Open-access BOA GOVERNANÇA, MODELOS DE GESTÃO E INGRESSO NO SERVIÇO PÚBLICO BRASILEIRO: ENTRE DISCURSOS E PRÁTICAS

Good governance, management models and recruitment into the Brazilian public service: Between discourses and practices

Buena gobernanza, modelos de gestión e ingreso a la función pública brasileña: Entre discursos y prácticas

RESUMO

As práticas de boa governança buscam evitar que as condutas dos ocupantes de cargos públicos se deem de maneira corrupta. Para tanto, modelos de gestão são elaborados com vistas ao aprimoramento da administração, o que envolve critérios relacionados ao ingresso dos ocupantes dessas funções. Tendo isso em vista, este artigo faz uma análise sobre as maneiras pelas quais se deram as seleções de pessoas ao longo da história brasileira e o que isso revela acerca da lealdade por elas prestada. O estudo baseia-se em uma revisão bibliográfica sobre os aspectos relacionados a modelos de gestão e ingresso de pessoas na administração pública, bem como no levantamento de dados em sítios eletrônicos oficiais do governo brasileiro. Os achados sugerem que os discursos e alterações normativas adotados não foram capazes de contribuir, de modo significativo, para o fortalecimento de uma governança pública pautada em critérios afetos à moralidade e à integridade.

Palavras-chave:
governança pública; modelos de gestão; ingresso no serviço público; moralidade; integridade

ABSTRACT

Good governance practices seek to prevent corrupt behavior among public officials by implementing management models that improve administration and establish criteria for hiring public employees. This study analyzes how the Brazilian public administration has been selecting and hiring personnel throughout history and the impact of these practices on public employees’ loyalty. The research is based on a bibliographical review of aspects related to management models and the recruitment of public employees, as well as data collected from official Brazilian government websites. The findings suggest that the discourses and normative changes adopted have not significantly contributed to strengthening public governance based on criteria that consider morality and integrity.

Keywords:
public governance; management models; admission to public service; morality; integrity

RESUMEN

Las prácticas de buen gobierno tratan de evitar comportamientos corruptos por parte de los titulares de cargos públicos. Para ello, se elaboran modelos de gestión con vistas a mejorar la administración, lo que implica criterios relacionados con el ingreso de quienes ocupan estos cargos. Teniendo esto en cuenta, este artículo analiza las formas de selección de las personas a lo largo de la historia de Brasil y lo que esto revela sobre su lealtad. El estudio se basa en una revisión bibliográfica de aspectos relacionados con los modelos de gestión y el ingreso de personas a la administración pública, así como en un estudio de datos en sitios web oficiales del gobierno brasileño. Los resultados sugieren que los discursos y cambios normativos adoptados no han podido contribuir significativamente a fortalecer la gobernanza pública basada en criterios relacionados con la moralidad y la integridad.

Palabras Clave:
gobernanza pública; modelos de gestión; ingreso a la función pública; moralidad; integridad

INTRODUÇÃO

Passados pouco mais de 25 anos da última reforma administrativa implementada no Brasil via promulgação da Emenda à Constituição (EC) n. 19/1998, tramita no Congresso Nacional uma nova proposta com a finalidade de promover novas alterações nos aspectos de governança do Estado brasileiro: trata-se da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 32/2020. Entre as justificativas construídas, está a de que a atual estrutura estatal permanece complexa, morosa, ineficiente e corrupta, além de manifestações no sentido de que o corpo de funcionários públicos custa muito ao Erário e entrega pouco à sociedade.

A questão, contudo, envolve uma série de pontos, que necessitam ser mais bem abordados para uma compreensão mais apurada acerca do que está em discussão. Entre eles, o que diz respeito à forma de ingresso das pessoas no serviço público brasileiro ao longo do tempo, ao que essa forma de ingresso pode dizer acerca da lealdade (ou não) de tais pessoas para com as diretrizes legais e constitucionais em relação à atuação na esfera pública. Ainda, no que isso pode auxiliar uma reflexão no tocante aos modelos de gestão de Estado pensados no curso da história brasileira e ao que tudo isso tem a dizer sobre a governança pública brasileira, especificamente sobre aspectos relacionados à moralidade, à integridade e à inibição de prática de atos corruptos.

