INTRODUÇÃO
A cooperação regional entre países é um tema estratégico no contexto mobilizador para afirmação de importantes agendas e compromissos em termos globais, e pode ser observada em vários domínios, do econômico ao político-diplomático, do cultural ao ambiental, dentre muitos outros (Sebastião, 2016; 2018).
Os países de língua portuguesa congregam muito mais do que um orçamento de uma organização regional (Herpolsheimer, 2019), mas sobretudo laços linguísticos, históricos, culturais e tradições jurídicas que aproximam e distanciam o modelo de suas administrações públicas, dependendo de quem se compara com quem, mesmo diante do fato de pertencerem a quatro diferentes continentes e a maioria dos países se localizarem no continente africano.
Todavia, apesar dos sempre destacados laços comuns, estamos falando de países em diferentes estágios de democracia e desenvolvimento, e que apresentam formas de governos diversas e bem particulares. Tais especificidades impactam a estrutura, a autonomia e o funcionamento da administração pública. Outrossim, os contrastes que marcam essa geografia administrativa ainda são pouco observados e subteorizados pelo mainstream acadêmico (Henrich et al., 2010).
Enquanto expressão da amizade mútua entre os seus Estados membros, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é, por excelência, o espaço de cooperação, concertação político-diplomática e promoção e difusão da língua portuguesa e da diversidade cultural entre os países da chamada lusofonia.
Sendo a mais nova organização internacional entre suas congêneres de língua inglesa e francesa, respectivamente, Commonwealth of Nations e Organisation internationale de la Francophonie, a CPLP foi instituída em 1996.
Sete Estados fundaram a CPLP: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Em 2002, após a conquista de sua independência, Timor-Leste tornou-se o oitavo país membro da Comunidade. Em 2014, a Guiné Equatorial tornou-se o nono membro de pleno direito.
A CPLP tem estatuto de Observador das Nações Unidas desde 1999 (UN, 1999) e ao longo dos anos, a cooperação entre essas instituições vem sendo reforçada por meio de inúmeras resoluções (UN, 2025).
A comunidade epistêmica lusófona do campo da administração pública advém dessa base comum que permite formar redes de cooperação entre profissionais e acadêmicos que compartilham de crenças, valores normativos e práticas validadas e direcionadas a uma convicção comum de afirmação global das culturas de expressão lusófona, nos termos da literatura seminal de Haas (1992).
Para além da produção e difusão de saberes e conhecimentos, importa acrescer a aplicabilidade, isto é, a busca de respostas para problemas específicos ou, em outras palavras, o empreendimento de esforços visando influenciar os tomadores de decisão política (Meyer & Molyneux-Hodgson, 2010), característica especialmente distintiva dada a escala e panóplia dos desafios que se apresentam.
As articulações e interações formadas a partir desse ‘coletivo de pensamento’ (Fleck, 1979) são dinâmicas e pluricêntricas. Elas evoluem condicionadas ao processo de transposição de conhecimento administrativo (Fontes Filho; Pimenta, 2016), ao processo de africanização do poder (Favarato, 2022) ou à própria permeabilidade à indução externa nas reformas administrativas (Secchi et al., 2022), portanto, compreendem um projeto em constante construção que exige um diálogo permanente.
Por esse prisma, cabe observar que o ano de 2025 marca as comemorações de 30 anos da Organização das Instituições Superiores de Controle da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (OISC/CPLP), capítulo particular da cooperação lusófona na temática do controle externo governamental, que passamos a descrever.
A ORGANIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES SUPERIORES DE CONTROLE DA CPLP
A OISC/CPLP foi criada em 1995, antes mesmo da instituição da CPLP. Essa organização é Membro Associado da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (INTOSAI) desde 2009 (INTOSAI, 2009).
A OISC/CPLP é uma associação autônoma e independente, criada para fomentar o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de suas instituições-membros, mediante a promoção de ações de cooperação técnica, científica e cultural no campo do controle e da fiscalização do uso dos recursos públicos (OISC/CPLP, 2001).
Com exceção do Tribunal de Contas de Guiné Equatorial, instituições de oito Estados-Membros participam da OISC/CPLP, apresentadas no Quadro 1.
