RESUMO
Aproximações entre direitos humanos e organizações têm sido observadas nas Ciências Sociais aplicadas, especialmente no campo da Administração. Majoritariamente, essas pesquisas têm focado reflexões acerca de se fazerem negócios mais responsáveis e/ou as violações aos direitos humanos decorrentes das atividades-fins de uma empresa. Poucas pesquisas têm se focado em mapear, sob a perspectiva dos direitos humanos, as ações das organizações. Logo, esta pesquisa, de caráter qualitativo e exploratório, propõe-se a compreender como a fragmentação de processos e política excludente da Fundação Renova dificultam a participação das comunidades que sofreram violações de direitos humanos. Foram coletados 365 documentos, organizados e categorizados utilizando a técnica de análise temática. A hipótese é que a falta de transparência intencional nas ações da Fundação Renova tem representado violações aos direitos humanos das populações atingidas. Como consequência, as estruturas de governanças criadas até então não têm sido suficientes para impedir que os interesses das empresas se sobreponham aos interesses da população atingida. Nossos resultados apontam que a Fundação Renova, apesar de ter mecanismos sofisticados de governança, se estrutura para bloquear e violar os direitos das pessoas atingidas.
Palavras-chave:
violações de direitos humanos; Fundação Renova; governança; transparência; burocracia
ABSTRACT
Approximations between human rights and organizations have increasingly gained attention in applied social sciences, especially in the field of Administration. Many studies have focused on reflections about doing business more responsibly and/or on human rights violations arising from a company's core activities. However, few have mapped the actions of organizations from a human rights perspective. This qualitative and exploratory research examines the fragmented processes and exclusionary policies of Renova Foundation – an organization established to address reparations, compensation, and restoration of damages caused by the collapse of the Fundão dam in Brazil. The study explores how these processes and policies hinder the participation of communities that have suffered human rights violations. A total of 365 documents were collected, organized, and categorized using the thematic analysis technique. The hypothesis is that the intentional lack of transparency in the Renova Foundation's actions has represented violations of the human rights of the populations affected by the dam’s collapse. As a result, the governance structures created so far have not been sufficient to prevent the interests of the companies from overriding those of the affected population. Our results show that the Renova Foundation, despite having sophisticated governance mechanisms, is structured to block and violate the rights of the people affected.
Keywords:
human rights violations; Renova Foundation; governance; transparency; bureaucracy
RESUMEN
Las aproximaciones entre derechos humanos y organizaciones se han observado en las ciencias sociales aplicadas, especialmente en el campo de la administración. La mayoría de estas investigaciones se han centrado en reflexiones sobre cómo hacer negocios de forma más responsable o sobre las violaciones de los derechos humanos derivadas de las actividades principales de una empresa. Pocos estudios se han centrado en cartografiar las acciones de las organizaciones desde la perspectiva de los derechos humanos. Por lo tanto, esta investigación cualitativa y exploratoria pretende comprender cómo los procesos fragmentados y las políticas excluyentes de la Fundación Renova obstaculizan la participación de las comunidades que han sufrido violaciones de los derechos humanos. Se recopilaron, organizaron y categorizaron 365 documentos mediante la técnica de análisis temático. La hipótesis es que la intencionada falta de transparencia en las actuaciones de la Fundación Renova ha representado violaciones de los derechos humanos de las poblaciones afectadas. Como consecuencia, las estructuras de gobernanza creadas hasta el momento no han sido suficientes para evitar que los intereses de las empresas prevalezcan sobre los de la población afectada. Nuestros resultados muestran que la Fundación Renova, a pesar de contar con sofisticados mecanismos de gobernanza, está estructurada para bloquear y violar los derechos de las personas afectadas.
Palabras Clave:
violaciónes de derechos humanos; Fundación Renova; gobernanza; transparencia; burocracia
INTRODUÇÃO
Políticas fragmentadas e excludentes de governança podem resultar em violações de direitos humanos. Estudos sobre direitos humanos têm se concentrado em elaborar instrumentos internacionalmente válidos para regular as atividades de corporações transnacionais e outras empresas comerciais. O Conselho de Direitos Humanos (HRC), em 2014, apontou para a necessidade de regulamentação, visto que corporações internacionais têm sido acusadas de violações de direitos humanos. Por exemplo, a Vale S.A, com o rompimento-crime1 da barragem em Mariana-MG em 2015, de propriedade de uma de suas subsidiárias, a Samarco, e da barragem em Brumadinho-MG em 2019.
