Open-access Fatores associados à qualidade de vida de cuidadores de pacientes pediátricos com cardiopatias congênitas

RESUMO

Objetivo:  Avaliar o impacto socioeconômico, de saúde dos pacientes pediátricos e religiosidade na qualidade de vida de cuidadores de crianças e adolescentes com cardiopatia congênita do ambulatório de pediatria.

Método:  Estudo transversal, descritivo, com 99 cuidadores de um ambulatório de pediatria de hospital universitário no interior de Minas Gerais, Brasil. Para coleta de dados utilizou-se um Questionário Socioeconômico, Índice de Religiosidade de Duke, Escala de coping religioso-espiritual breve e World Health Organization Quality of Life - Bref. A influência simultânea das variáveis foi avaliada por meio de regressão linear múltipla.

Resultados:  Fatores como coping religioso-espiritual negativo, cor autorreferida e não ter emprego apresentaram impacto negativo nas dimensões de qualidade de vida, assim como idade da criança e religiosidade intrínseca apresentaram impacto positivo.

Conclusão:  Religiosidade e a espiritualidade influenciam a qualidade de vida dos cuidadores, indicando a importância de considerar esses fatores em intervenções.

DESCRITORES:
Qualidade de Vida; Cuidadores; Criança; Cardiopatias; Espiritualidade

HIGHLIGHTS

Fatores socioeconômicos afetam significativamente a vida das cuidadoras.

Religiosidade intrínseca apresentou impacto positivo na qualidade de vida.

Coping religioso negativo impactou negativamente nas dimensões medidas.

ABSTRACT

Objective:  To evaluate the socioeconomic impact, the health of pediatric patients, and religiosity on the quality of life of caregivers of children and adolescents with congenital heart disease at the pediatric outpatient clinic.

Method:  A cross-sectional, descriptive study with 99 caregivers from a pediatric outpatient clinic at a university hospital in the interior of Minas Gerais, Brazil. We used a Socioeconomic Questionnaire, Duke Religiosity Index, Brief Religious-Spiritual Coping Scale and World Health Organization Quality of Life - Bref for data collection. The simultaneous influence of the variables was assessed using multiple linear regression.

Results:  Factors such as negative religious-spiritual coping, self-reported color, and not having a job had a negative impact on the quality of life dimensions, while the child’s age and intrinsic religiosity had a positive impact.

Conclusion:  Religiosity and spirituality influence the quality of life of caregivers, indicating the importance of considering these factors in interventions.

KEYWORDS:
Quality of Life; Caregivers; Child; Heart Diseases; Spirituality

HIGHLIGHTS

Socio-economic factors significantly affect the lives of caregivers.

Intrinsic religiosity had a positive impact on quality of life.

Negative religious coping had a negative impact on the dimensions measured.

RESUMEN

Objetivo:  Evaluar el impacto socioeconómico, la salud de los pacientes pediátricos y la religiosidad en la calidad de vida de los cuidadores de niños y adolescentes con cardiopatías congénitas en el ambulatorio pediátrico.

Método:  Estudio transversal y descriptivo con 99 cuidadores de un ambulatorio pediátrico de un hospital universitario del interior de Minas Gerais, Brasil. Los datos se recogieron mediante un Cuestionario Socioeconómico, el Índice de Religiosidad de Duke, la Escala Breve de coping Religioso-Espiritual y World Health Organization Quality of Life - Bref. La influencia simultánea de las variables se evaluó mediante regresión lineal múltiple.

Resultados:  Factores como el coping religioso-espiritual negativo, el color autodeclarado y no tener trabajo tuvieron un impacto negativo en las dimensiones de la calidad de vida, mientras que la edad del niño y la religiosidad intrínseca tuvieron un impacto positivo.

Conclusión:  La religiosidad y la espiritualidad influyen en la calidad de vida de los cuidadores, lo que indica la importancia de tener en cuenta estos factores en las intervenciones.

DESCRIPTORES:
Calidad de Vida; Cuidadores; Niño; Cardiopatías; Espiritualidad

HIGHLIGHTS

Los factores socioeconómicos afectan significativamente a la vida de los cuidadores.

La religiosidad intrínseca tuvo un impacto positivo en la calidad de vida.

El Coping religioso negativo tuvo un impacto negativo en las dimensiones medidas.

