Open-access A LUTA DE MULHERES PARA VIVEREM BEM JUNTAS! MOBILIZAÇÕES COLETIVAS E ASSOCIAÇÃO NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA

¡La lucha de las mujeres por vivir bien juntas! Movilizaciones colectivas y asociación en la frontera Brasil-Bolivia

RESUMO

Este artigo tem como objetivo compreender como se configuram as arenas públicas em torno dos problemas públicos vivenciados pelas mulheres em Corumbá e Ladário (Mato Grosso do Sul), na fronteira Brasil-Bolívia. Partimos do conjunto de trabalhos reunidos sob o rótulo de pragmatismo crítico nas Ciências Sociais, e, por meio da cartografia do campo de práticas e operacionalizando via plataforma do Observatório de Inovação Social da Fronteira, foi possível identificar a ação pública promovida pela experiência e práticas coletivas de diferentes organizações socioestatais que atuam diretamente na arena pública das mulheres desse território. Os resultados reforçam a importância do diálogo entre inovação social, políticas públicas e arenas públicas para a promoção de rupturas no modelo de planejamento, gestão e governança das cidades, visto que as práticas da administração pública municipal não têm dialogado diretamente com as demandas e os esforços coletivos da sociedade civil.

Palavras-chave:
arenas públicas; ecossistema de inovação social; políticas públicas; desigualdade de gênero; plataforma digital.

ABSTRACT

This article aims to understand the configuration of public arenas around issues affecting women in the municipalities of Corumbá and Ladário located in the Brazilian state of Mato Grosso do Sul along the border with Bolivia. Grounded in critical pragmatism within the social sciences, the study employs a cartographic approach to the field of practices, operationalized via the Border Social Innovation Observatory (OBISFRON) platform. The research identified public actions emerging from the experiences and collective practices of different socio-state organizations operating in the public arena focused on women in this territory. The results reinforce the importance of fostering dialogue between social innovation, public policy, and public arenas to challenge and transform traditional models of city planning, management, and governance. This is particularly relevant since the local public administration has failed to directly engage with the demands and initiatives of civil society collectives.

Keywords:
public arenas; social innovation ecosystem; public policy; gender inequality; digital platform

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo comprender cómo se configuran los espacios públicos en torno a los problemas públicos vividos por las mujeres en Corumbá y Ladário (Mato Grosso do Sul), en la frontera entre Brasil y Bolivia. Partimos del conjunto de trabajos reunidos bajo la etiqueta de pragmatismo crítico en las ciencias sociales y, por medio de la cartografía del campo de prácticas, operacionalizada a través de la plataforma Observatorio de Innovación Social de Frontera, fue posible identificar la acción pública promovida por la experiencia y prácticas colectivas de diferentes organizaciones socioestatales que actúan directamente en la arena pública de las mujeres en este territorio. Los resultados refuerzan la importancia del diálogo entre innovación social, políticas públicas y arenas públicas para promover rupturas en el modelo de planificación, gestión y gobernanza de las ciudades, toda vez que las prácticas de la administración pública municipal no han dialogado directamente con las demandas y esfuerzos colectivos de la sociedad civil.

Palabras clave:
arenas públicas; ecosistema de innovación social; políticas públicas; desigualdad de género; plataforma digital.

INTRODUÇÃO

Embora a igualdade de gênero seja um princípio fundamental definido pela Constituição, a violência contra as mulheres e as relações desiguais entre mulheres e homens, ou seja, os privilégios, os direitos e as vontades do homem, que historicamente se sobrepuseram aos das mulheres, são recorrentes no Brasil. Segundo relatório da Agência Patrícia Galvão (2017), as mulheres são constantemente vítimas de assédio e de violência com variadas formas e intensidades, que podem acarretar feminicídio, o assassinato de mulheres decorrente da violência doméstica e familiar, o menosprezo ou discriminação à sua condição. Em 2023, foram registrados 3.181 casos de violência contra as mulheres no Brasil em 2023, sendo 586 desses casos feminicídios (Ferreira, 2023).

O mais recente Mapa do Feminicídio em Mato Grosso do Sul (MS), elaborado pela Subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres (Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, 2021), revela que o estado tem a maior taxa de feminicídio do País (3,5 a cada 100 mil). Noventa e quatro por cento desses casos ocorrem no interior do estado. Só em Corumbá, município com 96 mil habitantes, localizado na fronteira Brasil-Bolívia e onde foi realizada esta pesquisa, quase 2 mil mulheres viviam sob medida protetiva. Em março de 2024, o município registrou mil ações penais na vara criminal (aplicação da Lei Maria da Penha). A taxa média de atendimento de medida protetiva varia de 50 a 60 ações por mês, demanda considerada alta para uma população de 150 mil pessoas (Corumbá e Ladário, município vizinho, distante 5 km, que também participou da pesquisa, além da população flutuante de Puerto Suárez e Puerto Quijarro, do lado boliviano).

Nas palavras dos agentes públicos, “a mulher [dessa região] precisa se fortalecer para conseguir sair do ciclo da violência” (Tavolieri, 2023, s.p.), e isso é fato, afinal os números acima podem ser ainda maiores, devido aos casos não denunciados. Entretanto, a defesa deste artigo é que, além da força para fazer a denúncia, as diferentes esferas da administração pública precisam priorizar a governança pública, processo experimentalista pelo qual múltiplos atores interagem, criam estruturas de cooperação e buscam soluções para objetivos comuns (Ansell et al., 2022; Sabel & Zeitlin, 2012).