Como destacado no Quadro 1, todas as instituições são membros efetivos da INTOSAI. Com exceção do Tribunal de Recurso de Timor-Leste, toda as outras participam de organizações regionais da INTOSAI: braço africano (AFROSAI), braço europeu (EUROSAI) e braço latino-americano e caribenho (OLACEFS).
Em relação à participação em organizações sub-regionais de instituições de controle, todos são membros da OISC/CPLP. Adicionalmente, participações por afinidade linguística e geográfica são observadas. A conexão na língua inglesa ocorre no âmbito da AFROSAI-E (African Organisation of English-speaking Supreme Audit Institutions) e a conexão na língua francesa ocorre no âmbito da AISCCUF (Association ISC Commun l’usage du français) e da CREFIAF (Conseil Régional de Formation des Institutions Supérieures de Contrôle des Finances Publiques de l’Afrique Francophone sub-Saharienne). A identidade geográfica ocorre no âmbito da EFSUR (Entidades Fiscalizadoras Superiores de los países de América del Sur), subgrupo regional dos países da América do Sul, instituído no âmbito da OLACEFS.
Cumpre também observar que, nos termos do Estatuto da OISC/CPLP, ao Comissariado de Auditoria de Macau, instituição congênere da Região Administrativa Especial de Macau, foi concedido o estatuto de observador permanente.
A OISC/CPLP conta também com um Centro de Estudos e Formação (CEF), responsável por promover a elaboração de estudos, a promoção de cursos de formação e a edição de publicações de interesse comum. Ao longo da sua trajetória, o CEF realizou inúmeras ações de formação profissional, cuja prestação de contas encontra-se disponível por transparência ativa, por meio dos seus relatórios de atividades. As reuniões dos eventos oficiais da OISC/CPLP são objeto de publicações específicas.
Os inúmeros fóruns em que participam este conjunto de instituições superiores de controle evidencia não só a primazia da cooperação, mas também a amplitude de pluralidade das formas de participação.
De forma complementar, dos dispositivos legais que dispõem sobre as competências e formas de organização das instituições supremas de controle lusófonas, exsurgem dois traços comuns:
-
o modelo jurisdicional e de decisão colegiada característico da tradição francesa/napoleônica; e
-
a competência para desempenhar as três principais categorias de auditoria: financeira (INTOSAI, 2020), resultados (INTOSAI, 2019a) e conformidade (INTOSAI, 2019b).
Essas características permitem não só uma base comum para a realização de estudos comparativos, mas, sobretudo, favorecem o alinhamento de interesses e compartilhamento de saberes e conhecimentos entre essas diversas instituições.
CONTEÚDO DESTE DOSSIÊ ESPECIAL
Esta edição parte da perspectiva de controle governamental, mas a amplia, compreendendo-o em sentido amplo, isto é, como instrumento e expressão do Estado, das organizações e da sociedade. E faz tudo isso, sem perder de vista o contexto estrito, aquele característico do controle da gestão financeira pública e da responsabilidade financeira no ciclo da gestão e o seu suporte contributivo para as políticas públicas.
A singular diversidade intrínseca ao controle permite um plexo de recortes analíticos que vão da abordagem tradicional financeira (Lungo; Alves, 2013) às mais diversas unidades de análises, das municipais (Pereira; Romão, 2015) até as relacionadas ao legislativo, tribunais de contas, judiciário e ministério público (Arantes et al., 2010).
Visando contribuir com a construção de uma agenda de pesquisa lusófona de controle e assim aprofundar e densificar essa reflexão, esta edição desenvolve a temática do controle a partir de um conjunto de quatro trabalhos criteriosamente selecionados.
Em síntese, os conteúdos dos trabalhos aprovados contemplam pesquisas que envolvem dimensões do controle sob três lentes: a governamental, a cooperação triangular e a inovação.