INTRODUÇÃO

As cardiopatias congênitas (CC) são conjuntos de defeitos cardíacos estruturais ou funcionais presentes no nascimento das crianças. A evolução da doença e sintomas dependem da gravidade da alteração anatômica, entre outros fatores, por isso, algumas crianças podem ter limitações, outras podem chegar à fase adulta, levando uma vida normal1-2.

Nos últimos anos, o número de crianças com cardiopatias congênitas aumentou consideravelmente, com uma estimativa de 9 por 1000 nascidos vivos3. Além disso, segundo o manual de orientação da Sociedade Brasileira de Pediatria1, o grupo de crianças com cardiopatia congênita representa cerca de 30% de todas as malformações congênitas. Entretanto, a real incidência da CC é uma interrogação, devido a sua subnotificação relacionada a não realização diagnóstica. Isso se deve ao difícil acesso aos exames, bem como a dificuldade de uma abordagem clínica bem-sucedida, aumentando a morbimortalidade relacionada às cardiopatias congênitas4.

Frente a doenças crônicas infantis, os cuidadores dessas crianças enfrentam dificuldades visíveis, especialmente em relação às mudanças na rotina provocadas pela condição da criança, o que resulta em uma sobrecarga significativa de trabalho5. Além disso, a necessidade de apoio social é fundamental para fortalecer os cuidadores e atenuar os efeitos negativos que a doença causa em suas vidas5. Assim, fica claro que os cuidadores experimentam uma sobrecarga física e emocional, tornando a rotina desgastante6.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) é definida como “a percepção do indivíduo sobre sua posição na vida no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”, sendo um conceito abrangente, que inclui domínios físico, funcional, emocional, social e cognitivo7-8. Levando em consideração os cuidados especiais que essas crianças devem ter ao longo de seu crescimento para alcançar bem-estar físico, social e emocional, novas necessidades aparecerão, o que pode apresentar novas adversidades tanto na vida da criança e adolescente, como na vida dos pais, principalmente relacionado ao período escolar9. Por esse motivo, a qualidade de vida de cuidadores de crianças com CC pode ter impactos significativos.

Nesse contexto, pesquisas apontam que há correlações positivas entre as dimensões da QV e a religiosidade e espiritualidade (R/E)10 demonstrando que a R/E pode ajudar os indivíduos em vários momentos, mas principalmente no contexto de saúde-doença. Esses fatores trazem conceitos na espiritualidade como “paz interior” e “sentido de vida” para pessoas em situações difíceis10.

Diante dos fatores expostos, o presente estudo foi realizado com o objetivo de avaliar o impacto socioeconômico, de saúde dos pacientes pediátricos e religiosidade na qualidade de vida de cuidadores de crianças e adolescentes com cardiopatia congênita do ambulatório de pediatria de um hospital terciário.

MÉTODO

Desenho do estudo e participantes

Trata-se de um estudo transversal e descritivo conduzido em um hospital universitário no interior de Minas Gerais - Brasil, abrangendo cuidadores de pacientes pediátricos com cardiopatia congênita em um ambulatório de pediatria. O estudo incluiu cuidadores de pacientes com idade entre 0 e 13 anos, que aguardavam a consulta de acompanhamento. A coleta de dados ocorreu no período entre novembro de 2022 e fevereiro de 2023.

A seleção dos participantes foi realizada por uma abordagem de amostragem por conveniência. Todos os cuidadores que foram abordados no ambulatório foram convidados a participar. Após serem informados sobre os objetivos do estudo, aqueles que concordaram em participar, assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Instrumentos utilizados

Para avaliar o impacto de variáveis socioeconômicas e de religiosidade/espiritualidade na qualidade de vida, foram empregados os seguintes instrumentos: Questionário Social Geral e História dos pais e pacientes pediátricos, P-DUREL, Escala de coping religioso-espiritual breve e WHOQol-Breve.

Questionário social geral e história dos pais e pacientes pediátricos

Foi utilizado um questionário desenvolvido pela equipe de pesquisa para coletar informações abrangentes dos participantes. Este questionário incluiu itens para registrar dados socioeconômicos como a idade, gênero, cor autorreferida, estado civil, situação ocupacional, renda e escolaridade. Também foram coletados dados sobre a história clínica como doença preexistente e realização de acompanhamento psicológico. Além disso, o questionário abordava a filiação religiosa. Questões sobre os pacientes pediátricos também foram incluídas, como a idade, tipo de parto, prematuridade, quando ocorreu o diagnóstico de cardiopatia, se a criança ou adolescente vai para a escola/creche, se tem limitações e a necessidade de correção cirúrgica. Foram feitas questões adicionais para obter informações sobre hábitos diários, como a prática de atividade física, tabagismo, consumo de bebidas alcoólicas e a presença de doenças pregressas.

