RESUMO
O objetivo do artigo é propor um conceito de gestão tecnológica social a partir da articulação das abordagens de gestão social e de tecnologia social. Gestão social e tecnologia social são proposições teórico-conceituais que emergiram no Brasil, no contexto do Sul Global, comprometidas com a emancipação humana, nos campos da gestão e da tecnologia, respectivamente. A gestão tecnológica social proposta corresponde ao processo gerencial dialógico sobre o fomento, aprendizado, desenvolvimento, operacionalização e disseminação de soluções tecnológicas, orientado para a democratização tecnológica e emancipação humana. Essa proposta conceitual é embasada por um quadro analítico para orientar a gestão tecnológica em organizações comunitárias e solidárias para enfrentamento de desafios socioambientais. A proposta conceitual-analítica foi aplicada para validação inicial em um caso de implementação do Programa Cisternas em comunidades na Amazônia. O caso examinado permitiu identificar atividades previstas no quadro analítico de gestão tecnológica social e o exercício dos princípios de gestão social nelas.
Palavras-chave:
gestão social; tecnologia social; gestão tecnológica social; Amazônia; organização comunitária
ABSTRACT
The article proposes the concept of socially-oriented technological management based on the combination of social management and tecnologia social approaches. Social management and tecnologia social are theoretical-conceptual propositions that have emerged in Brazil, in the Global South context, committed to human emancipation in the fields of management and technology, respectively. Socially-oriented technological management corresponds to the dialogical management process of fostering, learning, developing, operating, and disseminating technological solutions, oriented toward technological democratization and human emancipation. This conceptual proposal is supported by an analytical framework that guides technological management in community and solidarity organizations to tackle socio-environmental challenges. The conceptual-analytical proposal was applied for initial validation in a case of implementation of the Cisterns Program in communities in the Amazon. Through the case examined, activities foreseen in the analytical framework of socially-oriented technological management and the exercise of social management principles in them were identified
Keywords:
social management; tecnologia social, socially-oriented technological management; Amazon; community organization
RESUMEN
El objetivo del artículo es proponer un concepto de gestión tecnológica social basado en la articulación de los enfoques de la gestión social y tecnología social. La gestión social y la tecnología social son proposiciones teórico-conceptuales que surgieron en Brasil, en el contexto del sur global, comprometidas con la emancipación humana, en los campos de la gestión y la tecnología, respectivamente. La propuesta de gestión social tecnológica corresponde al proceso de gestión dialógica sobre la promoción, aprendizaje, desarrollo, operacionalización y difusión de soluciones tecnológicas, orientado a la democratización tecnológica y la emancipación humana. Esta propuesta se basa en un marco analítico para orientar la gestión tecnológica en organizaciones comunitarias y solidarias para enfrentar los desafíos socioambientales. La propuesta conceptual-analítica se aplicó para su validación inicial en un caso de implementación del Programa Cisternas en comunidades de la Amazonía. El caso examinado permitió identificar las actividades previstas en el marco analítico de la gestión tecnológica social y el ejercicio de los principios de gestión social en estas.
Palabras clave:
gestión social; tecnología social; gestión tecnológica social; Amazonía; organización comunitaria
INTRODUÇÃO
O objetivo do artigo é propor um conceito de gestão tecnológica social a partir da articulação dos campos da gestão social e da tecnologia social. A articulação desses dois campos visa estabelecer uma concepção de gestão tecnológica contra-hegemônica, com foco de aplicação em organizações da sociedade civil, empreendimentos solidários e outros arranjos interorganizacionais similares.
A gestão tecnológica não é um tema novo na área de Administração (Bertero, 1977), sendo explorado em múltiplas abordagens teóricas como em capacidades (Figueiredo, 2005; Bell; Pavitt, 1993), em operações (Gaimon, 2008) e em estratégia (Dasgupta; Gupta; Sahay, 2011), geralmente associado à inovação tecnológica. O tema é predominantemente desenvolvido com enfoque para organizações empresariais, orientado para uma modalidade de gestão privada (França Filho, 2008) ou de gestão estratégica (Tenório, 1998; 2005), conforme discutido no campo da gestão social. Assim, constitui-se uma literatura de gestão tecnológica majoritariamente focada nos valores hegemônicos daquela modalidade de gestão, quais sejam: maximização de lucros, competitividade e tomada de decisão monológica, marcada por uma ênfase da racionalidade instrumental (Cançado; Villela; Sausen, 2016).
O desenvolvimento e a gestão tecnológica baseados em tais valores têm produzido avanços tecnológicos que engendram a ampliação e aceleração das desigualdades na sociedade (Autor, 2014; Piketty; Saez, 2014). Tais desigualdades ocorrem tanto no acesso às soluções tecnológicas e usufruto de seus impactos positivos, quanto na incidência de seus impactos negativos. Exemplo desses efeitos são discutidos na literatura de justiça ambiental ao evidenciar que os riscos ambientais negativos, como aqueles associados aos desastres e à poluição ambiental, são desproporcionalmente incidentes sobre a população mais pobre e socialmente vulnerabilizada (Habermann; Gouveia, 2008; Souza Porto; Souza Porto, 2015).
Por isso, há necessidade de avanços na discussão de uma gestão tecnológica contra-hegemônica e propositiva, com enfoque para o desenvolvimento de soluções tecnológicas sustentáveis e democratizantes. Essa modalidade de gestão tecnológica é necessária para organizações de perfil não hegemônico, como são as organizações de base territorial dos povos tradicionais e originários brasileiros, como extrativistas, ribeirinhos e indígenas, além de empreendimentos solidários e outros arranjos interorganizacionais (França Filho, 2008). Tais organizações demandam soluções tecnológicas diversas, por exemplo, para viabilizar a geração de renda baseada na sociobioeconomia, realizar a gestão sustentável de recursos naturais e enfrentar as mudanças climáticas.
