RESUMO
Neste ensaio discutimos o modo como a adoção da governança algorítmica significa uma reformulação de padrões de reforma da administração pública. Baseamos este ensaio na ideia de que o crescente uso de instrumentos digitais na administração pública significa um padrão silencioso e técnico de reengenharia sociotécnica do Estado. Discutimos, então as implicações dessa reforma administrativa silenciosa e analisamos as possibilidades e os desafios que a reengenharia sociotécnica do Estado traz para a gestão pública e os enquadramentos institucionais necessários para a constituição da instrumentação da gestão pública.
Palavras-chave:
reforma administrativa; reengenharia sociotécnica; instrumentos de ação pública; mudança social; democracia
ABSTRACT
In this essay, we discuss how the adoption of algorithmic governance means a reformulation of public administration reform patterns. We base this essay on the idea that the increasing use of digital instruments in public administration means a silent and technical pattern of sociotechnical reengineering of the State. We then discuss the implications of this silent administrative reform and analyze the possibilities and challenges that sociotechnical reengineering of the State brings to public management and the institutional frameworks necessary for the constitution of public management instruments.
Keywords
administrative reform; sociotechnical reengineering; public action instruments; social change; democracy
RESUMEN
En este ensayo discutimos cómo la adopción de la gobernanza algorítmica significa una reformulación de los estándares de reforma de la administración pública. Basamos este ensayo en la idea de que el uso creciente de instrumentos digitales en la administración pública significa un patrón silencioso y técnico de reingeniería sociotécnica del Estado. Luego discutimos las implicaciones de esta reforma administrativa silenciosa y analizamos las posibilidades y desafíos que la reingeniería sociotécnica del Estado trae a la gestión pública y los marcos institucionales necesarios para la constitución de la instrumentación de la gestión pública.
Palabras clave
reforma administrativa; reingeniería sociotécnica; instrumentos de acción pública; cambio social; democracia
INTRODUÇÃO - INSTRUMENTALIZANDO REFORMAS DE ESTADO
Vivemos em um mundo em que as mudanças sociais colocam o Estado em uma posição crítica diante da sociedade. Particularmente no Brasil, mudanças no mundo do trabalho, contextos de ampliação da violência, polarização política, novos padrões culturais, fracassos ou desmantelamento de políticas públicas, enfraquecimento de movimentos sociais e de partidos políticos lançam um movimento duplo. Por um lado, há a expansão da desconfiança da cidadania com relação à atuação do Estado e um contexto de amplas incertezas e ações ambíguas que dificultam a ação coletiva. De outro lado, um desejo de mudança movido por uma crítica fundamental ao funcionamento das instituições democráticas, as quais não têm apresentado respostas efetivas para a solução de problemas da sociedade.
Segundo dados do Latinobarómetro, a desconfiança da sociedade com os governos e o funcionamento das instituições democráticas na América Latina se aprofunda ao longo do tempo. O apoio aos regimes democráticos decai sistematicamente, sendo contrabalançado pelo apoio crescente a formas autocráticas e autoritárias. Da mesma forma, se espelha em indicadores que demonstram que a sociedade não é tão contrária ao controle do Estado sobre os meios de comunicação. Somados a diversos outros indicadores, isso levou o Latinobarómetro a declarar que estamos em uma recessão democrática, movida pela incapacidade do Estado de resolver problemas sociais na América Latina (Latinobarómetro, 2024).
Esse contexto de mudanças passa pela crítica ao funcionamento dos serviços públicos e pela efetividade das políticas públicas, demandando do Estado reformas que impliquem mudanças de práticas e da atuação governamental na sociedade. Ou seja, há uma agenda de políticas movida, na América Latina, pelo desejo de mudanças do serviço público e das políticas públicas com o pano de fundo de mudanças institucionais mais profundas no arcabouço institucional do Estado. O objetivo de qualquer reforma em contextos de mudança é promover uma transformação da organização estatal por meio de mudanças institucionais, as quais proporcionem novas atribuições de valores, normas e regras para o funcionamento da máquina pública. Essencialmente, reformas de Estado modificam os instrumentos de ação estatal na sociedade para alcançar um valor predito, normalmente associado com eficiência, eficácia ou efetividade.
Desde as transições democráticas na América Latina, diversas tentativas foram feitas nessa direção. Circunstanciando o Brasil no contexto da América Latina, diversas reformas foram proporcionadas. Primeiro, as reformas administrativas orientadas pela New Public Management, que modificaram os instrumentos da ação estatal para a realização do valor da eficiência e da eficácia, e privilegiaram mecanismos de gestão privada para a coisa pública e o avanço de marcos regulatórios em vez de ação direta do Estado (Hood, 1991). Nesta concepção, os cidadãos são vistos como clientes do serviço público, e os servidores, como gestores de um arcabouço institucional complexo.
O avanço da New Public Management significou mudanças substanciais na organização do Estado. Porém, em muitas situações, as reformas reproduziram padrões constatados em outros países que adotaram essa perspectiva. Reformas baseadas na New Public Management resultaram em agencificação do Estado, que demanda dos cidadãos que pulem de agência em agência para ter um serviço prestado, associado a um engessamento da máquina pública em função de competências e procedimentalização excessiva, criando alta carga administrativa (Herd & Moynihan, 2018) e captura das agências reguladoras por interesses privados, de forma a produzir ineficiência e desigualdades (Levi-Faur, 2013). A adoção da New Public Management em um padrão agencificado de gestão significou a fragmentação e a descoordenação da máquina administrativa.
