RESUMO
O isolamento social, uma das principais medidas contra a propagação da Covid-19, reorganizou relações sociais, intensificou o uso do espaço doméstico e teve, como uma de suas consequências, o aumento da violência contra mulheres. Ao mesmo tempo, o Governo Federal aprofundou o desmantelamento de políticas públicas para mulheres, sob argumentos desmobilizadores dos consensos anteriormente construídos junto à sociedade civil. Nesse cenário, ativistas dedicadas ao enfrentamento à violência contra mulheres revisitaram suas práticas. Este estudo observa ações coletivas feministas, e compreende seis ONGs e dois coletivos em interações locais, estaduais e nacionais, institucionais e não institucionais. Entrevistas, redes sociais e sites analisados revelam as estratégias adotadas, demonstrando repertórios flexíveis a novas formas de ação, alianças e esferas de atuação. Junto das tentativas de incidência política, ativistas viabilizaram iniciativas solidárias emergenciais em um contexto de limitada captação de recursos e urgências de atendimentos virtuais e presenciais de mulheres vítimas de violência.
Palavras-chave:
movimento feminista; estratégia; violência contra a mulher; repertório; pandemia
RESUMEN
El aislamiento social, una de las principales medidas contra la propagación de la COVID-19, reorganizó las relaciones sociales, intensificó el uso del espacio doméstico y tuvo, como una de sus consecuencias, él aumento de la violencia contra las mujeres. Paralelamente, el Gobierno federal brasileño profundizó el desmantelamiento de las políticas públicas para las mujeres, utilizando argumentos que socavaron los consensos previamente construidos con la sociedad civil. En este escenario, activistas dedicadas a combatir la violencia contra las mujeres revisaron sus prácticas. Este estudio observa la acción colectiva feminista, e considera 6 ONG y 2 colectivos en interacciones locales, estatales y nacionales, institucionales y no institucionales. Las entrevistas, las redes sociales y los sitios web analizados revelan las estrategias adoptadas, evidenciando repertorios flexibles a nuevas de formas de acción, alianzas y esferas de actuación. Junto con intentos de incidencia política, las activistas viabilizaron iniciativas solidarias de emergencia en un contexto de recaudación de fondos limitada y atención virtual y presencial urgente para mujeres víctimas de violencia.
Palabras Clave:
movimiento feminista; estrategia; violencia contra las mujeres; repertorio; pandemia
INTRODUÇÃO
Desde 1970, uma noção compartilhada sobre o que seja a violência contra a mulher e como enfrentá-la tem sido delineada, acolhendo institucionalmente perspectivas e incidências do movimento feminista. Inicialmente, a violência doméstica representava o foco de atenção, evidenciando a diferença entre a violência praticada na esfera pública e a violência ocorrida na esfera privada. Para analisar esse último fenômeno, a noção de patriarcado também é relevante, já que traz meios de compreender a origem das desigualdades de poder entre homens e mulheres em nossa sociedade (Debert & Gregori, 2008). A definição formal de violência contra a mulher foi estabelecida pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizada em Belém do Pará em 1994. Trata-se de “qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico ou sofrimento à mulher, tanto na esfera pública quanto na privada” (Organização dos Estados Americanos, 1994). Tornando-se uma referência normativa, tal definição pode ser identificada em legislações no Brasil, como a Lei Maria da Penha, Lei n. 11.340 (2006), e a Lei do Feminicídio, Lei n. 13.104 (2015).
Em 2021, no auge da pandemia, mais de 81 mil mulheres foram vítimas de feminicídio no mundo (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; UNWomen, 2022). No Brasil, durante o contexto de isolamento social daquele ano, houve crescimento de todos os indicadores de violência doméstica e sexual, incluindo agressões, ameaças e assédio, além de ter havido 1.437 vítimas de feminicídio (Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2022). Destas, 61,1% eram negras, sinalizando a interseccionalidade da violência contra mulheres no País. Os dados denotam um contexto desafiador para as mulheres, os movimentos sociais e as políticas públicas.
Quando as medidas de controle da crise sanitária orientadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendaram isolamento social, colocando a casa como espaço privilegiado de proteção apesar das diferentes condições para o exercício da quarentena, o confinamento adicionou um elemento de agravamento à violência doméstica. É indispensável abordar relações de poder, desigualdades, formas de dependência e vulnerabilidades que são atravessadas por questões de gênero, raça, sexualidade, geração, territorialidade e outras (Moreira et al., 2020). Entretanto, como parte do projeto político conservador que esteve em curso no Brasil entre 2019 e 2022, ocorreram processos de invisibilização da perspectiva de gênero. Considerando o desmonte das políticas públicas para mulheres (Tokarski et al., 2023) e as urgências da violência contra as mulheres, este estudo se debruça sobre a ação do movimento feminista no tema.
