Open-access ENREDADAS CONTRA A FOME: MOVIMENTOS, PANDEMIA E AUXÍLIO EM DOBRO PARA MÃES SOLO

Enredadas en los cuidados: movimientos, pandemia y doble ayuda para las madres solas

RESUMO

A pandemia de Covid-19 acentuou desigualdades, ampliou a crise do cuidado e aumentou o trabalho doméstico. Uma realidade mais crítica para as mulheres, em especial para negras e pobres, vítimas de opressões interseccionais de gênero, raça e classe. Nesse grupo estão boa parte das mais de 11 milhões de mulheres chefes de famílias monoparentais brasileiras. Nesse contexto, movimentos feministas e de mulheres atuaram para visibilizar essas mulheres e suas especificidades na proposição, discussão e aprovação do auxílio emergencial em dobro para as mães solo. A pesquisa envolveu análise documental e entrevistas e revelou como os movimentos foram essenciais nas negociações para garantir renda e visibilidade à realidade dessas mulheres. O artigo contribui para o debate sobre o papel das redes de movimentos feministas na estruturação de políticas públicas.

Palavras-chave:
movimentos sociais; Covid-19; mães solo; auxílio emergencial; gênero

RESUMEN

La pandemia COVID-19 ha acentuado las desigualdades, ampliado la crisis de los cuidados y aumentado el trabajo doméstico. Una realidad más crítica para las mujeres, especialmente las negras y pobres, que son víctimas de la opresión interseccional de género, raza y clase. Este grupo incluye a muchas de las más de 11 millones de mujeres que son cabezas de familias monoparentales en Brasil. En este contexto, los movimientos feministas y de mujeres han trabajado para hacer visibles a estas mujeres y sus especificidades a la hora de proponer, debatir y aprobar la doble ayuda de emergencia para las madres solteras. La investigación incluyó análisis documental y entrevistas y reveló como los movimientos fueron esenciales en las negociaciones para garantizar renta y visibilidad a la realidad de esas mujeres. El artículo contribuye al debate sobre el papel de las redes de movimientos feministas en la estructuración de las políticas públicas.

Palabras Clave:
movimientos sociales; COVID-19; madres solas; ayudas de emergencia; género

INTRODUÇÃO

Mulher, pobre, diarista, moradora da periferia de São Paulo, mãe e cuidadora do filho com deficiência e epilepsia, Rosana Aparecida Urbano foi a primeira brasileira vítima da Covid-19. Ela morreu em 12 de março de 2020, mas a informação de que era a primeira morte por Covid no país só viria meses depois. Naquele momento, o Brasil tinha 52 casos confirmados. Até 2 de setembro de 2022, quando a pesquisa que embasa esse artigo foi concluída, eram mais de 34 milhões de casos e mais de 684 mil vítimas fatais da Covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde.

A pandemia de Covid-19 acentuou desigualdades, ampliou a crise do cuidado e aumentou o trabalho doméstico. Uma realidade crítica para mulheres, socialmente posicionadas como cuidadoras (Biroli, 2018), e em especial as negras e pobres, vítimas de opressões de gênero, raça, classe e outras que se integram em suas vivências cotidianas (Hirata, 2014). Nesse grupo estão boa parte das milhões de mulheres chefes de famílias monoparentais, que não contam com o apoio de cônjuges, também chamadas de mães solo.

Entre as ações para os mais vulneráveis na pandemia, os movimentos sociais criaram a campanha “Renda Básica que Queremos”, com diferentes estratégias e táticas, repertórios de interação Estado-Sociedade (Abers et al., 2014) e performances que adaptam estratégias tradicionais aos problemas impostos pela pandemia (Abers & Bülow, 2020; Bülow, 2020), como tuitaços em substituição a passeatas. O debate em torno de uma renda básica emergencial na pandemia se converteu em um auxílio emergencial para famílias com a proposta do governo de uma renda familiar de R$ 200,00. O modelo de benefício por família é diferente do que movimentos feministas, de mulheres e de renda consideram o ideal, que é a renda per capita respeitando as diversas concepções familiares. Como solução, os movimentos sociais buscaram no auxílio em dobro para as mães solo uma resposta ao embate. A conquista desse auxílio foi possível pela mobilização desses movimentos (Orofino, 2020).

O resultado foi positivo mesmo sem os espaços de participação e minorias oferecidos pelas comissões e pelas audiências públicas aos movimentos sociais no poder Legislativo (Carone, 2018). O necessário olhar interseccional permitiu que os movimentos sociais, articulados em rede, apresentassem o impacto para mães solo, em especial para mulheres negras e periféricas, desse modelo familiar de auxílio. As análises da pesquisa que embasa esse artigo apontam que os movimentos sociais constituíram uma rede que utilizou de diversas outras redes e interações para a ação coletiva por uma renda básica emergencial. Essa ação assim constituída foi fundamental para a conquista do auxílio em dobro para mães solo ao levar o debate interseccional e a perspectiva de gênero para a negociação no Congresso Nacional.

O problema de pesquisa parte do debate sobre o papel dessas redes, nos moldes de Diani e Bison (2010), na consolidação de uma necessária perspectiva de gênero e de um olhar interseccional durante a aprovação do auxílio-emergencial. Com isso, se busca entender como os movimentos sociais usaram suas redes na ação coletiva em questão, para viabilizar o auxílio em dobro para as mulheres chefes de famílias monoparentais.