Nesse artigo, buscamos contribuir com a discussão ao propor uma concepção de gestão tecnológica social. Partimos da compreensão de gestão social enquanto uma modalidade gerencial dialógica, baseada nos princípios da participação, da cidadania deliberativa e da busca pela emancipação humana (Tenório, 1998; 2005; Cançado; Tenório; Pereira, 2022). Nesse sentido, a gestão social corresponde à dimensão gerencial em organizações, que se articula com diferentes funções, como: processos decisórios e de planejamento, gestão de pessoas e cultura organizacional, aprendizagem, conhecimento e tecnologia (Carrion; Calou, 2008). Especificamente, aplicaremos os princípios da gestão social em uma função particular da gestão, no caso, a gestão tecnológica.
Para tanto, mobilizamos a concepção de tecnologia social para aportar atributos específicos do campo da tecnologia, a partir de uma abordagem sociotécnica (Dagnino; Brandão; Novaes, 2010). O campo da tecnologia social propõe um processo de desenvolvimento tecnológico contra-hegemônico, com enfoque democratizante para a emancipação de trabalhadores e de grupos sociais vulnerabilizados (Dagnino, 2014). Portanto, gestão social e tecnologia social são ambas proposições contra-hegemônicas, orientadas para a emancipação gestionária e tecnológica, respectivamente, por isso, são consideradas potencialmente convergentes para a interlocução na concepção de gestão tecnológica social.
O conceito e quadro analítico de gestão tecnológica social propostos neste artigo serão aplicados para validação inicial em um caso de gestão tecnológica comunitária no contexto do Programa Cisternas na Amazônia. O caso aborda a implantação e gestão tecnológica de sistemas comunitários de acesso à água potável e proporcionará exemplos de práticas relacionadas às atividades previstas de gestão tecnológica social.
Após essa introdução, o artigo está organizado em três seções subsequentes. A próxima seção corresponde à proposição do conceito de gestão tecnológica social e seu quadro analítico a partir da revisão de literatura sobre gestão social e tecnologia social. Em seguida, o caso de gestão tecnológica de sistemas comunitários de acesso à água é analisado frente ao quadro analítico. Por fim, são discutidas as contribuições da pesquisa na conclusão.
GESTÃO TECNOLÓGICA SOCIAL: PROPOSIÇÃO CONCEITUAL
Os campos da gestão social e da tecnologia social são construídos de forma interdisciplinar com forte entrelaçamento das dimensões praxiológica e epistemológica (Fischer et al., 2006; Dagnino, 2014). Embora em ambos os campos se reconheça uma produção conceitual polissêmica (Boullosa; Schommer, 2009; Martins et al., 2019), neste artigo partiremos do imbricamento de algumas características em comum dos campos quais sejam: o vínculo às perspectivas epistemológicas críticas, a construção do conhecimento em conjunto com organizações e movimentos sociais, e o interesse pela emancipação humana (Tenório, 1998; 2005; Dagnino, 2014).
Neste artigo, pretendemos construir uma proposta conceitual que abarque um processo gerencial tecnológico para organizações comunitárias e solidárias. Para tanto, faremos primeiro uma revisão da literatura de cada abordagem (gestão social e tecnologia social), com seus atributos principais, contemplando publicações seminais e outras relevantes da trajetória de desenvolvimento de cada abordagem. A partir dessa revisão, proporemos um quadro analítico para gestão tecnológica social e seu conceito.
Gestão social
O termo “gestão social” foi usado anteriormente em diferentes contextos e sentidos conceituais, como de democracia proletária de caráter local ou de gestão de políticas sociais e organizações da sociedade civil (Tenório, 2005; Cançado; Tenório; Pereira, 2022). Neste artigo, nosso enfoque é a construção teórico-conceitual de gestão social que emergiu no contexto brasileiro, a partir da década de 1990 (Tenório, 1998). Adotamos a concepção de gestão social estabelecida enquanto uma ação gerencial dialógica, cujos processos deliberativos são exercidos por meio da participação dos diferentes sujeitos sociais afetados (Tenório, 1998; Cançado; Tenório; Pereira, 2022).
Tenório (1998; 2005) propõe a gestão social como uma abordagem de gestão em que a autoridade decisória é compartilhada entre os participantes da ação. Nesta abordagem de tomada de decisão coletiva ressaltam-se os princípios de participação, dialogicidade e solidariedade, enquanto norteadores do processo deliberativo, tendo a emancipação humana como fim (Tenório; 1998; 2005; Cançado; Tenório; Pereira, 2022).
Embora a gestão social possa receber críticas, inclusive quanto a sua perspectiva idealista frente ao contexto fático brasileiro (Pinho, Santos, 2015), concordamos com Cançado, Tenório e Pereira (2022) quanto ao seu potencial de geração de aprendizados a partir da práxis. Portanto, o exercício dos princípios da gestão social busca constituir um processo gerencial amparado na tomada de decisão coletiva e dialogada (deliberativo), com o objetivo de atender às necessidades de uma sociedade, território ou sistema social específico (Tenório, 2005; Cançado; Tenório; Pereira, 2022).
Para melhor compreensão analítica do conceito, iremos apresentar quatro princípios norteadores que se entrelaçam na discussão de gestão social: participação, solidariedade, dialogicidade e deliberação. A participação é base para o caráter essencialmente intersubjetivo e processual do conceito de gestão social (Tenório, 1998, 2005). A participação se dá pela inclusão e engajamento de pessoas em processos de reinvindicação, entendimento, proposição ou decisão coletiva, de modo que estas pessoas possam interferir de alguma forma neles (Tenório, 2005). Tal participação pode ocorrer em nível micro (grupos familiares, por exemplo), meso (grupos comunitários, associações ou outras organizações locais e territoriais) e macro (participação social e política em processos mais amplos regionais e nacionais), com potencial de aprendizado de práticas participativas entre tais níveis (Tenório, 2005). Tenório (1998) ainda destaca o trabalho como elemento de participação relevante no processo de tomada de decisão no sistema-organização ou sistema-comunidade.
