RESUMO
Este estudo explora as cozinhas solidárias como uma tecnologia social estratégica para combater a fome e a insegurança alimentar nos centros urbanos brasileiros. Essas iniciativas, originadas em movimentos sociais e consolidadas pelo Programa Fome Zero (2003), foram institucionalizadas pela Lei n. 14.628/2023 e pelo Decreto n. 11.937/2024, que regulamentaram o Programa Nacional Cozinha Solidária (PNCS). As cozinhas solidárias não apenas fornecem refeições de qualidade, mas também promovem inclusão social, capacitação comunitária e práticas sustentáveis. Durante a pandemia de Covid-19, essas iniciativas desempenharam papel crucial no atendimento à crescente demanda por alimentos. Contudo, enfrentam desafios como dependência de doações, descontinuidade de políticas públicas e falta de financiamento. O estudo recomenda a ampliação do PNCS, maior articulação entre stakeholders, fortalecimento de parcerias com pequenos produtores e incentivo à sustentabilidade. Conclui-se que as cozinhas solidárias são instrumentos fundamentais para a promoção da segurança alimentar e da justiça social no Brasil.
Palavras-chave:
cozinhas solidárias; segurança alimentar; redistribuição de alimentos; política social; análise de políticas públicas
ABSTRACT
The study explores solidarity kitchens as a strategic social technology to combat hunger and food insecurity in Brazilian urban centers. These initiatives, originating from social movements and consolidated through the Zero Hunger Program (2003), were institutionalized by Law 14,628/2023 and Decree 11,937/2024, which regulate the National Solidarity Kitchen Program. Solidarity kitchens provide quality meals and promote social inclusion, community empowerment, and sustainable practices. During the COVID-19 pandemic, they played a crucial role in meeting the growing demand for food. However, they face challenges such as dependence on donations, discontinuity of public policies, and lack of funding. The study recommends expanding the National Solidarity Kitchen Program, enhancing stakeholder coordination, strengthening partnerships with small-scale producers, and fostering sustainability. Finally, the research emphasizes that solidarity kitchens are essential for promoting food security and social justice in Brazil.
Keywords:
solidarity kitchens; food security; food redistribution; social policy; policy analysis
RESUMEN
El estudio analiza las cocinas solidarias como una tecnología social clave para combatir el hambre y la inseguridad alimentaria en los centros urbanos de Brasil. Surgidas de movimientos sociales y consolidadas por el Programa Hambre Cero (2003), fueron institucionalizadas con la Ley 14.628/2023 y el Decreto 11.937/2024, que reglamentaron el Programa Nacional de Cocinas Solidarias (PNCS). Estas iniciativas no solo ofrecen comidas de calidad, sino que también fomentan la inclusión social, la capacitación comunitaria y las prácticas sostenibles. Durante la pandemia de COVID-19, respondieron a la creciente demanda de alimentos. Sin embargo, enfrentan desafíos como la dependencia de donaciones, la falta de financiamiento y la discontinuidad de políticas públicas. El estudio sugiere ampliar el PNCS, fortalecer las alianzas con pequeños productores y promover la sostenibilidad. Se concluye que las cocinas solidarias son esenciales para garantizar la seguridad alimentaria y la justicia social en Brasil.
Palabras clave:
cocinas solidarias; seguridad alimentaria; redistribución de alimentos; politica social; análisis de políticas públicas
SUMÁRIO EXECUTIVO
Este estudo explora as cozinhas solidárias como uma tecnologia social estratégica para combater a fome e a insegurança alimentar nos centros urbanos. O artigo tem como objetivo analisar a relevância dessas iniciativas no enfrentamento da vulnerabilidade social, destacando sua capacidade de promover inclusão, fortalecimento comunitário e sustentabilidade. Além disso, aborda os desafios enfrentados, como a dependência de doações, a descontinuidade de políticas públicas e a necessidade de maior articulação entre os atores da cadeia produtiva.