No trabalho que abre este dossiê, As Instituições superiores de controle em Angola e Moçambique: do statebuilding à difusão de normas internacionais, os autores André Cavaller Guzzi, Natasha Borali e Laurindo Tchinhama, apresentam uma análise crítica sobre a influência de organizações internacionais no Tribunal Administrativo de Moçambique e do Tribunal de Contas Angolano desde o processo de statebuilding no pós-Guerra Fria até os dias atuais. O trabalho ressalta, sobretudo, as implicações que advém das dificuldades do enraizamento e consolidação da governança democrática na autonomia e eficácia, em ambos os tribunais de contas.
Em sequência, temos o trabalho Auditoria de resultados e avaliação de políticas públicas: o caso das instituições superiores de controlo, dos autores Luís Cracel Viana e José Palma Carpinteiro. Nesse artigo, os autores apresentam dois instrumentos de governança pública – a auditoria de resultados e a avaliação de políticas públicas – destinadas a promover a accountability e a aprendizagem no desenvolvimento de políticas públicas.
Viana e Carpinteiro perpassaram o debate de distinção, àquele centrado na identificação de semelhanças e diferenças entre esses instrumentos, e concentraram-se nos seus aspectos relevantes em termos de utilidade para os tomadores de decisão.
O trabalho Influência da cooperação triangular nas políticas públicas e na cooperação sul-sul: o caso da ESSOR das autoras Maria Angeluce Soares Perônico Barbotin e Maria Géssica Silva da Costa, apresenta uma análise sobre o potencial de influência das ações de cooperação triangular, lideradas pela organização de solidariedade internacional ESSOR, nas políticas públicas e no fortalecimento da cooperação sul-sul. O estudo evidenciou pontos positivos na dimensão do controle social das políticas públicas.
Por fim, por meio do trabalho intitulado Capacidades de inovação no empreendedorismo social em ambiente de crise: uma análise pela perspectiva dos colaboradores, os autores José Gaspar Nayme Novelli e Salejandra Alves dos Santos evidenciam a relevância da habilidade da gestão para lidar com novas situações, adaptando-se às mudanças. O estudo analisou os desafios relacionadas às organizações do Terceiro Setor na Assistência Social no Distrito Federal durante a pandemia de Covid-19 entre 2020-2022.
Observados em conjunto, os trabalhos possibilitam uma compreensão alargada da agenda do controle da gestão pública, não só pelas possibilidades de abordagem da função controle em perspectiva nacional com a dimensão internacional, mas, sobretudo, com a dimensão social dessa função. Ademais, o controle permeia a generalidade das políticas públicas, razão que confere variação relacionada à modulação do escopo e material empírico.
Boa leitura!
REFERÊNCIAS
- Arantes, R., Loureiro, M.R., Couto, C., & Teixeira, M.A.C. (2010). Controles democráticos sobre a administração pública no Brasil: Legislativo, tribunais de contas, Judiciário e Ministério Público. In F.L. Abrucio, M.R. Loureiro & R.S. Pacheco. Burocracia e política no Brasil: desafios para o Estado democrático no século XXI FGV Editora.
-
Favarato, C. (2022). Reconsiderar a instabilidade: desequilíbrios entre poderes nativos e o colapso do estado em Guiné-Bissau. Public Sciences & Policies, 8(1). https://doi.org/10.33167/2184-0644.cpp2022.8.1.6
» https://doi.org/10.33167/2184-0644.cpp2022.8.1.6 - Fleck, L. (1979). Genesis and Development of a Scientific Fact The University Chicago Press.