Isso porque, como demonstraremos ao longo deste trabalho, as mulheres da sociedade civil em situações de violência ou de desigualdade não se calam; pelo contrário, associam-se, no sentido de articulação, de juntar forças e demandas, definindo as líderes para fazerem suas vozes serem ouvidas e para convencerem. “Tomam a palavra, testemunham, avaliam, argumentam, criticam, interpelam a mídia e os poderes públicos. Quando estes não intervêm, buscam solução em sua própria escala” (Cefaï, 2017a, p. 188). Essa é a razão para reconhecer as arenas públicas por meio de um mapeamento da ação coletiva, visando criar um inventário positivo das formas emergentes de envolvimento público, dos projetos e ações criados pelos grupos para regular ou amenizar os desafios impostos em suas vivências.

Diante disso, o debate político, acadêmico e midiático sobre inovação social tem sido recorrente, justificado tanto pela necessidade de reconhecer a inovação social na microescala com base na experiência de contextos locais objetivando melhorias de curto prazo (Evers & Ewert, 2020) quanto pela ajuda que ela oferece aos atores políticos, organizações e ações coletivas da sociedade civil para encontrar melhores estratégias de enfrentamento em relação à inclusão social, diante do reconhecimento das iniciativas de inovação social, suas ações e práticas emanadas e dos desafios enfrentados pelas comunidades (Wegner & Howaldt, 2024).

Escapando puramente de uma visão instrumental, que domina o campo da inovação social (Howaldt et al., 2016), reforçamos a construção de uma compreensão alternativa para compreendê-las enquanto reconfigurações do social produzidas pelas interações entre a criatividade das ações e a regularidade do instituído (Andion et al., 2020). Assim, nos apoiaremos no conjunto de trabalhos reunidos sob o rótulo de pragmatismo crítico nas Ciências Sociais, que exploram a noção de investigação pública (public inquiry), método que busca captar a ação pública promovida pela experiência e práticas coletivas dos atores no território diante dos problemas públicos que enfrentam, com vistas a coconstruir respostas para os diferentes desafios socioambientais contemporâneos (Andion et al., 2017, 2020; Santo & Andion, 2024).

Nosso objetivo é compreender como se configuram as arenas públicas em torno dos problemas públicos vivenciados pelas mulheres na fronteira Brasil-Bolívia. Especificamente, demonstraremos a importância das plataformas digitais para visibilizar a luta das comunidades e as inovações sociais na escala local, sendo essa incursão realizada por meio do Observatório de Inovação Social da Fronteira (Obisfron - https://obisfron.com.br/), plataforma digital que pesquisa os desdobramentos da ação pública no território a partir dos ecossistemas, ou seja, ao mesmo tempo que estuda em profundidade os principais problemas públicos da região, inclusa aí a análise de políticas públicas, estimula a conexão dos atores (líderes comunitários, organizações privadas e não governamentais, agentes do governo, organizações de apoio e financiamento) que produzem e disseminam inovações sociais.

Este artigo possui cinco seções. Após esta introdução, sintetizamos o aporte teórico com a discussão da mobilização e articulação de mulheres e o Ecossistema de Inovação Social (EIS) sob a ótica pragmatista. Na terceira seção, detalhamos o caminho metodológico da pesquisa, enquanto na parte seguinte apresentamos e discutimos os principais resultados, fechando com as considerações finais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Apesar dos avanços na agenda política brasileira em relação à igualdade de gênero, materializados em leis, políticas e programas públicos, há uma herança cultural na nossa sociedade que coloca os corpos e as mentes das mulheres sob o domínio dos homens, gerando relacionamentos abusivos e diversos tipos de violência contra esse grupo social no País (Farah, 2004), como ilustrado nos índices apresentados na introdução deste trabalho. Diante dessa realidade, onde o Estado não consegue lidar com as situações problemáticas que atingem as mulheres, a sociedade não se cala. Nisso, é importante destacar o papel dos movimentos sociais que as mulheres organizaram e suas formas associativas, buscando a sua igualdade e a sua autonomia.

De início, é preciso assumir que as temáticas de gênero são fundamentais para o enfrentamento das desigualdades sociais ao redor do mundo. A partir dessa compreensão, mobilizações da sociedade civil, do poder público, da academia e do meio empresarial vêm empreendendo difusas ações relacionadas às mulheres.

No Brasil, as articulações de mulheres em busca de seus direitos sempre estiveram ativas e presentes. Contudo, segundo Farah (2004), foi a partir da década de 1980 que os movimentos sociais passaram a reivindicar, com maior intensidade, a cocriação de políticas públicas específicas, e de maneira participativa, para fazer valer as suas demandas e a interação governo-sociedade civil. O cenário da redemocratização do Brasil, iniciado a partir de 1980 e efetivado em 1988, quando da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil (CF-88), também representou mais uma conquista para o movimento feminista e de mulheres, principalmente a respeito da igualdade de gênero e do sufrágio. Afinal, a partir da CF-88, passou-se a reconhecer que todos são iguais perante a lei e que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (CF-88, 1988).