Conforme a pesquisa demonstra, as iniciativas de enfrentamento à violência contra as mulheres (EVCM) no período dependeram da ação solidária e expert de ativistas do movimento feminista. Nesse sentido, analisamos sites, redes sociais e entrevistamos ativistas para, a partir de suas narrativas, descrever e interpretar práticas mobilizadas durante a crise sociossanitária. No cenário de ausências de políticas públicas, ativistas dedicadas ao EVCM revisitaram suas práticas para promover economia solidária e autonomia econômica; monitorar serviços públicos; realizar apoio psicológico e jurídico; denunciar retrocessos em agendas políticas; promover diálogos e reforçar ações solidárias. Nesse processo, novos desafios foram identificados: alcançar mulheres sem acesso à internet, garantir a segurança de mulheres em situação de violência durante comunicação virtual enquanto ela se encontra em isolamento com o agressor, buscar novas fontes de captação de recursos e construção de novas parcerias.
Isso permite compreender as tendências de ações coletivas feministas durante a pandemia, suas dinâmicas de articulação e a promoção de incidências para evidenciar e solucionar problemas públicos urgentes. A seguir, apresentamos o marco teórico, o percurso metodológico, um breve histórico das relações entre o movimento feminista e o Estado brasileiro e, finalmente, a especificidade das estratégias de ações coletivas para o EVCM durante a pandemia.
REPERTÓRIOS E ESTRATÉGIAS COMO PRÁTICAS
Nas teorias de movimentos sociais, a abordagem norte-americana do processo político (TPP) surgiu na década de 1970 valorizando o contexto político para entender fatores que possibilitam ou dificultam a expansão dos movimentos sociais e sua atuação. A TPP tem por conceitos fundamentais a estrutura de oportunidade política, de Sidney Tarrow, e as ações que combinam e constituem repertórios de movimentos sociais, esse último conceito fundamentado por Charles Tilly (Nunes, 2014). O conceito representa a possibilidade de olhar para as práticas interacionais de modo a reconhecer as formas de ação, as relações e os significados que as orientam. A noção é inspirada na música, no repertório de uma banda, e pode remeter ao jazz, aberto à improvisação e à contingência. Charles Tilly (1978, 2006) é o principal autor desse conceito de longa trajetória. O conceito nasce como forma de ação, descreve práticas mobilizadas ao longo do tempo, com uma perspectiva estruturalista e histórica de longo prazo; abre-se, no início da década de 1990, para olhar especificamente o confronto político.
Na primeira elaboração do conceito, a ênfase na compreensão de repertório como conjunto de formas de ação permite perceber quais formas estão acessíveis ao grupo, entendendo, como nos casos estudados, que os repertórios de grupos organizados são em geral flexíveis, dependendo dos propósitos dos grupos e das necessidades apresentadas pelo contexto (Tilly, 1978). As mudanças de rotinas, as escolhas de formas de ação e a insurgência de raras inovações dentro dos repertórios acontecem conforme as escolhas táticas dos ativistas, constituídas na conexão entre “suas relações e suas trajetórias biográficas e organizacionais” (Pereira, M.M. & Silva, C.F.D., 2020).
Em 2006, Tilly passa a acolher críticas a abordagens culturalistas e se articula com a noção de performance para inscrever dinâmicas interativas, agências e justificativas. A teoria tillyana dos repertórios legou agendas tanto na direção da transferência política e do peso que a tradição e as oportunidades políticas locais desempenham nela quanto na pesquisa sobre como performances (experiências, significados e usos dos agentes em suas interações de confronto) transformam repertórios (Alonso, 2012).
Abers et al. (2014) revisitaram a teoria tillyana para se referirem ao contexto nacional e se afastaram da noção de confronto para identificar lógicas colaborativas. Elas se concentraram no período de governo do presidente Lula (2003-2010) e encontraram quatro repertórios de interação entre Estado e sociedade: protestos e ação direta; participação institucionalizada; política de proximidade; e ocupação de cargos na burocracia. Nos repertórios de participação institucional, as autoras observam que os atores estatais seriam centrais na criação e condução dos processos. E seria nas rotinas, agendas e formas de ação direta, como os protestos, que estabelecem ou pressionam negociações socioestatais, que os movimentos sociais teriam papel central. Diferentes repertórios de interação também podem se sobrepor para estabelecer ações mais complexas.
Entretanto, dadas as interações em fluxos que superam dinâmicas de ação coletiva convencionais para incorporarem redes de políticas públicas, acrescentamos à reflexão a perspectiva de Andrade (2011), para compreender ações públicas entre contextos movimentistas e institucionais. Andrade desvenda a trajetória da articulação multiatorial para o caso da erradicação do trabalho infantil e ajuda a compreender que a produção de ações públicas efetivas diz respeito à articulação coletiva, à formação de estratégias como veículos de práticas e ao reconhecimento de associações entre atores e atrizes de diferentes esferas, que podem ser tanto institucionais e não institucionais quanto humanas e não humanas. Para a autora, que compartilha da abordagem latouriana (Latour, 2012), estratégias não tratam meramente do planejamento de metas ou objetivos, conforme a literatura clássica de administração orientaria. São atividades em formação contínua, interações articuladas, reunindo atores e concretizando efeitos. Uma vez que as iniciativas e práticas interacionais investigadas escapam à convencionalidade dos repertórios de interação e conflito movimentista, ainda que os conceitos tenham origem em distintas teorias de ação coletiva, os aproximamos ao enfatizar as práticas para que seja possível observar as dinâmicas e associações entre atrizes voltadas ao EVCM no contexto de crise.