Para a elaboração deste artigo, foi feita uma revisão bibliográfica sobre os temas relacionados a modelos de gestão e forma de ingresso de pessoal na administração pública brasileira, mais especificamente no Executivo federal. Também, foram levados em consideração dados disponibilizados em sítios eletrônicos oficiais do governo brasileiro.

FORMAS DE INGRESSO NO SERVIÇO PÚBLICO BRASILEIRO: APONTAMENTOS HISTÓRICOS

Em que pese o entendimento consolidado no sentido de os atos de corrupção serem causadores de diversos danos à população, sobretudo aos mais vulneráveis (Sadek, 2019; Zavascki, 2017), não se ignora que suas práticas remontam ao período do Brasil Colonial e vigem, em alguma medida, até hoje entre nós (Schincariol Scacchetti, 2024).

Uma das vertentes para a compreensão das causas que propiciam as condições para tais práticas diz respeito ao estudo sobre o modo de ingresso das pessoas na administração pública, porquanto são capazes de indicar as dinâmicas estabelecidas entre os envolvidos. Tendo isso em vista, as próximas linhas tecerão uma breve abordagem sobre o assunto.

Em relação ao modo de ingresso das pessoas na administração governamental, tem-se que, assim que iniciado o primeiro período da história do Brasil, a principal modalidade para a prestação de serviços públicos dava-se mediante a contratação direta de agentes particulares. Como exemplo, o caso dos donatários das Capitanias Hereditárias e dos arrecadadores de tributos, cuja dinâmica contribuía para a implementação de uma série de privilégios em seu favor (Scacchetti, 2021) e consequente lealdade dessas pessoas para com a Coroa Portuguesa (Sampaio, 1968; Silva, 2008).

Sobre esse aspecto, importante pontuar que, na esfera federal, foi apenas a partir de 1930, no governo do presidente Getúlio Vargas, que medidas normativas para combater o “sistema de emprego de favor” e instaurar o “sistema de mérito” passaram a ser consideradas (Vieira, 1967). É o caso da promulgação da Constituição de 1934 (art. 169) e da publicação da Lei n. 284 (1936), que criou duas categorias de pessoal para a prestação dos serviços públicos, a saber: i) a de funcionários públicos (cujo ingresso se dava mediante concurso público); e ii) a de extra-numerários (cujo ingresso se dava mediante contratação direta).

Como justificativa para a reforma, sustentava-se que era preciso promover uma maior racionalidade dos serviços públicos prestados, tendo em vista a complexificação pela qual o sistema econômico brasileiro vinha passando. Nesse sentido, a fim de criar condições para a mudança, houve a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), com competência para atuar sobre todos os cargos ocupados pelos funcionários públicos, justamente aqueles que ingressavam na administração pública via concurso público, visando à economia, à eficiência e à ética na prestação dos serviços (Lafer, 2002).

Há de se ressaltar que, na linha do inaugurado pela Constituição de 1934, todas as Constituições subsequentemente estabeleceram que o ingresso no serviço público, via de regra, deveria se dar mediante aprovação prévia em concurso público, com a garantia de estabilidade no cargo após o exercício da função por determinado tempo. Nesse sentido, a Constituição de 1937, art. 156, a Constituição de 1946, arts. 186 e 188, a Constituição de 1967, arts. 95 e 99, a Constituição de 1969, arts. 97 e 100 e a Constituição de 1988, arts. 37 e 41.

Tais dispositivos demonstram a preocupação, ao menos em tese, de assegurar que a investidura nos cargos públicos se dê àqueles que comprovem aptidão técnica para o desempenho satisfatório das funções. Também, o cuidado de lhes garantir condições necessárias para o fiel cumprimento de suas atividades mediante o estabelecido pela Constituição e pelas leis, evitando-se, assim, que haja uma lealdade dessas pessoas para com o governante do momento e possível complacência com práticas corruptas.