Como parte do acordo firmado entre a Samarco, suas acionistas (Vale e BHP Billiton), o governo federal e os governos dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, criou-se a Fundação Renova em 2016. Sua criação deu-se com a finalidade de desenvolver projetos e ações que visam mitigar os impactos causados pelo rompimento-crime da barragem de Fundão. Seu principal objetivo é promover e executar as ações de reparação socioambiental e socioeconômica nas áreas atingidas pelo desastre. Essas áreas iniciam-se em Mariana-MG, passando pelas regiões atingidas ao longo do Rio Doce, até sua foz no oceano Atlântico (Fundação Renova, 2023a).
Atualmente, a Fundação Renova é aclamada como um dos grandes modelos de governança e exalta, em suas declarações, sua dinâmica integrativa e colaborativa “Todas as decisões são tomadas baseadas no diálogo e no pluralismo de ideias, que permite mais tranquilidade a todo o processo” (Waack, 2019, n.p.). O modelo de governança da Fundação Renova é fundamentado nos pilares da “transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa” (Fundação Renova, 2020, n.p.). A transparência é quesito fundamental para qualquer modelo de governança corporativa, sendo pilar da compliance (Rehman & Hashim, 2020), pois “ajuda a reduzir a assimetria informacional entre gestores e cidadãos e entre grupos de pressão com diferentes níveis de acesso a recursos de poder” (Martins et al., 2018, p. 226).
No entanto, investigações empíricas começam a apontar falhas no modelo de governança da Fundação Renova. Nos inúmeros relatórios realizados pela Ramboll, consultoria que assessora o Ministério Público Federal (MPF), há evidências da ineficiência do modelo de governança da Fundação Renova em promover a participação dos atingidos e a falta de transparência na comunicação de suas ações à sociedade civil.
Diante das preocupações levantadas, visamos compreender como a fragmentação de processos e política excludente da Fundação Renova dificultam a participação das comunidades que sofreram violações de direitos humanos. Para tal, desenvolvemos uma análise do cumprimento dos direitos humanos na atuação da Fundação Renova e verificamos o grau de violação a eles, a partir do eixo socioeconômico. Aplicamos a análise temática em relatórios oficiais sobre a atuação da Fundação Renova, emitidos pelas consultorias responsáveis por auditar seu trabalho. Os resultados encontrados apontam para um alto grau de descumprimento dos direitos humanos dos atingidos.
DIREITOS HUMANOS, ORGANIZAÇÕES E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi a primeira afirmação global referente à dignidade e igualdade de todos os seres humanos (Gomes & Moreira, 2012). Redigida no século XX, após as mais graves violações da dignidade humana, especialmente o Holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial, a DUDH foi adotada pelas Nações Unidas em 1948, refletindo os pilares principais dos direitos humanos: liberdade, igualdade e solidariedade.
O documento serve como base para a promoção de meios e instrumentos jurídicos destinados à defesa da dignidade humana, essencial para a construção de sociedades justas e equitativas. A DUDH não apenas estabeleceu um marco na proteção dos direitos individuais, mas também influenciou a criação de diversas convenções e tratados internacionais que visam garantir a proteção contra abusos e assegurar o cumprimento dos direitos fundamentais. Entre esses desdobramentos, destaca-se a consolidação do campo de “Business and Human Rights” (Negócios e Direitos Humanos) a partir da década de 1990, que enfatiza a responsabilidade das empresas na promoção e respeito aos direitos humanos, combatendo práticas de cumplicidade com regimes autoritários e violações em escala global.