PERCURSO METODOLÓGICO
Para compreender como se deram as estratégias de ação coletiva para EVCM durante a pandemia, primeiramente, realizamos uma pesquisa exploratória virtual sobre iniciativas feministas voltadas ao tema e suas práticas, considerando a disponibilidade de descrições em redes sociais e websites. Selecionamos diferentes grupos relacionados ao movimento feminista conforme o tipo de instituição mobilizadora (ONG ou coletivo) e escala (municipal, estadual ou nacional). Considerando a diversidade de instituições especialmente relevantes ao tema do EVCM que disponibilizam dados significativos, foram selecionadas oito delas, quais sejam: Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), Coletivo Feminino Plural, Coletivo Helen Keller, Associação Coturno de Vênus, Instituto Patrícia Galvão, ONG Nova Mulher, Promotoras Legais Populares e ONG Tamo Juntas.
Nas ONGs e coletivos, identificamos atrizes-chave para entrevistar que fossem responsáveis por iniciativas de articulação de ações coletivas ou pressionassem por ações públicas responsivas. Nas entrevistas, buscamos compreender as redes que participam, papéis que desempenham, principais temas de atuação, iniciativas mais comuns de EVCM, como se estruturavam e se reestruturaram na pandemia. Nesses aspectos, observamos mudanças e permanências de práticas presenciais e virtuais, os modos de articulação de redes e o escopo de atuação. Também identificamos modos de exercício de influência política, dinâmicas de articulação e conflito com o Estado e, dada a complexidade do tema da EVCM, a participação em iniciativas intersetoriais.
A pesquisa sistematizou discursos das entrevistas e informações disponíveis em 2021 nos sites das instituições, ano selecionado devido à maior gravidade da situação da pandemia, e destacou categorias emergentes do campo para propor os quadros analíticos. Contemplando uma diversidade de grupos relacionados ao movimento mais amplo de mulheres, a análise compartilhada revela as formas de ação, ou práticas estratégicas, mobilizadas nas dinâmicas associativas no contexto de crise.
HISTÓRICO
No final do século XIX, diferentes repertórios do movimento de mulheres insurgiram, entre mobilizações (pelo abolicionismo, pelo direito ao voto e à educação), uso da imprensa independente, publicações de autoras estrangeiras, passeatas, ações de lobby junto a parlamentares (Hahner, 2003). No início do século XX, por influência tanto de ideias anarquistas e comunistas do chamado feminismo malcriado (Pinto, 2003) quanto de movimentos de resistência indígena e negra menos registrados na literatura, houve a fundação do Partido Republicano Feminino em 1910, além de passeatas e divulgação de comunicações pela imprensa.
Com o golpe empresarial-militar de 1964, a pauta voltada diretamente para os direitos civis pela igualdade de gênero deu lugar à necessidade urgente de combater a ditadura, desmobilizando a possibilidade de interação com o Estado. Naquela época, as questões de gênero levantadas tinham pouca ressonância em um ambiente predominantemente masculino, principalmente quando se analisava o caráter político de questões consideradas de âmbito privado. Com a Lei da Anistia, em 1979, as militantes políticas retornaram à vida cívica. Diferentes tendências destacam-se no período: 1. existencial, que consistia na troca de experiência entre mulheres e na percepção da importância da construção de relações sociais não autoritárias (grupos de reflexão); 2. política, baseada em repertórios de interação com o Estado, dividida entre as que queriam fazer uso dos espaços existentes – sem proposições drásticas – e as anticapitalistas, cuja inspiração marxista dava margem a mudanças na estrutura do sistema (grupos de ação) (Rosiska & Callame apud Miguel, 1998).
No período entre a redemocratização do País, em 1980, e a primeira década dos anos 2000, movimentos brasileiros preocuparam-se com a presença das mulheres no sistema político, na burocracia e no Judiciário (participação institucionalizada e ocupação de cargos burocráticos como repertórios de interação com o Estado); com o reconhecimento da relevância pública da violência contra as mulheres; e com a divisão sexual desigual do trabalho (Bezerra, 2014). No plano internacional, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres de 1979 representou uma oportunidade política que reverberou nas capacidades de impacto tanto nos governos quanto na própria Constituição Federal, gerando efeitos em políticas públicas, ainda que longe de suficientes. As práticas articulatórias reforçaram laços de solidariedade por meio de mobilizações de rua, passeatas, dinâmicas de lobby, advocacy e representação em instituições participativas.
O estímulo à criação de ONGs nos anos 1990 foi provocado pela possibilidade de financiamento de agências internacionais (Alvarez, 2009). Entre 1980 e 2000, 35 entidades feministas foram criadas no Brasil e 80% delas direcionaram a maior parte de seus financiamentos para projetos relacionados a políticas para mulheres (Novellino, 2006). Esse formato engaja mulheres com conhecimentos tecnopolíticos e pode reduzir a participação política de mulheres com outros perfis socioeconômicos, potencialmente colocando-as na condição de clientela (Buarque & Vainsencher, 2011). Nessa direção, Federici (2019) aponta que os movimentos feministas, ao receberem esse financiamento, comprometem-se com as diretrizes dos órgãos financiadores, trazendo uma espécie de “domesticação” de seu potencial revolucionário.