Todavia, importante demarcar, como nos ensina Dora Barrancos (2022), que a discussão sobre o feminismo na América Latina é diferente de outros países, pois, inicialmente, não se caracterizou como um movimento de massa, configurando algo que ainda está sendo expandido em alguns países desse continente. Uma das consequências que o movimento trouxe foi o aumento da empatia e da reação das mulheres com relação às condições enfrentadas por elas, como o machismo e o patriarcado, ainda que muitas delas não se identifiquem como feministas.

Essa conquista é de suma importância, principalmente no Brasil, afinal os dois tipos de violência contra as mulheres mais registrados e quantificados são a doméstica e a familiar, pois diariamente elas são expostas a todo tipo de violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Diante dessa realidade e da situação de prova vivida por Maria da Penha Maia Fernandes, surgiu um dos marcos para a luta das mulheres: a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006 (2006), conhecida como Lei Maria da Penha, em referência ao caso da senhora Maria da Penha, cujo marido tentou matá-la duas vezes. Desde então, ela se dedica ao enfrentamento da violência contra as mulheres, numa tentativa de coibir a violência doméstica e familiar, de acordo com os termos da CF-88, além de alguns tratados internacionais referentes à igualdade de gênero ratificados pelo País (LC, 2006; Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul [TJMS], 2021).

Aprendemos, então, que a importância das lutas travadas pelos movimentos sociais e das conquistas de todo aparato institucional supracitado reside, justamente, no enfrentamento à série de violações e desigualdades históricas e recursivas a que as mulheres estão sujeitas no Brasil. Tendo em vista que os números não param de crescer, isso demonstra que, apesar de ser um debate antigo, esse problema é constantemente perpetuado no País.

Nesse processo, o engajamento coletivo de mulheres conquistou espaço na agenda pública, e o poder público se abriu para algumas pautas, porém ainda não conseguindo furar a bolha do cerne da problemática: o machismo e a dominação do patriarcado. Enquanto isso não ocorre, muitas leis e políticas públicas ficam sujeitas a baixa operacionalização e efetividade, apesar da sua indiscutível importância. Isso demanda lançar um olhar para as ações da sociedade civil, buscando reconhecer como elas (re)agem em tempos de crise (Ansell et al., 2022; Farah, 2004).

Quando a sociedade civil se mobiliza em torno de uma situação problemática (conceito deweyniano que prevê todas as perturbações que afetam a vida coletiva, por exemplo, ruas sem asfalto, violência, fome, queimadas, entre outras), as associações se formam, saindo do âmbito privado e se tornando públicas, ou seja, suas ações geram impacto para além dos envolvidos diretamente na relação.

Para Dewey (1927), o público são associações coletivas, no sentido de conexões, que interagem umas com as outras visando enfrentar as situações problemáticas. Uma vez formado, o público vai buscar soluções, atribuir responsabilidades, julgar um ato como injusto e perigoso, formar alianças e inimizades, tentar se inscrever na agenda política (constituição de leis e políticas específicas) e qualificar os bens desejados (o que eles querem e por que o querem).

A formação do público também inclui as disputas e as relações de poder (quem atuará e falará em nome de quem) e a atuação em territórios, a fim de evidenciar a problemática e buscar soluções para determinada situação, que passa a ser um problema público, pois um público foi formado e tem por objetivo recrutar novas pessoas para que sua pauta ganhe uma dimensão societal (Gusfield, 1981), ocasião em que, como citado por Cefaï (2017a), a arena pública é institucionalizada.

Arenas públicas é um conceito proposto por Daniel Cefaï (2017a, 2017b) e não indica a existência de um espaço definido, mas sim que há um público formado perante uma situação problemática, a qual se publicizará. Essa publicização não é unânime, uma vez que o público cresce e se estabelece a partir de uma falta de consenso, podendo haver aceitação ou contestações por parte da sociedade civil com relação à solução apontada.

Isso porque a ordem pública organiza-se não apenas como um mercado, onde negociam-se interesses e opiniões (lógica do lucro), nem como um campo (lógica de dominação entre grupos sociais) ou como uma ágora (lógica da argumentação e da deliberação). Na arena pública, essas diferentes lógicas se sobrepõem, evidenciando as modalidades de cidadania ordinária e os processos de constituição do problema público.

É nessa lógica que estudos recentes, como o de Andion et al. (2020), defendem que “as arenas públicas constituem então o locus principal no qual as ações coletivas como práticas emergem e se desdobram” (p. 376) e, em razão disso, articulam o seu estudo aos EIS visando reconhecer a rede de atores (ecossistema), o problema público enfrentado e como as inovações sociais surgem (ou não) nesse processo. Nessa perspectiva do pragmatismo crítico, a inovação social é fruto de um processo de mudança social resultante da ação de diferentes coletivos que se interligam e formam uma rede em torno dos problemas públicos locais, fazendo com que novas soluções (criações coletivas) sejam possíveis, a partir da ação coletiva de diversos atores nas arenas públicas (Andion et al., 2017).