As políticas sociais voltadas para a garantia da segurança alimentar foram consolidadas com o Programa Fome Zero, lançado em 2003, que estabeleceu as bases para diversas iniciativas, incluindo as cozinhas solidárias. Essas cozinhas, originadas em movimentos sociais, passaram a complementar outros equipamentos e políticas já existentes, como os bancos de alimentos e os restaurantes populares. Apesar dos avanços iniciais, a descontinuidade de políticas públicas durante o governo Bolsonaro comprometeu a expansão dessas iniciativas. No entanto, a regulamentação recente, por meio da Lei n. 14.628 (2023) e do Decreto n. 11.937 (2024), institucionalizou o Programa Nacional Cozinha Solidária (PNCS), ampliando seu alcance e reforçando sua relevância como uma política pública estratégica no combate à fome e à insegurança alimentar.
As cozinhas solidárias, além de fornecerem refeições de qualidade, atuam como centros de capacitação e inclusão social, promovendo práticas sustentáveis e fortalecendo a cooperação entre comunidades. Durante a pandemia de Covid-19, desempenharam papel crucial no atendimento à crescente demanda por alimentos, evidenciando sua relevância em contextos de crise.
O estudo reitera que a fome no Brasil é uma escolha política, como preconizado por Josué de Castro (1946) e argumentado por Dowbor (2022), que decorre da má distribuição e desperdício de alimentos, e não da escassez de recursos, exigindo uma abordagem sistêmica e integrada. Recomenda-se a ampliação do PNCS, com maior articulação entre stakeholders, fortalecimento de parcerias com pequenos produtores e incentivo à sustentabilidade. Assim, as cozinhas solidárias consolidam-se como instrumentos fundamentais para a promoção da segurança alimentar e da justiça social no Brasil.
SITUAÇÃO-PROBLEMA - FOME E DESIGUALDADE NO ACESSO AOS ALIMENTOS NO BRASIL
A fome no Brasil não resulta da escassez de alimentos, mas de problemas estruturais relacionados à distribuição e ao acesso desigual. Dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020) revelam que, entre 2017 e 2018, cerca de 10,3 milhões de pessoas residiam em lares que enfrentaram privação severa de alimentos, enquanto 68,9 milhões de residências brasileiras (36,7%) se enquadravam em algum grau de insegurança alimentar, representando aproximadamente 84,9 milhões de pessoas. A segurança alimentar, nesse período, caiu para 63,4%, atingindo o índice mais baixo dos últimos anos, ao mesmo tempo que o Brasil atingia um novo recorde no valor de produção agrícola em 2018: R$ 343,5 bilhões, representando uma alta de 8,3% em relação ao ano anterior (IBGE, 2020). Esses dados ilustram a limitação da contribuição do agronegócio na promoção da segurança alimentar em nível nacional (Grisa & Schneider, 2015; Recine et al., 2021).
Essa contradição evidencia que o problema não é consequência da insuficiência na produção de alimentos, mas sim da histórica má distribuição dos recursos alimentares disponíveis. Já em 1946, Josué de Castro afirmava que a fome deve ser entendida como uma escolha política, pois não se trata apenas de um fenômeno biológico ou natural, mas de uma manifestação das contradições econômicas e sociais geradas por decisões políticas que perpetuam o subdesenvolvimento e a desigualdade. Para ele, a superação da fome depende de políticas públicas que priorizem o bem-estar social e promovam a emancipação alimentar. Dessa forma, a fome é resultado de escolhas estruturais que podem ser revertidas por meio de ações comprometidas com a justiça social e a redistribuição de recursos. Mesmo após mais de 80 anos da publicação da obra de Castro, o problema permanece atual e em evidência (Castro, 1946; Dowbor, 2022).
