Open-access MOVIMENTOS SOCIAIS, PROTESTOS E PARTICIPAÇÃO SOCIAL EM TEMPOS DE PANDEMIA: NAS RUAS, NAS REDES, NOS TERRITÓRIOS E NAS INSTITUIÇÕES

INTRODUÇÃO

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o mundo vivia uma pandemia global de Covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Com seus primeiros casos registrados em 2019, o vírus se espalhou pelo mundo rapidamente, provocando ondas de contágio e óbitos nos anos seguintes. Para conter o avanço da pandemia, a OMS logo recomendaria o distanciamento social como principal estratégia, de forma a evitar a propagação do vírus ao diminuir a circulação humana e com isso, esvaziando as ruas mesmo nos mais populosos centros urbanos do planeta.

No Brasil, a pandemia chegou em meio a um contexto marcado pelo acirramento do confronto político. O impeachment/golpe sobre a presidenta Dilma Rousseff em 2016 rompeu com o ciclo de governos federais petistas iniciado em 2003. No âmbito deles, os movimentos sociais haviam estabelecido uma série de experiências inovadoras por meio de rotinas de interação socioestatal que mesclaram protesto, participação e ativismo institucional, com efeitos relevantes sobre políticas públicas em diversos setores (Abers, 2021; Abers et al., 2014; Abers et al., 2018; Carlos et al., 2024; Gurza Lavalle et al., 2019; Tatagiba & Teixeira, 2021). A eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República em 2018 solidificou a ascensão da extrema-direita no Brasil, transformando radicalmente as dinâmicas de participação e interação entre movimentos sociais progressistas e governo federal. Ela provocou efeitos de desinstitucionalização sobre as políticas influenciadas por esses movimentos, bem como de transformação nos próprios movimentos sociais e nos ativismos (Bezerra et al., 2024; Carlos et al., no prelo; Faria & Lima, 2024; Gomide et al., 2023; Tatagiba et al., 2022).

Quando ativistas se preparavam para responder a essa transformação, em 2020, com apenas um ano de governo Bolsonaro, foram subitamente atravessados por uma pandemia global, bem como por respostas negacionistas do governo federal às recomendações da OMS, que desestimularam o distanciamento social e, posteriormente, a própria vacinação. Novos dilemas se colocaram para os ativistas. Como se organizar coletivamente para responder a essas mudanças quando as instituições participativas estão em processo de desmonte? Como manifestar publicamente demandas coletivas quando a forma mais rotineira de ação dos movimentos sociais, o protesto, é pouco viável? Aliás, quais demandas defender quando a urgência da sobrevivência diante de uma pandemia recebida por políticas negacionistas atravessa a realidade de todos e, em particular, dos grupos mais marginalizados? Enfim, como se mobilizar quando toda e qualquer rotina foi bruscamente atravessada pelo risco do contágio, pela necessidade de isolamento e por suas consequências econômicas, sociais e políticas?

Essas perguntas se mostram ao mesmo tempo empiricamente relevantes e teoricamente instigantes, uma vez que as rotinas são de grande importância para os movimentos sociais e outras formas de ação coletiva contestatória. Esse insight é uma das numerosas contribuições do conceito de “repertórios” cunhado por Charles Tilly e, posteriormente, desenvolvido pela tradição da teoria do processo político (Alonso, 2012; Tilly, 1978, 1993). Nessa perspectiva, a ação coletiva contestatória é uma tarefa complexa, que depende do estabelecimento de rotinas de organização e de mobilização de recursos (Jenkins, 1983; McCarthy & Zald, 1977), bem como de scripts estáveis, adaptáveis e compartilhados sobre como agir coletivamente. A estabilidade do contexto histórico, político e social no qual ela transcorre torna possível a reprodução desses scripts de ação ao longo do tempo, e cria rotinas de interação contenciosa entre atores contestatórios e seus opositores (McAdam et al., 2001; Tilly, 1993, 2006; Tilly & Tarrow, 2015).