De toda forma, para o alcance desses propósitos, há de se pontuar que não basta a criação de normas prevendo-os; faz-se necessário que seja elaborado e implementado um modelo de gestão e de governança pública com a capacidade de viabilizar as condições indispensáveis para tal.

Modelos de gestão e governança pública: Aspectos relacionados à moralidade e à integridade

A análise em relação às formas de ingresso das pessoas e à lealdade por elas dada (ao governante ou às diretrizes legais e constitucionais) é capaz de indicar os modelos de gestão institucionais vigentes no Brasil ao longo do tempo. De acordo com os estudiosos sobre a questão, é possível vislumbrar a existência de três: i) o modelo de gestão patrimonialista; ii) o modelo de gestão burocrático; e iii) o modelo de gestão gerencial.

O modelo de gestão patrimonialista, em linhas gerais, tem como principal aspecto a inter-relação entre as esferas pública e privada dos governantes. Nessa perspectiva, os arranjos institucionais de governança pautam-se na busca por privilégios dos que detêm o poder (Faoro, 2012; Holanda, 1994; Nunes, 2017).

O modelo de gestão burocrático, por sua vez, elaborado com o propósito de pôr fim ao anterior, possui como principais características a formalidade, a impessoalidade e o profissionalismo (Secchi, 2009). Tendo isso em vista, os arranjos institucionais são elaborados a fim de distribuir as tarefas de maneira hierárquica, organizada e centralizada.

Isso quer dizer que as regras e regulações são formuladas pela alta administração e guiam as decisões e as ações a serem tomadas pelos níveis administrativos hierarquicamente inferiores, que deverão comunicar às instâncias superiores as atividades realizadas. Ainda, significa que se busca o predomínio da impessoalidade entre as relações dos agentes envolvidos no desempenho das tarefas (Chilcote, 1998). Esses aspectos têm como finalidade evitar o uso da máquina estatal para a satisfação de interesses particulares.

Entretanto, diante das críticas no tocante à morosidade, à rigidez, à fragmentariedade na execução das atividades e à ineficiência advindas do modelo burocrático, o modelo de gestão gerencial passou a ser visto como uma solução ao problema.

Elaborado a partir da importação de princípios da iniciativa privada, referido modelo tem como foco a redução de custos e o aumento da eficiência na prestação dos serviços públicos à população (Schincariol Scacchetti, 2024). Assim, os arranjos institucionais de governança pautam-se na descentralização das atividades desempenhadas e na busca por resultados. Para isso, são formulados objetivos e metas a serem alcançados e elaborados indicadores de desempenho para a avaliação dos resultados atingidos (Bresser-Pereira, 1996).

Especificamente em relação ao último modelo, a narrativa adotada para dar início à tramitação da PEC n. 173/1995 – ensejadora da EC n. 19/1998 – defendia a ineficácia do modelo de gestão burocrático, nos seguintes termos:

A crise do Estado está na raiz do período de prolongada estagnação econômica que o Brasil experimentou nos últimos quinze anos. Nas suas múltiplas facetas, esta crise se manifestou como [...] crise do próprio aparelho estatal. No que diz respeito a esta última dimensão, a capacidade de ação administrativa do Estado se deteriorou, enquanto prevalecia um enfoque equivocado que levou ao desmonte do aparelho estatal e ao desprestígio de sua burocracia.

[...]

No difícil contexto do retorno à democracia, que em nosso país foi simultâneo à crise financeira do Estado, a Constituição de 1988 corporificou uma concepção de administração pública verticalizada, hierárquica, rígida, que favoreceu a proliferação de controles máximas vezes desnecessários. Cumpre, agora, reavaliar algumas das opções e modelos adotados, assimilando novos conceitos que reorientem a ação estatal em direção à eficiência e à qualidade dos serviços prestados aos cidadãos.

A revisão de dispositivos constitucionais e inúmeras outras mudanças na esfera jurídicolegal que a acompanharão estão direcionadas para o delineamento de condições propícias à implementação de novos formatos organizacionais e institucionais, a revisão de rotinas e procedimentos e à substituição de controles formais pela avaliação permanente de resultados.