Índice de Religiosidade de Duke (P-DUREL)

O Índice Religioso de Duke (P-DUREL) é um instrumento de medida de ligação religiosa composta por cinco itens, que produz três dimensões do envolvimento religioso, sendo elas: Religiosidade Organizacional (RO), Religiosidade não organizacional (RNO) e Religiosidade intrínseca (RI)11. A RO é relacionada à participação em atividades religiosas de grupos, como cultos, missas e reuniões (sendo classificada em uma escala de 1 a 6). A RNO avalia a regularidade individual das práticas religiosas, como orações, meditações, leitura de textos religiosos, entre outros (pontuação de 1 a 6). Enquanto a RI se trata da busca pela vivência intrínseca da religiosidade e a internalização como propósito principal individual (pontuação de 3 a 15)11.

Escala de coping espiritual-religioso breve (CRE- breve)

A escala CRE-breve apresenta como os indivíduos utilizam sua fé para lidar com o estresse sendo associada com a qualidade de vida. É dividida em 14 itens com as respostas avaliadas em uma escala de cinco pontos (1-nem um pouco/não se aplica a 5-muitíssimo)12. Na escala são avaliados CRE positivo, CRE negativo, CRE Total e CREN/CREP que revela a percentagem de CRE negativo utilizado em relação ao CRE Positivo através da divisão simples entre os itens básicos12.

World Health Organization Quality of Life - Bref (WHOQOL- Bref)

Com a necessidade de um instrumento sintetizado, mas que mantivesse a qualidade psicométrica, o Grupo de Qualidade de Vida da OMS criou uma versão abreviada da escala WHOQOL-100, o WHOQOL-Bref13. A versão sintetizada conta com 26 questões, com duas relacionadas a qualidade de vida e 24 perguntas representando as 24 facetas do instrumento original. Além disso, diferenciando-se do original em que cada faceta é avaliada com 4 questões, no WHOQOL-Bref cada uma é avaliada apenas por uma pergunta13. Com uma análise fatorial confirmatória para a validação estrutural do WHOQOL-Bref foi verificada a necessidade de 4 domínios, sendo eles: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente13.

Análise de dados

Os dados foram organizados em uma planilha do Excel e a análise estatística foi conduzida utilizando o Statistical Package for the Social Science (SPSS), versão 23.0TM. Análises descritivas foram realizadas para apresentar as variáveis de interesse, utilizando frequência, porcentagem, média e desvio padrão para dados sociodemográficos, clínicos e quantitativos.

A influência simultânea das variáveis foi avaliada por meio de regressão linear múltipla. Os pré-requisitos para testes paramétricos foram devidamente considerados. As análises de regressão foram conduzidas para cada uma das quatro dimensões da qualidade de vida (física, psicológica, social e ambiental) medidas pelo WHOQOL. As variáveis incluídas nos modelos de regressão foram idade, cor autodeclarada, estado civil, ocupação, doença preexistente, idade da criança, frequência escolar da criança, índice de religiosidade (RI) e dimensão negativa da religiosidade (CRE Negativo). Um nível de significância de 5% (α=0.05) foi adotado para as análises inferenciais.

As variáveis dicotômicas foram categorizadas da seguinte forma: Cor: branca (categoria de referência) ou preta/parda/amarela; Estado Civil: casada (categoria de referência) ou outros; Ocupação: com renda (categoria de referência) ou sem renda; Doença Preexistente: não (categoria de referência) ou sim; Criança vai à escola: sim (categoria de referência) ou não.

Aspectos Éticos

A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o número CAAE: 57294022.7.0000.5152, parecer de aprovação: 5.074.577.

