Open-access POLÍTICA DAS POLÍTICAS DE MOBILIDADE CONFLITUOSAS NO CONTEXTO DO SUL GLOBAL: UMA REVISÃO TEÓRICA

The politics of conflicting mobility policies in the Global South: A theoretical review

La política de las políticas de movilidad conflictivas en el contexto del sur global: Una revisión teórica

RESUMO

Nas últimas décadas, o paradigma da mobilidade sustentável vem dominando os estudos de transporte urbano, defendendo meios de transporte mais sustentáveis e a redução da dependência do automóvel particular. Nesse paradigma, uma parte da literatura abordou a complexidade para aceitação pública de políticas restritivas ao automóvel, buscando maneiras de vencer a resistências. Contudo, poucos lidaram com o aspecto político da questão, reconhecendo possíveis oposições geradas por conta dos conflitos distributivos pelo espaço público e pelos benefícios gerados por essas políticas. Esse gap é mais evidente no Sul Global, onde vale verificar o caso da expansão de políticas pouco ousadas, mas ainda com grande resistência, como faixas de ônibus e ciclofaixas, implementadas em larga escala em São Paulo recentemente. Este artigo revisa a literatura da política das políticas de mobilidade conflituosas, trazendo uma lente teórica inovadora para analisar casos como o paulistano, considerando o conflito distributivo como principal dimensão de análise.

Palavras-chave:
mobilidade sustentável; Sul Global; mobilidade urbana; mobilidade conflituosa; políticas conflituosas

ABSTRACT

In recent decades, the paradigm of sustainable mobility has dominated urban transport studies, advocating for more sustainable forms of transportation and reduced reliance on cars. Within this framework, part of the literature has addressed the challenges regarding the popularity of car-restrictive policies, seeking ways to overcome resistance. However, only a few studies have explored the political dimension, recognizing potential opposition arising from distributive conflicts over public space and the benefits generated by such policies. This research gap is even more pronounced in the Global South, where examining the expansion of less ambitious but still contentious policies - for instance, bus and bike lanes widely implemented in cities such as São Paulo - is crucial. This article reviews the literature on the politics of contentious mobility policies, offering an innovative theoretical lens to analyze cases like São Paulo, with distributive conflict as the main analytical dimension.

Keywords:
sustainable mobility; Global South; urban mobility; contentious mobility; contentious politics

RESUMEN

En las últimas décadas, el paradigma de la movilidad sostenible ha dominado los estudios de transporte urbano, promoviendo modos de transporte más sostenibles y la reducción de la dependencia del automóvil particular. Dentro de este marco, parte de la literatura ha abordado los desafíos de aceptación pública de políticas restrictivas al uso del automóvil, buscando superar las resistencias. Sin embargo, pocos estudios han explorado la dimensión política, reconociendo posibles oposiciones derivadas de los conflictos distributivos sobre el espacio público y los beneficios generados por estas políticas. Esta brecha es aún más evidente en el sur global, donde resulta clave analizar la expansión de políticas menos ambiciosas, pero igualmente controvertidas, como carriles exclusivos para autobuses y ciclovías, implementadas ampliamente en São Paulo en los últimos años. Este artículo revisa la literatura sobre la política de las políticas de movilidad conflictivas, proponiendo una perspectiva teórica innovadora que considera el conflicto distributivo como dimensión central de análisis.

Palabras clave:
movilidad sostenible; sur global; movilidad urbana; movilidad conflictivas; política conflictivas

INTRODUÇÃO

Muito conhecimento foi gerado nas últimas décadas sobre os problemas de mobilidade urbana enfrentados pelas grandes cidades, incluindo importantes mudanças de paradigma sobre as soluções para esses problemas (Banister, 2008). Historicamente, menos atenção foi dada às condições políticas em que esses problemas públicos e suas potenciais soluções estão conformados, ainda que essa questão venha ganhando relevância para a compreensão sobre a dificuldade da implementação de políticas de mobilidade urbana sustentável (Kębłowski & Bassens, 2018; Marsden & Reardon, 2017; Vasconcellos, 2001).

Na última década, porém, a natureza conflitiva das discussões sobre o planejamento da mobilidade urbana tem ganhado espaço na literatura (e.g. Hansla et al., 2017; Hårsman & Quigley, 2010; Leite et al., 2018). Nesse cenário, uma parte relevante das discussões postas refere-se ao conflito político local relacionado às políticas propostas pelo paradigma da mobilidade sustentável, que defende medidas de incentivo aos transportes coletivo e ativo, em oposição à manutenção do espaço do automóvel particular, reforçada pela chamada cultura do automóvel (Urry, 2006).