Nessa dinâmica, aprofundada na década de 1990, ocorre a profissionalização da atuação em organizações sociais. Historicamente, feministas atuando na linha de frente de organizações sociais contribuíram para a construção da agenda, da legislação e das políticas públicas para mulheres a partir do impacto de suas ações coletivas em espaços como conferências, fóruns, conselhos e consultorias, sendo absorvida parte desses quadros, na primeira quinzena do século seguinte, pelo serviço público.
Seguindo tendência internacional, estimulada pelas Nações Unidas (Federici, 2019), foi criado, em 2002, o primeiro organismo de políticas para as mulheres (OPM) em nível nacional, sendo implementados outros posteriormente em nível local. Os OPMs são órgãos governamentais responsáveis por promover uma perspectiva transversal de gênero nas políticas públicas. Segundo Lovenduski (2005), o contexto político geral e os movimentos sociais de mulheres e feministas impactam diretamente a efetividade dos OPMs à medida que se aprofundam os processos democráticos do Estado em questão e inserem uma perspectiva de gênero nas discussões durante o processo de formulação de políticas. Mais além, a capacidade de atuação de OPMs pode ser definida a partir da aproximação com movimentos de mulheres, da capacidade financeira e administrativa do órgão e da articulação com canais de formulação de políticas (Lovenduski, 2005).
Durante a gestão federal do Partido dos Trabalhadores (PT), foram ampliadas as possibilidades de interação entre governo e movimentos sociais, e esse tipo de relação tornou-se evidente com a formalização do OPM federal em 2003, a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), vinculada à Presidência da República. A Secretaria foi transformada em Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH) em 2015. A SPM e o MMIRDH tiveram impacto em pautas sobre poder e participação política, educação, cultura, ciência, autonomia econômica e, especialmente, EVCM (Lara, 2018). Essas abordagens também estavam presentes nos espaços deliberativos em conjunto com a sociedade civil e tiveram como objetivo construir, orientar e monitorar políticas e serviços públicos.
Diversos serviços acolheram as orientações dos movimentos de mulheres e tornaram-se uma espécie de “vanguarda” da produção de conhecimento, tendo nas redes de atendimento à violência uma das principais inovações orientadas por esse novo enquadramento para superar limites da atuação setorizada (Diniz, 2006).
ONGs, coletivos e movimentos atuaram não apenas no desenvolvimento de modelos assistenciais (social, sanitário, psicológico e jurídico), mas também criando redes de referência, articulando políticas internacionais com organizações (inter)governamentais e campanhas de prevenção à violência. Muitos desses projetos foram alavancados por meio de parcerias com a academia e serviços, ampliando seu alcance e sustentabilidade, como a ONG Cepia no Rio de Janeiro, o SOS Corpo em Recife e o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde em São Paulo.O resultado das políticas será sempre um embate entre o que foi proposto e o que é possível. A lista de criações nesse embate é extensa e mostra uma grande capacidade de interlocução feminista com o Estado – tensa, instável, menos ou mais produtiva. Inclui delegacias, abrigos, centros de referência, redes de serviços, programas de treinamento, mudanças na legislação e no judiciário etc., além de compromissos políticos mais diversos. Essa mudança cultural, de mentalidades, é uma fronteira instável que o movimento tem tentado mover para que possa de fato atender às necessidades das mulheres, traduzindo suas reivindicações por justiça social e de gênero em políticas públicas. (Diniz, 2006, pp. 20, 25-26)
ONGs feministas foram consultadas inclusive no processo de instalação das primeiras Delegacias de Defesa da Mulher, no Estado de São Paulo, na década de 1980. Nos anos 2000, a gestão de projetos e serviços, por meio de recursos públicos do Governo Federal, possibilitou a execução de atividades concebidas e executadas de maneira autônoma por membros da sociedade civil.
É importante reconhecer que, ao final do mandato interrompido da presidenta Dilma Rousseff, havia indícios de que essa dinâmica de relações entre a sociedade civil e o OPM federal estava sendo desmantelada (Lara, 2018). Essa realidade deteriorou-se durante o governo Temer e, em ritmo ainda mais acelerado, com o governo Bolsonaro. Durante a pandemia, a orientação ideológica era contrária aos compromissos afirmados nas Convenções de Direitos Humanos das Nações Unidas incorporados à Constituição Federal, e o tema passou a ser um componente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), vulnerabilizando as políticas institucionalizadas de EVCM.