A insegurança alimentar no Brasil é fortemente influenciada por determinantes socioeconômicos, como a renda domiciliar per capita, a escolaridade e a estabilidade da ocupação da pessoa de referência no domicílio. Estudos baseados nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2004 e 2009 confirmam que a renda é o principal fator associado à insegurança alimentar, apresentando famílias com maior renda uma probabilidade significativamente menor de vivenciar insegurança alimentar. Além disso, a escolaridade da pessoa de referência desempenha um papel crucial, reduzindo a vulnerabilidade alimentar ao ampliar as oportunidades de emprego e renda. A estabilidade no emprego, especialmente em ocupações formais, também contribui para a segurança alimentar, enquanto a informalidade e a instabilidade aumentam os riscos. Outros fatores, como a ausência de água encanada e saneamento básico, agravam ainda mais a situação, destacando a importância de políticas públicas que promovam não apenas a transferência de renda, mas também o acesso a serviços essenciais e a educação de qualidade (Hoffmann, 2008, 2013).
Estudos destacam que a definição de linhas de pobreza e indigência, baseadas no valor monetário mínimo necessário para a aquisição de uma cesta básica de alimentos e outros itens essenciais, é uma prática comum para estimar a magnitude da fome (Kepple & Segall-Corrêa, 2011). No entanto, essas estimativas, embora úteis para dimensionar o problema, tendem a homogeneizar grupos populacionais distintos, dificultando a análise do impacto das políticas públicas. Nesse contexto, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) surge como um instrumento essencial, pois permite medir diretamente a insegurança alimentar em nível domiciliar, considerando aspectos psicossociais e econômicos que influenciam o acesso aos alimentos. A EBIA, validada no Brasil, amplia a compreensão do fenômeno ao integrar indicadores qualitativos e quantitativos, contribuindo para a formulação de políticas públicas mais eficazes e direcionadas (Kepple & Segall-Corrêa, 2011).
A análise socioeconômica dos dados demonstra que a insegurança alimentar afeta desproporcionalmente grupos específicos: mais da metade das residências em situação de insegurança alimentar grave eram chefiadas por mulheres no período pré-pandêmico (2018), e metade das crianças com cinco anos ou menos (6,5 milhões) viviam em lares com acesso comprometido aos alimentos. Geograficamente, a insegurança alimentar grave concentra-se nas regiões Norte (10,2% das residências) e Nordeste (7,1% dos lares), onde menos da metade dos domicílios têm acesso regular e seguro à alimentação. Dos 3,1 milhões de domicílios em situação de insegurança alimentar grave no Brasil, 1,3 milhão estava concentrado no Nordeste, evidenciando a distribuição desigual do problema no território nacional (IBGE, 2020).
O cenário pós-pandêmico agravou significativamente essa situação: de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar - Penssan, 2022), em 2022, 33,1 milhões de pessoas estavam em situação de fome, com 14 milhões ingressando nessa estatística em pouco mais de um ano. No total, 58,7% da população brasileira (125,2 milhões de pessoas) convivia com algum grau de insegurança alimentar, representando um aumento de 60% em relação a 2018. Em 2022, de cada 10 domicílios, apenas quatro possuíam acesso pleno aos alimentos. É importante destacar que os dados do IBGE e da Rede Penssan não constituem uma série histórica contínua, pois utilizam metodologias e parâmetros distintos de coleta. Durante o período de 2019 a 2022, diante da ausência de pesquisas oficiais referentes à EBIA por parte do Governo Federal, as análises sobre Insegurança Alimentar e Nutricional (Insan) fundamentaram-se predominantemente nos levantamentos realizados pela Rede Penssan, que se tornaram referência para compreender a evolução do fenômeno nesse intervalo crítico.
É nesse contexto de acesso desigual aos alimentos que as cozinhas solidárias emergem como tecnologia social estratégica, atuando diretamente no ponto crítico do problema: garantir o acesso a alimentos de qualidade para populações vulneráveis em áreas urbanas onde a distribuição alimentar é precária. Ao estabelecerem-se predominantemente em regiões periféricas com alta concentração de população de baixa renda, essas iniciativas atendem justamente aos grupos mais afetados pela insegurança alimentar (mulheres chefes de família, crianças e populações de baixa renda), funcionando como pontos de redistribuição que corrigem falhas sistêmicas no acesso aos alimentos. As cozinhas solidárias operam, portanto, como mecanismo de enfrentamento à desigualdade na distribuição alimentar, canalizando recursos para as populações mais vulneráveis e contribuindo para a redução da insegurança alimentar nos centros urbanos brasileiros.