A participação consciente e não impositiva torna possível que as pessoas se sensibilizem, aprendam e se engajem em processos gerenciais deliberativos (Tenório, 2005). Enquanto um procedimento deliberativo de tomada de decisão, Tenório (1998; 2005) se refere a uma ação gerencial voltada para o entendimento e a busca de um consenso alcançado argumentativamente, por meio democrático, sem coerção. Para tanto, dois conceitos devem ser norteadores desse processo: solidariedade e dialogicidade.
A solidariedade atua como uma força sociointegradora pela qual as pessoas se comprometem umas com as outras (Tenorio, 2005). França Filho (2013) também discute níveis diferentes de solidariedade nas atividades sociais, associando as solidariedades ordinárias (praticadas no cotidiano dos grupos primários, como famílias) com outras formas de solidariedade mais amplas e complexas, baseadas na noção de prover meios para atendimento das necessidades dos grupos sociais e em práticas de reciprocidade. No contexto brasileiro, o autor cita a prática de “mutirão” (sistema de auto-organização popular ou comunitário para concretização de atividades ou projetos) como recurso ilustrativo de solidariedade incorporado em ações públicas.
A dialogicidade é o processo de busca de entendimento entre as pessoas por meio da argumentação e da racionalidade substantiva, em vez da negociação a partir de uma racionalidade utilitária ou instrumental (Cançado; Tenório; Pereira, 2022; Tenório, 1998). Na gestão social, a dialogicidade permite a coordenação intersubjetiva de saberes, recursos e necessidades entre os diversos sujeitos sociais envolvidos, por meio de processos de entendimento baseados em valores democráticos e em espaços públicos de interrelações (Tenório, 2005).
Essas características do processo da gestão social são defendidas para buscar a emancipação como fim (Tenório, 1998; 2005; Cançado; Tenório; Pereira, 2022). Cançado, Tenório e Pereira (2022) ressaltam a emancipação como processo da participação efetiva em sociedade que resulta em aprendizados, crescimento e amadurecimento para os sujeitos sociais, o que possibilita a formação da consciência crítica e o exercício da cidadania plena.
Nesse sentido, França Filho (2008) propôs que, como fim, a gestão social se aproximaria da gestão pública, uma vez que ambas buscam atender às necessidades da sociedade e prover condições para o exercício da cidadania. Contudo, a gestão social preconiza um processo gerencial distinto daquele hegemônico, diferenciando-se da modalidade de gestão privada (França Filho, 2008) ou estratégica (Tenório, 1998; 2005; Cançado; Villela; Sausen, 2016), baseadas em processos decisórios monológicos de ênfase na racionalidade instrumental. Assim, a gestão social se elabora em um espaço público (estatal, societário ou na confluência entre eles), mas se caracteriza pela não redução da ação política à governamental e não redução da dimensão econômica ao mercado (França Filho, 2008).
As organizações da sociedade civil têm sido reconhecidas como um campo de prática da gestão social, bem como as redes ou interorganizações dessas com outras organizações estatais ou de empreendimentos produtivos (Tenório, 1998; Fischer et al., 2006). Tais organizações, ou interorganizações, agem no espaço público, seja local, seja em outras escalas territoriais de poder (Fischer et al., 2006). Nesse sentido, entender o contexto mais amplo em que as organizações atuam é essencial, uma vez que desafios, barreiras e potencialidades para ação gerencial social irão se relacionar com os tipos de organizações e seus contextos sociopolíticos e culturais.
A partir dos princípios e características organizacionais da gestão social selecionadas nesta revisão, propomos um quadro analítico sintético para posterior interlocução com a tecnologia social (Tabela 1).
Neste artigo, o caso a ser analisado corresponde ao de interorganizações, ou a uma rede de organizações da sociedade civil e estatais que constituem uma política pública (Programa Cisternas). Portanto, esta configuração organizacional está caracterizada no escopo da relação Sociedade-Estado (Tenório, 1998), com processos de participação social institucionalizados (Tenório, 2005), sendo considerado um lócus organizacional potencial para a gestão social.
Tecnologia social
A tecnologia faz parte do cotidiano das sociedades e afeta o exercício de poder e as desigualdades existentes (Autor, 2014; Freitas & Segatto, 2014). Portanto, reconhece-se que temas associados ao desenvolvimento, gestão e controle tecnológico requerem ação e vigilância sociopolítica na sociedade (Freitas; Segatto, 2014). Nesse sentido, também emergiram a partir de perspectivas críticas da tecnologia, abordagens tecnológicas de teor contra-hegemônico, entre elas a tecnologia social no contexto latino-americano (Dagnino, Brandão & Novaes, 2010; Thomas, Juarez & Picabea, 2015).
A abordagem da Tecnologia Social (TS) se estabeleceu a partir da década de 2000 no Brasil e, posteriormente, se desenvolveu na América Latina, com esforços para constituir uma proposta tecnológica para superar condições de exclusão socioprodutiva, caracterizados por déficits em moradia, alimentação, educação e acesso a bens e serviços (Dias, 2012; Thomas, 2009). Apesar da pluralidade conceitual relacionada à TS, nesta pesquisa iremos adotar os elementos básicos de TS associados à perspectiva crítica, em que a TS corresponde a um processo de desenvolvimento tecnológico contra-hegemônico, realizado pela interação com os grupos sociais a serem atendidos, que atuam como coprodutores das soluções, e exercem influência quanto aos seus valores, interesses e condições contextuais (Dagnino; Brandão & Novaes, 2010; Thomas, 2009).