Foi nesse contexto que se encontravam nossas entrevistadas. Na próxima seção, veremos suas formas de agir, relacionar-se com o Estado e com pares. Reconhecemos a pluralidade dentro dos e entre os grupos selecionados, percebendo seus vários eixos de atuação (incluindo agroecológico, étnico-racial, inclusivo de pessoas com deficiência, igualdade econômica, diversidade sexual e de gênero, contra a homofobia e a transfobia, entre outros). Todas elas ativam diferentes performances e racionalidades que podem ou não ser reconhecidas como parte do movimento feminista, uma vez que ali podem perceber certa homogeneidade que não as inclui. Outras vezes ativam solidariedades flexíveis, como relata Collins (2017), sobre os movimentos de mulheres negras, capazes de articular lutas distintas e reivindicar ações públicas transversais.
REPERTÓRIO DAS ONGS E COLETIVOS DE MULHERES PARA CONFRONTAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DURANTE A PANDEMIA
Características gerais das organizações estudadas
As oito instituições pesquisadas foram criadas em distintos períodos (entre os anos de 1989 e 2018), tendo localização, abrangência de atuação e repertórios também diversos. A mais antiga delas, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), foi criada em 1989, e tem sua sede em Brasília-DF. Atua em escala nacional em atividades de advocacy e educação feminista, priorizando temas como poder e representação política, direitos reprodutivos, violência contra as mulheres e autocuidado. Seu repertório dá-se tanto em interação com o Estado (por meio de monitoramento de pautas legislativas, diálogo com parlamentares e participação em espaços deliberativos, como no Conselho Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres) quanto diretamente com o público-alvo, a partir de mobilizações sociais, formação feminista e promoção de autocuidado entre ativistas. Atua em diversas redes de movimento de mulheres e feministas (nacionais e internacionais – Articulação Feminista Mercosul).
O Coletivo Feminino Plural, por sua vez, foi criado em 1996 e atua localmente no município de Canoas, no Rio Grande do Sul. Tendo como uma de suas áreas de atuação a violência contra mulheres, o Coletivo compõe a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência a partir da gestão do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em situação de violência por meio de contratação pela prefeitura municipal. Parte do trabalho desse órgão é atuar como articulador da rede local. A experiência inovadora traz resultados importantes, e a instituição tem sido reconhecida por pares, contribuindo para a formação de ativistas visando a efetividade e democratização dos serviços. Destaca-se, portanto, nessa instituição, o atendimento direto às mulheres em situação de violência, entre outras rotinas de seu repertório.
Já o Instituto Patrícia Galvão compõe uma das seis instituições que foram criadas a partir dos anos 2000. Fundada em 2001, localiza-se em São Paulo, realizando também ações, principalmente de comunicação, em nível nacional. As áreas de atuação relacionam-se aos direitos e EVCM para operadores de justiça e segurança pública e imprensa brasileira. Em seu repertório, contém a produção de documentos tecnopolíticos, pesquisas de opinião pública, campanhas, dossiês, criação de conteúdo, havendo interlocução com o Estado tanto para definição de agendas quanto como recepção de financiamento de ações via convênio (Secretaria de Políticas para as Mulheres e Ministério da Saúde).
A Associação Feminista Lésbica Coturno de Vênus foi fundada em 2005 e atua no Distrito Federal brasileiro. Tem como foco os direitos das mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais, em especial a promoção da visibilidade lésbica. Em seu repertório, é possível identificar o atendimento terapêutico e psicológico, pesquisa com o público-alvo (LesboCenso), mobilização e participação política e autocuidado. Compõe espaços de interlocução com o Estado, como o Conselho Distrital e Nacional de Políticas de Cultura.
O coletivo Promotoras Legais Populares do Distrito Federal foi criado em 2005 como um projeto de educação popular da Universidade de Brasília. Entre as instituições até agora descritas, é a primeira a não se formalizar como pessoa jurídica. Suas fontes de manutenção dão-se por meio de parceiros não governamentais e apoio prático (como material para oficinas) a partir de recursos públicos como a Universidade de Brasília e o sistema de justiça (Defensoria Pública). Atua sob a metodologia da educação popular, com direitos das mulheres, violência doméstica, violência obstétrica, direitos sexuais e reprodutivos, questões ambientais, direitos LGBT, com recortes de raça e classe. Integra o Conselho Distrital de Políticas Para as Mulheres.
A ONG Nova Mulher, fundada em 2015, faz parte da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres em Situação de Violência (REVMSV), na cidade de São Paulo, na Zona Norte, a partir do eixo Atendimento Individual e Personalizado. Também atua com autonomia econômica, bem-estar e capacitação em gênero e cidadania. Ela se mantém por meio de trabalho voluntário, vendas no brechó e contribuições de empresas que colaboram na manutenção do espaço físico. Sua atuação mostra-se bastante independente dos órgãos estatais.
A ONG Tamo Juntas, criada em 2016, tem alcance em diversos estados. Atua com atendimento multidisciplinar a mulheres em situação de violência e vulnerabilidade econômica. Realiza encaminhamentos para a Rede de Atendimento, além de promover aconselhamento profissional a essas mulheres. As atividades são sustentadas por trabalhos voluntários, doações, contratos, financiamento com fundos internacionais e arrecadação com setor privado.