Dessa forma, diversas soluções foram pensadas para restringir o espaço do carro, como é o caso do congestion charge em cidades como Londres e Estocolmo. No contexto brasileiro, onde a busca pela restrição do automóvel é ainda mais tímida do que nos contextos europeus destacados, o conflito surge a partir de políticas que envolvem níveis menores de redução do espaço do automóvel, como faixas de ônibus e ciclofaixas, o que tem gerado também reflexões sobre os fenômenos sociais que levam a essa resistência (Leite et al., 2018).

Nesse sentido, para a realidade do sul global, o caso de São Paulo pode ser considerado emblemático dessa disputa pelas políticas de mobilidade urbana, onde conflitos expressivos vêm acontecendo por conta da implementação de faixas de ônibus e ciclofaixas, fenômeno intenso durante a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT). Tais políticas geraram conflitos políticos, enfrentaram a resistência de diversos atores, principalmente a imprensa (Leite et al., 2018), e são até hoje apontadas como parte de seu fracasso eleitoral na busca da reeleição (Rodrigues, 2018), mesmo que existam poucas evidências disponíveis sobre o tema.

Em geral, a abordagem da literatura internacional tem tratado esses desafios como questões de “aceitabilidade” de políticas do gênero pelos usuários de automóvel, que precisariam ser influenciados a mudar de comportamento para que políticas sustentáveis fossem implementadas de fato (Banister, 2005, 2008). Entretanto, parte relevante da literatura que tem se dedicado a essa questão acaba não incorporando, para além dos aspectos comportamentais dos usuários de carro, os aspectos político e distributivo da questão.

A dimensão política, porém, é essencial para uma melhor compreensão do fenômeno estudado, dado que as políticas de transporte não são neutras e sim, conflituosas (Kębłowski & Bassens, 2018), principalmente quando se considera que o espaço viário é limitado com relação ao seu uso intensivo por usuários de diversos modos de transporte (Guzman et al., 2021). Dessa forma, é imprescindível considerar que políticas que envolvem alguma restrição ao automóvel particular geram inevitavelmente ganhadores e perdedores e que isso precisa ser compreendido para jogar luz sobre os equilíbrios políticos que geram a manutenção do status quo.

Este artigo faz uma revisão de literatura sobre o tema e, a partir dessa revisão, propõe uma nova lente teórica sobre os conflitos políticos gerados por políticas como faixas de ônibus e ciclovias para o caso de uma cidade do Sul Global como São Paulo. Dessa forma, espera-se que essa lente de análise permita novas reflexões sobre como se dão os conflitos políticos pelo espaço viário urbano e como isso reflete na disputa eleitoral e na implementação dessas infraestruturas no território.

O PARADIGMA DA MOBILIDADE SUSTENTÁVEL

Nas últimas décadas, a literatura dos estudos em transportes urbanos sofreu uma alteração de paradigma significativa em direção ao modelo de mobilidade sustentável (Banister, 2008). Essa transformação, apesar de não romper totalmente com a tradição anterior da pesquisa sobre transportes urbanos (definida por Kębłowski & Bassens, 2018, como tradição neoclássica), ampliou a abrangência das análises feitas sobre os problemas do campo.

Antes bastante focadas em variáveis como eficiência econômica e capacidade de transportes, o novo paradigma trouxe as dimensões sociais, ambientais e urbanísticas para as discussões sobre o tema (Kębłowski & Bassens, 2018) e possibilitou o questionamento de estruturas sociais importantes como o predomínio do uso do automóvel particular nas dinâmicas de transporte urbano. Com a mudança de foco e o surgimento de novas visões sobre as cidades, essa abordagem trouxe recomendações de mudanças na direção da sustentabilidade tanto para as análises de transportes na literatura quanto nos processos de planejamento de transportes, e abriu espaço para discussões mais complexas nos campos das Ciências Sociais.