Coerente com estes propósitos, Sr. Presidente, acreditamos que as emendas constitucionais ora apresentadas venham a contribuir decisivamente para o revigoramento da administração pública, com impactos positivos sobre o conjunto da ação governamental e sobre a sociedade.

[...]

Como qualquer norma legal, as características desse instituto carecem hoje de uma atualização que o compatibilize com a necessidade de implementação de técnicas de gestão voltada para a eficiência e o desempenho. Além disso, a própria modernização política e social concorre para a consolidação da distinção entre as esferas pública e privada para tornar mais acurada a fiscalização pela sociedade contra eventuais abusos. (Trechos da exposição de motivos à PEC n. 173/1995, grifo nosso)

No que importa para a reflexão do abordado neste texto, nota-se que uma das questões aventadas para a implementação do modelo de gestão gerencial está no fato de que o modelo burocrático não foi capaz de superar a dicotomia em relação às esferas pública x privada no tocante à atuação dos ocupantes de cargos públicos. Ou seja, não contribuiu para estabelecer as condições necessárias à superação do modelo de gestão patrimonialista no Brasil.

Dito isso, interessante pontuar que, pouco mais de 25 anos após a promulgação da EC n. 19/1998 – e a adoção de uma série de reformas com vistas a modificar diversos aspectos da governança pública brasileira –, defende-se a implementação de uma nova reforma administrativa a fim de dar azo à concretização do modelo de gestão gerencial na administração pública, tal qual buscado em 1998. Para tanto, tramita no Congresso a PEC n. 32/2020, cuja exposição de motivos baseia-se nos seguintes aspectos:

A estrutura complexa e pouco flexível da gestão de pessoas no serviço público brasileiro torna extremamente difícil a sua adaptação e a implantação de soluções rápidas, tão necessárias no mundo atual, caraterizado por um processo de constante e acelerada transformação. Torna-se imperativo, portanto, pensar em um novo modelo de serviço público, capaz de enfrentar os desafios do futuro e entregar serviços de qualidade para a população brasileira.

[...]

A modernização da concepção do Estado também está exemplificada por meio do aprimoramento dos princípios que regem a Administração Pública, com a inclusão no texto constitucional dos princípios da imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, subsidiariedade e boa governança pública ao lado dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, que constam no caput do art. 37 da Carta Magna.

O princípio da imparcialidade difere do princípio da impessoalidade, este já previsto na redação atual do art. 37, caput, da Carta de 1988. Se a impessoalidade traduz o dever ético de o agente público se conduzir de modo íntegro em relação às pessoas envolvidas no processo, a imparcialidade traduz esse mesmo dever, porém em relação à matéria sob tratamento. Trata-se de exigir que todo agente público, no exercício do seu mister funcional, se conduza de modo absolutamente imparcial, ainda que possua valorações internas préconcebidas a respeito do tema sob exame.

O princípio da transparência materializa, no texto constitucional, princípio basilar para o Estado Democrático de Direito [...] A transparência é elemento fundamental para conferir maior controle social sobre os atos do Estado, auxiliar no controle externo aos órgãos públicos, fortalecer o combate à corrupção [...] O dever de transparência relaciona-se intimamente à ideia de governança pública e responsabilização dos gestores. Não é possível, atualmente, pensar em um Estado moderno e eficiente sem que se observe a obrigação dos governantes de prestar contas de suas ações. Conforme amplamente reconhecido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, a transparência é um importante instrumento que garante que os cidadãos detenham as informações necessárias para fiscalizar e avaliar as decisões governamentais.

A inovação como princípio a ser observado por toda a Administração pública guarda plena consonância com uma concepção modernizadora das relações entre o poder público e a sociedade [...] O estabelecimento expresso da inovação como princípio constitucional da Administração servirá como símbolo de uma nova era do Estado brasileiro, deixando para trás a mera conservação burocrática, que, desconectada dos tempos atuais, tem se revelado ineficiente para atender aos anseios do povo brasileiro.