Como resposta a esse padrão de agencificação, sucedeu à New Public Management um conjunto de reformas de governança. O conceito de governança ganhou tração com agências internacionais, decorrendo dele uma necessidade de criação de estruturas de coordenação de políticas, o alinhamento global dos mecanismos de gestão balanceado com realidades locais, a valorização da liderança política e a retomada de objetivos e ação coletiva dentro da gestão (Ostrom, 2005). A aposta na coordenação e no restabelecimento da liderança política é fundamental para um processo de gestão do serviço público baseado em colaboração e redes, ao mesmo tempo em que resgata a autoridade do Estado e novos padrões de interação com a sociedade baseados em transparência e accountability (Peters et al., 2022).
No caso do Brasil, ao longo de meados dos anos 2000 e dos anos 2010, diversos mecanismos foram acionados para fortalecer a governança. O fortalecimento da cooperação internacional, parcerias e colaborações entre o público e o privado, o acionamento de redes de políticas e o fortalecimento de lideranças políticas contribuíram para se estabelecer um padrão de governança em diversas experiências latino-americanas. Porém, estas reformas sofreram o processo de retrocesso político. Embora tenham sido feitas reformas, muitas delas foram desmanteladas em função de falhas no serviço público, da captura do Estado por interesses privados e de uma grande percepção de corrupção que ameaçaram o andamento de reformas (Bauer et al., 2021). Somados os efeitos de instabilidade democrática crescente e da pandemia de Covid-19, as reformas de governança caminharam para uma maior paralisia institucional que associa governança a controle e tecnocracia.
Nesse contexto de paralisia institucional no Brasil, produziu-se um amplo desmantelamento de políticas públicas essenciais nos campos de educação, saúde e bem-estar social, assim como foram piorando as já problemáticas situações de segurança e desigualdades sociais. Adicionando a estes clássicos problemas os tópicos de mudanças climáticas, migrações e desemprego ou subemprego e instabilidade internacional, cria-se um contexto perfeito para uma crise do Estado no Brasil. Essa crise do Estado tem feito prosperar ideias neo-weberianas para resgatar as capacidades da burocracia e proporcionar meios de desenvolvimento econômico (Gomide & Lotta, 2024; Drechsler & Fuchs, 2022). Porém, defensores de ideias neo-weberianas padecem dos mesmos problemas. Reformas neo-weberianas na organização do Estado tendem a propor velhos instrumentos para a solução de novos problemas.
O que se precisa constatar é que toda tentativa de reformas pretende modificar os instrumentos de ação pública do Estado, proporcionando um viés que tende a ser funcionalista em sua definição. Ou seja, reformadores partem da premissa de que a escolha de determinado instrumento - regulatório, organizacional, informacional ou financeiro - é técnica e que os efeitos produzidos podem ser previamente preditos na direção de uma atuação estatal mais eficiente.
Por exemplo, adotar mecanismos de gestão privada no setor público, criar mecanismos de coordenação de políticas ou retomar capacidades de investimento do Estado significa modificar os instrumentos de ação pública em uma relação entre meios e fins, como se essa escolha pudesse ser técnica e neutra, em que os efeitos sociais podem ser preditos e controlados.
No Brasil, muitos dos projetos de reformas significaram mudanças dos instrumentos de ação pública do Estado escolhida pela própria burocracia, sem se atentar aos efeitos sociais e culturais de dominação que deles advêm (Lascoumes & Le Galès, 2007). Em muitas situações, as reformas se pautaram em escolhas técnicas que modificaram os instrumentos para respostas a conjunturas econômicas e sociais específicas, sem atender aos efeitos sociais desse processo de instrumentação. Podemos entender as reformas administrativas ao longo de décadas como um processo de instrumentação da ação pública do Estado. A instrumentação da ação pública é, portanto, um meio de orientar as relações entre a sociedade política e a sociedade civil por intermediários, sendo os instrumentos concebidos como dispositivos que combinam componentes técnicos (medida, cálculo, regra de direito, procedimento) e sociais (representação, símbolo) (Lascoumes & Le Galès, 2007).
É nesse contexto que diversas reformas no Brasil falharam, porque elas foram incapazes de produzir uma instrumentação eficiente no sentido de associar os aspectos técnicos com lideranças políticas fortes. A instrumentação da administração pública e das políticas públicas deve ser pensada em função não apenas dos requisitos técnicos, mas de uma reorganização das relações entre a sociedade política e a sociedade civil que seja capaz de reenquadrar a atuação do Estado no contexto mais amplo da democracia, impedir retrocessos e possibilitar mudanças que surgem com novas tecnologias. Novas tecnologias abrem janelas de oportunidade para que se inicie um novo processo de instrumentação e, logo, de mudanças essenciais na organização do Estado e sua capacidade para alcançar objetivos coletivos. Neste mundo contemporâneo moldado por incertezas e ambiguidades políticas, inicia-se uma nova onda de reformas, movida pela governança digital. Essa nova onda de reformas, empacotada na concepção de transformação digital, é silenciosa, impelida pela técnica e com potenciais democráticos.