O estudo da inovação social é importante uma vez que ela tem sido colocada como uma possibilidade de resposta para os problemas que estão em evidência na sociedade, além de publicizar outros que estão estagnados/estabilizados. Isso porque os efeitos da inovação social funcionam “no aqui e agora” [in situ], contendo “mensagens mais amplas sobre valores, esperanças e suposições. As inovações sociais são dispositivos práticos que também podem atuar como símbolos maiores de esperanças e aspirações” (Evers & Ewert, 2020, p. 700).

Sob a ótica dos ecossistemas, busca-se identificar um ambiente em que a inovação possa ser estimulada pelos agentes que nele atuam diante de causas variadas, tendo por finalidade atender às diversas necessidades sociais (Howaldt et al., 2016). Contudo, segundo Santo e Voks (2021a), mais do que defender que as inovações sociais ocorrem, unicamente, via difusão e transposição de novas técnicas, como comumente se discute na literatura da administração, torna-se urgente reconhecer que as inovações sociais emergem da convergência de ações coletivas variadas e plurais. Portanto, não é apenas a existência de um ecossistema que garante a promoção de inovações sociais, mas as interações e efeitos produzidos por esses ecossistemas.

Wegner e Howaldt (2024) destacam o papel dos EIS digitais, fenômeno ainda emergente que desempenha papel importante ao visibilizar as Iniciativas de Inovação Social (IIS), permitindo demonstrar as interações atuais, estimular as conexões entre diferentes atores e ajudar a inovação social a prosperar em cenários locais, regionais e nacionais. Defendem, ainda, que as inovações tecnológicas devem ser acompanhadas pela inovação social, situação em que as plataformas digitais ganham destaque, caso da German Platform for Social Innovation and Social Enterprises (https://sozialeinnovationen.net/) e do Observatório de Inovação Social de Florianópolis (Obisf - http://www.observafloripa.com.br/), idealizador do estudo da inovação social pragmatista.

A atuação do Obisf assume “uma abordagem analítica particular que permita adentrar essas diversas arenas públicas, identificar os atores, suas interações, retraçar essa malha reticular e observar as experiências in situ” (Andion et al., 2020, p. 188), tornando a cartografia e a observação dos EIS uma alternativa para a compreensão de como os diferentes públicos se engajam para o enfrentamento dos problemas públicos, sendo possível compreender a causa das interações, discussões, publicizações e alcance de soluções promovidas pelos seus atores.

Inspirado nessa experiência é que surge o Observatório de Inovação Social da Fronteira (Obisfron), plataforma digital da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, cujo objetivo é defender a interface entre inovação social e políticas públicas por meio da valorização de múltiplos atores, visando uma governança pública nas cidades fronteiriças.

De início, importante esclarecer que, quando falamos em fronteira, não a interpretamos como fim do território nacional, mas como espaço de vida formada com “osso, suor e sangue dos fronteiriços” (Santo & Voks, 2023, p. 6), as populações que vivem na fronteira e atravessam os limites internacionais com fluidez, compartilhando economia, sociabilidades e, entre outros, problemas públicos.

Inicialmente, o Obisfron buscou identificar e sintetizar os principais problemas públicos dessa região, oito no total, que foram categorizados sob a ótica do 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Na sequência, o Obisfron realizou a cartografia das ISS e Iniciativas de Suporte (IS). Até agosto de 2024, a plataforma identificou 130 e 80, respectivamente. A terceira fase busca adentrar as arenas públicas, para compreender os desdobramentos da ação pública, como apresentado anteriormente.

Por fim, o Obisfron busca priorizar as ações e as inovações construídas pelas comunidades, visando reconhecer como as práticas emanadas por essas coletividades se inscrevem no território, como dialogam (ou não) com as ações do poder público e como ocorre a busca pela justiça social e a inclusão de comunidades; neste trabalho, de mulheres subalternizadas e sujeitas às violências, como discutimos nos resultados deste artigo.

METODOLOGIA

Esta pesquisa adota uma abordagem qualitativa, pela finalidade exploratória e descritiva. Apresentamos os resultados de um estudo realizado entre 2023 e 2024, sendo a coleta de dados iniciada com a pesquisa bibliográfica (em livros, artigos, teses e dissertações), visando aprofundamento teórico sobre mulheres, gênero, arenas públicas e inovação social.

Na sequência, foi realizada a pesquisa documental, inventariando as principais leis, programas e políticas públicas criadas e operacionalizadas em Corumbá e Ladário. Essa etapa ocorreu por meio do levantamento feito nas bases do Diário Oficial de cada município e levou em consideração as informações que foram obtidas no momento das entrevistas junto às Superintendências Municipais que atuam na causa das mulheres.

Lembra-se que esta pesquisa ocorreu nesses dois municípios, além dos dois municípios bolivianos, pois, como veremos na próxima seção, os problemas e as respostas emanadas são compartilhados, tanto as produzidas pelas ISS quanto as produzidas pela própria administração pública municipal, uma vez que a CF-88 expressa que migrantes e refugiados têm direitos sociais no Brasil, logo eles também são acolhidos.

A terceira fase do trabalho ocorreu por meio da cartografia , levantando organizações públicas, empresariais e da sociedade civil que atuam nesse enfrentamento. Esse método permite registrar os desdobramentos da ação, as conexões de redes e as transformações sociais no território (Santo & Voks, 2021a).