O princípio da responsabilidade demanda de todo agente público, de todos os níveis da federação e de todos os poderes e funções da República, responsabilidade no exercício de suas atividades.

[...]

Por fim, o princípio da boa governança preceitua que, no exercício do poder, seja posto em prática o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução das políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade.

[...]

Os novos vínculos e o conjunto de medidas ora propostas para convergir práticas da Administração pública com a realidade do Brasil e do mundo contemporâneo concorrem para a busca da qualidade do gasto com pessoal. (Trechos da exposição de motivos à PEC n. 32/2020, grifo nosso).

Nota-se que a proposta de emenda em questão busca, entre outras particularidades, estabelecer novos princípios que, em conjunto com os já previstos no artigo 37 da Constituição – legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade e eficiência –, serão tidos como capazes de criar as estruturas necessárias para o melhoramento da atuação dos servidores e, consequentemente, o aprimoramento das práticas de governança pública. Exemplo disso é a indicação de inserção dos princípios da imparcialidade, da transparência, da responsabilidade e da boa governança no texto constitucional.

Contudo, a partir de uma análise mais cuidadosa dos motivos evocados, é possível perceber que eles não destoam dos formulados anteriormente, quando da promulgação da EC n. 19/1998. Isso porque o ataque ao modelo de gestão burocrático e sua incapacidade de garantir uma renovação nas práticas de governança pública, bem como de assegurar a implementação de mecanismos importantes para o combate à corrupção, continuam sendo o cerne do discurso, muito embora o que se viu nos últimos anos foi a tentativa de enfraquecimento dos mecanismos dos controles formais de atuação dos “burocratas” para o uso da máquina pública pelas autoridades políticas (Lotta et al., 2023).

Sobre esses aspectos, porém, faz-se mister uma reflexão mais profunda e crítica das complexas dinâmicas presentes no Estado brasileiro, especialmente no que toca à maneira pela qual se dá o ingresso das pessoas para atuarem no serviço público, consequente modelo de gestão implementado (ou não) e o que isso tem a dizer sobre a integridade na governança pública. Para isso, há de ser abandonada uma perspectiva linear e evolucionista sobre a questão, pois, ao se levarem em consideração apenas as disposições normativas anteriormente apontadas e as narrativas construídas, desprovidas estas de quaisquer dados empíricos a respaldá-las, corre-se o risco de serem geradas confusões e falsas conclusões acerca do tema.

Governança pública e as práticas ainda vigentes: O ingresso de pessoas no serviço público após a Constituição de 1988

Em relação ao ingresso no serviço público, apesar de, desde a Constituição de 1934, haver a previsão de que esse se daria em respeito à meritocracia, estudos elaborados apontam que sempre prevaleceu na administração pública brasileira a contratação de pessoas em desrespeito ao ditame constitucional de necessidade de realização de concurso público (Lafer, 2002; Vieira, 1967).

Para além disso, há de se apontar que, quando da promulgação de uma nova Constituição, estabelece-se, via atos de disposição constitucional transitória (ADCT), a incorporação desse pessoal ao serviço público, garantindo-lhes a estabilidade que, via de regra, é concedida apenas àqueles que se submeteram ao concurso público de provas ou de provas e títulos. Exemplos disso se encontram no estabelecido no art. 23 do ADCT da Constituição de 1946 e no art. 19 do ADCT da Constituição de 1988.

Não bastasse isso, importante pontuar que, mesmo após o advento da Constituição que inaugurou o período democrático da Nova República brasileira e os discursos adotados referentes à necessidade de implementação do modelo de gestão gerencial para o aperfeiçoamento da governança pública, as práticas concernentes à contratação de pessoal sem a observância do estipulado no artigo 37 da Carta Magna vigente continuam de maneira acentuada, conforme dados expostos na Tabela 1:

Tabela 1
Ingresso de Pessoal no Poder Executivo Federal de 1995 a 2022 sem a Submissão ao Concurso Público

À vista de tais indicadores, surgem dúvidas em relação a não haver um esclarecimento mais preciso acerca do que vem a ser a contratação na modalidade “outros”. Também nessa linha, não há a divulgação de nenhuma informação para uma melhor compreensão sobre as contratações via “contrato temporário”, se se deram de acordo com as normas constitucionais e legais sobre a questão. Ou seja, apesar de haver transparência no tocante à sua divulgação, não há nenhuma clareza quanto ao que eles indicam e, consequentemente, se ocorreram em respeito às boas práticas de governança pública.

