prática religiosa causam impactos positivos na saúde física e mental e podem atuar como agente protetor contra o suicídio, abuso de substâncias psicoativas e transtornos mentais2121 Thiengo PC da S, Gomes AMT, Mercês MCC das, Couto PLS, França LCM, Silva AN da. Espiritualidade e religiosidade no cuidado em saúde: revisão integrativa. Cogit Enferm. [Internet]. 2019. [acesso em 13 abr. 2021]; 24(e58692). Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/58692.
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.

Destacam-se a carência de conteúdo e a necessidade de valorização e crescimento de pesquisas acerca deste tema, atrelado, principalmente, à dependência química, no sentido de como a espiritualidade e a religiosidade podem atuar, de forma positiva, no processo de saúde e doença e quais os limites e desafios no processo de inserção da espiritualidade e da religiosidade nos serviços de saúde.

Uma possível limitação deste estudo é o tamanho da amostra, que, ao apresentar-se em número reduzido, pode impossibilitar a análise de outros temas relevantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os colaboradores apresentaram, cada um à sua maneira, a vivência sentida e sofrida com a dependência química, que tem seu início doloroso ao descobrir que um membro de sua família faz uso de álcool e outras drogas, seguida da dura tentativa em querer ajudar o indivíduo, que, no começo, tem dificuldade em aceitar a doença, em realizar o tratamento de reabilitação e em permanecer abstinente; depois, percorre pelas várias recaídas e, à medida que a dependência química evolui, ela gera comportamentos inadequados e o desenvolvimento de transtornos mentais nos usuários.

Conviver com o longo ciclo da dependência química não é uma atividade simples para nenhuma das partes envolvidas e requer muito esforço e força de vontade de ambas as partes para lutar e vencer a doença. A forma natural e verdadeira como todos os colaboradores disseram que jamais desistiriam de seus familiares retrata bem esse esforço e essa força de vontade, todavia, o sofrimento é involuntário e, para amenizar esse sentimento e manter-se firme na esperança da cura, a maioria dos colaboradores buscou, na religiosidade e na espiritualidade, um ponto de apoio para enfrentar todo o processo.

As contribuições deste estudo demonstram que o tratamento da dependência química requer uma abordagem integrada, com enfoque multidisciplinar, e possibilitou, também, ampliar a visão da vivência dos colaboradores, descrevendo as dificuldades e suas estratégias de enfrentamento a partir daquilo que eles têm como possibilidades e competências, tal como o envolvimento deles no cuidado. A demonstração de experiências diversas sobre o mesmo evento pode servir como reflexão e alerta para todos sobre a importância do cuidado voltado aos familiares.

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Editado por

Editora associada: Luciana Nogueira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2021
  • Aceito
    30 Mar 2022
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