O artigo está estruturado em quatro partes além desta introdução e considerações finais. Primeiro é apresentada a metodologia da pesquisa que embasa este artigo, seguindo método qualitativo com estudo de caso e análise de conteúdo. Na segunda parte é debatido o impacto da pandemia para mulheres chefes de famílias monoparentais e a importância dos conceitos de interseccionalidade e crise do cuidado. O debate é relevante para entendermos o papel das redes dos movimentos sociais na perspectiva de gênero e no olhar interseccional necessários para a política de auxílio em dobro para mães solo na pandemia. Segue uma breve revisão da literatura sobre redes, movimentos sociais e processo legislativo. A quarta parte inclui uma análise da aprovação do auxílio em dobro e a importância das redes de movimentos sociais no processo frente ao contexto político e social do momento de pandemia.

UMA METODOLOGIA MÚLTIPLA PARA UM PROBLEMA COMPLEXO

Segundo Ahmed e Sil (2012, pp. 937-938), ainda que seja desafiante estabelecer e alcançar princípios científicos como parcimônia, coerência e falseabilidade na análise científica, integrar resultados, dados e descobertas geradas por métodos múltiplos possibilita complementar pontos fracos de um método com pontos fortes de outros, o que possibilita um maior número ou mais possibilidade de inferências válidas. Este artigo busca em múltiplas técnicas e métodos de pesquisa qualitativa elementos que permitam não testar uma teoria, mas entender como elementos teóricos de movimentos sociais estão presentes em uma análise de um caso singular.

A pesquisa foi realizada a partir de um estudo de caso, o auxílio emergencial em dobro para mães solo na pandemia, a partir do rastreamento do processo de aprovação do Projeto de Lei nº 9.236 de 2017 (PL 9236/17 e, no Senado Federal, PL 1066/2020) que viabilizou esse auxílio em dobro para entender como as redes dos movimentos sociais se fizeram presentes nesse processo. Para Pickering (2022) o método pode servir tanto para construir ou testar teorias quanto para explicar resultados de casos individuais. Esse rastreamento do processo envolveu a análise de conteúdo que permitiu encontrar nas notas taquigráficas e documentos analisados elementos do envolvimento e do papel dos movimentos sociais na aprovação da lei.

A coleta de dados envolveu levantamento em sites e documentos de movimentos sociais e da campanha “Renda Básica que Queremos”, das páginas oficiais de tramitação da matéria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, de postagens em redes sociais e notícias de jornais. Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com quatro representantes de movimentos sociais e conversas, sem o formato de entrevista, com duas deputadas e quatro assessores parlamentares, que foram autorizadas por meio de termo de consentimento livre e esclarecido. Essas entrevistas e conversas foram realizadas entre outubro de 2021 e agosto de 2022. Os movimentos sociais escolhidos para as entrevistas incluíram duas organizações da coordenação da campanha, e dois grupos regionais e feministas que não estavam na coordenação, exatamente para destacar como movimentos de fora da coordenação da campanha também atuaram com suas redes. Optou-se pelo sigilo das entrevistas, identificadas pela sequência MS-número (movimentos), AP-número (assessores) e parlamentares-número (deputadas).

A análise contemplou dados do período de 1 a 31 de março de 2020 das páginas na internet de dez grupos integrantes da ação coletiva: Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), Nossas, Coalizão Negra por Direitos, Inesc, Instituto Ethos, Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Mães de Luta, SempreViva Organização Feminista, Think Olga e Geledés; bem como do site da campanha “Renda Básica que Queremos”. Também considerou as notas taquigráficas e vídeos de cinco sessões, sendo três da Câmara dos Deputados (18, 25 e 26 de março de 2020) e duas do Senado Federal (20 e 30 de março de 2020); 13 pareceres apresentados, sendo nove na Câmara dos Deputados e quatro no Senado Federal; e 4263 publicações no Twitter e Instagram de parlamentares da bancada feminina, do presidente da República, Jair Bolsonaro, do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e com as hashtags da campanha #rendabásicajá #auxílioemergencialjá, #auxílioemergencial, #rendabásica e #vamospararoBrasil. O levantamento e a análise dos dados e termos de documentos, notas, posts e tweets foi feito a partir do software R para verificar elementos textuais específicos presentes nos documentos oficiais e postagens replicados nos perfis a fim de cruzar informações – data e hora das postagens, elementos e termos – que permitissem observar a interação e a participação dos movimentos sociais.

A análise do conteúdo categorial e de associação, como mostra Bardin (1977), permitiu estabelecer categorias temáticas relevantes a serem buscadas nos documentos. As categorias temáticas foram “redes”, “mulheres”, “movimentos sociais”. A partir dessas categorias, foi possível estabelecer relações entre os atores por meio de termos, conteúdos e elementos (incluindo datas e hashtags) o que permitiu analisar as redes nessa ação coletiva no caso do auxílio em dobro para mães solo.

INTERSECCIONALIDADES, CRISE DO CUIDADO E PANDEMIA DE COVID-19: ELEMENTOS TEÓRICOS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA DEFESA DAS MÃES SOLO

No decorrer da crise de Covid-19, o aumento do desemprego, da violência doméstica e da fome piorou a situação das mulheres, segundo o Boletim “Políticas Sociais: acompanhamento e análises” (IPEA, 2021). O fechamento de escolas e creches e o aumento do trabalho doméstico tornaram mais pesada a realidade delas, cujo papel social de cuidadoras é tão arraigado. Para Biroli (2018), mulheres são afetadas pela posição de cuidadoras. Coletivos, movimentos sociais, pesquisadoras e organizações apontaram os riscos para as mulheres, em especial, para mães solo.

Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (Rede PENSSAN, 2021), mais de 25% das famílias chefiadas por mulheres ficaram em vulnerabilidade alimentar, quase o dobro daquelas chefiadas por homens. As informações reforçam a necessidade de atuação dos coletivos, organizações e movimentos sociais em apoio às mães solo, que tenderiam a sofrer um impacto maior, por estarem posicionadas onde se operam diversas desigualdades. Phillips (2011) destaca que estruturas econômicas atuais têm elevada discriminação de gênero e raça, e aponta a necessidade do olhar interseccional. A interseccionalidade revela como múltiplas fontes de identidade das mulheres, raça e classe, por exemplo, se entrelaçam nas relações de poder e opressão (Hirata, 2014). “A perspectiva naturalista, que rejeita agendas igualitárias em nome de supostos valores familiares, anda de mãos dadas com a normalização de desigualdades e violências” (Biroli & Quintela, 2021, p. 346). Na pandemia, a imposição do cuidado envolvia saúde e redução da fome de suas famílias.

Para Wendy Brown (2019), ao consolidar uma política de privatização dos serviços públicos, reduzir o Estado social e favorecer investimentos estrangeiros, o modelo neoliberal estabelece uma nova forma do mundo se estruturar. Os governos neoliberais traçam políticas que transferem para as famílias o papel de prover e garantir ações de cuidado e educação e buscam se eximir das responsabilidades com políticas de privatização. Biroli e Quintela (2021) reforçam esse debate sobre os impactos da política neoliberal na crise sistêmica do cuidado e a responsabilização das mulheres na pandemia, que aumentou a vulnerabilidade delas.

Ao reforçar esse cuidado como responsabilidade familiar e, por conseguinte das mães, e eximir de responsabilidade o governo, o presidente Bolsonaro resgata a concepção central da política bolsonarista para mulheres, e reafirma a família como espaço e proteção social, privilégio, mas também controle (Biroli & Quintela, 2021). Esse debate reforça o impacto e a injustiça com as mulheres chefes de famílias monoparentais, o que mobilizou movimentos feministas em discussões nas quais já não estavam tão presentes. Mulheres são vítimas de opressão, mulheres pobres mais ainda, mulheres negras mais ainda e mulheres negras e pobres vivem opressão ainda maior (Hirata, 2014) e são a maioria das chefes de famílias monoparentais. A pandemia tornou essas mulheres especialmente vulneráveis.

O debate sobre interseccionalidade e crise do cuidado apresenta arcabouço teórico necessário para entender a orientação dos movimentos sociais ao mobilizar estratégias de defesa das mães solo e atuar diretamente na mudança do auxílio-emergencial a fim de viabilizar o pagamento em dobro para essas mulheres. No entanto o debate sobre as dinâmicas políticas que possibilitaram essa mudança mobiliza um necessário debate sobre a interação e as múltiplas filiações das redes dos movimentos sociais (Mische, 1997; Abers et al., 2018; e Zaremberg & Almeida, 2021) e sua atuação no legislativo.

REDES, MOVIMENTOS SOCIAIS E PROCESSO LEGISLATIVO: BREVE REVISÃO DA LITERATURA

Partindo da concepção de Diani e Bison (2010), este artigo compreende movimentos sociais como redes informais, que conectam atores diversos que se engajam em ações coletivas orientadas a uma situação de conflito com oposição delimitada e identidade coletiva compartilhada. Para Mische (1997), é necessário analisar sistematicamente as diversas redes interpessoais e organizacionais integradas, focalizando como a variedade e o ecletismo dos discursos e ações dos diversos atores interagem entre si para encontrar um ponto comum que os una em determinado objetivo.

Mische (1997, p. 138) destaca que parte da literatura de movimentos sociais destaca o “caráter relacional - em vez de puramente categórico ou atribucional - de identidades baseadas em redes sociais”. As experiências coletivas contribuem para o reconhecimento, e para estruturar e dar sentido a essas redes sociais mobilizadas por projetos emergentes dos diversos atores, e cria oportunidades de ação, funcionando como prismas que fundem projetos e ideias de diversas outras redes, e estabelecem uma identidade coletiva comum (Mische, 1997).

A importância das múltiplas filiações nas quais uma pessoa atua em movimentos sociais, partidos, associações, burocracia, mídia e outros abre portas e acessos a atores institucionais relevantes, e contribui para que movimentos atuem na transformação de demandas em políticas públicas (Abers et al., 2018). As múltiplas filiações possibilitam avançar na compreensão sobre o acesso dos movimentos ao processo decisório e abre o debate sobre como essas interações atuam no contexto político. Atores interagem entre si, incorporam ação e relação interativa e se moldam como elementos próprios desse contexto, reforçando a importância da agência que possuem (Ibidem). Isso permite olhar a aprovação do auxílio em dobro como resultado de uma construção que se estabelece na relação entre diversos atores.

Ao utilizar a ideia de campanha para entender a atuação desses movimentos, a ideia é olhar mais para a rede e sua atuação no processo de formulação da política pública e menos para os elementos constitutivos de movimentos feministas amplamente estudados em outros trabalhos. Com isso, observa-se a atuação em um contexto de ação específico, como um momento próprio com marcos, eventos marcados no tempo e no contexto específico (Carlos et al., 2021). Segundo Araújo e Rodrigues (2017), os diferentes modelos de análise das políticas públicas possibilitam entender como essas se desenvolvem, como podem ser implementadas e a partir de que se estabelecem.