Ademais, o fato de tal cenário ter sido consideravelmente intensificado logo após a EC n. 19/1998 também gera indagações. Isso porque tal emenda foi promulgada para realizar uma reforma administrativa no Estado brasileiro com o intuito de pôr fim ao dito fracassado modelo de gestão burocrático até então vigente.

Ainda nessa toada, os questionamentos intensificam-se mediante a leitura da exposição de motivos da PEC n. 32/2020, apresentada pelo ministro da Economia do governo presidencial de 2018 a 2022 para defender a adoção de mais uma reforma administrativa com vistas à implementação do modelo de gestão gerencial. A seu ver, era urgentemente necessária a superação do modelo de gestão burocrático, encarado como incapaz para efetivar as medidas necessárias à superação das práticas destoantes da boa governança. Ora, essa narrativa apenas indica que não houve qualquer estudo dos dados disponibilizados pelo próprio governo para o qual ele trabalhou, dados esses, provavelmente, elaborados pelos poucos funcionários que ingressaram no serviço público mediante a realização de concurso público e em respeito à meritocracia.

Além do mais, e de modo a complementar as informações apresentadas na Tabela 1, interessantes as ponderações feitas por Astério Dardeau Vieira quando analisou situação similar à ainda fortemente vigente no País, no tocante ao grau de comprometimento dos que ingressaram via concurso público e o dos pertencentes aos “grupos paralelos”, conforme por ele mesmo denominados. Segundo o autor, enquanto aqueles apresentam um maior nível de comprometimento e melhor desempenho das atividades desempenhadas, estes simbolizam um convite ao “empreguismo” (Vieira, 1967, p. 12), ou seja, uma forma de os governantes oferecerem empregos na esfera pública em troca de favores pessoais.

Dessa forma, e não alheia à conturbada e complexa dinâmica envolvendo a questão, há de se dar destaque às críticas no sentido de que, apesar dos discursos sobre a necessidade de adoção de modelos de gestão a garantir a implementação de uma governança pública pautada na qualidade do serviço prestado, na moralidade e na integridade, as dinâmicas presentes propiciam que parte considerável dos cargos públicos seja ocupada por pessoas sem essa preocupação (Lafer, 2002). E essa reflexão faz-se necessária justamente em razão de tal situação sinalizar para uma possível consequência no que concerne à lealdade dos ocupantes desses cargos: se para com o mandatário momentâneo ou para com condutas guiadas pelos ditames das leis e da Constituição.

Isso porque, apesar de toda a tentativa de implementação de modelos de gestão a partir da década de 1930 a fim de propiciar uma governança pública pautada na meritocracia, no dever de lealdade à lei, na moralidade e na integridade, isso não foi capaz de evitar que os que atuavam na administração pública – em sua maioria não concursados – tivessem a obrigação de apoiar a figura do presidente Getúlio Vargas (Lauerhass, 1986).

E, passados quase 100 anos, não faltam exemplos praticados pelo presidente da República que governou o País entre os anos de 2018 e 2022 a reforçar o dito acima, a saber: tentativa de desvio de joias de altíssimo valor de propriedade do Estado brasileiro para proveito próprio, criação de um serviço de inteligência paralelo para espionar seus desafetos e adversários políticos e investida de práticas a fim de promover um golpe de Estado.