Os movimentos sociais, no entanto, nem sempre encontram estabilidade. É em grande medida em razão dessa constatação que teóricos do processo político dedicaram grande parte de sua agenda de pesquisa a investigar como mudanças contextuais afetam a ação coletiva. Em um nível macro, mudanças de regime modificam drasticamente os incentivos para que determinadas formas de ação coletiva sejam adotadas para a contestação política: das insurreições armadas aos movimentos sociais (Tilly, 2006; Tilly & Tarrow, 2015). Em um nível meso, mudanças em oportunidades políticas oriundas de fenômenos como trocas de governos ou realinhamentos entre as elites políticas abrem portas para que novas táticas sejam adotadas pelos movimentos sociais, para que suas ações sejam intensificadas ou para que seus efeitos sejam modificados (McAdam, 1999; Meyer, 2004; Meyer & Minkoff, 2004; Tarrow, 2009).

Tais estudos, contudo, têm observado com maior atenção as consequências das mudanças de contexto sobre a ação coletiva e com menor atenção a forma como a própria instabilidade contextual afeta a mobilização em momentos de incerteza. Por sua vez, ainda que analisem a ação dos movimentos em contextos instáveis, conceitos como os de “momentos de loucura” (Zolberg, 1972) ou “ciclos de protesto” (Tarrow, 2009) destacam cenários em que a própria intensificação do conflito torna o contexto de ação atípico. Mas como agem os movimentos sociais em períodos marcados por forte instabilidade causada por fatores exógenos aos conflitos nos quais estão inseridos?

Essa pergunta não passou despercebida por cientistas sociais de diversas orientações teóricas e disciplinares, que examinaram como os períodos de incerteza afetam os atores políticos e sociais. Os diversos conceitos desenvolvidos para lidar com esses contextos – como os de “vidas instáveis” (Swidler, 1986, 2001), “contextos turbulentos” (Abers et al., 2023), “conjunturas críticas emergenciais” (della Porta, 2022) dentre outros – em linhas gerais, sugerem que, nesses períodos, a instabilidade presente nas estruturas sociais e nas rotinas institucionais gera a necessidade de adaptação e inovação das linhas de ação dos atores sociais e, assim, uma abertura para sua transformação. Ademais, indicam que a própria “ruptura do cotidiano” e a consequente desestabilização dos padrões rotineiros de ação e da “atitude normal” dos sujeitos perante o mundo pode ser um importante catalisador da ação coletiva (Snow et al., 1998). Assim, em vez de serem recebidos com passividade, inação ou irracionalidade pelos sujeitos, cenários de instabilidade tendem a gerar um processo de inovação e transformação de sua ação.

Alinhados a essa perspectiva, buscamos tomar o tempo da pandemia não como um período de exposição passiva da sociedade civil à crise sanitária e às respostas governamentais a ela, mas como um tempo de transformação da mobilização coletiva em resposta às dinâmicas sociais provocadas pela pandemia (como o agravamento de situações de privação de direitos) e às linhas de ação adotadas pelos governos em relação a elas. Para isso, dialogamos com estudos anteriores, que têm indicado que os anos de 2020 e 2021 foram marcados por um intenso processo de mobilização social a partir de uma miríade de organizações e movimentos sociais.

Foram diversas mobilizações em múltiplos sentidos. Ideologicamente, foram protagonizadas, de um lado, por movimentos sociais progressistas que se opuseram ao negacionismo do governo federal afirmando a seriedade da crise sanitária e, por outro, por redes conservadoras que se mobilizaram na defesa da postura negacionista do governo chefiado por Jair Bolsonaro (Abers et al., 2021; Baccarin, 2023; Ferreira, 2023; Moreira & Koerner, 2021). Tematicamente, englobaram tanto protestos “da pandemia”, diretamente relacionados ao tema da crise sanitária, quanto “na pandemia”, colocando em pauta outras agendas, como o racismo e a violência de gênero (Carlos, 2024; Osmo & Fanti, 2021; Vázquez & Cozachcow, 2021). Já em termos de lógicas e repertórios de ação, incluíram formas diversas de contestação: dos protestos à construção de redes de solidariedade e mercados alternativos que buscaram responder às necessidades geradas pela pandemia (Abers & von Bülow, 2021; Carvalho et al., 2022; Fonseca, 2023; Vilarins, 2023). Os trabalhos aqui reunidos se somam a essa literatura e indicam, em linhas gerais, que os movimentos sociais reagiram ao contexto pandêmico em ao menos quatro arenas: nas ruas, nas redes, nos territórios e nas instituições.