Uma política pública que se fundamenta em lei pede um olhar sobre marcos, eventos e processo para compreender atores e mobilizações em torno dessa política. Araújo e Rodrigues (2017) apresentam diferentes modelos com marcos, etapas, fases ou sequências e sintetizam quatro etapas comuns a esses modelos. A primeira é o agendamento que apresenta a questão como problema político no debate público. Em seguida, a formulação de soluções apresenta argumentos e desenha os caminhos e estratégias de solução dos problemas apresentados como um projeto de lei. A terceira etapa é a implementação, após a aprovação que define recursos, organiza as medidas e concretiza as ações. Por fim, a avaliação permite acompanhar as ações, programas e as políticas analisando os resultados alcançados frente aos objetivos e metas estabelecidos, e atualiza e modifica as políticas conforme necessário abrindo novos ciclos.

Para Kingdon (2011) diferentes fluxos podem interferir na política e gerar oportunidades que são aproveitadas para a construção, implementação e fortalecimento de políticas públicas. O olhar para as oportunidades políticas nas ações coletivas também está nas discussões dos movimentos sociais (Tarrow, 2009 [1998]). Nesse sentido uma crise sanitária como a pandemia estabelece novos fluxos e gera novas políticas públicas que envolvem caminhos e fluxos que se interconectam em situações e momentos específicos (Kingdon, 2011).

Pesquisadores apontam que é na formação da agenda que os movimentos sociais conseguem mais espaço para influenciar processos políticos, chamando atenção para os problemas a partir dos repertórios tradicionais de atuação como manifestações e campanhas que pautam a mídia ou indicam o senso de urgência do problema enquadrado (Carone, 2018). Para Carlos et al. (2021), analisar como e de que modo os movimentos sociais influenciam políticas públicas envolve entender o papel desses nas diferentes etapas de construção das políticas, pois, apesar de parte da literatura destacar a formação da agenda, a participação dos movimentos nas políticas se faz em diferentes etapas do ciclo.

Segundo Carone (2018), para entender a presença de movimentos sociais no parlamento na construção de políticas públicas, podemos olhar redes de movimentos feministas e suas interações com parlamentares, em especial atores-ponte e nomes chave nas negociações e desenhos de soluções (Carone, 2018) ou seja, na segunda fase das políticas públicas. Movimentos feministas têm essa importante interação no Brasil em que movimentos sociais estão presentes na burocracia e conseguem construir pontes com parlamentares e assessores, seja pelas ideias comuns, seja por eleições, concursos, cargos comissionados ou outros (Carone, 2018; Zaremberg & Almeida, 2021; Carlos et al., 2021). Essa interação revela uma capacidade de atuar em diferentes etapas das políticas. E é especialmente importante na tramitação das matérias em um contexto específico, como o da pandemia, que restringiu o acesso ao parlamento, remodelou o processo legislativo retirando o espaço das comissões parlamentares e obrigou a interação com atores-ponte por outros meios.

Para Abers et al. (2014), a atuação dos movimentos sociais em dinâmicas interativas com o Estado, ainda que nem sempre colaborativas, por mecanismos de participação institucionalizada, permite que tenhamos novos olhares para essa interação entre o Estado e a sociedade civil. Apesar das diversas possibilidades de interação entre movimentos e Estado, as restrições impostas pela pandemia dificultaram muitas ações dos movimentos sociais. Para Bülow (2020), a restrição da circulação e o fechamento de diversos espaços obrigaram esses movimentos a se adequar à nova realidade e adaptar usos tradicionais de ferramentas digitais como parte dos repertórios de ação coletiva.

AUXÍLIO EMERGENCIAL: ANÁLISE DOS DADOS E A REDE EM PROL DA APROVAÇÃO E INCLUSÃO DO AUXÍLIO EM DOBRO PARA MÃES SOLO

O risco da Covid-19 era conhecido do Governo Federal desde janeiro de 2020. Em 30 de janeiro, a OMS declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) pelo coronavírus SARS-COV 2. Em 6 de fevereiro de 2020, a Lei 13.979foi sancionada com medidas nas esferas federal, estadual e municipal. Em 13 de março, o acesso de pessoas externas à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal foi proibido, o que dificultou negociações e contatos com parlamentares e a influência sobre decisões.

Cresciam as críticas do Governo e, em especial, do presidente Bolsonaro, ao isolamento social e às medidas restritivas. Dados de pesquisadores, organizações e movimentos sociais apontavam para uma crise entre saúde e fome. No resumo da nota “A Coronacrise: natureza, impactos e medidas de enfrentamento no Brasil e no mundo”, o Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Universidade de Campinas (Unicamp) destacava que sem garantia de renda o país não achataria a curva de contaminação.

Eu tava num grupo (WhatsApp) de amigos ativistas e escrevi… não tem momento melhor para aprovar a renda básica no Brasil… melhor contexto político possível e dificilmente a gente vai conseguir aprovar alguma coisa que é permanente, mas a maior parte das políticas mais ousadas tipo essa começa com algo que é provisório. (Fala do entrevistado MS-2)

Em coletiva no dia 18 de março, Bolsonaro criticou medidas restritivas, buscou se eximir das responsabilidades, pediu a volta das pessoas às ruas e ao trabalho e anunciou mensagem ao Congresso Nacional para decretar calamidade pública. O ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs um coronavoucher de R$200,00 a motoristas e trabalhadores informais e o aumento de pessoas no bolsa família, que era apenas a fila represada. A proposta foi considerada irrisória e criticada por movimentos sociais e parlamentares. No mesmo dia, uma reunião de líderes da Câmara definiu temas para os próximos dias e acordo, segundo matéria da Agência Câmara intitulada “Líderes anunciam acordo para votar pedido de calamidade com emendas”, para a oposição apresentar proposta de renda emergencial. A reunião de líderes é o espaço que define pautas de votação e os temas que entram na agenda das casas legislativas. Entrevistas confirmaram que a demora do Governo colaborou para a mobilização dos atores.