Este processo silencioso de reformas da máquina administrativa do Estado, reunido em uma concepção ampla de transformação digital, produz mudanças substanciais nos instrumentos de ação pública. Perceber o modo como as tecnologias digitais têm sido instrumentalizadas para alcançar os objetivos de reforma é essencial em um quadro mais amplo de esfacelamento do Estado no Brasil, e observa as oportunidades e os riscos desse processo de reforma silencioso e crescente. Embora represente uma mudança disruptiva da administração pública, a transformação digital é uma janela de oportunidade para um processo de instrumentação adequado, o qual seja capaz de reconstruir as conexões entre Estado e sociedade no Brasil.
O fundamental é que esse processo de instrumentação de serviços públicos e das políticas públicas por meio da transformação digital ocorra em um enquadramento adequado de funcionamento do regime político, da real capacidade de governos e do controle dos efeitos sociais mais amplos, os quais sejam capazes de reinventar a máquina administrativa para além de uma decisão técnica. Ou seja, a transformação digital pensada como a reinstrumentalização do serviço público deve observar os seus efeitos sociais mais amplos em termos de efetividade e legitimidade, sendo ela, então, capaz de produzir mudanças administrativas dentro de um escopo político.
Neste ensaio queremos discutir como a transformação digital significa um processo de reengenharia sociotécnica dos instrumentos estatais, que altera toda a lógica de funcionamento de políticas públicas e serviços públicos por meio do mundo digital. Na seção seguinte enquadramos o que compreendemos como reengenharia sociotécnica do Estado por via da crescente algoritmização da administração pública, tendo em vista mudanças disruptivas que emergem com a inteligência artificial, blockchain e diversas outras tecnologias digitais. Este processo de reengenharia sociotécnica converte-se no conceito de governança digital, e abrange uma concepção mais ampla em que a atuação estatal é realizada por meio de instrumentos digitais. Compreendida essa concepção de governança digital, discutimos na segunda seção deste ensaio como instrumentalizá-la de modo a entender seus elementos essenciais tais como infraestrutura e governança de dados. A governança digital requer um conjunto novo de ações por parte de gestores públicos para viabilizar esse processo de reengenharia sociotécnica do Estado. Por fim, concluímos fazendo um chamado para que este processo de reengenharia sociotécnica do Estado observe a centralidade dos valores democráticos. As mudanças em curso demandam de gestores públicos novas habilidades e competências relacionadas com o mundo digital, e devese observar que o conjunto destas mudanças exige enquadramentos técnicos, mas também políticos, com o objetivo de ressaltar as consequências desse processo para a sociedade.
REENGENHARIA SOCIOTÉCNICA E ALGORITMIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A transição do século XX para o século XXI traz vários desafios relacionados ao potencial disruptivo das tecnologias digitais para governos, empresas, organizações internacionais e sociedade civil. Essa disrupção proporcionada pelas tecnologias digitais altera várias lógicas do funcionamento da sociedade. Por exemplo, as plataformas de mídia social mudaram todo o processo de comunicação pública na sociedade, com efeitos variados. As mídias sociais alteraram as formas de socialização entre os jovens, facilitaram a disseminação do discurso de ódio e impactaram diretamente o funcionamento dos regimes democráticos.
No caso da administração pública, as tecnologias digitais emergentes são vistas como uma oportunidade para transformar toda a lógica de funcionamento administrativo. O que agora é conhecido como governança digital significa um novo paradigma de administração pública no qual o desempenho das organizações públicas é mediado por tecnologias digitais. A governança digital é uma oportunidade para produzir uma visão mais holística do serviço público, com uma visão mais integrativa baseada em um alinhamento vertical das organizações públicas associado a um alinhamento mais horizontal com a sociedade (Dunleavy & Margetts, 2024). Na governança digital, tecnologias emergentes como inteligência artificial, Internet das Coisas, blockchain e plataformas são usadas como instrumentos para a administração pública atingir os propósitos de políticas e serviços (Filgueiras & Almeida, 2021).
Os instrumentos são essenciais no processo de governança, e são eles que caracterizam o que podemos chamar de governança digital. O paradigma da governança tem grande centralidade na ideia de instrumentos. Enquanto a administração pública tradicional se baseia na proposição de agências e programas - seja no modelo burocrático seja no modelo da nova gestão pública - o paradigma da governança se baseia na instrumentação efetiva de políticas e serviços públicos, com foco particular na implementação (Salamon, 2001). Usar uma perspectiva de instrumentação contribui para resolver problemas associados à agencificação. A agencificação promove a fragmentação de serviços e políticas públicas e reforça falhas de governança. No entanto, a perspectiva da instrumentação contribui para a reintegração da estrutura de serviços e reforça as capacidades para enfrentar os vários desafios de implementação. As tecnologias digitais emergentes agora são incorporadas como instrumentos de governança, ao modificar a cadeia institucional de ação dos governos e a produção de resultados. Além disso, as ferramentas digitais criam capacidades para fornecer serviço público e política pública, potencialmente facilitando o processo de governança. Entre essas ferramentas, podemos identificar:
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Inteligência artificial (IA): conjunto de técnicas computacionais que emulam a inteligência humana para dar suporte à tomada de decisão e realização de tarefas (Russell, 2019). IA não é a automação de atividades repetitivas, mas a constituição de agentes com poder expandido de decisão. As aplicações de IA na administração pública são diversas, e produzem uma tendência de autonomia da máquina administrativa.