Por fim, o coletivo Helen Keller, implementado em 2018, é a outra exceção quanto à natureza jurídica, já que não se materializou enquanto ONG tal como o coletivo das Promotoras Legais Populares. Sua atuação é direcionada a mulheres com deficiência, com foco na saúde, educação e violência contra essas mulheres, abrangendo diversos estados. Realiza, também, encaminhamentos a serviços de saúde e da Rede de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência. Entre seu repertório de interação com o Estado, temos sua participação no Conselho Nacional de Saúde.
É possível afirmar que todas as instituições pesquisadas atuam em rede, considerando o conceito formulado por Scherer-Warren (2006) que a define como articulação derivada de uma “identificação de sujeitos coletivos em torno de valores, objetivos ou projetos em comum, os quais definem os atores ou situações sistêmicas antagônicas que devem ser combatidas e transformadas” (p. 113).
Quanto à sustentabilidade dessas entidades, é possível sistematizar as fontes de financiamento, conforme a tabela abaixo.
Práticas movimentistas de enfrentamento à violência contra as mulheres durante a pandemia
Com relação às formas de ação durante a pandemia, dos oito grupos entrevistados, sete virtualizaram ou aumentaram as atividades de virtualização em suas práticas. Considerando a diversidade de práticas, coletamos diferentes relatos sobre essas experiências.
A representante do CFEMEA destacou que, por meio das tecnologias digitais, a continuidade das atividades de advocacy junto ao Congresso (acompanhamento de projetos de lei, reunião com parlamentares) e ao Judiciário de certa forma aprofundou a falta de transparência já observada em anos anteriores. Outras preocupações levantadas são referentes a segurança digital, práticas de monitoramento e espionagem e segurança das informações dessas mulheres. Em diálogo com parlamentares, foi observado pela entrevistada que, quando serviços da Rede se adaptam ao atendimento remoto, o risco no caminho da rota crítica aumenta. Ela exemplificou a possibilidade de o agressor apreender o celular da mulher e flagrar o pedido de socorro.
Entrevistadas de duas ONGs atuaram em OPMs nacionais e passaram a atuar em ONGs locais. Isso significa uma inovação no repertório de interação da participação na burocracia (Abers et al., 2014): não apenas ativistas passam a participar do Estado, mas também ex-funcionários do Estado passam a participar das ONGs quando a política governamental se retrai e terceiriza a ação pública para a sociedade civil.
Nesse contexto de emergências, as iniciativas do CFEMEA e da Coturno de Vênus incluíram práticas inovadoras que flexibilizaram seus repertórios: realizar ações de solidariedade. Juntamente com outras instituições do Fórum Feminista do Distrito Federal, as ONGs ajudaram a distribuir cestas básicas, que foram acompanhadas de folhetos informativos sobre violência contra a mulher.
A entrevistada do Coletivo Helen Keller destacou que a internet e as redes sociais, apesar das dificuldades, auxiliaram a comunicação entre os membros do grupo e a promoção de ações de comunicação educativas, como o webinar que ocorreu durante três meses com apoio de parcerias que possibilitaram acessibilidade, como língua de sinais e legendagem. Ela destacou a participação do Coletivo em audiências, conversas com gestores municipais, seminários em universidades utilizando o ambiente virtual, o que favoreceu mulheres em cadeira de rodas. Outra ação importante viabilizada no início da pandemia foi a publicação de guia (Constantino et al., 2020) que dedica capítulos para orientar sobre situações de violência.
A Coturno de Vênus utilizou suas redes sociais para promover atividades voltadas a saúde mental e autocuidado. Um exemplo é o Ciclo de Oficinas Corpos Criativos realizado em maio de 2021. Saúde mental também era uma preocupação da representante do Coletivo Helen Keller. Para dar suporte às suas ações, a Coturno de Vênus não contava com auxílio do Governo Federal. Segundo a entrevistada:
A gente não tem o apoio do Estado. A gente tem um governante genocida, então ele não vai nos apoiar em nada. Então complicou e eu acho que as organizações são muito dependentes de fundos feministas, de direitos humanos, e aí a demanda é imensa. A nível nacional, tem essa dificuldade. Eu acho que só piorou agora na pandemia. Principalmente também porque muitos recursos estão sendo direcionados para a saúde, quando se fala em saúde é uma coisa muito rigorosa também. Por exemplo, saúde mental não está nessa faixa. Saúde de pessoas LGBT não está nessa faixa, pessoas negras estão morrendo. Então, é uma saúde muito bem direcionada. E o governo não nos apoia, lésbicas. Existe até uma norma do Governo Federal onde está escrito: se lésbica, ou de gênero, por exemplo, os projetos não devem ser aprovados. Então é muito difícil para as mulheres, especificamente para as mulheres LBTs. Não tínhamos mais esse apoio. Na verdade, temos resultados pelo trabalho das associadas.