Em novembro de 2015, ocorreu o rompimento-crime da barragem de Fundão, causado pela mineradora Samarco. Em março de 2016, foi criado o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) para que os responsáveis reparassem os danos, resultando na criação da Fundação Renova. Essa fundação, composta por 42 programas e projetos, foi estabelecida para monitorar e fiscalizar as ações na área impactada. No entanto, a Fundação Renova tem dificul-tado o acesso à informação e enfrenta críticas pela sua burocratização, resultando em violações aos direitos à informação e à igualdade. Essas violações têm persistido mesmo após o desastre e a implementação dos acordos do TTAC.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Esta pesquisa tem caráter qualitativo e exploratório. Utilizamos fontes documentais on-line para investigar as acusações de violações aos direitos humanos dos atingidos pela Fundação Renova. A coleta de dados foi triangulada (Merriam,1998), envolvendo a utilização de três fontes de dados para metanalisar os achados, resultando em uma análise de dados mais robusta, conforme sugerido por Yin (1984).
Tabela 1 Coleta de Dados| FORAM LEVANTADOS A QUANTIDADE DE 365 RELATÓRIOS DE QUATRO INSTITUIÇÕES:. |
|---|
| Fundação Renova: 350, dos quais 283 se referem ao “Progresso do Programa” e 67 foram enviados ao Comitê Interfederativo |
| Ramboll: 12 |
| FGV: 2 |
| MPMG: 1 |
Deve-se esclarecer que a Ramboll e a Fundação Getulio Vargas (FGV) são as empresas peritas do Ministério Público, responsáveis por auditar as ações da Fundação Renova. As fontes documentais foram importantes em nossa pesquisa, pois são manuscritos oficiais destinados aos mais diversos públicos, mas que têm uma única intenção: informar sobre o desenrolar das atividades da Fundação Renova e analisar sua conduta enquanto instituição reparadora de danos. Os dados foram coletados no período de 24 meses, tempo em que este projeto de pesquisa esteve em andamento.
Como estratégia de triangulação dos dados, também foram analisados os relatórios produzidos pela Fundação Renova, denominados “Progresso do Programa” e “Relatório Mensal enviado ao CIF”. Esses relatórios mensais foram lidos e analisados em suas edições de setembro de 2016 a julho de 2022.
Tabela 2 Coleta de Dados| DESCRIÇÃO DO DADO | QUANTIDADE COLETADA | OBJETIVO EM COLETAR O DADO |
|---|---|---|
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Relatórios da Fundação Renova Onde coletamos: site institucional da Fundação Renova |
283 relatórios “Progresso do Programa”, com 338 páginas em printscreen e 67 relatórios, com 17.015 páginas, que atendem as orientações do Comitê Interfederativo CIF. PG18 - Disponível em: <https://www.fundacaorenova.org/programa/desenvolvimento-e-diversificacao-economica/>; PG19 - Disponível em: <https://www.fundacaorenova.org/programa/programa-de-recuperacao-de-micro-e-pequenos-negocios/>; PG20 - Disponível em: <https://www.fundacaorenova.org/programa/estimulo-a-contratacao-local/>; e PG22 -Disponível em: <https://www.fundacaorenova.org/programa/gerenciamento-dos-programas-socioeconomicos/>. CIF - Disponível em: <https://www.fundacaorenova.org/arquivos-e-relatorios/page/4/?search=CIF&category&forum&data_inicio&datafim#038%3bcategory&forum&data_inicio&data_fim>. |
Verificar a materialização dos princípios de direitos humanos nas ações da Fundação Renova, relativo aos programas do eixo socioeconômico PG 18, 19, 20, 22. Os relatórios analisados são do período de setembro de 2016 a julho de 2022. |
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Relatório Ramboll Onde coletamos: site do Ministério Público Federal |
12 relatórios: com 1.891 páginas Disponível em: <https://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/atuacao-do-mpf/pareceres-e-relatorios/ramboll>. |
Avaliar o cumprimento dos princípios de Direitos Humanos por parte da Fundação Renova nos PG 18, 19, 20 e 22. Auditoria sob os relatórios da Fundação Renova |
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Relatório FGV Onde coletamos: site do ministério Público Federal |
2 relatórios: com 166 páginas |
Avaliar o cumprimento dos princípios de Direitos Humanos por parte da Fundação Renova nos PG 18, 19, 20 e 22. Auditoria sob os relatórios da Fundação Renova |
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Ministério Público Federal Onde coletamos: site do Ministério Público Federal |
1 relatório com 651 páginas Referência: MPMG. Ação Civil Pública nº 5023635-78.2021.8.13.0024. Belo Horizonte: MPMG, 2021. |
Documento de pedido de extinção da Fundação Renova. |
Esses procedimentos metodológicos foram adotados para proporcionar uma análise robusta e abrangente das violações aos direitos humanos das pessoas atingidas pela Fundação Renova, fornecendo subsídios para compreender as falhas e os desafios relacionados à governança de desastres e à reparação dos danos causados.