NAS RUAS: PROTESTOS

Diferentemente do que se poderia esperar diante da recomendação de distanciamento social para prevenção da transmissão do vírus, as ruas não deixaram de ser um palco central para os movimentos sociais e outros atores coletivos contestatórios durante o período pandêmico. Não apenas grupos que se opuseram às políticas de distanciamento ocuparam as ruas nesses anos, mas também grupos opositores ao governo federal e defensores das recomendações da OMS foram às ruas, travando uma disputa pelos rumos das políticas de combate à pandemia no Brasil. Ademais, nas ruas, não esteve em pauta apenas a pandemia, mas também uma série de outros conflitos que atravessam a sociedade brasileira, como demonstram os protestos em torno da violência policial contra a população negra no país,. Esses foram fortalecidos pelo movimento Black Lives Matter no cenário internacional e impulsionados pelo assassinato de João Alberto Freitas em uma unidade da rede de supermercados Carrefour em Porto Alegre. Nesse dossiê, três artigos analisam as dinâmicas de protestos em tempos de pandemia no Brasil e na Argentina.

No artigo Trabalhadores, Direita, Vítimas da Violência e da Covid-19: quem protestou durante a pandemia no Brasil?, Priscila Delgado de Carvalho e Marcos Aurélio Freire da Silva Júnior oferecem um amplo panorama dos protestos ocorridos no país nesse período. Para isso, exploram um banco de dados construído por meio do método da análise de eventos de protesto (AEP) no âmbito do projeto La Protesta, que reuniu dados oriundos de jornais das cinco regiões brasileiras, o que tornou possível o mapeamento dos principais atores mobilizados e das principais agendas tematizadas nos protestos brasileiros. Os resultados da análise indicam um cenário complexo, marcado simultaneamente pelo protagonismo de trabalhadores em defesa de melhores e mais seguras condições de trabalho (tais como motoristas de aplicativos mobilizados no “breque dos apps”) e de grupos diversos alinhados à direita e à extrema-direita do espectro político em oposição às políticas de isolamento social e até mesmo em defesa de um golpe de Estado. O artigo também destaca a mobilização de vizinhos, familiares de vítimas e de ativistas e organizações do movimento negro em torno de demandas por justiça, direitos humanos e segurança pública, evidenciando-se a centralidade dos protestos contra a violência direcionada à população negra no país.

Já Samuel Henrique Carioca de Oliveira oferece uma análise detalhada do conflito em torno das políticas de distanciamento social no artigo Ruas divididas? Uma análise dos protestos sobre medidas restritivas no Brasil. A partir da mesma base de dados utilizada no estudo anterior, o artigo demonstra a predominância de protestos contrários às políticas de distanciamento social no período, com um pico de eventos em março de 2021 diante da retomada de medidas restritivas adotadas por diversos governos estaduais e municipais para conter a emergência daquela que seria a mais forte “onda” da doença no país. O artigo também investiga o perfil dos atores mobilizados a favor e contra as medidas restritivas, suas táticas e seus alvos, e destaca a polarização entre trabalhadores e empregadores nesse confronto.

Finalmente, o artigo La protesta ¿sin la calle? Los formatos de protesta y la relación con las restricciones a la circulación en Argentina (2020) de Ernesto Mate e Lucio Fernández Mouján apresenta um panorama semelhante para a análise do contexto argentino, buscando identificar os fatores que levaram ativistas às ruas naquele país. Para isso, os autores também partiram do método da AEP, construindo uma base de dados de eventos de protestos a partir de fontes hemerográficas locais. Os pesquisadores sugerem que três processos influenciaram a eclosão de protestos durante a pandemia no país: o agravamento da crise econômica argentina e da desigualdade social no país ao longo do período; os obstáculos de acesso a canais institucionais por alguns atores políticos, que os levaram à ação contenciosa nas ruas; e o fortalecimento dos partidos que compunham a oposição ao governo de Alberto Fernández, que identificaram a pandemia como uma oportunidade para levar sua agenda às ruas.