Essa etapa foi iniciada rastreando as redes sociais das organizações dos quatro municípios, ocasião em que uma acabava marcando ou descrevendo, por meio de postagens, ações que realizaram em parcerias com outras organizações. Também foram identificadas novas organizações durante a realização das entrevistas. A cada identificação, um levantamento em fontes secundárias (internet, sobretudo) foi realizado para obter o máximo de informações sobre a iniciativa de inovação social ou de suporte, sendo cadastrado no Obisfron.

Por fim, a última fase da pesquisa ocorreu mediante realização de entrevistas (roteiro semiestruturado). Do total de 24 iniciativas identificadas (descritas mais adiante, na Tabela 1), sendo 15 Iniciativas de Inovação Social (IIS) e nove Iniciativas de Suporte (IS), foram entrevistadas 12 IIS e 5 IS. Com isso, foi possível compreender sua origem, causa, público-alvo, desafios e políticas públicas e programas em curso nesse território.

Tabela 1
Iniciativas que Atuam na Causa das Mulheres da Fronteira Brasil-Bolívia

As entrevistas foram realizadas entre os meses de julho a setembro de 2023 na própria sede das iniciativas e/ou nos órgãos públicos. Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas, organizadas e inseridas na plataforma do Obisfron, o que permitiu gerar uma codificação conceitual, sob a ótica do referencial teórico, a partir dos próprios dados, pois a plataforma do Obisfron tem esse recurso que informa o EIS da arena pública de mulheres (Figura 1) e planilhas contendo gráficos e demais dados de cada iniciativa. Isso permitiu redigir os resultados deste estudo.

Figura 1
EIS da Causa das Mulheres

Partindo dessa codificação, a análise de todo o material ocorreu fundamentada no pragmatismo crítico das Ciências Sociais, conforme demonstramos sequencialmente na fundamentação teórica. Em síntese, exploram a constituição dos problemas públicos e as dinâmicas democráticas em curso no território para compreender a noção de inovação social (Andion, 2023; Andion et al., 2017; Andion et al., 2020; Santo & Voks, 2021a, 2021b).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os dados obtidos no trabalho de campo permitiram rastrear os EIS que atuam majoritariamente para atender demandas de mulheres. A Figura 1 indica que as atividades das IIS se entrecruzam com outras iniciativas da região, não específicas de mulheres, mas que acabam compartilhando a demanda; por exemplo, quando uma organização se dedica a defender os direitos das crianças e adolescentes, inevitavelmente acaba afetando a vida das mulheres mães dessa região.

Foram identificadas 24 iniciativas: 15 delas (IIS) atuam diretamente no enfrentamento da desigualdade de gênero e violência contra as mulheres; nove são IS que promovem apoio às IIS. Desse total, 20 localizam-se em Corumbá (sendo 13 IIS e sete IS), três no Município de Ladário (sendo 2 IIS e 1 IS) e uma IS em Campo Grande (capital do estado). Na Tabela 1, são apresentadas as IIS e as IS da região com seus respectivos objetivos.

Reconhecida a cartografia do EIS, qual arena pública se organiza em torno dos problemas públicos vivenciados pelas mulheres nessa região? Para responder a esse questionamento, temos, em primeiro lugar, que compreender qual problema público enfrentamos.

Segundo Cefaï (2011), os problemas públicos surgem em diferentes lugares e momentos, mobilizando numerosos atores que se articulam em diversas formas de engajamento. Isso porque o problema público é formado a partir do momento em que um evento particular ganha formato coletivo (interesse geral), tal qual ocorreu na criação da Lei Maria da Penha (interesse geral) resultante de um caso particular (série de violências sofridas pela senhora Maria da Penha), mas que representa várias mulheres que já foram ou ainda serão vítimas de violência em todo o Brasil.

Esse caso ilustra a questão aqui discutida. Os problemas públicos não são problemas cuja responsabilidade, tratamento e resolução cabem exclusivamente ao poder público. São, antes de ser tratados institucionalmente (como a Lei Maria da Penha), produtos da ação pública de inúmeros movimentos de cidadãos que ocorrem localmente (ex., uma manifestação antirracista em Corumbá), nacionalmente (manifestações sobre a morte de João Alberto, homem negro que morreu no estacionamento do Carrefour em 2020) e internacionalmente (o movimento Vidas Negras Importam, Black Lives Matter, refere-se à internacionalização do movimento antirracista). O que vemos em comum nessas passagens é que um determinado incômodo gera inúmeras mobilizações no tempo e no espaço. Apesar das especificidades, há um diálogo entre as causas (nesse exemplo, a eterna vulnerabilidade e racismo).

Para Gusfield (1981), três aspectos são determinantes para a constituição de problemas públicos. Primeiramente, a situação problemática precisa adquirir uma dimensão “societal”, ou seja, um determinado incômodo deve ser assunto de conflitos, controvérsias e opiniões (prós e contra) no espaço público, características essas que corroborarão a formação da ação coletiva ou, como Cefaï (2011) categorizou, a criação de uma associação a partir do público afetado.