RESULTADOS

No estudo, foram entrevistados 99 cuidadores, sendo que todas eram as mães (Tabela 1). Cor autorreferida preta/parda (n=61, 61,6%), não eram casadas (n= 53, 53,5%) e possuíam idade média de 33,96 anos (DP=9,55). Do total, 53 (53,5%) tinham ocupação sem renda e renda média de R$2.315,80 (US$ 398,44). Quanto à escolaridade, a maioria não respondeu (n=53, 53,5%) e dentre as que responderam 29 (29,3%) concluíram até o ensino médio ou inferior. Em relação a hábitos de vida, 36 (36,4%) relataram praticar atividade física, duas (2%) relataram ser tabagistas e 13 (13,1%) consumiam bebidas alcoólicas. Além disso, 30 (30,3 %) relataram apresentar doenças preexistentes. Quanto ao acompanhamento psicológico, 23 (23,2%) relataram fazer, e sete (7,1%) realizam acompanhamento psiquiátrico. Em relação a religiosidade, 90 (90,9%) relataram possuir religião, sendo a maioria (n=42, 42,4%) evangélicas, 33 (33,3%) católicos, nove (9,1%) espíritas e três (3%) umbandistas.

Quanto aos pacientes pediátricos, 63 (63,6%) tinham de 0 a 5 anos de idade, 71 (71,%7) do total nasceram de parto vaginal e 72 (72,7%) tiveram uma gestação a termo. Sobre o diagnóstico de cardiopatia, 77 (77,8%) tiveram após o nascimento, sendo que 46 (46,5%) relataram a necessidade de correção cirúrgica. No ambulatório, o acompanhamento foi em sua maioria de forma trimestral ou mais (n=71; 71,%). Além disso, 54 (54,5%) das crianças frequentavam a escola ou creche, e a maioria (=4n7; 47,5%) não apresentavam nenhuma limitação como correr ou não poder ir à escola (Tabela 1).

Tabela 1
Frequência e porcentagem de características sociodemográficas e clínicas de cuidadoras de pacientes pediátricos do ambulatório de pediatria de um hospital universitário. (n=99). Uberlândia, MG, Brasil, 2024

As medidas de tendência central e variabilidade para as escalas de Religiosidade e Qualidade de Vida são apresentadas na Tabela 2. Em geral, a tabela mostra que, para todas as dimensões medidas, as pontuações dos participantes ficaram acima de 50% do valor total possível em cada escala, indicando níveis moderados a altos de religiosidade e qualidade de vida percebida nas diversas dimensões avaliadas.

A regressão linear múltipla mostrou que coping religioso-espiritual negativo apresentou um impacto significante negativo para todas as dimensões de Qualidade de Vida (Tabela 3).

Além disso, para a dimensão física da qualidade de vida ser de cor autodeclarada preta/parda (β = -0,251, p = 0,034), não ter emprego (β = -0,247, p = 0,042) também apresentou um impacto negativo e significativo. A variável Idade da criança (β = 0,280, p = 0,048) mostrou um impacto positivo, o que significa que quanto maior a idade do paciente pediátrico maior os escores de QV (Tabela 3).

Tabela 2
Medidas de centralidade e dispersão dos escores das Escalas P-DUREL, coping religioso-espiritual e Qualidade de Vida. Uberlândia, MG, Brasil, 2024 (n=99)

Na dimensão psicológica da qualidade de vida, os resultados indicaram que ser de cor autodeclarada preta/parda (β = -0,208, p = 0,036) teve um impacto negativo e significativo. Religiosidade Intrínseca (β = 0,189, p = 0,069) apresentou uma tendência a um impacto positivo, mas não alcançou significância estatística. Já para a dimensão social da qualidade de vida, a variável Religiosidade Intrínseca (β = 0,322, p = 0,007) apresentou um impacto positivo e significativo (Tabela 3).

Na dimensão ambiental, ser de cor autodeclarada preta/parda (β = -0,274, p = 0,010) teve um impacto negativo e significativo. A variável “Idade da criança” (β = 0,364, p = 0,005) apresentou um impacto positivo e significativo (Tabela 3).

Tabela 3
Análise de Regressão linear, com os valores Beta e p para cada preditor nas quatro dimensões da qualidade de vida (QV). Uberlândia, MG, Brasil, 2024

DISCUSSÃO

O presente trabalho aprimora nossas ideias sobre a influência da religiosidade e fatores socioeconômicos na qualidade de vida de cuidadores de crianças com cardiopatia congênita. Este estudo ocorreu em um Hospital Universitário no interior de Minas Gerais, limitando-se nessa região, levando em consideração as características socioeconômicas e culturais da área, fato que pode ter influenciado nos resultados do trabalho.