NAS REDES: ATIVISMO DIGITAL

Desaconselhados a irem às ruas durante o período crítico da pandemia, os movimentos sociais também souberam adaptar para o ambiente virtual suas táticas de luta e tensionamento em torno de pautas candentes. Esse é o objeto de atenção de dois dos artigos que compõem este Fórum. Em comum, os trabalhos ressoam a definição de ativismo digital proposta por von Bülow, Gobbi e Dias (2022, p. 313), para os quais “o ativismo digital é o conjunto de práticas de indivíduos e/ou coletivos que têm como objetivo promover publicamente causas contenciosas por meio de processos de apropriação e/ou transformação de tecnologias digitais”. A pertinência do conceito se verifica nos artigos a partir de sua capacidade de iluminar ações concretas dos atores sociais neles apresentados.

O artigo ¿De las calles a la virtualidad?: Reconfiguraciones de la protesta social en Argentina y Uruguay durante el COVID-19, de autoria de Gabriela González Vaillant e Fernanda Page Poma, analisa como as oportunidades políticas que emergiram durante o período pandêmico transformaram os repertórios de ação dos movimentos sociais na Argentina e no Uruguai. Amparado em sólida etnografia digital, o trabalho proporciona ao leitor e à leitora, por meio de um desenho de pesquisa comparativo internacional, a possibilidade de compreender como contextos históricos, culturais e econômicos similares podem gerar respostas diferentes ao cenário de crise sanitária. Leitura, portanto, essencial para que possamos compreender como conjunturas críticas podem não apenas redesenhar estratégias de atuação dos movimentos sociais, mas também tensionar os arcabouços teóricos estabelecidos nesse campo de estudos.

Também numa chave comparativista internacional, Rangel Ramiro Ramos e Sérgio Soares Braga, no artigo intitulado “I Can’t Breathe”: uma análise do fluxo da hashtag #blacklivesmatter no Twitter brasileiro e norte-americano, oferecem uma análise das especificidades do ativismo digital relacionado à temática racial no período pandêmico. A morte de George Floyd por asfixia nos Estados Unidos da América, em maio de 2020, foi gravada e viralizada nas redes sociais, e desencadeou uma onda de protestos naquele país. A ocupação das ruas se deu pari passu com a ocupação das redes sociais, que se incumbiram de difundir a hashtag “vidas negras importam” para todo o mundo, com evidentes repercussões no debate público do Brasil, um dos países com maior população negra em todo o planeta. A partir de um acompanhamento do fluxo dos compartilhamentos e interações na rede social X (antigo Twitter), os autores concluem que os movimentos sociais dos dois países souberam explorar e se beneficiar da internacionalização da luta antirracista por meios virtuais, trazendo-a ao proscênio das esferas públicas em ambos os contextos analisados.

NOS TERRITÓRIOS: SOLIDARIEDADE E CUIDADO

A seção seguinte é dedicada ao tema dos movimentos sociais como promotores de cuidado e solidariedade, ações que se mostraram necessárias durante a crise sanitária e seus efeitos sobre as populações mais vulnerabilizadas. Para ficarmos em apenas dois exemplos, é possível lembrar da importância da Central Única das Favelas (Cufa) no atendimento emergencial de comunidades urbanas pobres ou da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) no estabelecimento de barreiras sanitárias nos territórios indígenas (Fonseca, 2023; Soares et al., 2021). Dois textos se dedicam a essa temática.

Compreender o sentido das ações sociais é, como sabemos desde Weber, um objetivo fundamental para as ciências sociais. Em Ativismos na pandemia e sentidos da doação: filantropia, civismo e cidadania, Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira buscam compreender os sentidos atribuídos pelos diferentes atores sociais às ações de doação enquanto uma forma de ação coletiva mitigadora dos impactos devastadores da pandemia de Covid-19 no contexto do estado de Sergipe. Ao combinar a busca ativa dos perfis de organizações sociais, cívicas, culturais e políticas nas redes sociais com a análise de textos e materiais audiovisuais por elas produzidos e veiculados, o artigo demonstra que as redes de mobilização que emergiram no contexto pandêmico se articularam e operaram a partir de valores distintos, tais como a caridade, o “civismo patriótico” e a reivindicação por direitos constitucionais.