Como segundo aspecto, Gusfield (1981) defende que a situação problemática seja assunto de “controvérsia e de polêmica”. Aqui, a publicização dos acontecimentos, ato de colocar o problema em foco, denunciado e encarnado, é de suma importância, pois representa a tentativa de que uma determinada causa/acontecimento não seja esquecida e/ou invisibilizada pela sociedade e pelo poder público.

Isso pode ocorrer desde uma série de postagens, passando por comentários sobre determinados eventos nas redes sociais, até chegar na mídia oficial e na materialização do corpo, ou seja, quando um determinado personagem se torna um “corpo político”, traduzindo a sua causa com o seu próprio corpo/voz e, por isso, gerando incômodos. Em âmbito nacional (e internacional), podemos citar essa materialização na figura de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 2018 e que fazia uma série de denúncias nas sessões da Câmara de Vereadores sobre a violência, a pobreza nas favelas e a vulnerabilidade de mulheres.

Já em âmbito local, destaca-se Ednir de Paulo, mulher, corumbaense, negra e líder da IIS Imnegra que foi intensamente agredida em seu ambiente de trabalho, mas foi diante dos seus esforços que se iniciou o movimento para o reconhecimento e a titulação de três comunidades quilombolas de Corumbá. Ou, ainda, Amanda de Paula - mulher, corumbaense, negra e líder da IIS Cufa Corumbá que começou a visibilização das favelas em Corumbá e o chamamento para a necessidade de unir esforços para dar qualidade de vida digna para essa população.

Como terceiro e último aspecto, Gusfield (1981) indica que o “problema se torna objeto da ação pública”, ou seja, as pessoas se articulam em diferentes formatos organizacionais (coletivos informais, associações, institutos, fundações, projetos de pesquisa, entre outros) com vistas a resolvê-lo. “Resolvê-lo” não significa que o problema será encarado e finalizado, mas que, no contexto de uma cultura democrática, o público é formado e desempenhará uma série de atividades que permita tratar o problema.

Mas nem toda situação problemática torna-se problema público. Algumas causas podem não eclodir numa dada localidade num dado momento, vindo a gerar incômodos que demandam a formação de um público apenas muito tempo depois. Nesse sentido, podemos pensar que somente em 2022 foi formada uma IIS que busca fortalecer as mulheres artistas do Pantanal (Comap), mesmo sendo de conhecimento geral nessa localidade que os movimentos culturais dominantes majoritariamente foram comandados e executados por homens, ainda que já tenham existido e ainda haja mulheres artistas renomadas na região. Por que houve tanta demora em surgir uma articulação?

Para Cefaï (2011), a revolta e o protesto encontram suas fontes. Os choques emocionais são fundamentais para concretizar manifestações na vida cotidiana. Assim, podemos analisar essa experiência e correlacioná-la ao fato de que diversas situações de exclusões provocaram o sentimento dessas mulheres artistas, levando-as a se articularem e a buscarem seu espaço. E esse processo não surge desarticulado de outras pautas feministas e de mulheres em nível nacional. “Esses feixes de relações, mais ou menos bem-sucedidas, mais ou menos esporádicas, com geometria variável, sustentam os engajamentos públicos dos indivíduos e remodelam a paisagem associativa” (Cefaï, 2011, p. 23).

Sob esse pano de fundo, vamos iniciar a análise para verificar a existência de um problema público na região. Para iniciar essa argumentação, vejamos a nuvem de palavras abaixo (Figura 2) que compila as principais causas identificadas nas 15 IIS da fronteira Brasil-Bolívia.

Figura 2
Principais Causas das IIS de Mulheres

Figura 3
Atividades da Associação Corumbá Produz

A Figura 2 demonstra que a principal causa das IIS é criar ações que permitam enfrentar suas problemáticas a partir da “geração de trabalho e renda”, visando combater as “desigualdades de gênero” e, em muitos casos, evitar a “violência doméstica”. Isso fica claro, por exemplo, nas ações do Imnegra, IIS que oferece cursos de corte e costura para todas as mulheres que desejam ter alguma fonte de renda, além de disponibilizar o espaço do instituto para que elas possam vender seus produtos. Outros exemplos são as associações que unem as mulheres das comunidades para gerarem renda a partir de uma matéria-prima extraída da própria região em que vivem, caso das IIS APA Baía Negra, da Associação de Mulheres Ribeirinhas do Porto Esperança e da Associação Corumbá Produz, que produzem artesanato a partir da fibra do aguapé, planta aquática do Pantanal, como ilustrado a seguir.

Todas essas iniciativas buscam formas de gerar trabalho para as mulheres que constituem suas organizações. A defesa delas é direta e de simples compreensão: para que as mulheres tenham sua independência e chances de fazerem o que desejarem, precisam de autonomia, obter o seu próprio sustento para que possam ter a capacidade de viverem a vida de maneira digna, de ofertarem o mínimo para os seus filhos e, quando for o caso, terem mais chance de escapar da violência, visto que muitas delas não são autônomas e por isso precisam se sujeitar a viver sob a ameaça e violência dos homens, seus companheiros, conforme nos foi relatado diversas vezes.