Esse conceito ampara-se na abordagem sociotécnica, em que não se reconhece a possibilidade de neutralidade de valores no desenvolvimento tecnológico e de determinismo tecnológico sobre a sociedade (Bijker, 1995). O processo de desenvolvimento tecnológico é uma construção sociotécnica, influenciada pelos valores, conhecimentos e interesses dos grupos sociais envolvidos (Bijker, 1995). Por isso, é essencial para a TS a participação, com poder decisório, dos grupos sociais que se almeja atender no processo tecnológico, de modo que as soluções sejam geradas a partir de um processo coletivo de aprendizado, apropriação e geração de conhecimentos (Dagnino; Brandão & Novaes, 2010).
Assim, tal interação dos grupos sociais no processo de desenvolvimento tecnológico tem uma dupla finalidade: (1) possibilitar a incidência dos valores, necessidades e recursos desses grupos coprodutores sobre as soluções tecnológicas geradas; e (2) constituir-se em uma ação pedagógica de geração de aprendizados e apropriação dos conhecimentos sobre tal solução tecnológica pelos grupos coprodutores (ITS, 2007). Por isso, a mobilização e integração desses grupos é componente fundante para o desenvolvimento tecnológico de natureza democratizante, que gere autonomia para as comunidades.
Diante desta dinâmica interativa, o desenvolvimento de TS é comumente operacionalizado a partir da interação de diferentes atores sociais, como organizações da sociedade civil, movimentos sociais e cooperativas populares em parcerias com organizações de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e organizações estatais (Thomas, 2009). O perfil das organizações apresenta clara aproximação com as organizações predominantes na gestão social, incluindo seus escopos interorganizacionais. Dada a diversidade contextual e das necessidades para o desenvolvimento tecnológico, é relevante considerar as especificidades de cada enfoque organizacional.
Uma das razões para a formação de interorganizações ou redes de parcerias no desenvolvimento de TS corresponde à necessidade de complementariedade de funções (Fonseca & Serafim, 2009). As organizações estatais, em geral, atuam no fomento, seja por meio de financiamento, seja por regulamentação e/ou provisão de infraestrutura. As organizações de P&D, ou comunidade de pesquisa, que abrange universidades e institutos de pesquisa, atuam no aporte de conhecimentos e capacidades tecnológicas. E, as organizações da sociedade civil, movimentos sociais e empreendimentos solidários podem assumir diferentes papéis (executoras, gestoras, financiadoras, intermediárias etc.), ressaltando-se que, geralmente, entre essas estão as executoras e destinatárias do desenvolvimento tecnológico.
Especificamente quanto ao fomento de TS, um dos mecanismos-chave seria incorporar a lógica da TS em políticas públicas (Fonseca & Serafim, 2009; Dagnino & Bagattolli, 2009). Por um lado, fomentar TS por meio de políticas públicas se justifica em virtude de que, em geral, o desenvolvimento de TS relaciona-se à resolução de problemas sociais, como, por exemplo, o acesso a água, tratamento de esgoto e resíduos sólidos em contextos em que os serviços públicos convencionais (e.g. sistemas de saneamento centralizados) não atendem parte da população. Por outro lado, na política meio de C&T, o financiamento estatal para desenvolvimento de TS tem um potencial democratizante na agenda de C&T, visto que essa tende a privilegiar o fomento aos processos inovativos com foco na competitividade industrial e empresarial (Fonseca & Serafim, 2009; Dagnino & Bagattolli, 2009).
É importante frisar que, no âmbito da política de C&T, ou do que Dagnino (2018) chama da política cognitiva, o fomento não envolve somente o financiamento direto de desenvolvimento tecnológico, mas diversas outras atividades de ensino-aprendizado para os grupos sociais foco da TS. O compartilhamento de saberes e a geração de aprendizagem tecnológica e capacidades (ITS, 2007) são essenciais para a autonomia de uso, manutenção e incremento das soluções de TS pelos grupos sociais e comunidades. A geração de capacidades tecnológicas reduz a dependência tecnológica em relação às soluções do mercado. Contudo, esse processo perpassa pela valorização do saber local e articulação desse com o conhecimento científico, haja vista que esse diálogo é necessário para a inclusão dos atores sociais na coprodução tecnológica (ITS, 2007).
Embora ainda pouco explorado na literatura de TS, os processos de operação e manutenção das soluções tecnológicas, e suas melhorias incrementais, são componentes necessários para abordar um processo completo de gestão tecnológica com fins emancipatórios (ou de autogestão tecnológica). Bookchin (2004) ressaltou a importância das comunidades não somente utilizarem as tecnologias, mas também terem capacidades para as adaptarem ou desenvolverem novas tecnologias, de acordo com suas necessidades. Para o autor, as tecnologias deveriam atuar como instrumentos de capacitação e empoderamento das comunidades, permitindo que elas exerçam um papel ativo na construção de conhecimento e identidades coletivas (Bookchin, 2004).
Aspecto importante sobre a autonomia e gestão tecnológica abordado por Montezuma (2022) é que a autogestão de soluções tecnológicas envolve a construção de identidades e relações dentro do território. Assim, a gestão tecnológica não se reduz a aspectos técnicos, mas também é uma expressão e reivindicação de autonomia cultural e territorial (Bookchin, 2004; Montezuma, 2022). Portanto, a gestão tecnológica de processos produtivos, de trabalho ou comunitários relaciona-se com aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais, e revela toda a complexidade sociotécnica que carrega.
Diante dessa complexidade sociotécnica, o processo de disseminação e reaplicação tecnológica no campo de TS também requer atenção. A reaplicação refere-se ao processo de adequação de uma experiência de TS originalmente desenvolvida de um contexto sociotécnico para outro (Dagnino; Brandão & Novaes, 2010). Frisa-se a diferença entre a simples replicação tecnológica (e.g. reprodução centralizada em massa) e um processo de reaplicação. Na reaplicação, a solução tecnológica preexistente será adaptada às condições, necessidades e valores em outro contexto, cujos atores deverão atuar como coprodutores da solução tecnológica em implementação (Dagnino; Brandão & Novaes, 2010).