À vista desse contexto, não por acaso, estudo realizado em 2021 pelo Banco Mundial em parceria com a Controladoria-Geral da União (CGU), então Ministério da Economia e Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), com a finalidade de identificar a impressão dos servidores federais acerca de ocorrências de práticas corruptas no serviço público, indicou que, dos 22.300 funcionários entrevistados: i) 58,70% já presenciaram atos corruptos durante sua trajetória profissional; ii) 33,30% sofreram algum tipo de pressão para cometer prática corrupta nos últimos três anos; iii) 51,70% não sentem segurança para denunciar as práticas de que tiveram conhecimento ou presenciaram; e, iv) entre os que denunciaram, 27,40% sofreram retaliações (Schincariol Scacchetti, 2024).

Diante dos dados apresentados, o que se nota é a perpetuação de ingresso de pessoas no serviço público mediante a contratação direta e em afronta aos mandamentos constitucionais no tocante à necessidade de realização de concurso público, além de haver atos de perseguição aos servidores concursados que não se submetem aos comandos ilegais (Lotta et al., 2023). Tudo isso apesar dos discursos e alterações no texto constitucional com o intuito de que seja aperfeiçoado o modelo de gestão gerencial, pois, segundo seus defensores, o modelo burocrático mostrou-se incapaz de contribuir para o aprimoramento da governança pública brasileira e inibir práticas de corrupção.

CONCLUSÃO

“Uma das características mais expressivas do subdesenvolvimento é um permanente curto-circuito no trinômio Teoria-Pesquisa-Ação” (Vieira, 1968, p. ix). Com esse alerta, apontam-se os riscos de serem tomadas decisões desprovidas de uma aguda investigação do objeto, bem como da importação acrítica de “[...] exemplos de irredução e de inimaginação sociológicas” (Vieira, 1968, p. x).

À vista de todo o exposto ao longo destas páginas, soam como visionárias as palavras acima transcritas, e isso não só pela razão de haver um olhar de desprezo para com a nossa história, apta a propiciar elementos para uma maior compreensão dos nossos problemas atuais, mas também pela insistência na irrefletida adoção de modas internacionais que, por si sós, não serão capazes de apresentar soluções efetivas às nossas demandas. Ao contrário, podem ensejar o seu agravamento.

Como exemplo disso, tem-se a narrativa no sentido de que se faz urgente a realização de uma nova reforma administrativa com vistas à implementação de um modelo de gestão gerencial, conectado às melhores práticas internacionais de governança pública. Para tanto, seus defensores sustentam a necessidade da superação do rígido, hierarquizado, moroso e ineficiente modelo burocrático ainda vigente.

Contudo, no que diz respeito à forma de ingresso das pessoas no serviço público ao longo dos tempos, os elementos apresentados – análise histórica, estudos acadêmicos e dados disponibilizados em sítios eletrônicos oficiais do governo – demonstram que ainda prevalece a contratação de pessoas de maneira precária e em desrespeito à meritocracia. Logo, quanto a esse aspecto, o modelo burocrático não passa de uma penumbra entre nós, porquanto não observadas as medidas necessárias à sua efetiva implementação, entre as quais a realização de concurso público como regra para a composição do quadro de funcionários do Estado brasileiro.

Como consequência disso, criam-se condições para que os ocupantes dos cargos públicos estabeleçam relações de lealdade para com o governante momentâneo, não para com os ditames legais e constitucionais. Ainda, contra os poucos servidores detentores de estabilidade, pesam pressões para atuarem em desacordo com a lei, além de perseguições e retaliações caso não o façam.

Dessa maneira, há de se ater à falácia presente nos discursos que respaldam a necessidade de uma reforma administrativa para o fortalecimento do modelo gerencial. E isso se mostra crucial porque os apontamentos realizados ao longo destas páginas indicam que não há a efetiva implementação de práticas que tenham como foco o exercício de comportamentos pautados na moralidade e na integridade, tampouco na adoção de um modelo de gestão consentâneo à realidade e às necessidades brasileiras capaz de aperfeiçoar os mecanismos necessários à boa governança pública.

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Editado por

  • Editor Responsável:
    Marco Antonio Carvalho Teixeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2024
  • Aceito
    12 Nov 2024
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