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Internet das Coisas (IoT): promove a conexão de instrumentos do mundo físico à Internet. A conexão de dispositivos para a coleta e compartilhamento de dados e informações sobre vários aspectos da vida é fundamental para a política pública e para o serviço público (Weber, 2013). IoT é uma rede de redes com objetos ou coisas identificáveis que capturam e compartilham dados diversos (Nord, Koohang & Paliszkewicz, 2019). A IoT pode ser aplicada em serviços financeiros, cidades inteligentes, energia inteligente, carros conectados, infraestrutura pública, e usa sensores em várias coisas para coletar e compartilhar dados.
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Plataformas: os governos estão gradualmente se transformando em plataformas (Filgueiras & Almeida, 2021). As plataformas promovem uma nova forma de comunicação e conexão entre governos e sociedade, especialmente no que diz respeito ao serviço público. Plataformas retiram os intermediários e funcionam como interfaces diretas entre o cidadão e o governo em uma lógica desburocratização e autosserviço.
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Blockchain:blockchain é uma tecnologia baseada em protocolos de transações verificados de forma descentralizada, sem intermediários. As transações realizadas com blockchain podem ser verificadas de forma confiável dentro do contexto da rede, e removem intermediários como bancos e cartórios do papel de construir confiança. Os blocos de transações são armazenados de maneira descentralizada, com protocolos operacionais bem definidos, usando funções hash para criptografar dados (Shackelford & Myers, 2018).
Esses instrumentos são aplicados para promover a governança e expandir a capacidade de entrega de serviço público e novas capacidades em política pública (Veale & Brass. 2019). Se bem aplicadas, estas tecnologias digitais representam uma oportunidade para reinventar o serviço público, pois eliminam intermediários em transações, desburocratizam procedimentos e serviços, produzem maior agilidade e capacidade de resposta para diferentes problemas. Instrumentos digitais permitem, assim, a expansão das capacidades do Estado. Ao promover a governança, instrumentos digitais possibilitam aumentar a transparência para que indivíduos possam examinar governos e seu desempenho. Instrumentos digitais também fornecem uma reintegração do serviço público em uma estrutura de plataforma, e melhoram a coordenação de políticas e serviços por meio de estruturas colaborativas (Luna-Reyes, Gil-Garcia & Cruz, 2007). Instrumentos digitais também aumentam a participação do cidadão por meio da democracia digital. Os cidadãos podem participar da tomada de decisão ou contribuir para a cocriação de serviços públicos, diretamente ou usando dados dos cidadãos (Linders, 2012).
Os governos seguem essa tendência de plataformização ao modificar as formas de transações entre usuários de serviços e estruturas burocráticas, e promover maior facilitação de acesso e redesenho de serviços. As plataformas fornecem um novo modo de comunicação entre governos e sociedade, o que envolve camadas de IA e novos parâmetros computacionais para modificar a experiência do usuário. Instrumentos de big data estimulam essa cocriação de serviços e uma maior personalização para usuários. Além disso, as plataformas governamentais devem coletar dados de seus usuários para redesenhar permanentemente os serviços para que sejam cada vez mais personalizados e baseados em uma lógica de autoatendimento (Jeffares, 2021).
A dataficação da sociedade é uma consequência dos processos massivos de coleta de dados no mundo digital. A dataficação transforma atividades diárias de ação social em dados quantificados online, o que permite vigilância em tempo real, rastreamento, análise preditiva e otimização (Mayer-Schonberger & Cukier, 2014). No caso de serviços públicos desenhados na dinâmica das plataformas, a coleta de dados do usuário é central para promover a análise preditiva e conhecer o interesse dos usuários e uma série de facilitações na prestação do serviço público, permitindo antecipação de demandas, automação, simulação e aumento das capacidades do serviço público para tomar decisões de forma mais rápida e eficiente (Jeffares, 2021).
Essas mudanças institucionais promovem uma crescente algoritmização da administração pública, e modificam os padrões de relacionamento entre o Estado e a sociedade. Algoritmos são sequências de instruções ou etapas para resolver um problema ou tarefa específica. Eles fornecem restrições e incentivos para que os atores se comportem de maneiras específicas, sendo instrumentos sociotécnicos porque organizam aspectos variados das interações sociais. Os algoritmos gradualmente ocupam um espaço institucional nas sociedades, mudam diferentes aspectos da vida social e moldam comportamentos humanos coletivos e individuais. Ou seja, contemporaneamente, a institucionalização ocorre gradativamente com os algoritmos concretizando situações de ação, scripts organizacionais, regras e normas para a interação social (Mendonça, Filgueiras & Almeida, 2023). Devido à institucionalização por meio de arquiteturas algorítmicas de sistemas cada vez mais onipresentes na sociabilidade, a reengenharia sociotécnica acontece nas dimensões política, social, econômica e social (Frischmann & Selinger, 2018).
Como novas instituições que moldam a administração pública, os algoritmos funcionam como sistemas de decisão que definem o que é permitido, impedido, facilitado ou desabilitado, bem como estabelecem posições dentro das estruturas organizacionais da sociedade. A algoritmização da administração pública significa um novo padrão sociotécnico no qual decisões essenciais são tomadas automaticamente e mediadas por máquinas (Meijer, Lorenz & Wessels, 2021). A algoritmização da administração pública, portanto, traz uma série de novos desafios para as reformas do Estado, em particular, como lidar com processos de vigilância e controle possibilitados com tecnologias emergentes, como lidar com os problemas de viés algorítmico e reprodução de injustiças sociais (Eubanks, 2018) e como introduzir novos padrões de relações de poder (Crawford, 2021).