Esse processo de reaplicação implica uma diferenciação da abordagem sobre disseminação tecnológica da literatura de inovação tecnológica hegemônica, com foco empresarial, que é centrada em temas como propriedade industrial, transferência tecnológica e adoção. A propriedade industrial enquanto mecanismo de apropriabilidade empresarial perde sentido no bojo da TS, que defende um conhecimento tecnológico público e democratizante. Os termos “transferência” e “adoção” também são conceitualmente preteridos, uma vez que a solução tecnológica é desenvolvida em conjunto com os usuários, que, portanto, também são coprodutores. Por isso, não se considera haver uma “transferência” ou “adoção” de uma solução preexistente, mas processos de aprendizados conjuntos e reaplicações que geram soluções novas ou adaptadas coproduzidas (Dagnino; Brandão & Novaes, 2010).
Tais diferenciações exemplificam as especificidades do campo de TS e a necessidade de discussões sobre uma gestão tecnológica a partir de interesses e valores contra-hegemônicos (Dagnino, 2014). A revisão de literatura realizada nesta seção buscou identificar temas principais discutidos na tecnologia social, com o cotejo de temas básicos associados à gestão tecnológica (capacidades, uso, manutenção, incrementos). Desse modo, compõe-se um ciclo de atividades associadas à tecnologia social (Figura 1), que, na próxima seção, será articulada com o processo de gestão.
Convergências entre gestão social e tecnologia social: gestão tecnológica social
Revisadas as abordagens de gestão social e tecnologia social, identificamos diversos elementos convergentes. Ambas as abordagens, enquanto finalidade a emancipação humana, têm como foco organizações não hegemônicas da sociedade civil ou baseadas em práticas associativistas. Tais convergências implicam princípios similares como participação e processos democráticos a partir da troca de saberes (mais enfatizada na tecnologia social) e da dialogicidade (mais enfatizada na gestão social).
Embora as convergências existam, consideramos que o campo de tecnologia social tem se concentrado mais no desenvolvimento tecnológico em si, sem enfocar o processo mais abrangente organizacionalmente da gestão tecnológica. Neste artigo, propomos um enfoque diferente, que não esteja direcionado ao desenvolvimento tecnológico em si, mas orientado para a organização que o realiza e em sua dimensão de gestão. Na Tabela 2, organizamos as atividades que compõem o ciclo de atividades baseado na tecnologia social e as características e princípios da gestão social para embasar nossa proposição de gestão tecnológica social.
A partir dessa estruturação analítica, propomos que a gestão tecnológica social corresponde ao processo gerencial dialógico sobre o fomento, o aprendizado, o desenvolvimento, a operacionalização e a disseminação de soluções tecnológicas, orientado para democratização tecnológica e emancipação humana. O quadro proposto não tem a pretensão de fixar as atividades da gestão tecnológica, mas de servir de uma referência analítica para aprimoramentos e co-construção de práxis de gestão tecnológica orientadas para organizações comunitárias, empreendimentos solidários e outras organizações da sociedade civil.
A APLICAÇÃO DA PROPOSTA DE GESTÃO TECNOLÓGICA SOCIAL EM UM CASO
O objetivo desta seção é examinar as aproximações do conceito e quadro analítico formulados de gestão tecnológica social às práticas de um caso de gestão tecnológica comunitária. O objetivo desta seção não é fazer um estudo de caso exaustivo, mas discutir de forma exploratória e ilustrativa a atribuição do quadro analítico-conceitual de gestão tecnológica social às práticas de um (possível) caso empírico de gestão tecnológica comunitária (Platt, 1992).
O caso selecionado refere-se à gestão de sistemas comunitários de acesso à água implementados pelo Programa Cisternas em comunidades no município de Santarém, no Pará. Este caso se justifica, inicialmente, em função do Programa Cisternas (Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água) ser implementado por organizações da sociedade civil mediante processos de participação social institucionalizados, e prevê a gestão comunitária dos sistemas tecnológicos implantados. Essas características associam o programa tanto a gestão social quanto a tecnologia social.
Além disso, há uma diversidade de problemas socioambientais associados ao acesso à água potável na região amazônica (contaminação de volumes de água por diversas fontes e maior diversidade social e ambiental que implica soluções tecnológicas diferenciadas), agravados pelos impactos das mudanças climáticas nos últimos anos, o que provoca a intensificação de processos de estiagem (Enap, 2024). Assim, a gestão tecnológica comunitária no caso selecionado é exercida frente a desafios socioambientais, que envolvem a organização social para implantação e gestão de sistemas comunitários de acesso a água potável em comunidades remotas.
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas, depoimentos públicos e documentos sobre o Programa Cisternas. Foram feitas duas entrevistas com responsáveis nas organizações implementadoras do caso (organização gestora e executora). Os depoimentos públicos foram coletados da gravação do Seminário Tecnologias Sociais de Acesso à Água em Áreas de Conservação Natural na Região Amazônica (Enap, 2024), com a participação de gestores públicos do Programa e organizações da sociedade civil envolvidas. Por fim, a pesquisa documental abrangeu legislações, regulamentos e documentos do Programa Cisternas e das organizações gestoras e executoras. Após as coletas, foi desenvolvida uma análise textual por meio de codificação, baseada nas categorias do quadro analítico proposto.
Contexto
O Programa Cisternas é uma política pública do Governo Federal brasileiro, alocada no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). O programa foi criado em 2003 para prover água potável para as famílias de baixa renda no semiárido nordestino, baseado na instalação de cisternas de placas de concreto armado para captar e armazenar água da chuva, utilizando o sistema de mutirão (ASA, 2024).