...aquilo não seria suficiente… no Executivo nós não tivemos entrada alguma. Nós tentamos, pedimos agenda para o Paulo Guedes, pedimos agenda - na época acho que era o Osmar Terra - na Cidadania, também não conseguimos… nossa proposta foi R$300,00 por pessoa do cadastro único porque a renda básica tem cinco características fundamentais: é universal, incondicional, individual, em dinheiro e de periodicidade previsível. (Fala do entrevistado MS-3)

As críticas e a movimentação para uma nova proposta anteciparam o lançamento da campanha “Renda Básica que Queremos” para 20 de março de 2020. Segundo dados do Twitter, entre 21 e 26 de março, as hashtags #rendabásicajá e #vamospararoBrasil ficaram nos tópicos mais comentados. Os dados analisados como o avanço das hashtags que envolveram milhares de apoiadores, o site da campanha que mostra a imensa rede de movimentos sociais, organizações e entidades integradas em torno do auxílio emergencial revelam a importância das redes como infraestrutura da mobilização, como proposto por Jasper (2016). Na campanha, as redes comunicaram o problema, as soluções e viabilizaram recursos e conhecimentos. Os recursos materiais, pessoas mobilizadas, articularam uma estratégia única e centralizada que rapidamente mobilizou mais de 200 organizações.

A gente precisa ter pelo menos um ator que manje do assunto e que tenha legitimidade, pelo menos um ator que seja bom de campanha, um ator que represente bem os beneficiários, de um ator para ajudar no lado empresarial e de um ator que manje muito de Brasília e de tramitação para ajudar esse negócio a avançar rápido. Foi esse o nosso mapa e isso virou os atores da coordenação. Isso vira o Nossas na rede de campanha, a Coalizão pelos beneficiários, o Inesc como um ator mais de Brasília, a RBRB como um ator do tema e o Ethos como o ator que abre as portas ou pelo menos diminui as barreiras no empresariado. (Fala entrevistado MS-2)

Teve um movimento coordenado de disparo de comunicação entre todas essas organizações, com materiais previamente definidos, horários definidos e hashtags pré-definidas, e isso deu muito certo… em poucos dias era mais de 600 mil assinaturas… fomos percebidos... (Fala do entrevistado MS-3)

Na impossibilidade de encontros presenciais, nos moldes da política de proximidade e das táticas de advocacy, a ação coletiva enviou carta aos parlamentares como parte das ações de lançamento da campanha “Renda Básica que Queremos”. A carta foi recebida e publicada no processado da matéria revelando uma ação institucionalizada recorrente no legislativo com envio pela sociedade civil de estudos, pesquisas, dados e opiniões sobre projetos em debate. No documento, criticaram a proposta do governo, enquadraram o problema em um contexto mais amplo e apontaram os riscos da pandemia se estender, o que afetaria uma parte da população maior do que a prevista.

…A proposta que defendemos é apoiar por 6 meses, com um valor de R$300 mensais per capita, todos os brasileiros e brasileiras que têm renda familiar inferior a 3 salários-mínimos - ou seja, as 77 milhões de pessoas mais pobres do Brasil, incluindo crianças e idosos. Em uma família de 5 pessoas, isso significa uma renda de R$1.500,00 no mês, suficiente para reduzir a necessidade de exposição aos riscos e repor parte do que vão perder com a crise. (Trecho da “Carta aos parlamentares” da campanha Renda Básica que Queremos)

Naquele momento, com matérias na imprensa, e o apoio da sociedade civil e de movimentos sociais, faltava a adesão dos parlamentares à proposta. Para isso, as redes de cada um dos movimentos, grupos e organizações envolvidas tinha um papel importante. A parlamentar-1 apontou que soube da campanha antes mesmo da carta, pois havia recebido mensagem de uma amiga do movimento feminista. O assessor AP-3 apontou que, quando repassaram à parlamentar o material, ela já conhecia e era pressionada nas redes a se posicionar. A parlamentar-2 destacou contatos tanto de redes nacionais, Coalizão Negra por Direitos, como de grupos locais, uma ONG LGBTQIA+ do DF. Esse processo destaca o que Carone (2018) aponta sobre a relevância de atores-chave e o papel dos movimentos na formação da agenda. A pauta precisava entrar na agenda política e os movimentos atuaram nisso.

... esses grupos todos tinham relações dentro do Congresso. A gente começou a fazer um trabalho de incidência respaldado por esse movimento online muito forte. Inclusive, o Rodrigo Maia definiu um grupo de referência para tratar do assunto com a gente… um grupo de parlamentares sempre articulado conosco… ele conseguia definir processos e ritos que nos ajudavam a antecipar decisões e problemas, como esse da dupla cota (para mães solo)... (Fala entrevistado MS-3)

Outro ponto relevante iniciava a deliberação remota no Congresso. Pela Resolução da Câmara dos Deputados nº 14/2020, as comissões estavam com reuniões suspensas e apenas líderes podiam entrar no plenário, o que dificultava negociações com assessores e movimentos envolvidos. Estava previsto que matérias com apoio de líderes que representassem dois terços da Casa e em regime de urgência não poderiam ter requerimentos de retirada de pauta, adiamento de discussão ou votação, parcelamento dessa votação ou discussão, requerimentos de destaque simples ou verificação de quórum na votação simbólica. As alterações exigiam ainda mais negociação e reforçavam mais uma vez o papel dos atores-chave e atores-ponte presentes nas redes dos movimentos sociais envolvidos na campanha.