A algoritmização da administração pública pela ampla adoção de instrumentos digitais implica a constituição de um padrão de governança digital que reinventa os problemas e os dilemas da gestão pública. Reformas do Estado conduzidas a partir da adoção de instrumentos digitais não é politicamente neutra. Ela produz efeitos sociais diversos que se revelam nos vieses algorítmicos, no modo como transformam as relações entre cidadãos e governo, como criam novos problemas, e podem representar soluções em busca de problemas. O fato é que a constituição de reformas por meio da governança digital deve considerar o processo de instrumentação pensando em seus efeitos sociais e políticos mais amplos, uma vez que modificam estruturas e o balanço de poder entre Estado e sociedade. O fato é que os instrumentos digitais podem representar uma oportunidade para mudanças substanciais no Brasil e na América Latina, considerando as falhas de governo para prestar um serviço público efetivo e implementar processos de mudança moldados em políticas públicas.
INSTRUMENTALIZANDO A GOVERNANÇA DIGITAL
A adoção de reformas movidas por uma ideia de governança digital, ou seja, em que instrumentos digitais funcionem como instrumentos de ação pública para recriar a máquina administrativa do Estado, requer um novo padrão institucional do Estado e um processo de instrumentação mais complexo. Tecnologias digitais aplicadas para fundamentar a reengenharia sociotécnica do Estado por via da governança digital não surgem do zero. Elas exigem que o Estado faça investimentos robustos e organize processos mais amplos de reconstrução de processos e adaptação ao cenário tecnológico e à sociedade.
No caso de políticas públicas, devemos partir da premissa de que à tradicional visão do ciclo de políticas - agenda, formulação, implementação e avaliação - se sobrepõe um conjunto de atividades técnicas de modelagem de dados e escolhas de arquiteturas de algoritmos. Neste cenário de governança algorítmica, o uso extensivo de inteligência artificial no ciclo de políticas implica em humanos e máquina interagindo para tomar decisão e realizar tarefas. A introdução da IA n o ciclo de políticas altera a forma como as políticas são formuladas e implementadas. O ciclo de políticas tem uma nova camada de complexidade para a análise e o trabalho com políticas. Ao longo do ciclo de políticas públicas, apoiado em processos interativos humanos, há um trabalho de modelagem de sistema de IA com base em interações entre humanos e máquinas (Janssen & Helbig, 2018). Para cada fase do ciclo de políticas públicas, a modelagem de sistemas de IA é usada para alterar a cadeia de produção de políticas. O elemento disruptivo é a IA, que cria e acelera o conhecimento sobre os elementos do ciclo de políticas, com humanos e máquinas interagindo para criar soluções, configurar e revisar a ação governamental ou prever e simular resultados e impactos. Uma nova camada de trabalho de políticas é modelar bancos de dados e sistemas de IA que produzirão otimização na tomada de decisões e execução de tarefas nas diferentes fases do ciclo de políticas, inovando todas as atividades relacionadas às capacidades analíticas e execução administrativa.
No caso de serviços públicos, por exemplo, o uso de blockchain tem o potencial de desburocratizar várias operações administrativas do Estado, criar mecanismos descentralizados e seguros de armazenamento de informações e retirar intermediários da burocracia. São diversos os usos de blockchain nos serviços públicos, como manutenção de registros (de saúde, prediais e de veículos); atestado de identidade (passaportes, carteiras de identidade, certidões de nascimento, casamento e divórcio), pagamentos e remessas (Rodima-Taylor & Grimes, 2019). Também pode ser utilizado no controle de atividades financeiras, como entrega segura e transparente de benefícios em dinheiro e tokens, contratos inteligentes, gestão da cadeia de suprimentos (rastreamento), sistemas de rastreabilidade (segurança alimentar e minerais de conflito), contratos de seguro (Muirhead & Porter, 2019). Criar uma estrutura de blockchain, no entanto, demanda do Estado um pleno controle da infraestrutura de Internet, além de controle dos dados.
Para o aprofundamento das oportunidades, as reformas de Estado que buscam a algoritmização da administração pública por via da governança algorítmica demanda novas práticas e arcabouços institucionais e políticas associados com a governança de dados, o domínio tecnológico e de infraestrutura, padrões para combinações tecnológicas (assemblages) que visam novos padrões institucionais de atuação do Estado, e processos cívicos que busquem cocriação, transparência e governança do mundo digital.
Governança de dados
Governança de dados é um conjunto de diferentes instrumentos, leis e regulamentos combinados para garantir a privacidade de dados, proteção de dados e o uso correto de uma infraestrutura de dados para dar suporte ao desenvolvimento digital. Nesse conjunto complexo, privacidade de dados se refere aos direitos e expectativas dos indivíduos de controlar como suas informações pessoais são coletadas, usadas e compartilhadas. Proteção de dados se refere a práticas para proteger pessoas e organizações contra acesso não autorizado ou possíveis vazamentos de dados (Whitford & Yates, 2023). Finalmente, infraestrutura de dados se refere ao ambiente físico no qual os dados são coletados, armazenados, processados e compartilhados (Kitchin, 2022). Governança de dados refere-se a exercer autoridade e controle sobre o gerenciamento de dados (Kuzio et al., 2022). Governança de dados visa implementar uma agenda de dados ao maximizar o valor dos ativos e realizar gerenciamento de risco coletando, armazenando, usando e compartilhando dados entre diferentes atores públicos e privados.