-
Fontes Filho, J. R., & Pimenta, R. da C. (2016). Práticas de administração pública no ambiente cultural dos países de língua portuguesa. Revista de Gestão dos Países de Língua Portuguesa, 15(1), 31–48. https://doi.org/10.12660/rgplp.v15n1.2016.78413
» https://doi.org/10.12660/rgplp.v15n1.2016.78413 -
Haas, P. (1992). Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, 46(1), 1–35. https://doi.org/10.1017/S0020818300001442
» https://doi.org/10.1017/S0020818300001442 -
Henrich, J., Heine, S. J., & Norenzayan, A. (2010). The weirdest people in the world? Behavioral and Brain Sciences, 33(2–3), 61–83. https://doi.org/10.1017/S0140525X0999152X
» https://doi.org/10.1017/S0140525X0999152X -
Herpolsheimer, J. (2019). The finances of the Community of Portuguese-Speaking Countries (CPLP). In U.Engel & F. Mattheis, The Finances of Regional Organisations in the Global South: Follow the Money. Routledge. https://doi.org/10.4324/9780429055874
» https://doi.org/10.4324/9780429055874 -
INTOSAI [The International Organization of Supreme Audit Institutions] (2009). Associate Membership Certificate. https://www.oisccplp.org/certificado-de-adesao-a-INTOSAI/
» https://www.oisccplp.org/certificado-de-adesao-a-INTOSAI/ -
INTOSAI [International Organization of Supreme Audit Institutions], (2019a). ISSAI 300: Performance Audit Principles. https://www.issai.org/wp-content/uploads/2019/08/ISSAI-300-Performance-Audit-Principles.pdf
» https://www.issai.org/wp-content/uploads/2019/08/ISSAI-300-Performance-Audit-Principles.pdf -
INTOSAI [International Organization of Supreme Audit Institutions], (2019b). ISSAI 400: Compliance Audit Principles. https://www.issai.org/wp-content/uploads/2019/08/ISSAI-400-Compliance-Audit-Principles-1.pdf
» https://www.issai.org/wp-content/uploads/2019/08/ISSAI-400-Compliance-Audit-Principles-1.pdf -
INTOSAI [International Organization of Supreme Audit Institutions], (2020). ISSAI 200: Financial Audit Principles. https://www.issai.org/wp-content/uploads/2020/12/ISSAI-200-Financial-Audit-Principles.pdf
» https://www.issai.org/wp-content/uploads/2020/12/ISSAI-200-Financial-Audit-Principles.pdf -
Lungo, D.I.M., & Alves, M.T.V.D. (2013). Utilidade da informação financeira na tomada de decisão: a perceção de gestores de PMEs de Luanda e de Lisboa. Revista de Contabilidade e Controladoria, 5(2), 107–133. http://dx.doi.org/10.5380/rcc.v5i2.31419
» http://dx.doi.org/10.5380/rcc.v5i2.31419 -
Meyer, M., & Molyneux-Hodgson, S. (2010). Introduction: The Dynamics of Epistemic Communities. Sociological Research Online, 15(2), 109–115. https://doi.org/10.5153/sro.2154
» https://doi.org/10.5153/sro.2154 -
OISC/CPLP [Organização das Instituições Superiores de Controle da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] (2001). Estatuto https://www.oisccplp.org/estatuto-da-organizacao-das-isc-da-cplp/
» https://www.oisccplp.org/estatuto-da-organizacao-das-isc-da-cplp/ -
Pereira, A.L. & Romão, A.L. (2015). A implementação do sistema de contabilidade de custos nos municípios portugueses. Revista Contemporânea de Contabilidade, 12(27), 165–186. https://doi.org/10.5007/2175-8069.2015v12n27p165
» https://doi.org/10.5007/2175-8069.2015v12n27p165 - Sebastião, S. P. (2016). Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: a afirmação global das culturas de expressão portuguesa Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
- Sebastião, S. P. (2018). Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: a afirmação global das culturas de expressão portuguesa (Volume 2). Cidadania Lusófona Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
-
Secchi, L., Caeiro, J. C., & Pinto, R. R. (2022). Duzentos anos de reformas administrativas em Portugal e em Espanha: da administração patrimonialista à gestionária. Public Sciences & Policies, 8(1). https://doi.org/10.33167/2184-0644.cpp2022.8.1.1
» https://doi.org/10.33167/2184-0644.cpp2022.8.1.1 -
UN (1999). Resolution 54/10. Observer status for the Community of Portuguese-speaking Countries in the General Assembly: resolution / adopted by the General Assembly. https://digitallibrary.un.org/record/291870
» https://digitallibrary.un.org/record/291870 -
UN (2025). Resolution 79/265. Cooperation between the United Nations and the Community of Portuguese-speaking Countries: resolution / adopted by the General Assembly. https://digitallibrary.un.org/record/4074687
» https://digitallibrary.un.org/record/4074687
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