Naquele momento havia um projeto do senador Randolfe Rodrigues, e acordo para a oposição apresentar algo na Câmara. Mas o presidente Rodrigo Maia optou pelo PL 9236/2017, do deputado Eduardo Barbosa do PSDB/MG, inicialmente apresentado para estabelecer um valor mínimo ao Benefício da Prestação Continuada (BPC). A matéria tinha apoio da oposição, mas o Governo era contra. A proposta incluía auxílio emergencial de R$500,00 para até dois adultos por família, e foi aceita por vários parlamentares, mas era vista com ressalvas pelos movimentos sociais porque mudava princípios da renda básica que poderiam gerar injustiças.

A lei do auxílio emergencial tomou carona em algo que já tramitava no Congresso sobre o BPC... de autoria de um deputado, o Eduardo Barbosa do PSDB/MG, muito próximo do Anastasia e que é um cara que sempre foi compreendido como ponto de diálogo entre oposição e PSDB … é um ponto importante porque se precisou encontrar uma solução legislativa. (Fala do entrevistado MS-3)

A lei foi ficando uma anomalia praticamente, porque vai disputando perfil de pessoas beneficiadas, quem não vai ser, o governo lutando para diminuir o número, critérios das pessoas que iam receber… quem entra, quem sai, qual valor, qual o tamanho do programa, como paga esse programa e aí nós tivemos uma reunião com o PSOL… nós conversamos com todas as bancadas que abriram essa possibilidade… fizemos uma fala sobre a diferenciação das mães solo porque elas demorariam mais a retornar, inclusive… e ali tivemos a ideia de disputar o valor dobrado… (Fala entrevistada MS-1)

No dia 25 de março, quase como resposta à proposta de votar o projeto de Barbosa, foi apresentado o projeto da oposição com as ideias da campanha: renda individual de R$300,00 limitada a cinco pessoas, cadastro único e diferenças entre famílias. Os líderes da oposição não acreditavam que fosse pautada e lutavam pelo adiamento da votação do projeto do BPC. Na sessão daquele dia, em menos de cinco minutos, foi aprovada a urgência para votação do PL 9236/2017. No momento de votação, o presidente Rodrigo Maia parou a leitura e respondeu a alguém que era apenas urgência e que a matéria seria a última da pauta. Apesar das notas taquigráficas não indicarem com quem o presidente falou, o vídeo da sessão e conversas com parlamentares confirmaram ser a deputada Fernanda Melchionna que solicitou respeito ao acordo. Restava à oposição e movimentos sociais lutar para ajustar o PL 9236/2017.

A sessão de 25 de março se encerrou sem o projeto ser votado. Os pontos sem acordo eram o valor do benefício e o pagamento em dobro para mulheres chefes de famílias monoparentais. Segundo assessores entrevistados, senadoras e deputadas foram chamadas para conseguir os apoios necessários à proposta. Nas notas taquigráficas do Senado Federal, a senadora Kátia Abreu, que ajudou com negociações com o Governo, falou do chamado. O assessor AP-3 confirmou outra senadora acionada por deputadas. E a parlamentar-2, da oposição, revelou que a governista Flávia Arruda negociou com o Governo. Parte importante da bancada feminina se juntava pelo auxílio em dobro para as mães solo, reforçando também a importância da representação feminina no Congresso.

…nós encerraremos e continuaremos amanhã, 15 horas. Estamos só terminando de avaliar uma questão no projeto do BPC... A nossa única dúvida é exatamente como fica a mãe chefe de família, porque, nas comunidades, também ela tem muitos filhos… não podemos deixar uma mãe chefe de família com uma renda tão distante da renda do casal. (Presidente Rodrigo Maia (DEM/RJ) - notas taquigráficas sessão 25/03/2020)

Quero lembrar - e agradecer - o Presidente da Câmara, Deputado Rodrigo Maia, que teve a gentileza de falar comigo a respeito da chefe de família… Então, graças a Deus, a mulher que cria seus filhos sozinha chefe da casa vai poder receber R$1.200. (Sen. Kátia Abreu (PP/TO) - notas taquigráficas 30/03/2020)

Enquanto as redes se agitavam para pressionar, os ajustes no texto eram encaminhados para a proposta final de emenda da deputada Fernanda Melchionna. Segundo a parlamentar-1, o impasse ocorria em função dos custos da alteração. Assessores entrevistados confirmaram que movimentos contataram parlamentares, inclusive em reunião remota com senadores, o que foi uma solução para a ausência das comissões em uma ação institucionalizada.

Nós começamos a fazer um estudo e dizíamos que o mínimo aceitável era R$600,00 porque o valor da cesta básica em São Paulo, a mais cara naquele momento, chegava a R$577,00, e o valor do auxílio emergencial deveria garantir no mínimo uma cesta básica…(Fala entrevistada MS-1)

Mesmo a oposição quando veio falar disso disseram: Nós conquistamos os R$600,00, com a ajuda de vocês conseguimos um programa até melhor. Pedi a palavra e falei: o que vocês conseguiram foi um programa que vai pagar R$600,00 para uma mãe negra com três crianças e R$1.200 para um casal branco sem filhos. Então nós não nos responsabilizaremos por isso… ou vocês pagam o dobro para essa mulher ou vocês não nos coloquem como participantes… a Fernanda Melchionna falou então vamos trocar isso e vamos dobrar para mulheres chefes de família… aí então eu redigi a emenda e a Fernanda Melchionna apresentou para ser uma conquista da oposição. É um exemplo de como a gente colocou a mão na formulação da lei. (Fala do entrevistado MS-3, grifo nosso)