Dentro desse contexto, o tema da restrição ao automóvel é uma ruptura importante dessa literatura com as abordagens da tradição anterior (Kębłowski & Bassens, 2018). Primeiro, esse paradigma rejeita a possibilidade de se resolver o problema do congestionamento por meio de mais infraestruturas para o automóvel (Banister, 2005). Mas, ainda mais interessante, questiona o papel do automóvel nas cidades enquanto simples meio de locomoção utilizado de modo racional por indivíduos que minimizam custos, e propõe que os carros sejam analisados como ícone global, parte de uma cultura definidora da vida nas cidades (Banister, 2005), trazendo um elemento social a um debate antes pautado apenas em elementos técnicos. Essa é uma ideia baseada em trabalhos da sociologia que encontram o uso do carro particular ligado às práticas de “autonomia” e “flexibilidade”, conforme proposto por Urry (2006).

Assim, autores como Banister (2005) propõem, baseados nessa literatura, que a dominação dos automóveis nas cidades é o maior problema a ser combatido pelas políticas públicas para alcançar os objetivos da mobilidade sustentável. Principalmente, o maior desafio estaria no fato de que essa dominação se dá por uma “irracionalidade” do uso dos automóveis, que complicam a viabilidade de políticas que alterem esse status quo.

Essa mudança de perspectiva influencia significativamente as propostas de políticas de transporte que a literatura e as diversas entidades que influenciam o debate público propõem, focando políticas vistas como adequadas para superar a centralidade dos automóveis nas cidades. Isso se dá de maneira bastante normativa, ecoando fortemente entre os tomadores de decisão política, entidades da sociedade civil e especialistas, conforme apontado por Kębłowski e Bassens (2018).

Assim, o principal foco das políticas recomendadas é a redução de viagens por automóvel, principalmente por meio da priorização dos modos de transporte ativos e coletivos em detrimento do individual (Banister, 2008). Seguindo a ideia de buscar soluções com menores impactos econômicos, sociais e ambientais, políticas públicas regulatórias de infraestruturas já disponíveis ganharam espaço, especificamente, as políticas de redistribuição do espaço viário, indicando a necessidade de destinação de vias exclusivas para o transporte coletivo e ativo como regra no desenho viário (Gössling et al., 2016; McCann, 2013).

Com relação ao transporte por ônibus, surgiram soluções estruturantes para o problema do congestionamento enfrentado por esses sistemas, como os Bus Rapid Transit (BRTs). Além disso, foram também propostas soluções baseadas na criação das faixas de ônibus, políticas significativamente mais baratas que não segregam totalmente os ônibus do tráfego convencional. Essas soluções buscaram atrair mais usuários para o sistema por meio da redução do tempo de viagem.

Já com relação à bicicleta, a criação de ciclovias e ciclofaixas vem sendo apontada como fundamental para atrair mais usuários para o transporte ativo (Mullen et al., 2014). Nesse caso, diferentemente das faixas de ônibus, a principal dimensão que a implementação de infraestrutura para bicicletas influencia é o aumento da segurança que proporciona aos ciclistas, o que é demonstrado em boa parte dos trabalhos sobre o tema (Lusk et al., 2011; Thomas & Derobertis, 2013).

Dessa forma, o paradigma da mobilidade sustentável, em contraposição à abordagem neoclássica centrada na infraestrutura da mobilidade, traz outro foco e outras dimensões para as análises dos problemas desse campo. Nesse cenário, essa literatura estabelece uma nova tradição normativa que propõe políticas públicas que condizem com seu arcabouço teórico, fortemente ancorado na restrição do uso do automóvel e no incentivo aos transportes coletivo e ativo. Entre a discussão de novas políticas nesse contexto, localizam-se as ações de redistribuição do espaço viário de maneira entendida como mais justa, o que inclui as políticas de faixas de ônibus e ciclovias analisadas por este artigo.

ABORDAGENS POLÍTICAS PARA POLÍTICAS CONFLITUOSAS

A principal transformação trazida pela literatura do paradigma da mobilidade de transportes foi o aspecto político que afeta as causas e as consequências das políticas de transporte. Isso se deu, primeiro, porque essa literatura se debruça sobre aspectos sociais e ambientais, e questiona fortemente a dominância do automóvel nas políticas públicas, o que faz questões distributivas serem facilmente levantadas (e.g Levinson, 2010). Um segundo aspecto é que, a partir da defesa enfática de políticas de desestímulo ao uso do automóvel particular, inclusive com reflexões que questionam a racionalidade dos indivíduos sobre esse tema (Banister, 2005), fica claro para esses autores que seria necessário discutir como viabilizar politicamente alternativas ao modelo rodoviarista, dada a consciência que eles têm sobre os processos de naturalização do automóvel nas sociedades analisadas (Banister, 2005, 2008; Urry, 2006).