Respondendo à pergunta inicial desta seção, que questiona se estamos diante de uma arena pública e qual seria o problema tratado, fundamentados na argumentação feita até aqui, a resposta é que sim, existe uma grande arena pública formada por várias iniciativas que não necessariamente dialogam entre si, mas que compartilham de um mesmo problema público constituído a partir de diversas situações problemáticas (Figura 2) que ganharam uma dimensão “societal”, passando a constituir incômodo para várias mulheres dessa região, tais como a violência, a pobreza, a falta de representação, o racismo e outros.

Considerando seus diferentes lugares, tempos e realidades, essas mulheres se mobilizaram diante de diferentes “controvérsias e polêmicas” que precisavam ser publicizadas e enfrentadas, caso de Dona Natalina (Associação de Mulheres Ribeirinhas do Porto Esperança), que fundou a IIS em 2018, com o propósito de garantir fonte de renda para as mulheres da sua comunidade (Pantanal). Tudo começou com um incômodo, pois, anteriormente, Natalina chegou a disputar a presidência da Associação de Moradores da Comunidade de Porto Esperança, entretanto perdeu as eleições para um homem, sob alegação de que ela seria incapaz de presidir a associação por ser mulher. Foi a partir desse momento crítico que ela decidiu articular e fundar uma associação composta exclusivamente por mulheres.

Outro exemplo é o de Amanda de Paula, que já teve as atividades da IIS Cufa Corumbá inferiorizadas pelo poder público, que se referenciou a tais atividades como caritativas, como se as pessoas fizessem algo buscando unicamente devoção religiosa. Isso é o que Cefaï (2017a) chama de dispositivos de intervenção, inventados para convencer as pessoas e criar conflitos entre o público. Em todos esses casos, o “problema se tornou objeto de ação pública”, ocasião em que essas diferentes iniciativas surgem e passam a lutar pela sua causa, dar um tratamento específico ao problema público, que pode ser sintetizado aqui como “vulnerabilidade social, racial e igualdade de gênero”, pois praticamente todas as iniciativas buscam desenvolver ações de “geração de trabalho e renda”.

Vemos também que essas iniciativas surgem devido à proximidade, o que Cefaï (2011) aponta como o vivido, a vida cotidiana dos atores, moradores, usuários ou cidadãos (que muitas vezes são até familiares), que se unem e desempenham papel fundamental no engajamento público. Entretanto, é importante destacar que esse envolvimento não se solidifica na base da argumentação racional. Ele também é permeado por conflitos internos (dentro da própria iniciativa, que pode levar a seu enfraquecimento e até dissolução) e externos (com e entre os agentes públicos, por exemplo). Isso justifica, mais uma vez, a importância de identificar e explorar as arenas públicas, ainda mais nesse caso, onde a maioria das mulheres dessas associações é negra e pobre.

Mas essa arena pública não é formada apenas pelas IIS, as organizações que promovem a ação. Santo e Voks (2021a) elencam que o processo de formação do público também depende das ações do Estado e das instituições públicas, desde a garantia das condições de liberdade (liberdade para se associar e formar o público) até a organização da vida pública por meio de políticas e leis. “Assim, reconhecer as políticas e leis de uma situação problemática estudada é uma etapa fundamental no processo de investigação pública, pois é através desse aparato que o Estado vai tentar manter a ordem pública” (Santo & Voks, 2021a, p. 874).

Nesse sentido, a Tabela 2 sintetiza o levantamento de leis e políticas públicas específicas de mulheres, sendo discutidas na sequência:

Tabela 2
Leis e Políticas Públicas de Mulheres em Corumbá e Ladário (MS)

Analisando esses programas, leis e políticas públicas presentes nos municípios de Corumbá e Ladário, fica claro que o foco principal da administração municipal é a elaboração e execução de projetos voltados para combater a violência contra as mulheres e ampará-las quando já sofreram a violência. Isso é compreensível, remetendo aos altos índices apresentados na introdução. Porém, também demonstra um dissenso em relação às demandas identificadas na ação das IIS, pois a maior parte delas se dedica a promover geração de trabalho e renda. Nitidamente, faltam projetos institucionais que deem suporte às ações já em curso pelas IIS e que contribuam com a qualificação profissional dessas mulheres (geração de trabalho e renda).

Como já discutido anteriormente, é urgente tratar a violência contra as mulheres a partir da desigualdade entre homens e mulheres, que é justamente o que as IIS identificadas têm empreendido. É necessário o olhar atento para as ações do poder público direcionadas para a violência (Tabela 2); contudo, isso é uma forma de agir durante ou após a violência ter ocorrido, não impedindo, de fato, que ela aconteça. Logo, a promoção da autonomia das mulheres deveria ser prioridade do poder público dessa região, sem excluir as ações de combate e prevenção à violência.

A Superintendência de Ladário, município que não possui leis específicas para mulheres e apenas operacionaliza programas federais (assim como os municípios bolivianos), informou que a maior parte dos titulares do Cadastro Único são mulheres, e, ainda que esse dado não tenha sido evidenciado pela Gerência de Corumbá, Bartholo et al. (2019) apontam que 92% dos titulares do Cadastro Único no Brasil são mulheres. Isso transparece que, na maior parte dos casos, as mulheres são as provedoras financeiras centrais da família, condição que reforça a importância da atuação do poder público na geração de trabalho e renda para esse grupo social, sem diminuir as ações sobre violência, já em curso. Aliás, é preciso ainda averiguar o quão efetivos esses projetos destinados à violência são (incidência e efetividade).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, buscamos compreender como se configura a arena pública de apoio, acolhimento e promoção dos direitos das mulheres, a partir das práticas e experiências de organizações socioestatais que se mobilizam para atender as demandas de mulheres na fronteira Brasil-Bolívia. Isso foi possível devido à identificação da luta de diferentes iniciativas de inovação social e de suporte, que foram inventariadas, entrevistadas e cadastradas no Obisfron, permitindo reconhecer o ecossistema.