Quanto às ações das PLP/DF, sua principal atividade, a educação popular, foi suspensa. O grupo então se concentrou em fortalecer o Fórum das PLPs por meio de encontros virtuais com os 30 grupos distribuídos no Brasil. Houve, com promotoras já formadas, curso para melhor articulação dessa rede. Também foi intensificado o atendimento remoto para prestar informações às mulheres em situação de violência e foram mantidas iniciativas voluntárias de apoio presencial no acompanhamento das mulheres a delegacias, hospitais e demais equipamentos da rede de serviços de combate à violência contra a mulher. Entre seus repertórios de interação com o Estado, as PLPs têm parcerias com áreas do Poder Executivo, considerando, para colaboração com processos de EVCM, a viabilização de projetos de capacitação com setores de educação, trabalho, saúde e assistência social. Após o início da pandemia, as PLP/DF realizaram reuniões virtuais, cursos com servidores e terceirizados do Ministério Público do DF e desenharam, também com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF), uma capacitação para profissionais da área jurídica e do serviço policial especializado de atendimento à mulher.
Ressaltamos a importância desses treinamentos, pois desamparo ou mau atendimento nos equipamentos da Rede pode dificultar o rompimento da violência. Nesse caso, a sociedade civil, com sua expertise, qualifica e orienta conceitos básicos para a atuação desses profissionais. As ativistas dialogaram com o legislativo, visando sanar necessidades urgentes nas políticas públicas no contexto da pandemia. Ainda segundo a entrevistada do CFEMEA:
Quando começou a pandemia, os casos de violência começaram a aumentar e no atendimento às vítimas geralmente se supõe que a mulher vá a uma instituição ou alguém faça uma denúncia, e o processo geralmente é presencial. É a polícia ou a justiça ou a assistência social, alguma porta de entrada que a mulher procura. Mas com a pandemia, esse atendimento foi suspenso em muitos casos e muitas resolveram se adaptar ao ambiente virtual, o que trouxe um problema: a mulher está em casa, sofrendo violência. Se ela estiver sendo atendida por WhatsApp, por exemplo, o cara pode pegar o celular dela e pegar o WhatsApp. Com isso, analisamos alguns projetos nesse sentido e pautamos isso junto com a bancada feminina. E aí começaram a pipocar projetos relacionados à pandemia e a esse combate à violência, que a gente acompanhou, fez apontamentos técnicos, fez incidências e para garantir que os melhores fossem aprovados.
Em outra frente, com objetivo de influenciar o debate público, o Instituto Patrícia Galvão centrou sua atuação na produção de documentos e pesquisas relacionadas à violência sexual e estupro, violência doméstica e pandemias, violência e assédio contra mulheres no trabalho. Além de promover pesquisas qualificadas de grande circulação e monitoramento da opinião pública sobre o tema, foram realizados webinários, podcasts, vídeos e outros recursos digitais para ampliar o debate sobre direitos das mulheres. A representante entrevistada considera que, apesar do conservadorismo da orientação política no governo federal e do enfraquecimento do tema, ainda era possível manter repertórios de interação de proximidade com gestoras da área de violência do MMFDH, dadas suas trajetórias. Entretanto, a perda de relevância do tema reverberou no orçamento e também alterou as possibilidades de parcerias para financiamento: ONGs voltaram a buscar apoio em fundações e organizações internacionais, que tinham passado a qualificar o Brasil como um país em outro patamar em relação a outros países em desenvolvimento, e estavam menos acessíveis do que eram até o início dos anos 2000.
A integrante do Coletivo Feminino Plural cita a interrupção de projetos culturais com o isolamento social. Quanto às interações com o Estado, atividades que poderiam ter sido transpostas para o ambiente virtual foram colocadas em prática, como a capacitação de funcionárias da Rede de Atendimento no município de Estância Velha. Esse Coletivo também administra parte dos equipamentos da REVMSV e ampliou o atendimento remoto no Centro de Referência de Atendimento à Mulher. Gerir o centro de referência significa coordenar a articulação intersetorial para o EVCM no município: lá são implementadas políticas de acolhimento, assistência social, atendimento psicológico, acompanhamento jurídico, iniciativas voltadas ao acesso à educação e ao trabalho, além de orientações para prevenção e assistência às mulheres em situação de violência. O Centro gerido pelo Coletivo Feminino Plural integra a Rede como um dos equipamentos especializados, assim como Delegacias Especializadas e Casas de Acolhimento.
As capacidades de atendimento presencial foram repensadas para as demais ações da ONG, que modificou suas atividades de formação e suspendeu iniciativas culturais e literárias. No âmbito da colaboração com mulheres vulneráveis e o poder público no combate à violência, apesar dos riscos para funcionárias e voluntárias, a instituição se manteve ativa, pois, segundo a entrevistada: “A violência não é virtual. A violência é física. A gente precisa ir para a vida real, a gente precisa adentrar na aldeia. A gente precisa dialogar com mulheres que não têm acesso à internet”.
Essa ONG apresenta em seu site resultados da iniciativa da rede nacional de voluntariado do Mapa de Acolhimento, panorama importante de possibilidades de acesso a serviços públicos de proteção às mulheres em situação de violência, compartilhando cartografia de atendimento de abrangência nacional, composta por telefone, endereço e e-mail. Cabe destacar que, até 2016, essas informações estavam disponíveis no site da SPM. Dados eram coletados e atualizados periodicamente pela Central de Atendimento Ligue 180. Percebemos, portanto, a sociedade civil assumindo tarefas antes desempenhadas pelo OPM federal.