A principal forma encontrada por essa literatura para abordar essa questão é a do conceito de “aceitabilidade”, termo bastante utilizado para tratar das atitudes da população em relação às políticas públicas de transporte urbano. Aqui, o conceito é utilizado da forma proposta por Schade e Schlag (2000), que definem que parte do público-alvo das políticas as avalia, positiva ou negativamente, de maneira prospectiva e retrospectiva. Em Banister (2005), por exemplo, o conceito é utilizado para propor a tese de que, no caso de baixa aceitabilidade de uma política de mobilidade por parte da população, grandes barreiras podem surgir para sua implementação.

O mesmo autor vincula o conceito à aceitação política das medidas (que pode ser entendido enquanto aceitação dos atores políticos), indicando que apenas com ampla aceitação por parte da sociedade seria possível incentivar esses atores a saírem do status quo e gerarem as políticas necessárias para alcançar a mobilidade sustentável (Banister, 2008). Portanto, a ausência das políticas de mobilidade sustentável nas cidades, mesmo em presença de consensos entre especialistas e até mesmo tomadores de decisão, seria justificada por essa baixa aceitabilidade da população e por comportamentos vinculados ao apego à cultura do automóvel.

É importante notar que os trabalhos com essa abordagem diante das políticas analisadas costumam tratar especificamente da cobrança pelo uso do viário (políticas de congestion charge), tema que ganhou ainda mais relevância após o surgimento de políticas do tipo implementadas na prática no contexto europeu. Assim, surgiram trabalhos de autores que se focaram em fazer avaliações de aceitabilidade após a política ser implementada (ainda que em modelo piloto, Hansla et al., 2017; Jagers et al., 2017; Schuitema et al., 2010).

Os principais trabalhos nesse campo aproveitam-se dos períodos de experiência de Estocolmo e Gotemburgo (Hansla et al., 2017; Jagers et al., 2017; Schuitema et al., 2010) e, assim, aplicam questionários em dois momentos no tempo (antes e depois do experimento) para avaliar a aceitabilidade da política. Entretanto, os resultados mais robustos desse grupo de trabalhos sobre as experiências de congestion charge suecas discutidas em referendos são encontrados em Hårsman e Quigley (2010). Nesse trabalho, ao contrário dos outros estudos citados, os autores utilizam dados eleitorais do referendo de Estocolmo, e não apenas dados declarados em questionários.

Nesse caso, os autores conseguem chegar a conclusões bastante interessantes cruzando os resultados eleitorais de cada região com variáveis geográficas e de transportes, como tempo economizado e o custo gerado para os usuários. Nessa análise, um padrão fica bastante evidente: quanto mais beneficiada pela política foi a região, mais votos ela deu a favor do esquema, indicando uma forte relação entre a aceitabilidade dessa política e os resultados verificados na realidade de cada eleitor.

Nessa literatura, não é possível encontrar trabalhos avaliando políticas de faixas de ônibus e ciclovias, que podem ser vistas como bem menos conflituosas do que as políticas de cobrança pelo uso do viário ou variantes equivalentes analisadas na literatura europeia. É interessante notar, inclusive, que boa parte dos trabalhos focados em encontrar aspectos que podem reduzir a resistência política das medidas de restrição ao automóvel comumente menciona um investimento ou melhoria nas alternativas de transporte, ou seja, no transporte público (Banister, 2005, 2008), o que acontece no caso das políticas das faixas de ônibus, por exemplo.

Esse paralelo de intervenções de menor porte com maiores movimentos de resistência sugere que o caso das políticas aqui analisadas para o Sul Global traz um contexto diferente com relação aos trabalhos revisados nesta seção. Esse gap na literatura reforça a importância de se considerarem também outras perspectivas teóricas para melhor abordagem da questão aqui proposta.

Dessa forma, vale ressaltar as limitações das teorias levantadas nos estudos anteriores. Primeiro, é possível notar que seu foco é bastante individualista, por vezes até se misturando com a literatura sobre os hábitos de transporte de usuários de carro (Steg & Schuitema, 2007), bastante distantes da ação política desses indivíduos. Ainda que os fenômenos sociais de aceitabilidade e preferências por políticas sejam inerentemente políticos, essa abordagem faz com que essa literatura se distancie dos aspectos políticos da discussão, como as questões distributivas.