No perfil dos participantes, mostrou-se que todas as cuidadoras eram mulheres, o que está em conformidade com outros estudos, que também pesquisavam dificuldades vivenciadas pelas famílias no enfrentamento da condição crônica da criança5,14. Esse dado reforça a tendência de que as mulheres frequentemente assumem o papel de cuidadoras principais, especialmente em situações de doenças crônicas14. A maior parte das participantes do estudo autodeclarou-se preta ou parda, não casada e sem ocupação remunerada, além de apresentar doenças preexistentes, fatores também observados em outros estudos14.

Quanto aos pacientes pediátricos, a maior parte tinha até 5 anos de idade, e mais da metade frequentavam a escola ou creche. A maioria não apresentava limitação significativas, como dificuldade para correr ou frequentar a escola, o que está em consonância com achados anteriores14 em que a maior parte das crianças com condições crônicas frequentavam a escola.

Dentro das características das cuidadoras, a maioria relatou possuir religião, sendo predominante o grupo de evangélicas. Os resultados desta pesquisa indicaram que os níveis de religiosidade e qualidade de vida foram classificados como moderados a altos, com pontuações superiores a 50%. Esses achados estão em linha com uma revisão integrativa de literatura que identificou uma relação forte e positiva entre religiosidade, espiritualidade e a qualidade de vida, reforçando a importância desses fatores no bem-estar dos indivíduos10.

Neste estudo, um fator relevante que impactou negativamente as menores pontuações na escala de qualidade de vida foi a autodeclaração como preta ou parda, afetando os domínios físico, psicológico e ambiental. De maneira semelhante, outros estudos também demonstram que a autodeclaração como pessoa preta tem influência significativa na sobrecarga dos cuidadores, como evidenciado em uma pesquisa com cuidadores de crianças e adolescentes com câncer, onde essa variável foi associada à maior sobrecarga e pior qualidade de vida15.

Além do impacto negativo nos domínios físico, psicológico e ambiental, a autodeclaração como preta ou parda pode estar relacionada a fatores estruturais e sociais que agravam a vulnerabilidade dessas cuidadoras16. As atuais sociedades ainda carregam o preconceito e as desigualdades em suas bases, o que gera na realidade latino-americana sociedades com condições extremas de desigualdade e pobreza na estrutura social16. Dessa forma, fica claro que as cuidadoras frequentemente enfrentam barreiras adicionais, como menor acesso a serviços de saúde de qualidade, discriminação racial e dificuldades econômicas, que contribuem para o aumento da sobrecarga e comprometem ainda mais a qualidade de vida17. Esses fatores podem intensificar o estresse, reduzir o suporte social e dificultar o manejo das demandas do cuidado, evidenciando a interseção entre raça, classe social e saúde. Destacar essas questões pode ajudar a compreender melhor as desigualdades enfrentadas por esse grupo de cuidadoras e a importância de políticas públicas que visem reduzir essas disparidades17.

Na dimensão física da qualidade de vida, que incorpora fatores como atividades de vida diária, capacidade de trabalho, desconfortos, descanso, dependência de substâncias e auxílio médico e entre outros, a variável “não ter emprego” demonstrou um impacto negativo. Esse achado é consistente com outros estudos que mostram que cuidadores com limitações financeiras após o adoecimento de pacientes pediátricos têm uma probabilidade duas vezes maior de ter uma qualidade de vida baixa14. De forma semelhante, foi observado que, mesmo estando em idade produtiva, a maioria dos cuidadores de crianças e adolescentes com síndrome de Down não trabalhava, o que destaca a carga exaustiva desses cuidadores, muitas vezes levando à abdicação de suas atividades profissionais18.

Além disso, um resultado intrigante foi à idade dos pacientes demonstrar um impacto positivo na QV física e ambiental, sendo quanto maior a idade da criança, maior os níveis de qualidade de vida. De forma semelhante, em um estudo que buscou analisar a qualidade de vida de cuidadores de crianças com deficiência visual na Catalunha, com uma abordagem qualitativa, trouxe que à medida que o tempo passava, houve uma compreensão maior do quadro da criança e fatores que eram acarretados pela deficiência19. Além disso, eles tiveram maior controle interno no processo de cuidado, através de estratégias de enfrentamento adquiridas19.

A religiosidade intrínseca apresentou um impacto significativo e positivo no domínio social da qualidade de vida, refletindo a vivência pessoal da religiosidade e sua internalização como um propósito individual. Estudos sugerem que há uma correlação entre a intensidade da religiosidade dos cuidadores e dos portadores da doença, indicando que famílias tendem a compartilhar experiências religiosas semelhantes20. Além disso, cuidadores com maior religiosidade participam mais frequentemente de atividades religiosas, o que pode explicar a influência da religiosidade intrínseca na melhoria da qualidade de vida social observada neste estudo20.