ANÁLISE DE DADOS
Utilizamos a análise temática (Braun & Clarke, 2006) para examinar os dados. O processo incluiu a leitura, descrição e categorização dos dados, integrando-os aos direitos humanos. Analisamos artigos sobre os direitos humanos das pessoas afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão (Baraldi & Peruzzo, 2015; FGV, 2019a, 2019b; Lopes, 2016; Maher, 2019, 2021; Nabuco & Aleixo, 2019; Roland et al., 2018; Saes & Muradian, 2021). Após essa análise, construímos um mapa mental das violações de direitos humanos relacionadas ao rompimento. Diversas etapas de leitura, categorização e recategorização resultaram em um modelo explicativo dos direitos humanos das pessoas atingidas (Figura 1).
Após a criação do mapa mental, procedemos à análise do material documental de três entidades que fiscalizam os projetos conduzidos pela Fundação Renova (Tabela 3).
Encontramos evidências de violações de direitos humanos e registramos esses dados em uma planilha para analisar o grau de violação. Utilizamos gráficos do tipo “velocímetro” para representar o percentual de menções que indicam o descumprimento de direitos específicos dos atingidos. Esses documentos identificam indicadores de violação para cada direito, permitindo uma avaliação detalhada das possíveis violações. Apresentamos gráficos que mostram a porcentagem de violação encontrada e trechos dos documentos que destacam problemas como a falta de centralidade das pessoas atingidas, linguagem complexa, lentidão na divulgação de informações, falta de transparência e consultas inefetivas.
Violação ao direito à informação
As pessoas atingidas por catástrofes têm o direito de se beneficiar de proteção adequada por meio de atividades de governança de desastres. É o que a literatura em governança de desastres tem refletido para um melhor entendimento sobre as capacidades de respostas dos atores envolvidos (Lane & Hesselman, 2017). Tal aspecto requer a ação conjunta de muitos atores que necessitam estar atentos à importância da lente de direitos humanos nessas situações.
Essa mesma abordagem esclarece que o direito à informação, à participação, à não discriminação não só garante a proteção social como reduz a exposição e vulnerabilidade das populações atingidas, aumentando sua capacidade para reagir ao desastre. A análise dos relatórios nos permitiu verificar que a Fundação Renova descumpre esse direito, havendo evidências para tal em 84% do material analisado.
Foram encontradas evidências de que há 1) pouco suporte técnico para compreensão das informações, 2) pouca redução de exposição e vulnerabilidade, e 3) falta de centralidade das pessoas atingidas.
A lógica de funcionamento da Fundação sempre foi uma lógica empresarial, mantida desde a sua instituição e marcada pela falta de escuta e participação dos atores sociais da região que deveriam ter sido desde o princípio – e cada vez mais – integrados ao planejamento e à execução das atividades de reparação, mas que nunca foram, dificultando a identificação de reais problemas e potenciais da região atingida, assim como o acesso aos conhecimentos locais necessários à eficácia e eficiência dos Programas. (Ministério Público do Estado de Minas Gerais [MPMG], 2021, p. 15)
Segundo Lane e Hesselman (2017), a governança de desastres enfrenta múltiplos desafios dada a quantidade de recursos, habilidades e conhecimentos envolvidos na resposta a desastres. Por isso, existe a necessidade de se considerarem as múltiplas partes interessadas e como o acesso à informação chega a elas. Contudo, os documentos analisados apontam que:
Os estudos e notas técnicas do CIF30 relatam uma desconsideração, por exemplo, pelo trabalho de mulheres que participavam de processos tais quais limpeza e venda de peixes, ou negociações e venda de produtos agropecuários. Tais mulheres têm muita dificuldade de serem consideradas diretamente impactadas para, assim, poderem receber suas devidas indenizações, estando, em muitas das vezes, ligadas apenas como dependentes a seus maridos, ainda tratados como os “chefes de família”. (FGV, 2019a, p. 38)
Violação ao direito ao acesso à informação
Para analisar questões relacionadas ao direito a acesso à informação, observou-se 1) o uso de linguagem simples e objetiva, evitando especificações estritamente técnicas, 2) a celeridade na divulgação das informações, assim como 3) a desagregação dos dados, permitindo detalhamento sobre a situação dos atingidos em suas diversas vulnerabilidades, sejam sociais e/ou individuais
Em relação aos dados trazidos anteriormente, este é o único item em que observamos que a Fundação Renova, segundo os documentos apresentados, demonstrou um grau de violação menor que 80%.