METODOLOGIA DE PESQUISA
A presente pesquisa adota uma abordagem qualitativa, com base em análise documental e revisão bibliográfica, para investigar a relevância das cozinhas solidárias como tecnologia social no enfrentamento da insegurança alimentar nos centros urbanos brasileiros. Os instrumentos utilizados incluíram a avaliação de dados secundários provenientes de relatórios oficiais, como os levantamentos do IBGE (2020) e do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (Rede Penssan, 2022), além de legislações recentes, como a Lei n. 14.628 (2023) e o Decreto n. 11.937 (2024), que regulamentam o PNCS.
A coleta de dados também abrangeu publicações acadêmicas, como estudos de Belik (2023) e Matzembacher et al. (2021), que analisam iniciativas de perdas e desperdícios de alimento e segurança alimentar por meio da articulação de múltiplos stakeholders. A análise dos dados foi conduzida com base em uma perspectiva sistêmica, buscando identificar inter-relações entre os atores da cadeia produtiva e os desafios enfrentados pelas cozinhas solidárias.
Por fim, a triangulação das fontes permitiu uma compreensão integrada do fenômeno, destacando a importância das cozinhas solidárias como instrumentos de inclusão social, sustentabilidade e governança colaborativa, alinhando-se aos princípios de responsabilidade social e justiça alimentar.
RESULTADOS E ANÁLISE - COZINHAS SOLIDÁRIAS: UMA ALTERNATIVA PARA COMBATER A INSEGURANÇA ALIMENTAR NOS CENTROS URBANOS
As cozinhas solidárias representam uma tecnologia social estratégica no enfrentamento da insegurança alimentar, especialmente em contextos urbanos marcados por desigualdades estruturais no acesso aos alimentos. Essas iniciativas têm como objetivo central garantir refeições adequadas às populações vulneráveis, atuando diretamente sobre o problema da distribuição desigual dos recursos alimentares disponíveis (Rede Penssan, 2022). No Brasil, a trajetória desses estabelecimentos está associada à mobilização da sociedade civil e à implementação de políticas públicas voltadas ao combate à fome.
A origem das cozinhas solidárias remonta a experiências isoladas em bairros periféricos, frequentemente vinculadas a hortas comunitárias e movimentos sociais. Essas iniciativas ganharam relevância com o lançamento do programa Fome Zero, em 2003, que estruturou uma rede pública de equipamentos de alimentação e nutrição. Até 2010, havia 404 cozinhas solidárias no País, com média diária de 213 refeições por unidade. Contudo, a descontinuidade das políticas públicas e o desmonte de programas de segurança alimentar comprometeram sua expansão e sustentabilidade (Belik, 2023).
As cozinhas solidárias são espaços destinados à produção e distribuição de refeições gratuitas ou a preços simbólicos para populações vulneráveis, funcionando também como centros de capacitação comunitária. Seu funcionamento depende principalmente de doações de alimentos de agricultores familiares e Bancos de Alimentos, além do trabalho voluntário de moradores e ativistas sociais (Belik, 2023).
Durante a pandemia de Covid-19, as cozinhas solidárias desempenharam um papel crucial no atendimento à crescente demanda alimentar, em contexto de crise econômica e aumento da pobreza. Destacaram-se iniciativas lideradas por movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que administra dezenas de cozinhas solidárias em diferentes estados, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que também promove ações de distribuição de alimentos em áreas urbanas. Muitas dessas cozinhas operaram em condições emergenciais, sem padrões sanitários ou nutricionais adequados, configurando-se como respostas imediatas à fome (Belik, 2023).
Em 2024, existiam 48 cozinhas solidárias espalhadas por todo o Brasil, administradas por grupos das próprias periferias e geridas pelo MTST. Dados compilados até novembro de 2023 indicam que aproximadamente 2.3 milhões de refeições foram distribuídas desde o início das atividades, produzidas por 97 cozinheiras e mobilizando 1.883.303 quilos de alimentos arrecadados. Para sua manutenção, as cozinhas contam com financiamento coletivo, apoio majoritário do MTST e doações individuais, seja em recursos financeiros, alimentos ou atuação voluntária cotidiana.