Implementar a governança de dados requer o desenho de instituições que assegurem o devido processo de coleta, armazenamento, processamento e compartilhamento de dados entre diferentes organizações, além de processos de qualificação dos dados pensados como insumos para o uso e reuso para implementar tecnologias digitais (OECD, 2022). Governança de dados implica no fato de o governo desenhar instituições para assegurar processos sólidos de coleta e processamento de dados, bem como o compartilhamento entre diferentes atores. Dados são insumos essenciais ao avanço digital e requerem constituir uma infraestrutura de dados que apoie o desenvolvimento tecnológico de maneira segura e confiável para os cidadãos.
No caso da América Latina, é fundamental que os países compartilhem informações e criem comunidades de práticas sobre governança de dados, especialmente em relação aos marcos institucionais que organizam os processos de coleta e compartilhamento de dados para a gestão deles pensados como recursos.
Domínio tecnológico e infraestrutura
A dependência tecnológica dos países latino-americanos reflete-se na disponibilidade de infraestrutura de dados para que governos e indústria formulem processos de inovação. As infraestruturas de dados compreendem processos de armazenamento e troca de dados necessários para que a sociedade opere os serviços e instalações necessários para o funcionamento da economia usando meios digitais (Kitchin, 2022). Dado que as infraestruturas são meios partilhados para muitos fins (Frischmann, 2012), as infraestruturas de dados são essenciais como mecanismo institucional que pode facilitar ou criar barreiras ao desenvolvimento. As infraestruturas de dados podem assumir caráter público, privado ou híbrido e são requisitos essenciais para o desenvolvimento de instrumentos digitais aplicados na governança algorítmica.
De uma perspectiva global, a infraestrutura de dados compreende data centers e provedores de nuvem distribuídos assimetricamente. Na figura 1, vemos a distribuição dos data centers em todo o mundo. A posição dos países periféricos é dependente porque o fluxo global de informação é armazenado principalmente nos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França, Índia e Austrália. A Índia é uma exceção neste processo devido aos seus grandes investimentos em infraestrutura digital. Esta figura inclui data centers públicos, privados ou híbridos.
A posição da América Latina no concerto global de infraestruturas de dados não é significativa e requer grandes investimentos públicos para construí-las. Na América Latina, o Brasil tem a maior disponibilidade de data centers, seguido por Argentina e Chile. Noutros países, a disponibilidade de centros de dados, geralmente ligados a infraestruturas digitais públicas, é restrita. Neste cenário, vários países latino-americanos dependem de infraestruturas físicas e de dados localizadas fora do território nacional, o que enfraquece a soberania digital e coloca esses países como fornecedores de dados, que podem ser pensados como matéria-prima para a transformação digital global.
Associado à distribuição de data centers, o controle dos provedores de nuvem é essencial para as infraestruturas de dados. Na figura 2 temos a posição das regiões na distribuição de provedores de nuvem privada, o que é um facilitador da transformação digital. Os fornecedores de nuvens desempenham um papel importante na transformação digital por meio do aumento da disponibilidade e da partilha de dados pela Internet. Os serviços em nuvem também fornecem acesso a diferentes sistemas compartilhados. O acesso a provedores de nuvem na América Latina é, em geral, restrito e pouco difundido, com Brasil, Argentina e Chile na vanguarda desse processo. Embora os países europeus tenham 308 provedores de nuvem, toda a América Latina tem 41 provedores.
Em muitas situações, o desenho institucional de governança de dados em países como Brasil, Argentina ou Colômbia produz respostas ambíguas em relação aos processos de coleta, armazenamento e compartilhamento de dados. Associado a isso, o avanço desta infraestrutura enfrenta a barreira da capacidade de investimento econômico, tanto dos governos como dos agentes privados. A solução que alguns países latino-americanos, incluindo países da região do Caribe, encontraram foi a associação e aliança com empresas de tecnologia do norte global, amplificando o fluxo internacional de dados. A região da América Central e do Caribe carece de infraestruturas digitais, o que reforça novos padrões de desigualdade e exclusão de serviços e políticas públicas. A resposta tem sido promover alianças governamentais com empresas de tecnologia, a fim de acelerar a transformação digital (Cepal, 2021). Por outro lado, países como Brasil e Chile têm buscado soluções para a criação de infraestruturas digitais públicas soberanas, com investimentos que tentam garantir a soberania e a inclusão digital.
As respostas institucionais dos países latino-americanos têm sido ambíguas e subjetivas, em muitos casos, face ao poder das grandes empresas tecnológicas e à sua situação como fornecedoras de dados. O desenvolvimento da infraestrutura na América Latina é heterogêneo e está inserido na esfera global de forma periférica e com baixa capacidade de investimento. Isso confere ao desenvolvimento da IA u ma posição dependente, na qual, no concerto global do fluxo de dados, somos fornecedores de recursos e matérias-primas (dados brutos), o que cria dificuldades para o desenvolvimento digital.