No que tange ao uso de linguagem simples e objetiva, observam-se nos documentos analisados as seguintes críticas:
Falta de transparência e acesso à informação: todo o levantamento realizado sobre a concepção e construção da Matriz de Danos elaborada pela Fundação Renova exigiu um esforço considerável de busca e pesquisa, o que aponta para uma grave falha no acesso a dados e informações por parte do público em geral, e dos atingidos em particular. (FGV, 2019a, p. 8)
Já em relação à celeridade na divulgação das informações, os documentos analisados indicam que:
Além desta dificuldade de acesso à informação em função da não atualização e disponibilidade [existe] uma série de problemas relacionados com comunicação, atendimento e divulgação de informações do processo de reparação conduzido pela Fundação Renova. (FGV, 2019a, p. 35)
Nossas análises sugerem que os padrões de proteção do DIDH podem ajudar a melhorar o design dos programas de desastres apresentados pela Fundação Renova, seus processos e atividades. Também podem fornecer às comunidades atingidas medidas pertinentes para avaliar o comportamento dos atores relevantes na reparação/conclusão das atividades relacionadas a desastres. Contudo, é preciso que os atores estejam completamente envolvidos na estruturação de políticas que assegurem a reparação de direitos que já foram violados, desde o início.
Violação ao direito à transparência
A Figura 4 demonstra que o direito à transparência foi violado pela Fundação Renova em 84% do material analisado. Em nota técnica sobre o auxílio financeiro emergencial, em março de 2020, a FGV (2020, p. 71) declara que “grupos que vivem em situações de marginalização e vulnerabilidade enfrentam barreiras adicionais para ter acesso a uma remediação efetiva”. Tal excerto indica o descumprimento do direito à transparência das comunidades.
A análise dos relatórios mensais da Fundação Renova demonstra o descumprimento desse direito, tendo sido verificada falta de transparência em diversos relatórios. Os relatórios do PG02, dos meses de setembro a novembro de 2020, por exemplo, possuem informações absolutamente idênticas entre si, sendo destacado o mesmo quantitativo e texto para os meses. No relatório do PG21, do mês de novembro/2020, ao comparar-se o “Progresso do Programa” e o “Relatório CIF”, verifica-se um conteúdo completamente diferente entre eles. Há no PG21 também relatórios com uma frase somente, como os de janeiro e fevereiro de 2021.
No que tange às consultas efetivas às pessoas atingidas, os documentos analisados apontam para o “descabimento da exigência de certificação”, nota técnica da FGV sobre o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) (FGV, 2020, p. 39).
Para a Ramboll (2020b), a Fundação Renova insiste na
manutenção de critérios de elegibilidade restritos como manutenção da relação entre o AFE e o conceito de diretamente atingido, restrição de elegibilidade a uma lista e vinculação do AFE a relação direta entre a atividade desenvolvida e o rio, e não com o rompimento da barragem. (p. 38)
Violação ao direito à prestação de contas
Para analisar questões relacionadas ao direito à prestação de contas, foram analisadas 1) efetividade na gestão dos recursos destinados à reconstrução, 2) fornecimento aos atingidos de informações sobre fatos ocorridos, riscos e danos presentes e futuros, assim como as medidas e ações necessárias para o enfrentamento das situações, bem como 3) o acesso às estatísticas oficiais.