Apesar de sua relevância social, as cozinhas solidárias enfrentam desafios significativos relacionados à gestão pública, como a ausência de financiamento governamental estruturado, dependência de doações e trabalho voluntário, além da descontinuidade de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O ponto central, portanto, não é apenas encontrar soluções pontuais para a fome, mas desenhar mecanismos eficazes de gestão capazes de receber, processar e distribuir alimentos adequadamente às populações vulneráveis, em escala suficiente e sustentável.
A institucionalização da Política de Cozinhas Solidárias
As regulamentações nacionais sobre o Programa Cozinha Solidária representam um marco institucional ao normatizarem estratégias de combate à insegurança alimentar, tradicionalmente orientadas pela mobilização coletiva de movimentos sociais em defesa de grupos vulneráveis. Nesse sentido, o artigo 14, § 2º, da Lei n. 14.628 (2023) estabelece que “as cozinhas solidárias são tecnologia social”, considerando que o mecanismo não se limita à distribuição de alimentos gratuitos ou a preços módicos, mas também promove cooperação comunitária, inclusão social e fortalecimento das redes locais (Lei n. 14.628, 2023). Complementarmente, o artigo 3º, I, do Decreto Presidencial n. 11.937 (2024) conceitua tecnologia social como práticas e metodologias replicáveis, desenvolvidas coletivamente pela comunidade, que representam soluções efetivas para enfrentar problemas decorrentes da insegurança alimentar e nutricional (Decreto n. 11.937, 2024).
Embora o custo orçamentário da política seja frequentemente apontado como um dos desafios enfrentados por políticas sociais dessa natureza (Rahal et al., 2024), a análise econômica do PNCS deve considerar a remuneração digna das cozinheiras, majoritariamente mulheres, e priorizar cardápios saudáveis com aquisição de alimentos de pequenos produtores, fomentando sustentabilidade e inclusão produtiva rural. Em última instância, os beneficiários tornam-se agentes de disseminação dos valores democráticos de igualdade social e direitos humanos.
É comum que posicionamentos fundamentados em ideais de governança gerem conflitos entre classes sociais interessadas na disputa pública, devido à articulação dos diferentes atores envolvidos na execução coordenada das ações governamentais. A diversidade de embates entre stakeholders envolvidos nesse tipo de política (produtores rurais, legisladores, diferentes níveis de governo etc.) (Araujo et al., 2025) permite elucidar múltiplos pontos de vista sobre o problema, favorecendo soluções adequadas às necessidades da população. Em termos de governabilidade, a relação estrutural entre o Programa Cozinha Solidária e o PAA proporciona maior integração entre diferentes instâncias e partes interessadas, com abordagens interseccionais sobre segurança alimentar e saúde nutricional (Matzembacher et al., 2021).
Nesse contexto, compreender a fome como resultado da má distribuição e do desperdício de alimentos, e não da escassez, fundamenta a ideia de que esse desafio conecta os diferentes atores da cadeia de suprimentos alimentares, desde o produtor até o consumidor. Assim, embora seja importante considerar a responsabilidade de cada agente no processo produtivo para evitar a generalização de problemas específicos, a solução para essa questão exige uma abordagem sistêmica e integrada.
Em termos legislativos, o artigo 18 da Lei n. 14.628 (2023) define que a União, no âmbito do Programa Cozinha Solidária, tem a atribuição de firmar contratos de parceria com entes públicos, “bem como com organizações da sociedade civil” que participem do cotidiano dos refeitórios, consolidando expressamente que os recursos financeiros repassados às entidades privadas sem fins lucrativos devem ser destinados à oferta de refeições e às despesas de custeio, pessoal, manutenção e pequenos investimentos que concorram para a garantia do funcionamento e melhoria da estrutura física dos estabelecimentos, conforme o § 2º, I e II, do mesmo artigo.