O coping religioso-espiritual é o emprego da religião ou da espiritualidade para lidar com situações estressantes ou as consequências negativas das adversidades em dia a dia21. Neste estudo, os resultados indicaram um impacto negativo entre o coping religioso-espiritual negativo e qualidade de vida. Isso sugere que interpretar a doença dos filhos como uma punição espiritual por seus erros ou pecados pode gerar sofrimento adicional ao buscar o porquê para essa condição. Em um estudo com cuidadores de pacientes com Alzheimer, observou-se que, embora apresentassem altos níveis de religiosidade intrínseca, a progressão da doença e o aumento das responsabilidades no cuidado, frequentemente levavam ao desenvolvimento de padrões negativos de religiosidade e espiritualidade, como o coping religioso negativo20.

A variável escolaridade não foi acrescentada na regressão linear múltipla, devido a maior parte (53,5%) não ter respondido à questão, o que poderia afetar os resultados obtidos, não sendo questionado o motivo da falta de respostas por razões éticas. Entretanto, vários estudos demonstram impacto desta variável15,22-23.

Dessa forma, esse estudo trouxe contribuições importantes para a compreensão dos fatores que afetam a qualidade de vida das cuidadoras de pacientes pediátricos com cardiopatia congênita. Os resultados mostraram que ser de cor preta ou parda influenciou negativamente a qualidade de vida dessas cuidadoras, evidenciando que, na sociedade brasileira, a cor da pele ainda exerce um impacto significativo, mesmo no século atual. Portanto, é crucial que políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial sejam ampliadas e mais bem implementadas. Outro fator socioeconômico relevante foi a falta de emprego, que também contribuiu para a piora da qualidade de vida, sugerindo que muitas dessas cuidadoras estão sobrecarregadas e enfrentam dificuldades para conseguir um emprego formal.

Por outro lado, a religiosidade e espiritualidade mostraram-se benéficas para a qualidade de vida, exceto no caso do coping religioso-espiritual negativo, que tende a interpretar a doença como uma punição espiritual por pecados passados. Esses achados reforçam a necessidade de uma abordagem multidimensional no cuidado aos cuidadores, incluindo uma abordagem de suporte emocional, socioeconômico e espiritual.

Neste trabalho, alguns fatores podem ser apontados como limitações, como a realização da pesquisa em somente um centro de coleta, o que exclui variáveis geográficas e culturais, tendo em vista que o Brasil é um país diverso. Além disso, embora a regressão linear múltipla tenha sido útil para identificar associações e controlar variáveis de confusão, a natureza transversal do estudo impede a determinação de relações causais.

Com isso, estudos futuros podem abordar uma pesquisa multicêntrica considerando os fatores discutidos, além de propor intervenções relacionadas aos domínios de qualidade de vida. Por fim, considerar inclusões de dados qualitativos, seria de grande valia para que as experiências individuais complementam os dados quantitativos.

CONCLUSÃO

Os resultados deste estudo indicam que fatores socioeconômicos, idade dos pacientes pediátricos e religiosidade afetam significativamente a qualidade de vida das cuidadoras. Fatores como cor autodeclarada preta/parda e ausência de emprego entre os cuidadores estavam associados a escores mais baixos de qualidade de vida, especialmente nas dimensões física e ambiental.

A religiosidade mostrou-se um fator relevante, com o coping religioso negativo impactando negativamente todas as dimensões da qualidade de vida. Em contrapartida, a religiosidade intrínseca apresentou uma tendência positiva, especialmente na dimensão social, evidenciando seu papel potencialmente protetor. Esses achados ressaltam a importância de estratégias de apoio que integrem aspectos socioeconômicos, o estado de saúde dos pacientes e o fortalecimento de recursos emocionais e espirituais, como a religiosidade, a fim de compreender e melhorar a qualidade de vida desses cuidadores.

AGRADECIMENTOS

O presente estudo foi realizado com apoio do Programa de Iniciação Científica da Ebserh COD. 001, em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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  • COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO:
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Editado por

  • Editor associado:
    Dra. Claudia Nery Teixeira Palombo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2024
  • Aceito
    19 Fev 2025
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