Observou-se que a Fundação Renova, de acordo com o material analisado, tem violado constantemente esse direito. Em relação à efetividade na gestão dos recursos, por exemplo, a ação cível pública da organização e fiscalização da fundação descreve que:
Diversos procedimentos administrativos de acompanhamento de Instituição, relativos à FUNDAÇÃO RENOVA, que tramitavam nesta Promotoria de Justiça, já indicavam a existência de múltiplos problemas e indícios de irregularidades relativos à gestão, ao patrimônio e às finalidades do referido ente fundacional. (MPMG, 2021, p. 20)
Por outro lado, no que tange ao acesso às estatísticas oficiais, os relatórios descrevem que:
As incertezas sobre o grau de contaminação das águas, dos pescados e produtos do mangue geram efeitos adversos à atividade econômica, pois dão base a boatos e difusão de dados incertos e alarmistas. Mesmo que existentes contaminações significativas e riscos reais, eles precisam ser apresentados e divulgados oficialmente, em linguagem acessível a todas as comunidades. (Ramboll, 2020b, pp. 47-48)
Violação ao direito à participação e controle social
O direito à participação e controle social é um dos pilares dos direitos humanos. A análise dos relatórios nos permitiu verificar que a Fundação Renova descumpre sistematicamente esse direito, tendo sido encontradas evidências para tal em 91% do material analisado.
No que tange à participação e controle social, mostra-se como um dos pontos mais críticos às violações que vêm sendo efetuadas pela Fundação Renova. Tanto os relatórios da FGV quanto os da Ramboll demonstram “fragilidade das estruturas de participação social no levantamento de danos e construção da Matriz de Danos e pouca transparência no processo” (FGV, 2019a, p. 34).
Lane e Hesselman (2017) ressaltam que existem desafios à governança de desastres, visto que estes podem sobrecarregar a capacidade de qualquer nação, o que exige um esforço coletivo. Contudo, a governança de desastres necessita que os atores envolvidos nas atividades de reparação adotem com maior firmeza abordagens baseadas nos direitos humanos. O DIDH é, portanto, pedra angular para as atividades de governança de desastres. Contudo, os relatórios da FGV (2019a) apontam:
Inexpressiva participação social na construção da Matriz de Danos [...] não há transparência quanto aos critérios e parâmetros de reconhecimento de danos indenizáveis, ampliando a incompreensão da população atingida sobre o processo. (p. 9)
Assim, podemos perceber que a inexpressiva participação das comunidades atingidas tem sido um ponto de gargalo, segundo a Ramboll, para a governança que a Fundação Renova atualmente adota:
O Programa não atende às características dos modos de vida das populações tradicionais nele inseridas. As indenizações voltadas aos tradicionais devem ser discutidas de acordo com seus modos de vida. Ausência de indenização para todas as categorias atingidas, tais como artesãos, barraqueiros, ilheiros, dentre outros. (Ramboll, 2020a, p. 3)
Tais dados indicam que, em questões de acessibilidade, a população tem pouco conhecimento dos programas e ações da empresa, além de o diálogo e engajamento com os atingidos ser limitado.
A BUROCRACIA COMO LIMITADORA À PARTICIPAÇÃO SOCIAL E PERPETUADORA DO SISTEMA DE OPRESSÃO
No caso em análise, observamos que a Fundação Renova tem dificultado o acesso à informação e violado os direitos humanos, como o direito à informação e o princípio de igualdade e isonomia. Os direitos humanos são fundamentais para a dignidade humana, e a perda ou privação desses direitos pode levar o ser humano a um lugar no mundo em que suas opiniões não são significativas e suas ações não são efetivas. Os direitos humanos garantem a igualdade e a proteção contra todas as formas de discriminação. O sujeito da ação política emerge dos direitos que são negados em um contexto particular, como no caso do rompimento-crime da barragem de Fundão, em que direitos como moradia, educação, memória e coletividade foram violados (Schaap, 2014).
No âmbito da Fundação Renova, vemos que a burocracia transcende seu papel tradicional de otimização e eficiência. Em vez de contribuir para processos mais transparentes e inclusivos, ela se transforma em um mecanismo de restrição e opressão. A burocracia, como forma de racionalidade organizacional, desempenha um papel importante na padronização de processos e justificação de decisões tomadas pelas organizações. Frequentemente, é empregada para minimizar os custos inerentes ao processo decisório, simplificando as escolhas e garantindo eficiência operacional. Contudo, em contextos em que sistemas de governança participativos são essenciais, como é o caso da Fundação Renova, a aplicação da burocracia assume nuances complexas. Ao adotar uma abordagem massificada e fragmentada, a burocracia é usada como uma ferramenta para dificultar e limitar a participação ativa das comunidades atingidas.