Desenhando soluções tecnológicas
O desenho de reformas requer capacidades humanas para que as tecnologias sejam desenhadas e dispostas para cumprir diferentes funções governamentais. Estabelecer os objetivos públicos de determinada tecnologia, dispor e arranjar arquiteturas algorítmicas e proporcionar os insumos necessários requer capacidades relacionadas ao desenho de tecnologias para o cumprimento de funções públicas e a realização de valores públicos.
Gestores públicos devem absorver uma camada nova de trabalho relacionada com capacidades para o desenho de soluções baseadas em diferentes tecnologias como blockchain, IA ou plataformas. Desenvolver competências digitais na administração e competências ligadas ao desenho de serviços e políticas públicas é essencial no processo de transformação digital e construção da governança algorítmica. Soluções tecnológicas devem ser pensadas como instrumentos de ação pública, atentando para o fato de que eles são mecanismos de intervenção do Estado na sociedade e produção de mudanças sociais em uma direção. Conforme os instrumentos são desenhados e combinados entre si, eles produzem efeitos sociais diversos. Nesse sentido, o desenho de sistemas se torna uma atividade central na administração pública, e requerem que os gestores sejam capazes de compreender a experiência do usuário de serviços públicos, redesenhem o processo de serviços e produzam as conexões necessárias para que se conecte o interesse do cidadão com o serviço público. Da mesma maneira, políticas públicas formuladas ou implementadas com tecnologias digitais devem repensar seu processo de modo que as intervenções realizadas pelos instrumentos digitais estejam alinhadas com os objetivos de políticas e o público-alvo das ações do governo na sociedade.
Co-design e civic techs
Se uma das pretensões de uma reforma da administração pública é modificar as relações entre a sociedade política e a sociedade civil, é fundamental pensar que a administração não deva sustentar apenas ações ex-post a eventuais falhas da governança algorítmica. É necessário pensar alguma forma de envolvimento de cidadãos com o redesenho das instituições algorítmicas do serviço público e das políticas públicas (Mendonça, Filgueiras & Almeida, 2023). Assim, o co-design de estruturas algorítmicas para a governança é fundamental para criar soluções voltadas à recriação de objetivos e ação coletiva.
Co-design é um método para envolver criativamente cidadãos e partes interessadas para desenvolver novas soluções para problemas complexos (Blomkamp, 2018). Os princípios e práticas do co-design ressoam com práticas de governança colaborativa nas quais atores não governamentais e cidadãos são co-criadores de serviços públicos (Ansell, 2016). No co-design, atores que têm interesse em abordar um problema têm um papel ativo na concepção de novas políticas e serviços públicos por meio de tecnologias digitais. Eles colaboram para obter uma melhor compreensão do problema em questão e desenvolver e testar iterativamente novas soluções tecnológicas e sua efetividade para resolver problemas (Dekker et al., 2022). O co-design se refere a um processo, conjunto de princípios e ferramentas práticas: o processo envolve estágios iterativos de design thinking, orientados para a inovação. Os princípios incluem que os atores são criativos e especialistas em sua própria experiência profissional e vivida. As ferramentas práticas incluem métodos criativos e tangíveis para contar, encenar e fazer.
Associado à prática de co-design de serviços e políticas públicas, com o objetivo de a ampliar efetividade por meio de instrumentos digitais, o incentivo a civic techs é uma forma importante de atuação estatal para o desenvolvimento de instituições algorítmicas. Civic techs é o engajamento da sociedade de forma colaborativa para constituir desenvolvimento tecnológico para resolver problemas públicos. No esforço de reorientar as ações dos governos e das instituições públicas em torno dos beneficiários, e mais especificamente dos cidadãos, novas reflexões estão sendo conduzidas sobre o desenho dos serviços e tecnologias oferecidos, sobre as estratégias e táticas de mobilização cidadã mediadas pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs), e sobre a oferta de novos serviços que permitam nova criação de valor. Civic techs têm o potencial de melhorar a confiança nas instituições, em função da colaboração entre sociedade e Estado (Duberry, 2023).
O desenho de instituições algorítmicas e, por sua vez, das reformas da administração pública motivadas pela governança algorítmica, podem fortalecer os instrumentos de co-design e civic techs, e aprofundar modos de colaboração entre sociedade e Estado e recriar mecanismos de confiança que alicercem a legitimidade da administração pública para resolver problemas sociais. Co-design e civic techs fortalecem uma perspectiva de efetividade e legitimidade de serviços públicos baseados em tecnologias digitais, fortalecendo, por sua vez, capacidades estatais.
Governança das arquiteturas algorítmicas e regulação
Por fim, reformas administrativas construídas em torno da governança digital demandam o processo de fortalecimento da governança de sistemas algorítmicos. Com o objetivo de ampliar transparência e accountability, assim como fortalecer mecanismos de controle sobre as mudanças de agência proporcionadas pelos algoritmos, é necessário pensar instrumentos que assegurem formas de controle e direcionamento da governança digital por via democrática. A governança digital significa que humanos e máquinas interagem para realizar um propósito público. No caso de reformas administrativas baseadas no paradigma de governança algorítmica, parte-se do pressuposto que humanos e máquinas interagem para realizar um propósito de políticas públicas ou de serviço público. Essas interações são mediadas por instituições algorítmicas e podem implicar em gaming, reprodução de injustiças ou falhas.