Ao longo de 20 anos, o Programa teve diversas reformulações e ampliações, inclusive a expansão para outras regiões do país, como a Amazônia. Marcos legais do Programa foram a Lei no 12.873/2013, que institucionalizou sua implementação por meio de parcerias estabelecidas por chamadas públicas, e os decretos de regulamentação (Decreto no 8.038/2013, posteriormente substituído pelo de no 9.606/2018).
O programa apresenta um desenho institucional diferenciado, cujo modelo de implementação é descentralizado e participativo, e abrange arranjos interorganizacionais entre Estado e Sociedade Civil. O desenho do programa, responsivo à origem de atuação com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e outros aprendizados (Santana, 2019), prevê que o MDS estabeleça parcerias com organizações estatais ou da sociedade civil para a implementação de TS. Essas organizações são denominadas entidades gestoras. As organizações gestoras lançam chamadas públicas para selecionar organizações da sociedade civil para execução das TS em cada comunidade (MDS, 2018).
O programa prevê os processos de mobilização social, capacitação e orientações sobre a construção da TS e a gestão da água no âmbito familiar e comunitário, que são considerados essenciais para o êxito do programa (Santana, 2019). Após a implantação dos sistemas de coleta e abastecimento de água, as comunidades devem promover a autogestão deles (Santana, 2019).
Caso: análise de práticas de gestão tecnológica social
O caso em análise é de um arranjo interorganizacional no âmbito do Programa Cisternas para implementação de sistemas de coleta e abastecimento de água em comunidades no município de Santarém (Pará). Dependendo da configuração das comunidades, esses sistemas podem envolver (micro)sistemas de redes de abastecimento comunitário e sistemas residenciais. O arranjo interorganizacional específico correspondeu à parceria entre o Programa Cisternas (MDS), duas organizações da sociedade civil, as organizações gestora e executora (Centro de Estudos Avançados de Promoção Social e Ambiental - CEAPS e Sociedade, Meio Ambiente, Educação, Cidadania e Direitos Humanos - SOMECDH, respectivamente), a prefeitura municipal de Santarém e comunidades a serem beneficiárias e coprodutoras.
O arranjo caracteriza-se com um escopo de interorganizações, em uma lógica de complementariedade de papéis (Fischer et al., 2006; Fonseca & Serafim, 2009). O MDS, via Programa Cisternas, atua no financiamento, regulamentação e controle. A organização gestora faz as articulações com as comunidades, com as organizações executoras e realiza as atividades administrativo-financeiras descentralizadas. A organização executora promove o processo de mobilização das comunidades específicas com as quais irá atuar e com a prefeitura municipal (responsável pelo cadastro no Cadúnico, critério de atendimento do programa). Além disso, a executora realiza os processos de capacitações e construção dos sistemas de acesso à água, previamente definidos pelo MDS e organização gestora.
O fomento do Programa Cisternas também envolve articulações interorganizacionais. Devido a restrições orçamentárias, o MDS tem buscado parcerias para financiamento, no caso da região amazônica, um dos exemplos é o Fundo Amazônia (Santana, 2019). Cabe observar que, no âmbito do Programa, os valores de financiamento são fixados previamente de acordo com o tipo de tecnologia social por meio de instrução normativa.
Outra observação sobre a composição e dinâmica do arranjo de implementação são as influências do contexto sociopolítico-cultural, por exemplo, de acordo com o território em atuação, outras organizações estatais podem ser articuladas também. Além disso, pode haver diversidade entre as próprias comunidades. Assim, a gestão tecnológica a ser implementada será afetada por esses aspectos (contexto sociopolítico e cultural).
Considerando que, às vezes, a gente está atuando numa unidade de conservação. Então, a quem se reporta, a quem dialoga, como é que se dá a questão da área onde vai ser implementada o sistema, né? Se precisa de uma anuência de algum órgão de fiscalização ou de algum órgão gestor que atue naquele território. (E1).
Tem muita diferença, tem diferença até entre comunidades do mesmo território, a gente vai procurando lidar. O processo se estabelece todo desde o início, porque como a gente vai fazendo essa construção participativa e gradual, então, logo de início, a gente já consegue identificar algumas coisas nas comunidades que a gente vai precisar trabalhar com foco mais naquilo. Geralmente, nos territórios de unidades de conservação, que se caracterizam majoritariamente por extrativistas, a organização social é uma, e quando chega nas terras indígenas, a organização social acaba sendo outra. (E1).
A participação das comunidades no processo de implementação dos sistemas de acesso à água é fundamental, por isso a previsão da participação social é um aspecto institucionalizado no programa (Tenório, 2005) que se reporta tanto aos princípios da gestão social quanto da tecnologia social. Uma das entrevistadas (E2), da organização executora, ressaltou diferentes momentos de mobilização para a implementação do Programa Cisternas: encontro territorial, diagnóstico comunitário e assembleias na comunidade, oficinas de capacitação e interações durante as obras.
O processo de diagnóstico envolve várias etapas e o atendimento a critérios normativos do Programa. Há critérios documentais e a condição das famílias estarem no Cadastro Único para Programas Sociais (Cadúnico) para serem atendidas. Também há critérios técnicos, como a condição do telhado das casas para instalação dos sistemas residenciais; contudo, esses problemas técnicos são comumente resolvidos com o apoio de vizinhos e familiares, o que pode sinalizar processos de solidariedade na comunidade.
Em geral, todos são contemplados. Porque os outros critérios é a questão do telhado de palha. E aí, a gente sempre vai com o tempo, fala o que é. Explica que eles podem mudar o telhado. Explica que eles podem fazer uma banda. Às vezes a pessoa não tem. Mas todo mundo na comunidade meio que é parente. Reúne o clube. Pede emprestado. Dez telhas, cinco telhas de um, duas telhas de uma, uma telha de outra. Consegue (E2).