Por meio da multiplicação excessiva de etapas e procedimentos confusos, a burocracia na Fundação Renova pode se tornar uma barreira para a participação dos atingidos. Esse uso estratégico da burocracia não apenas engessa e confunde, mas também mina os esforços de engajamento e controle das comunidades atingidas. Essa abordagem serve para desencorajar a participação ativa, relegando as vozes das pessoas a um plano secundário. Falta, por parte da Fundação Renova, colocar os mecanismos de governança a favor dos atingidos, especialmente porque a composição do Conselho de Administração apresenta, em sua maioria, pessoas com forte vínculo com as empresas perpetradoras do rompimento-crime. Como consequência, as estruturas de governanças criadas até então não têm sido suficientes para impedir que os interesses das empresas, como grupos dominantes, se sobreponham aos interesses da população atingida.
Além disso, ao utilizar a burocracia de maneira articulada, a Fundação Renova perpetua um sistema de opressão que atende aos interesses das grandes mineradoras. A fragmentação dos processos e a dificuldade na compreensão das etapas obscurecem a tomada de decisões, permitindo que as mineradoras exerçam influência nos processos. Isso resulta em uma estrutura de governança que não apenas limita a participação, mas também favorece a manutenção do status quo imposto pelas corporações.
Um exemplo dessa perpetuação de violações aos direitos humanos por parte da Renova é a fragmentação de informações, que culmina na violação do direito à informação. As pessoas atingidas reclamam da falta de acesso a informações adequadas e transparentes, o que diminui proteção e aumenta a vulnerabilidade. Segundo relatórios analisados, a Fundação Renova vem sistematicamente violando esse direito, bem como o direito de participação e controle social.
No contexto da Fundação Renova, a burocracia não é apenas um modelo de racionalidade organizacional, mas também uma ferramenta que pode ser manipulada para minar a participação e perpetuar um sistema de opressão. A busca por processos de governança mais transparentes e participativos exige uma avaliação crítica das abordagens burocráticas adotadas, visando garantir que os direitos das comunidades atingidas sejam respeitados e suas vozes sejam verdadeiramente ouvidas.
Nossos resultados apontam que Fundação Renova, ainda que tenha mecanismos sofisticados de governança, continua a perpetuar a violação do direito das pessoas atingidas, pois a transparência e a participação são fundamentais para garantir que as pessoas atingidas tenham acesso às informações e possam participar das decisões que afetam suas vidas. Assim, a violência estrutural nos direitos humanos muitas vezes fica encoberta por processos de igualdade e isonomia burocrática, ignorando as desigualdades sociais e econômicas que podem obstruir o acesso à justiça e uma reparação adequada para aqueles atingidos. É crucial considerar a persistência dessas violências, especialmente em meio às evidências recentes que revelam a marginalização das populações atingidas nos acordos pós-rompimento da barragem da Samarco (Euclydes et al., 2022). Por último, os danos materiais, morais e indiretos refletem os prejuízos suportados pelas pessoas atingidas, que demandam uma reparação completa.
CONCLUSÃO
Este artigo discute as violações de direitos à informação, transparência, participação social, prestação de contas e acesso à informação pela Fundação Renova, no contexto do desastre da barragem de Mariana-MG. Brasil. Realizamos uma pesquisa qualitativa e exploratória, analisando 365 documentos para entender como as ações das organizações podem violar os direitos humanos.
Analisamos relatórios elaborados por peritos do MPF, como Ramboll e FGV, e relatórios da Fundação Renova para o Comitê Interfederativo (CIF), uma instância externa e independente liderada pelo Ibama. Concluímos que a falta de transparência nas ações das empresas envolvidas no rompimento da barragem de Fundão resultou na continuidade de violações aos direitos das populações atingidas.
AGRADECIMENTO
Agradecemos a PROPP/UFOP, FAPEMIG e CNPQ pelo apoio ao projeto (6436) Cartografia da Transparência: construção de indicadores de transparência da Fundação Renova.
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Editado por
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Editor Responsável:
Marco Antonio Carvalho Teixeira
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Fev 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
26 Maio 2024 -
Aceito
05 Nov 2024