Já em Movimentos sociais e o cuidado em saúde durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: uma revisão de escopo, Alexandre Douvan e Fernando Tureck partem da seguinte questão: “qual foi o papel dos movimentos sociais na construção do cuidado em saúde durante a pandemia de Covid-19 no Brasil?”. Para responder a esta abrangente, porém fundamental, pergunta de pesquisa, os autores fazem uma revisão de escopo. Os principais achados da pesquisa indicam que os movimentos sociais atuaram em frentes diversas: produzindo conteúdos informativos sobre o vírus e as formas de proteção do contágio; exercendo pressão política em defesa do direito à sobrevivência e ao cuidado de populações historicamente subalternizadas e, portanto, mais vulneráveis e; desenvolvendo ações de vigilância e cuidado nos territórios.

NAS INSTITUIÇÕES: MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA PANDEMIA

O olhar para a interação, em maior ou menor medida conflituosa ou colaborativa, entre movimentos sociais e instituições constitui uma chave analítica profícua para a compreensão da ação pública construída no contexto pandêmico, sua efetividade, seus limites e seus efeitos institucionais e societários mais duradouros. No Brasil, um conjunto de estudos avançou significativamente nos últimos anos em propor abordagens analíticas relacionais e conceitos que rompem com visões dicotômicas e estanques das relações entre Estado/instituições e sociedade/movimentos sociais, numa perspectiva de constituição mútua (Dagnino et al., 2006; Abers et al., 2018; Gurza Lavalle et al., 2019). A literatura recente vem avançando em demonstrar que, no contexto da pandemia, houve uma reconfiguração dos processos de mobilização de amplas redes de atores, tanto no ponto de vista ideacional quanto no agêntico, que resultou na (re)combinação criativa de repertórios e enquadramentos de ação coletiva. Na interação com o sistema político, os atores disputaram o sentido dos problemas públicos e das soluções a serem adotadas, conectando os conflitos em torno de questões especificamente relacionadas à crise sanitária a agendas mais amplas (Abers e von Bülow, 2021; Abers et al., 2023). Quatro artigos que compõem este Fórum contribuem particularmente para o avanço do conhecimento sobre as interações entre movimentos sociais e instituições no contexto pandêmico.

Em Inovações sociais e segurança alimentar em São Paulo em tempos de Covid-19, Beatriz Sanchez, Leonardo Fontes, Eugenia Brage e Isis Domingues documentam quatro inovações sociais para promoção da segurança alimentar em São Paulo durante a pandemia. Eles analisam como os vínculos comunitários e parcerias intersetoriais contribuíram para o enfrentamento da fome e para a renovação das práticas cidadãs. O estudo mobiliza o conceito de modos de interação, em diálogo com a tipologia de modos de institucionalização proposta por Gurza Lavalle et al. (2023), e aponta que as inovações analisadas recorreram principalmente aos modos de institucionalização posicional e programático. O artigo também explora os fatores que contribuíram para limitar ou favorecer a durabilidade dos efeitos de movimentos sociais no Estado, como o apoio entre lideranças comunitárias e a cooperação com organizações governamentais, movimentos sociais e empresas privadas. Assim, o texto contribui, a partir de uma perspectiva bottom-up, para iluminar não apenas a interação entre movimentos sociais e Estado, mas também entre esses e outros atores sociais, relações ainda pouco exploradas na literatura sobre modos de institucionalização.

Já o artigo de Mariana Miranda Tavares, Enredadas contra a fome: movimentos, pandemia e auxílio em dobro para mães solo, aborda o papel das redes de mulheres e movimentos feministas envolvidos na proposição, discussão e aprovação do auxílio emergencial em dobro para mulheres chefes de famílias monoparentais. Valendo-se de análise de documentos, notícias, posts e entrevistas, a pesquisa revela que as redes de movimentos adaptaram estratégias e repertórios tradicionais no contexto pandêmico e, por meio da realização de uma campanha, estabeleceram pontes junto a atores políticos no parlamento, o que contribuiu para a adoção de uma perspectiva de gênero e interseccional no processo de negociação que levou à aprovação do PL 9236/2017. A pesquisa contribui para o avanço da agenda de estudos sobre a relação entre movimentos sociais, poder legislativo e políticas públicas, chamando a atenção para os efeitos de movimentos em políticas públicas, para além da formação da agenda, incluindo o processo de formulação e decisão.