Após definição das famílias a serem contempladas, inicia-se o processo de capacitação (qualificação). Há diferentes capacitações promovidas. O processo de capacitação geral comunitário envolve a explicação do programa e do processo de organização e gestão comunitária. No decorrer da implementação, outras capacitações específicas são desenvolvidas, por exemplo, de serviços de pedreiro, carpinteiro ou treinamentos técnicos de operação elétrica do microssistema, de acordo com a necessidade dos serviços (E1 e E2).
A lógica do projeto da tecnologia social é diferente. Então, a qualificação é o que vai fazer com que a comunidade entenda qual é essa lógica. A gente vai falar sobre qualidade de água, porque a água da chuva é boa... Mas, para além disso, a gente tem essa questão do entendimento do papel da própria comunidade. Então, o que a gente faz muito dentro dessas qualificações é o fortalecimento dessa comunidade. Para que eles entendam qual é a importância do papel deles e porque eles estão ali (E2).
Parte integrante da mobilização e qualificação da comunidade para iniciar a construção dos sistemas comunitários é a elaboração de um regimento em assembleia que inclui as contrapartidas da comunidade. Todo o processo de mobilização e capacitação busca estabelecer um espaço de dialogicidade entre organizações gestora, executora e membros da comunidade. Tal construção de dialogicidade é seguida do processo deliberativo comunitário de formação do regimento para aprovação de início das obras e condições acordadas.
O regimento, ele tem que ser feito em assembleia, com pelo menos um participante, um beneficiário por família. (...) O regimento é construído junto com eles, né? O regimento de uso, de dever, e após a conclusão desse regimento, é feita uma eleição para uma comissão (E1).
Nesse início, a ideia é que esse regimento atue mais sobre as questões ligadas à obra, quem vai ficar responsável pelo quê? Guarda de material (...) O barco vem com as coisas e um responsável. Quem vai descarregar isso, se não for a comunidade? Por que as obras? Eu explico isso para eles. Por que uma empresa privada não vem para cá fazer? Porque ela não vai ter lucro. (...) A participação de vocês é o ponto fundamental para que a gente consiga (E2).
A atuação conjunta da comunidade na implementação da TS proporciona que a troca de saberes, aprendizados e deliberações ocorra durante o desenvolvimento dos sistemas de acesso à água. Compreendemos que isso também estimula o sentido de solidariedade.
A gente faz o levantamento da rede junto com eles, indo de casa em casa, batendo ponto de GPS, para depois fazer o traçado da rede. Apresentamos o mapa, né? Quando eles dão o ok, a gente passa para a implementação também desse projeto de rede. Eles estão junto com a gente, participando (E1).
Um conceito discutido do processo de reaplicações de TS, que corresponde a esse caso, refere-se as adaptações. A organização executora cita algumas adaptações adotadas; contudo, elas tendem a ser incrementais, devido principalmente à fixação de preço já estabelecida na chamada pública para cada tipo de TS. Parte das adaptações relatadas são elaboradas na realização do projeto técnico de cada comunidade, outras adaptações, a executora, é implementada por padrão nas suas implementações.
É uma tecnologia social, você pode adaptar. Mas a gente informa tanto a gestora quanto para o MDS (...) Por exemplo, os banheiros não preveem um balancim. É tudo fechado no projeto... Isso aqui ficou um forno! Vamos incorporar um balancim. (...) Olha, os primeiros sistemas já têm seis anos. Estão em pleno funcionamento, sem nunca ter dado um problema de rede. Aqui a gente usa toda a nossa tubulação PBA, que é uma tubulação muito mais cara do que o tubo rígido, mas que a gente entende que é uma tubulação que é mais adequada. Então, é um custo que a gente assume, porque o próprio Ministério não obriga essa utilização. (...) Todas as nossas redes de microssistema, a gente coloca as escadas, o guarda-corpo, tudo direitinho. Porque é algo que a gente entende que é importante (E2).
Ao término da construção do(s) sistema(s) de acesso à água, as comunidades devem ser capazes de operacionalizar o sistema, fazer as manutenções e a gestão do uso da água. Para tanto, é elaborado um regimento para a gestão do microssistema comunitário, que nas experiências do caso em análise prevê uma cobrança de taxa pelo uso da água para financiar eventuais manutenções, gastos com gerador de energia e melhorias. Os valores das taxas são geralmente baixos, um valor de referência informado pela E2 em uma das comunidades é de R$ 20,00.
Ao final da construção da infraestrutura, a gente faz o que a gente chama de regimento do microssistema. A comunidade elege uma gestão, né? Então, essa gestão pode durar dois anos ou pode ser anual. (...) A comunidade se organiza para que cada morador pague uma taxa pelo uso da água. A gente, enquanto instituição parceira, tem um recurso para implementar, mas não tem recurso para dar manutenção. (E1)
Existe uma equipe da comunidade que fica treinada para algum reparo. Ah, vai puxar uma ligação nova, como é que faz? Então, sempre tem alguém que eles já apontaram, olha, essa pessoa vai ser treinada para ensinar como é que coloca colar lá, como é que puxa tubulação, ensinar como é que opera o microssistema. (E2).
Sobre a efetivamente do regimento de gestão e das melhorias, ela ressalta a experiência de uma comunidade:
Esse sistema já tem seis anos, eles estão na terceira equipe de gestão do sistema, então o regimento funciona. (...) E é comunidade, todo mundo sabe quando o outro não paga porque não quer, ou quando está passando uma dificuldade. Eles conseguem observar se é uma questão, a pessoa não quer pagar, está gastando com outra coisa ou se realmente está passando um momento difícil que a comunidade ajuda. (...) Então eles fizeram caixa, eles reformaram o outro motor de luz, já fizeram várias melhorias técnicas no sistema dele e eles me falaram que o plano deles é colocar o solar (...). Então eles estão juntando dinheiro pra fazer a compra de um sistema solar pra comunidade. Eles já estão com percentual, acho que uns 30 mil reais guardados. E aí eles já estão buscando uma parceria lá com a universidade, com a UFOPA, o pessoal já foi fazer uma visita técnica pra ver se implementa o sistema.