Além disso, o foco na preferência declarada prospectiva dos usuários de automóvel auxilia pouco na compreensão de como esses usuários atuam enquanto agentes políticos. Ou seja, contribui pouco para demonstrar que o convencimento da população, de modo geral por mudanças de hábitos, é o que viabiliza politicamente as políticas de mobilidade sustentável, conforme defende Banister (2005, 2008).

Aqui, é importante se debruçar sobre a crítica feita por Kębłowski e Bassens (2018) em relação ao paradigma da mobilidade sustentável. O argumento trazido pelos autores é que os trabalhos dessa corrente, apesar de terem trazido novas e importantes perspectivas para as análises em transportes, não romperam com alguns aspectos da tradição anterior, como a confiança nas ferramentas racionais para propor políticas públicas de maneira supostamente neutra e objetiva.

Assim, ainda segundo Kębłowski e Bassens (2018), quando os autores desse paradigma identificam que certas medidas não avançam por conta de resistências políticas, propõem de maneira moral e normativa formas de convencimento para que a população mude de comportamento rumo a um futuro supostamente melhor para todos. Dessa maneira, essa abordagem ignora assimetrias nos custos sociais pagos pela população para as novas políticas e a pluralidade de valores e interesses existentes nas sociedades urbanas, fatores que precisam ser avaliados sob uma ótica política.

É claro que, em uma disciplina que aborda problemas de natureza técnica complexa como é o campo dos transportes urbanos, é compreensível que parte considerável da literatura se baseie em avaliações e proposições para problemas identificados (Marsden & Reardon, 2017). Porém, a crítica feita é pertinente, primeiro, porque identifica problemas importantes e os efeitos que o uso irrestrito do paradigma da mobilidade sustentável pode gerar politicamente, como comportamentos de repreensão moral perante decisões individuais de transporte (Green et al., 2012) e visões utópicas de um futuro com cidades melhores sem considerar os conflitos existentes nelas (e.g. Newman & Kenworthy, 2015); segundo, porque elucida a razão de a literatura focada na psicologia social e na aceitabilidade falhar em trazer a dimensão política do fenômeno, já que está, em geral, focada em entender comportamentos individuais e formas de superá-los.

Nesse contexto, a ponderação de Kębłowski e Bassens (2018) sobre os processos participativos é também oportuna: segundo os autores, esses processos são sugeridos apenas como forma de legitimar posições já tomadas, e não como forma de comportar distintos interesses. O processo de participação em Estocolmo, utilizado como referência de como vencer resistências para essas políticas, é um bom exemplo desse argumento, como se pode observar no trabalho de Hårsman e Quigley (2010). Nesse caso, a vitória no referendo por margem apertada tornou-se símbolo de uma mudança de opinião após a percepção de melhora das questões de mobilidade do centro da cidade, conforme atestaram Schuitema et al. (2010), ainda que os dados levantados por Hårsman e Quigley (2010) mostrem um cenário mais complexo.

De fato, houve grandes diferenças de votação entre distritos que foram mais beneficiados pela medida (dentro do cordão do congestion charge e que reduziram seus tempos de viagem sem custos adicionais) e distritos mais prejudicados pela medida (fora do cordão, que aumentaram seus custos). Isso mostra como, na realidade, a busca por um almejado consenso diante de uma política supostamente superior de acordo com as dimensões da mobilidade sustentável pode esconder grandes conflitos distributivos na prática.

Nesse sentido, as abordagens alternativas que se utilizam de teorias de economia política estruturais, como os principais exemplos trazidos por Kębłowski e Bassens (2018), podem ser interessantes para explicar esses fenômenos históricos, mas falham em captar os aspectos das disputas políticas da rotina das cidades. Além disso, a abordagem sociopsicológica demonstrada anteriormente, bastante pautada no individualismo metodológico, pode ter utilidade para a explicação dos processos de agência política dos cidadãos, ainda que necessite ser complexificada por dimensões distributivas.

UMA ALTERNATIVA TEÓRICA PARA AS POLÍTICAS DE MOBILIDADE CONFLITUOSAS

Este artigo propõe uma lente de análise distinta para explicar os conflitos políticos dados a partir da implementação de políticas como faixas de ônibus e ciclovias no contexto do Sul Global. Para isso, busca inspiração, primeiro, no individualismo metodológico utilizado pela literatura da aceitabilidade e, segundo, na literatura da economia política, incluindo explicitamente o conflito distributivo na análise. Isso foi feito com uma reflexão de como os indivíduos percebem a disputa por recursos na cidade em suas ações políticas, sendo inevitável pensar no uso dessa teoria para análise da avaliação eleitoral dessas medidas.