A sessão foi suspensa ontem para podermos chegar a uma redação que garantisse às famílias monoparentais o valor dos dois benefícios… O importante movimento em favor da renda básica emergencial está construído com 150 entidades apoiadas por nós e 500 mil assinaturas. (Dep. Fernanda Melchionna (PSOL/RS) notas taquigráficas - 26/03/2020, grifo nosso)

Em entendimento com o Líder do Governo, nós vamos aumentar o valor para 600 reais por pessoa, então podendo chegar a 1,2 mil reais por família… E incorporo o pleito relativo à família monoparental, chefiada por mulher, para prever que a mulher provedora de família monoparental receberá duas cotas… (Dep. Marcelo Aro apresentação da subemenda substitutiva)

Conversas com parlamentares e assessores confirmaram que o acordo para a oposição propor a renda emergencial virou o acordo para a emenda. A parlamentar-1 apontou que a sinalização do presidente no plenário era o que faltava para conseguir a costura necessária e destacou a longa negociação, confirmada pelas notas taquigráficas. A Emenda de Plenário 1 de 2020 (EMP-1/2020) de autoria da deputada Fernanda Melchionna (líder do PSOL/RS), que propôs o auxílio, beneficiários definidos pelo CadUnico e o auxílio em dobro para mulheres, foi protocolada em 25 de março, mas as entrevistas, notas taquigráficas e documentos analisados apontam ajustes até pouco antes da votação para contemplar as negociações ocorridas até o momento final. A análise das outras 21 emendas mostra que apenas a oposição trouxe proposta de auxílio emergencial, reforçando o acordo cumprido e autoria da oposição.

Os debates na Câmara e a elaboração do relatório já contaram com a participação do senador Alessandro Vieira, e permitiram agilizar os debates e a votação no Senado. A campanha “Renda Básica que Queremos”, e em especial os movimentos feministas e de mulheres, haviam conseguido uma vitória. A renda básica emergencial foi aprovada com o auxílio em dobro para mães solo.

Segundo o site da campanha, “a Renda Básica que Queremos é organizada por uma coalizão de organizações e movimentos sociais que defendem uma distribuição de renda urgente e necessária para todo o povo brasileiro.” As palavras seguem o modelo de Diani e Bison (2010), com densidade de relações, ação conflituosa com inimigo definido e objetivo determinado. No entanto, o grupo não possui uma identidade coletiva forte o suficiente para mantê-lo unido por muito mais do que a necessidade e emergência impostas pela Covid-19. A coalizão contou com mais de 270 coletivos, organizações e redes. As análises e entrevistas demonstraram que as redes foram fundamentais para consolidar o papel dos movimentos na ação e a importância das múltiplas filiações foram essenciais para garantir o olhar interseccional e a perspectiva de gênero necessárias para aprovar o auxílio em dobro.

Diferentes estruturas de governança de coalizão funcionam bem para diferentes necessidades. Eu acho que a gente foi muito feliz… o desenho que a gente construiu funcionou muito bem para colocar o tema na pauta, fazer ele crescer e aprovar a lei… (Fala entrevistado MS-2)

A gente começa a brigar com esse recorte da mãe solo, porque essas mulheres são as provedoras e trazendo o recorte racial para a conversa, … interseccionalmente não tem como a gente pensar só classe, a gente precisa colocar na conta raça e gênero e participar dessa construção com dados, com relatos, porque é importante a vida real estar ali presente. (Fala entrevistada MS-4)

Entre os movimentos participantes estavam redes e organizações presentes na ação coletiva, movimentos e grupos feministas importantes como Articulação de Mulheres Brasileiras, Think Olga, e de feministas negras como Odara e Geledés. Entre as redes e organizações na coordenação das atividades e negociações, estava a Coalizão Negra por Direitos que é representante do movimento negro no país. No programa de atuação, disponível em seu site, a Coalizão Negra por Direitos afirma:

Nós, organizações, entidades, grupos e coletivos do movimento negro brasileiro, reafirmamos nosso legado de resistência, luta, produção de saberes e de vida.

Compreendemos que as opressões sofridas por nossa gente se relacionam a um sistema global capitalista-neoliberal, supremacista branco e patriarcal. (Coalizão Negra por Direitos - Nov/2019)

O que se observa é a definição e o conceito de interseccionalidade atuando como pauta e base estrutural de movimentos sociais de mulheres e de pessoas negras, em um contexto no qual a identidade coletiva da pessoa oprimida fortalece laços e constrói pontes para unir ações coletivas, enquadramentos, repertórios e atuar como pontes que permitem ligações de identidades coletivas. As mulheres negras não são só mulheres ou só pessoas negras, e essa é a essência de como a interseccionalidade opera quando a mulher preta e pobre é a maioria das chefes de famílias monoparentais, das trabalhadoras informais ou em subempregos e quando se analisa a fome e os impactos da pandemia no país.

O uso das diversas redes dos próprios movimentos feministas como canal para a replicação da mensagem torna-se infraestrutura (Jasper, 2016) assim como o aproveitamento das múltiplas filiações tanto para a adequação de linguagens, quanto para a construção e consolidação de pontes entre atores (Mische, 1997). As redes e as múltiplas filiações contribuíram para a divulgação, favoreceram a rápida mobilização e facilitaram a chegada da mensagem nos mais diferentes públicos. As múltiplas filiações apontam como algumas pessoas podem atuar como pontes nos moldes propostos por Mische (1997). Duas parlamentares afirmaram já ter tido relacionamentos anteriores com movimentos sociais. Nas mídias sociais de outras parlamentares, foi possível observar interação entre movimentos feministas e deputadas como Jandira Feghali – conhecida do movimento desde a relatoria da Lei Maria da Penha; Maria do Rosário; Erika Kokay; Fernanda Melchionna; Áurea Carolina e outras.