O artigo 7º do Decreto Presidencial n. 11.937 (2024), por sua vez, amplia a atuação do PNCS para além do fornecimento de alimentos e da preservação estrutural dos estabelecimentos, enumerando três modalidades de execução da política pública em seus incisos: “apoio à oferta de refeições pelas cozinhas solidárias em funcionamento”; “fornecimento de alimentos in natura e minimamente processados provenientes do PAA”; e “apoio à formação de colaboradores e à implementação de projetos que abordem processos formativos para o aprimoramento do funcionamento das cozinhas solidárias e as atividades formativas de interesse coletivo”.
Dessa forma, as parcerias público-privadas são caracterizadas como instrumentos de tecnologia social garantidores de direitos fundamentais. Adaptando-se às culinárias e culturas regionais, o programa possui fundamentação institucional para expandir projetos de cooperação além dos serviços de acolhimento, alcançando setores sociais importantes no ciclo de gestão alimentar e colaborando para práticas sustentáveis em todos os elos da cadeia produtiva, desde relações justas com fornecedores até acordos conscientes para descarte e doação de rejeitos alimentares.
CONSIDERAÇÕES E RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Esta pesquisa destaca a relevância das cozinhas solidárias como tecnologia social estratégica para enfrentar a insegurança alimentar nos centros urbanos brasileiros. Além de fornecer refeições de qualidade a populações vulneráveis, essas iniciativas promovem inclusão social, fortalecimento comunitário e disseminação de valores democráticos. Contudo, enfrentam desafios como falta de financiamento público, dependência de doações e descontinuidade de políticas governamentais, comprometendo sua sustentabilidade. A institucionalização do Programa Cozinha Solidária, por meio da Lei n. 14.628 (2023) e do Decreto n. 11.937 (2024), representa um marco ao regulamentar e ampliar essas ações, integrando pequenos produtores e organizações da sociedade civil, promovendo práticas sustentáveis e garantindo remuneração digna às cozinheiras, cardápios saudáveis e cooperação comunitária.
A pesquisa reforça que a fome no Brasil resulta de má distribuição e desperdício de alimentos enquanto decisão política, exigindo uma abordagem sistêmica e integrada. As cozinhas solidárias, ao aliarem alimentação, inclusão social e sustentabilidade, são ferramentas fundamentais para a segurança alimentar e a construção de uma sociedade mais justa. Recomenda-se a expansão do PNCS, considerando a complexidade territorial e social do Brasil, com a inclusão de múltiplos stakeholders e articulação entre atores da cadeia produtiva. Estratégias como a doação de alimentos próximos ao vencimento e resíduos orgânicos, além de parcerias com pequenos produtores e agricultores familiares, podem reduzir o desperdício e fortalecer a sustentabilidade do programa.
Infraestrutura adequada e diversificação das fontes de financiamento são essenciais para garantir a eficiência operacional das cozinhas solidárias. Nas regiões Norte e Nordeste, onde a insegurança alimentar é mais grave, o aproveitamento de alimentos rejeitados por questões estéticas pode aumentar significativamente a capacidade produtiva. A integração do PNCS com políticas públicas como o PAA e a Rede Brasileira de Bancos de Alimentos fortalece a governança e promove qualificação profissional, gerando renda e autonomia financeira para beneficiários em regiões vulneráveis. Por fim, o aumento da oferta de refeições diárias, aliado a padrões nutricionais adequados e práticas inclusivas, consolida o PNCS como uma política pública estratégica para a redução da fome e a promoção da justiça social no Brasil.
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Avaliadores/as: Bruno Magalhães https://orcid.org/0000-0001-6759-6249, Fundação João Pinheiro, Escola de Governo, Belo Horizonte, MG, Brasil e, não autorizou a divulgação do relatório de avaliação por pares. O/A segundo/a avaliador/a não autorizou a divulgação de sua identidade e relatório de avaliação por pares.
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Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Brasil. Processo nº 2021/07342-0.
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Editado por
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Editor Associado:
Fernando de Souza Coelho
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Dez 2024 -
Aceito
14 Maio 2025