Manter humanos no controle das instituições algorítmicas, portanto, é fundamental. A governança das instituições algorítmicas depende de humans in the looping com tecnologias digitais. Consideramos a abordagem humans-in-the-loop aquela que reformula um problema de automação a partir de interações entre humanos e máquinas (Amershi et al. 2014). Reformular um problema de automação significa que humanos criam controles sobre instrumentos digitais para calibrar resultados e envolver humanos no design do sistema. A aplicação da perspectiva humans-in-the-loop em políticas públicas é que humanos calibram instrumentos tecnológicos exercendo supervisão e controlando o fluxo de dados de entrada e, então, avaliam os resultados e impactos dos dados de saída. O cerne da abordagem humans-in-the-loop são as interações entre humanos e máquinas.
Humans-in-the-loop é uma abordagem que instrumentaliza a governança por calibrações de resultados e o design e redesenho dos sistemas. Na política pública moldada por IA, por exemplo, a abordagem humans-in-the-loop significa que os humanos podem calibrar tanto o design dos sistemas quanto os instrumentos de política baseados em IA, por um lado, e os resultados dos sistemas que reorganizam o assessoramento político, por outro. Isso significa que a abordagem humans-in-the-loop atende aos requisitos de construção de tecnologias digitais confiáveis, e exige conformidade com procedimentos como transparência, bancos de dados de treinamento abertos ou privacidade e proteção de dados. Enquanto isso, a abordagem humans-in-the-loop também atende ao problema dos resultados dos sistemas, fornecendo procedimentos que exigem auditorias algorítmicas, validação de sistema ou sandboxes regulatórios em uma estrutura democrática. Naturalmente, essa abordagem exige instrumentos de governança, que são experimentais e emergentes no cenário político.
Além disso, a emergência de instituições algorítmicas requer mecanismos de regulação tecnológica que possibilitem a institucionalização de práticas e a constituição de princípios que orientem o desenvolvimento digital, criem regras que minimizem os riscos a cidadãos e negócios, assim como assegurem maior competitividade nacional e fortalecimento de um enquadramento democrático.
CONCLUSÃO - NOVAS PRÁTICAS E MANUTENÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO
Como dissemos anteriormente, vivenciamos um contexto de mudanças sociais para os quais temos uma reengenharia sociotécnica da administração pública balizada na crescente adoção de instituições algorítmicas que permeiam diferentes instrumentos pelos quais serviços públicos e políticas públicas são formulados e implementados. Este processo de reforma da administração pública é silencioso porque ocorre sem grandes alardes, de maneira incremental e assertiva para mudar as relações entre os cidadãos e o Estado. Fundamentalmente, reformas administrativas ocorrem gradualmente por meio da reengenharia sociotécnica do Estado, o qual adota tecnologias digitais e institucionalizam práticas e perspectivas de políticas e serviços por meio de algoritmos.
Este processo de reengenharia sociotécnica do Estado produz novos padrões institucionais que ressoam na necessidade de novos padrões de atuação de gestores públicos, os quais devem compreender e participar do design de soluções tecnológicas de forma aberta e informada, de modo a reinventar processos de ação coletiva que fortaleçam a confiança mútua entre cidadãos e governos. A tecnologia, por si, não produzirá nenhum ganho de produtividade ou legitimidade do serviço público. Tecnologias são desenhadas e desenvolvidas por humanos. Assim, estabelecer um propósito democrático para o desenvolvimento digital e reinstitucionalizar processos de serviços e políticas por meio de algoritmos demandam um propósito público claro, movido pela reinvenção da ação coletiva como preceito da ação do Estado.
Novas práticas de gestores e políticos são requeridas de maneira a sustentar um enquadramento político mais democrático, capaz de reconstruir os laços entre a sociedade política e a sociedade civil. O que atentamos, aqui, é que a reengenharia sociotécnica do Estado, que hoje fundamenta o andamento das reformas administrativas contemporâneas, deve partir de uma concepção política fundamental, baseada em elementos democráticos capazes de assegurar legitimidade da mudança.
Repetir velhos padrões institucionais ou reproduzir velhas práticas de gestão não servirá como resposta para um contexto de incertezas e ambiguidades políticas amplificadas pela própria dimensão do digital. Reconstruir os laços com a cidadania será fundamental e a aposta em processos de co-design, colaboração e civic techs são perspectivas abertas, das quais o Estado pode se beneficiar para construir serviços públicos mais efetivos e confiáveis quando associados a regras e procedimentos da governança de sistemas algorítmicos. Isso requer um processo de maturidade institucional mais dilatado, balizado em valores democráticos de fundo que amplifiquem capacidades estatais por meio da governança de dados, investimentos em infraestrutura digital e práticas de desenvolvimento tecnológico abertas e voltadas para o interesse público.
Essa reengenharia sociotécnica do Estado requer novas práticas e um novo padrão institucional que mantenha o enquadramento democrático da administração pública. As oportunidades e os riscos que as tecnologias digitais representam para a administração pública brasileira, mesmo considerando todos os desafios elencados, são uma possibilidade para que elas criem seu próprio futuro em uma aliança com a sociedade, remodelada e redesenhada por novas instituições algorítmicas.
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FINANCIAMENTO
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, processos 303762/2023-3 e 441095/2023-2.
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Editado por
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Artigo convidado | Editor responsável: Marco Antonio Teixeira
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025



Nota: Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), 2024.
Nota: Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), 2024.