A relação entre movimentos sociais/sociedade civil e judiciário se encontra na ordem do dia, sobretudo a partir do contexto de fechamento dos canais de interação com o Executivo. O artigo de Lorena Madruga Monteiro e Verônica Teixeira Marques de Souza, Defesa de direitos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: as redes de organizações que mobilizaram o Supremo Tribunal Federal (STF), contribui para o avanço dessa agenda de pesquisa. A pesquisa identifica e analisa processos de litigância estratégica de organizações da sociedade civil junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para contenção de violações de direitos humanos durante a pandemia. O trabalho aponta que o acionamento do judiciário por organizações da sociedade civil aumentou no período analisado (2020-2021). As autoras concluem que a mobilização jurídica gerou aprendizados político-institucionais para as organizações da sociedade civil, e ampliou o leque de ferramentas disponíveis para a defesa de direitos. Entretanto, questionam a sustentabilidade dessas ações, diante da sobrecarga do Judiciário em responder a uma quantidade crescente desse tipo de processo.

O artigo de Thays de Souza Nogueira, Fernanda Natasha Bravo Cruz e Anna Carolina Aureliano, Enfrentamento à violência contra mulheres: estratégias feministas na crise sanitária e política, fecha esse Fórum. O artigo analisa as ações coletivas feministas voltadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres em um contexto de desmantelamento das políticas para mulheres. As autoras apontam que as ativistas adaptaram seu repertório de ação e deslocaram o nível de atuação, por meio de dinâmicas virtuais e presenciais, alianças em nível subnacional e com o Legislativo, e parcerias internacionais, bem como por ação direta. As redes feministas estudadas atuaram pressionando o Estado, e assumiram papéis de gestão de serviços de assistência às mulheres que o Estado deixou de cumprir, o que resultou em novos aprendizados e capacidades para a implementação de políticas públicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerais, os artigos reunidos neste Fórum demonstram como os movimentos sociais brasileiros e de outros países responderam de formas diversas e complexas ao “contexto turbulento” provocado pela pandemia de Covid-19. Nas ruas, por meio de protestos, disputaram os rumos das políticas de enfrentamento à doença, bem como colocaram em evidência outras causas contenciosas atravessadas pela pandemia. Nas redes, mobilizaram o ativismo digital de forma a disputar o debate público em torno desses conflitos. Nos territórios, construíram redes de cuidado e de solidariedade que buscaram mitigar os efeitos trágicos da pandemia sobre as populações mais marginalizadas. Nas instituições, mobilizaram um diverso repertório de interação de forma a influenciar as políticas públicas relacionadas à pandemia e às suas múltiplas consequências.

Dessa maneira, o Fórum apresenta evidências de que, diante de contextos turbulentos, movimentos sociais têm sido capazes de se articular e agir em múltiplas arenas de forma inovadora não apenas para disputar os sentidos e as respostas dadas à “crise”, mas também para responder às necessidades emergenciais por ela produzidas. O Fórum, contudo, não esgota as questões e possibilidades analíticas no estudo da ação de movimentos sociais em contextos instáveis marcados por fortes “rupturas do cotidiano”. Por exemplo, como diferenciar conceitualmente os variados tipos de instabilidade e a maneira como eles afetam os movimentos sociais? De que forma o contexto político no qual a instabilidade se instala afeta as possibilidades de resposta dos movimentos sociais a ela? Como movimentos sociais se inspiram em repertórios pretéritos ou de outras organizações para produzir inovação tática nesses períodos? E em que medida essas inovações perduram com o final do período crítico?

Essas e outras perguntas se mostram essenciais para o desenvolvimento de uma agenda de pesquisa sobre a ação dos movimentos sociais em “contextos turbulentos”. Como demonstram as enchentes que atingiram o estado do Rio Grande do Sul em 2024 ou ainda o aumento das queimadas no país nesse mesmo ano, em tempos de emergência climática e ascensão da extrema-direita, tais tipos de contexto parecem se configurar cada vez menos como exceções para se tornar rupturas recorrentes na trajetória dos movimentos sociais. A adaptação a contextos instáveis, portanto, se apresenta, para os movimentos sociais e ativistas, como uma missão cada vez mais recorrente e, para os pesquisadores, como uma temática de pesquisa crescentemente relevante.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025
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