A representante da ONG Nova Mulher destacou que o atendimento remoto dobrou no período, considerando mulheres que moram em diferentes estados e usam ferramentas de busca na internet para encontrar apoio. Assim, enquanto a atividade remota exclui mulheres sem acesso à internet, ela também permite que mulheres em cidades onde precisam dos serviços da Rede recebam orientação e algum acolhimento. Dentre as atividades oferecidas pela Nova Mulher, aquelas referentes ao eixo bem-estar, corpo e mente foram suspensas. A capacitação técnica referente à geração de renda, por sua vez, permaneceu presencial em decorrência do aumento do desemprego. Como nos mostra Bona (2019), a maior vulnerabilidade à violência doméstica é vivenciada por mulheres economicamente dependentes.
Manifesta-se, portanto, nas ações das representantes de ONGs e coletivos entrevistadas, uma rápida mudança das práticas e incidências acerca do poder público e das mulheres diante da violência, devido às incertezas advindas da pandemia e do contexto político. Como sublinham representantes de três ONGs, entre 2016 e 2022, o contexto político tornou-se mais desafiador para o alcance dos objetivos das mulheres e seus movimentos sociais, sendo um fator concomitante aos desafios da crise sanitária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As formas de ação de apoio às mulheres em situação de violência estabelecidas pelas ONGs e coletivos brasileiros estudados configuram práticas estratégicas que atravessam dinâmicas virtuais e presenciais. Os encontros para formação política feminista, em geral, tornaram-se menos frequentes para que a energia pudesse ser dedicada a iniciativas de enfrentamento às urgências da pandemia: a iminência da fome e o aumento da convivência com agressores convocaram aquelas convencionalmente engajadas na política à ação coletiva também de caráter solidário.
Diferentes práticas foram simultâneas à produção de documentos importantes para pressão política, articulações para produção legislativa, realização de lives e webinários, manutenção de plataformas de informação on-line e atuação presencial para monitoramento de serviços de atendimento a mulheres em situação de violência. Foi possível observar, entre as entrevistadas, que, à medida que aumentava o engajamento em grupos de WhatsApp e redes sociais de suas instituições, aumentava também a preocupação com a falta de acesso à internet por grande parte da população brasileira.
Em sua estratégia de enfrentamento à violência contra as mulheres, todas as ONGs e Coletivos estudados valorizam sua articulação em redes de movimentos de mulheres, e houve apenas duas exceções entre as que assumiram a ação solidária como indispensável. Todas elas, apesar da reorientação política federal na ocasião, mantinham relações com o Estado e deslocaram o nível da atuação para valorizar alianças com unidades subnacionais e o Poder Legislativo. Os repertórios convencionais flexibilizaram-se para incorporar formas de atuação diferentes, com aquelas simultaneamente políticas e pragmáticas no contexto emergencial, pois mobilizavam sentidos propostos pelas redes feministas e pressionavam o Estado, enquanto não deixaram de assumir papéis que antes eram (ou deveriam ser) desempenhados pelo próprio Estado – como a gestão de serviços, encaminhamento para atendimento, apoio para acesso a abrigo e outras iniciativas de assistência social.
A situação de protagonismo da sociedade civil e desamparo do Poder Executivo Federal levou a afastamentos de instituições participativas como conselhos e conferências e também à articulação de repertórios de ação direta, como no caso do Levante Feminista contra o Feminicídio. O momento alterou as capacidades de oferecer serviços e financiar iniciativas inovadoras, exigindo que instituições sociais buscassem parceiros internacionais, locais ou do Poder Legislativo para financiar suas ações. Foi possível perceber a força dos laços com o Estado entre os três grupos mais antigos que já estavam articulados à burocracia estatal antes de 2019.
Ainda que a investigação não generalize seus resultados para toda a experiência brasileira com o tema, a pesquisa permite reconhecer a tendência de que a implementação de políticas públicas por instituições da sociedade civil convergiu com o movimento maior de retração dos Estados, pautado pelo projeto político neoliberal (Dagnino, 2004). A tentativa de construção e garantia de direitos humanos para as mulheres por meio de políticas para elas, que ocorreu entre 1988 e 2015, foi realizada até a mudança de orientação política.
A ideologia presente na ruptura democrática em 2016 distanciou horizontes de garantia de igualdade de gênero e dignidade para mulheres em situação de violência e outras vulnerabilidades e foi agravada durante o governo de Jair Bolsonaro, que coincidiu com o período da pandemia e a tornou ainda mais letal. Um contexto político mais afeito aos repertórios de interação socioestatais e aos propósitos feministas, no entanto, vem se reestabelecendo na retomada das políticas públicas com a eleição de Lula em 2022 e conta com as práticas cotidianas de militantes, ativistas, voluntárias e profissionais que se dedicam a garantir a autonomia e a dignidade das mulheres.
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Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo.
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Editado por
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Editores convidados:
Lizandra Serafim, Leonardo Barros Soares e Matheus Mazzilli Pereira.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
30 Jun 2024 -
Aceito
06 Fev 2025