Quase 300 organizações participando ativamente na incidência… a gente pensa nas conexões e a nossa conexão com a Áurea Carolina que é deputada por Minas também foi fundamental. Nossa contribuição foi justamente essa conexão. A Áurea é uma pessoa muito ligada aos movimentos em Minas, às redes feministas, às questões raciais… a gente conseguia transmitir esse grande movimento que se formou. Hoje eu vejo como essas conexões foram importantes. (Fala entrevistada MS-4)

Os assessores parlamentares entrevistados confirmaram contatos com as mais diversas redes e não apenas com as cinco organizações principais coordenadoras da ação coletiva, o que mostra como as diversas redes contribuíram com a proposta. Como parte das ações, esses movimentos fizeram uso da política de proximidade e da participação institucionalizada (Abers et al., 2014) e construíram mecanismos para superar a falta de audiências públicas tradicionais – como reuniões online e mensagens instantâneas no celular, a carta aos parlamentares e a mobilização dos Conselhos Regionais e Nacional de Assistência Social, que enviaram estudos e dados sobre a importância do cadastro único e de dados sobre mães solo no país. O uso desses mecanismos de documentação das opiniões e participações de conselhos e entidades de classe e representativas possibilitou que elas sejam incorporadas formalmente aos debates, e institucionalizam opiniões mesmo que ausentes em outras esferas, como nos debates do plenário.

Tanto a análise documental como as entrevistas reforçam a importância da interseccionalidade e da ação coletiva ter se estabelecido sobre bases que incorporam esse conceito que abrange as múltiplas formas de opressão a que mulheres estão submetidas, em especial aquelas que são maioria entre as chefes de famílias monoparentais, negras, pobres e de áreas periféricas. Os movimentos feministas ou de mulheres integrados como parte da Coalizão Negra por Direitos, do Nossas, da Rede Brasileira de Renda Básica, do Inesc e do Instituto Ethos por múltiplas filiações permitiu que elas estivessem presentes mesmo que não houvesse um grupo feminista ou de mulheres liderando as negociações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um auxílio emergencial para garantir a renda na crise da Covid-19 precisava olhar de modo diferenciado mães solo. Essa obrigatoriedade parte de dois pressupostos: a responsabilização das mulheres pelo cuidado condicionada pela dualidade entre a família como espaço de poder e dominação e a ausência de um suporte do estado e sociedade que sustente esse cuidar (Biroli, 2018). A interseccionalidade aponta como mulheres vivenciam a opressão em múltiplas esferas (Hirata, 2014).

Entre as ações destinadas aos mais vulneráveis na pandemia, a campanha “Renda Básica que Queremos” buscou garantir renda utilizando repertórios de interação Estado-Sociedade (Abers et al, 2014), repertórios próprios do contexto da pandemia que adaptam estratégias tradicionais (Abers & Bülow, 2020; Bülow, 2020) e mecanismos de campanha para dar visibilidade às necessidades e as soluções frente ao contexto (Carlos et al., 2021). A partir da mobilização de uma extensa rede de atores na defesa dos direitos das mães solo, a aprovação de uma renda emergencial incluiu pagamento em dobro para elas, e ampliou o alcance de movimentos feministas e de mulheres. As redes desses movimentos se fizeram presentes, por múltiplas filiações e atuaram como pontes em negociações.

Essa ideia das redes na construção de pontes e na incorporação de aspectos de gênero revela a importância de se analisar alguns movimentos sociais a partir de uma perspectiva de redes nos moldes de Diani e Bison (2010), entendendo que redes constroem suas ações enquanto juntam ideias, colaboram entre si e consolidam essas interações como o próprio contexto no qual atuam (Abers et al., 2018). Mais do que agregar atores, funcionam como infraestruturas e fortalecem os movimentos sociais (Jasper, 2016).

As entrevistas, as notícias, os posts e as análises documentais da tramitação do PL 9236/2017 apontaram o importante papel dessas redes na aprovação de uma renda emergencial minimamente adequada e mais ainda de sua força para garantir o auxílio em dobro para mulheres chefes de famílias monoparentais. Isso destacou o papel de movimentos feministas nessas redes e como pontes junto aos agentes políticos no parlamento (Carone, 2018; Zaremberg & Almeida, 2021).

A contribuição da campanha e dos movimentos sociais feministas foi além da formação da agenda, e atuou na formulação e no processo decisório da política pública, nos moldes de Carlos et al. (2021). Isso ocorreu em meio a uma pandemia com resposta ineficiente do Governo, que não apenas gerava a urgência de protestar, mas trazia a dificuldade para os protestos. Este estudo abre várias possibilidades de análises, além das rede`s, como os enquadramentos e repertórios utilizados na pandemia, ou a identidade coletiva que se moldou em torno da ideia de uma renda básica no país. Como observa Carone (2018), a agenda de pesquisa sobre movimentos sociais, poder legislativo e políticas públicas tem muito a ser estudado.

  • Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo.

AGRADECIMENTOS

A autora agradece a contribuição dos revisores que foram fundamentais no aprimoramento desse artigo. E ainda as contribuições da orientadora Profª PhD Rebecca Abers e da parecerista Profª Dra. Debora Almeida na avaliação da monografia do trabalho de conclusão do curso de Ciência Política na Universidade de Brasília que é a base desse artigo.

REFERÊNCIAS

Editado por

  • Editores convidados:
    Lizandra Serafim, Leonardo Barros Soares e Matheus Mazzilli Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2024
  • Aceito
    13 Mar 2025
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