No decorrer desta pesquisa, ficou evidente que um problema público se constrói em diferentes cenas e arenas públicas: nas mobilizações dos movimentos sociais e nos seus discursos, na mobilização dos poderes públicos responsabilizados e chamados a intervir, nas políticas, nos tribunais, nos sindicatos, nas associações etc. É assim que a solução dos problemas está, acima de tudo, no conhecimento das suas causas, na responsabilização das entidades competentes para a sua resolução e na existência de uma cultura democrática e ação pública forte.

Por isso, é importante identificar as iniciativas e suas ações por meio das plataformas digitais, como realizado pelo Obisfron, pois são produzidos e disseminados conhecimentos que podem ajudar tanto as ISS (visibilizando os problemas públicos e priorizando as ações/respostas executadas pelas comunidades) quanto as IS (estimulando a aproximação entre governo e ISS e a avaliação das políticas públicas).

Isso se evidencia nas organizações aqui identificadas e apresentadas, que são de diferentes espaços (urbano, rural, central, periférico e outros) em busca de soluções para um mesmo problema público: a desigualdade de gênero e a violência contra as mulheres. É a partir das ações e práticas dessas organizações que surge a inovação social (dirimir a fome com entrega de cestas básicas, promover uma capacitação profissional visando à independência financeira, fortalecer um coletivo profissional em um espaço machista, entre outros). A inovação social emerge dessa capacidade de resposta; emana de ações coletivas variadas e plurais, pelas quais as iniciativas tentarão problematizar (questionar, se inconformar) e publicizar (deixar em evidência) suas causas para tentar construir respostas aos problemas públicos encarados como comuns.

Um exemplo que ilustra essa conclusão ocorre quando a líder da IIS Imnegra se incomoda com a situação que vivenciou (racismo e misoginia) e começa a buscar alternativas para que outras mulheres não vivenciem as mesmas agressões verbais que ela vivenciou. Nisso surge uma associação (Imnegra) que oferta cursos de corte e costura visando gerar renda para essas mulheres. Muito mais que difusões de receitas milagrosas, como comumente se discute na literatura da administração, a inovação social surge da busca por mudança social por meio de respostas a um problema público, nesse caso, a vulnerabilidade de gênero (no qual estão inseridas a desigualdade entre homens e mulheres e a violência contra as mulheres).

Todavia, o surgimento de uma organização não significa que as inovações sociais (no sentido aqui discutido, enquanto processo que permite mudança social e dar resposta ao problema público) acontecerão em larga escala. Muitas organizações padecem por falta de recursos financeiros, por falta de apoio institucional e por conflitos internos. Fica evidente a importância do papel do poder público e de outros atores de suporte, como as universidades e as empresas, que podem financiar ações, oferecer tecnologia, transferir conhecimento e outras atividades que permitam dar vitalidade para que as IIS continuem promovendo ações no território.

Aliás, esse papel do poder público é traduzido nas leis e políticas públicas que buscam dar um tratamento à problemática. Vimos que as prefeituras de Corumbá e Ladário criaram uma série de políticas que visam tratar, principalmente, a violência contra mulheres. Portanto, a inovação social exige mudanças na forma tradicional de gestão, criação e execução de políticas públicas, ao priorizar a governança pública experimentalista. Nesse sentido, as plataformas digitais podem ajudar os tomadores de decisão a interagirem e aprenderem com as práticas das IIS.

Por fim, em nível micro, recomendamos que trabalhos futuros verifiquem se esses projetos/políticas de fato diminuem os números da violência, atualizem os dados sobre quantas mulheres são vítimas nessa região e investiguem a correlação entre violência doméstica e o nível de empregabilidades das mulheres.

Em nível macro, encorajamos que seja replicada essa abordagem em outros territórios, com a criação de outras plataformas digitais inspiradas no Obisf. Estudar a inovação social por meio das arenas públicas tem permitido compreender os desdobramentos da ação em profundidade, visibilizar problemas públicos históricos e urgentes e iluminar os esforços coletivos da sociedade civil, que, diante de dificuldades, realiza inúmeras inovações no território. Nesse sentido, a perspectiva pragmatista crítica, que fundamenta este trabalho, reinsere a noção de público em contraponto à de processo político, ou seja, reconhece que a mobilização coletiva de múltiplos atores socioestatais é um processo que definirá as situações problemáticas e, mediante uma investigação pública, será possível compreender a construção, os entraves e o acesso às políticas e aos serviços públicos.

  • Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao CNPq pelo financiamento da pesquisa (Edital Universal 10/2023) e à FUNDECT pela bolsa concedida à Lenita durante a pesquisa.

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Editado por

  • Editora Associada:
    Andrea Leite Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2024
  • Aceito
    27 Mar 2025
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