O Programa Cisternas atua diretamente na disseminação e reaplicação de TS. A disseminação do programa apresenta publicamente os projetos e instruções de cada TS fomentada, além de oferecer formações para organizações da sociedade civil (ENAP, 2024). Quanto aos processos de disseminação pelas organizações gestoras e executoras, elas focam mais as comunidades onde atuam, produzindo materiais didáticos, mas podem disponibilizar outros materiais:
A gente tem duas publicações atualizadas dessa parte de acesso à água, (...) e tem uma sobre a parte de acesso à energia e as metodologias de trabalho. (...) (Quando) a gente, de fato, não consegue trabalhar porque está totalmente fora da nossa área de atuação, mas que a gente faz, dá alguma contribuição do ponto de vista técnico, manda algum projeto, assim, que a gente já tem pronto e que eles podem se basear para implementar (E1)
De modo geral, é possível identificar no caso todas as atividades propostas no quadro analítico de gestão tecnológica social (mobilização; fomento; aprendizado e capacidades; desenvolvimento tecnológico; operação, manutenção e incrementos; disseminação e reaplicação), porém, com ênfases diferenciadas de práticas e de incidência dos princípios da gestão social.
No caso, há ênfase para mobilização social, aprendizados (capacitações) e participação das comunidades durante o desenvolvimento tecnológico (reaplicação) e sua preparação para a operacionalização dos sistemas. Nessas atividades, há um esforço em estabelecer ações baseadas em princípios da gestão social (participação, dialogicidade, solidariedade e deliberação). A participação da comunidade no cotidiano dessas atividades favorece a troca de saberes e a dialogicidade.
Contudo, há atividades, como a de fomento, que, pela institucionalização do programa, apresentam menor abertura para incidência das organizações da sociedade civil e das próprias comunidades, afetando inclusive as adaptações nas reaplicações. Porém, a necessidade das comunidades de manterem os sistemas reforça a relevância das atividades de fomento enquanto parte da gestão tecnológica social, incluindo as práticas de captação de recursos próprios.
Pelo caso analisado, o quadro analítico proposto da gestão tecnológica social atende ao objetivo de descentralizar à atenção somente do desenvolvimento tecnológico em si para ressaltar as interligações deste com outras atividades da gestão tecnológica. Ao detalhar pelo menos seis atividades na gestão tecnológica social, o quadro ainda permite destacar em cada uma delas análises dos princípios de gestão social, reconhecendo que as diferentes atividades poderão sofrer incidências de participação distintas, evitando assim uma visão monolítica da gestão tecnológica.
CONCLUSÃO
O enfrentamento de desafios socioambientais requer soluções sociotécnicas sustentáveis e democratizantes na Amazônia e em outras regiões. Neste artigo, defendemos a necessidade de avançar na discussão de uma gestão tecnológica contra-hegemônica, baseada nos princípios da democratização tecnológica e da emancipação humana. Para tanto, partimos da abordagem da gestão social, enquanto um processo gerencial com fins emancipatórios, e a aplicamos à função específica da gestão tecnológica, pouco explorada na literatura de gestão social. Para auxiliar na identificação de pressupostos sociotécnicos e atividades que compõem uma gestão tecnológica em organizações comunitárias ou solidárias, a gestão social foi articulada com a abordagem da tecnologia social, o que resultou no conceito e quadro analítico de gestão tecnológica social.
Embora o desenvolvimento analítico-conceitual deste artigo tenha partido da revisão da literatura, o caso examinado evidencia uma validação inicial das atividades e princípios propostos. Estudos futuros que explorem diferentes experiências de gestão tecnológica comunitária ou solidária podem aperfeiçoar a proposta. Também podem ser desenvolvidas pesquisas aprofundadas sobre atividades específicas da gestão tecnológica social (e.g. fomento), proporcionado um maior detalhamento analítico ou orientação metodológica.
Em termos de implicações conceituais, a proposta de gestão tecnológica social avança no campo da gestão social com a sua operacionalização em uma função específica da gestão, a gestão tecnológica. No campo da tecnologia social, a proposta analítico-conceitual avança para um maior diálogo deste com a área da Administração, a fim de ampliar seu escopo de estudo para outras atividades de gestão tecnológica, além do desenvolvimento tecnológico em si.
Em termos de implicações gerenciais, a proposta pode contribuir para a estruturação mais completa e adequada, do ponto de visto sociotécnico, de práticas de gestão tecnológica em comunidades e em empreendimentos solidários frente aos desafios socioambientais, incluindo processos produtivos relacionados à sociobioeconomia.
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Os/As avaliadores/as não autorizaram a divulgação de sua identidade e relatório de avaliação por pares.
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Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
DISPONIBILIDADE DE DADOS
O conjunto de dados documentais e secundários que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível publicamente, conforme as referências e fontes informadas no artigo, porém o conjunto de dados gerados por meio de entrevistas não poderá ser tornado público por não ser possível assegurar a plena desidentificação dos entrevistados, considerando que, no período da pesquisa eram credenciadas junto ao Programa Público na região Norte somente duas organizações gestoras, portanto, mesmo que excluídos os nomes dos entrevistados, o acesso ao conteúdo das entrevistas poderia permitir a identificação deles por dados contextuais (como nome de municípios, comunidades, eventos e cargos).
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Editado por
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Editores convidados:
Raoni Fernandes Azerêdo, Mário Vasconcellos Sobrinho, Ana Maria de Albuquerque Vasconcellos, Mariluce Paes de Souza, Zilma Borges de Souza
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
23 Jul 2024 -
Aceito
20 Fev 2025