Assim, é importante delimitar o conflito distributivo quanto à sua natureza, analisando diferentes dimensões que podem aparecer para esses indivíduos a partir da implementação dessas medidas. O primeiro conflito distributivo aparente refere-se aos produtos das políticas públicas, ou seja, aos seus resultados físicos e concretos, que no caso consistem na redistribuição em si do espaço viário do transporte individual para outros modos. Essa dimensão trata de como o espaço público é avaliado enquanto recurso para usos diversos, seja vinculado a transportes ou não.

Nesse caso, deve-se considerar que a avaliação da política pelos cidadãos pode ser bastante indireta. Isso se dá já que a implementação de ciclofaixas e ciclovias, por exemplo, acaba por causar efeitos pouco previsíveis, como o aumento do uso do espaço público para outros fins (como lazer), a alteração da dinâmica de comércios locais ou até a criação de restrições a um espaço público originalmente pouco regulado. Ou seja, essas intervenções podem interagir com formas de uso do espaço público de diversas maneiras, impossíveis de delimitar em variáveis específicas.

Além dos produtos das políticas, também é importante a análise sob uma segunda dimensão do conflito distributivo, relacionada aos efeitos das políticas, ou seja, possíveis benefícios ou prejuízos causados diretamente ao deslocamento dos usuários do sistema de transportes da cidade. Nesse caso, é importante delimitar o principal efeito a esses usuários no caso da implementação de cada uma das infraestruturas analisadas.

Primeiro, no caso das ciclovias e ciclofaixas, destaca-se como principal benefício o aumento da segurança aos ciclistas e, indiretamente, aos pedestres, conforme indicou a revisão de literatura (Lusk et al., 2011; Thomas & Derobertis, 2013). De outro lado, vale notar o possível prejuízo aos usuários de automóvel, que, no caso da implementação de ciclofaixas no meio-fio, podem perder especialmente espaços para estacionamento.

É possível argumentar, entretanto, que os benefícios e prejuízos causados pelas ciclofaixas tendem a ser pequenos, primeiro, por não estarem vinculadas à redução de faixas de rolamento do transporte individual, o que reduz os prejuízos causados a usuários de automóvel; segundo, a construção de ciclovias e ciclofaixas tende a concentrar os benefícios em um número pequeno de usuários.

Já no caso das faixas de ônibus, o efeito é mais direto, uma vez que sua implementação tende a reduzir o tempo de viagem dos usuários de ônibus e aumentá-lo para os automóveis, variável diretamente relacionada aos bens gerados pelo sistema de transportes, independentemente de qual conceito de justiça distributiva seja utilizado segundo a literatura recente (Pereira et al., 2017). Dessa forma, esse aspecto possivelmente sobressai como dimensão de análise para os cidadãos sobre a qualidade da política implementada e pode ter alta relevância em suas ações políticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A principal hipótese levantada pela proposta de teoria descrita neste artigo é que ambas as dimensões identificadas para o conflito distributivo (produtos e efeitos das políticas) importam para as ações políticas desses indivíduos impactados por políticas públicas do gênero. Inevitavelmente, caso se queira testar essa visão teórica, a principal fonte de ação política observável será a disputa eleitoral, que explicita diretamente as opções dos eleitores quando avaliam as gestões por meio do voto nos atores identificados como responsáveis pelas políticas que mais impactaram seus territórios de convívio e seus benefícios ou prejuízos de transportes.

Fica claro, então, o espaço empírico existente para avaliar se a análise política no contexto da escolha individual é interessante para explicar a questão colocada. Entretanto, mesmo em caso de resposta verdadeira, isso não exclui outros fenômenos de explicação do conflito político, como teorias mais estruturais focadas em movimentos da opinião pública ou no impacto da imprensa (Leite et al., 2018). Este artigo buscou, porém, levantar essa nova lente que certamente pode ser bastante relevante para explicar conflitos do tipo, especialmente em cidades tão conflituosas politicamente como as do Sul Global.

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Editado por

  • Editor Responsável:
    Marco Antonio Carvalho Teixeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2025
  • Data do Fascículo
    2025
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