Open-access “I CAN’T BREATHE”: UMA ANÁLISE DO FLUXO DA HASHTAG #BlackLivesMatter NO TWITTER BRASILEIRO E NORTEAMERICANO

“I can’t breathe”: Un análisis del flujo del hashtag #BlackLivesMatter en el Twitter brasileño y norteamericano

RESUMO

O objetivo deste artigo é investigar a atuação do Movimento Black Lives Matter (BLM) no Twitter durante os protestos motivados pelo assassinato de George Floyd em maio de 2020. Procuraremos analisar o transbordamento territorial da ação coletiva por meio da ação conectiva, comparando os casos brasileiro e norte-americano. Para efetuar essa comparação, utilizamos os métodos do fluxo de ranqueamento e rede de palavras, observando como a hashtag #BlackLivesMatter foi utilizada no X (antigo Twitter) brasileiro e norte-americano, e buscamos examinar se as estratégias de atuação nos dois países durante o período da pandemia se aproximam discursivamente ou não. Os resultados apontam que a ação coletiva atravessada pelas mídias sociais rompe fronteiras e, dessa forma, aumenta o engajamento e a mobilização internacional em determinadas causas sociais, apresentando, no entanto, características diferentes em cada país.

Palavras-chave:
ação conectiva; movimentos sociais; ativismo digital; pandemia Covid-19; Twitter

RESUMEN

El objetivo de este artículo es investigar el papel del movimiento Black Lives Matter (BLM) en Twitter durante las protestas que siguieron al asesinato de George Floyd en mayo de 2020. Analizamos el desbordamiento territorial de la acción colectiva a través de la acción conectiva, comparando los casos de Brasil y Estados Unidos. Para realizar esta comparación, utilizamos los métodos de flujo de clasificación y red de palabras, observando cómo se utilizó la etiqueta #BlackLivesMatter en X (antes Twitter) tanto en Brasil como en Estados Unidos, y buscando examinar si las estrategias de acción en ambos países, durante el período de la pandemia, se alinean discursivamente o no. Los resultados indican que la acción colectiva, mediada por las redes sociales, rompe fronteras y, de este modo, aumenta el compromiso y la movilización internacional en torno a ciertas causas sociales, aunque con características diferentes en cada país.

Palabras Clave:
acción conectiva; movimientos sociales; activismo digital; pandemia de COVID-19; Twitter

INTRODUÇÃO

“I can’t breathe!”.

George Floyd, 25 de maio de 2020.

George Floyd foi um homem negro que morreu asfixiado por um policial branco chamado Derek Chauvin em 25 de maio de 2020, em Minneapolis, Minnesota - EUA. Enquanto era estrangulado e imobilizado sob a acusação de tentar trocar uma nota falsa de vinte dólares, Floyd gritava “I can’t breathe” (não consigo respirar, em tradução livre). A morte de Floyd inaugurou mais um capítulo da luta dos movimentos sociais pelo fim do racismo ao inspirar uma mobilização internacional de manifestações de rua, mesmo em tempos de distanciamento social durante a pandemia de Covid-19, que evidenciou mais uma vez, como mostram estudos recentes, que a tragédia sanitária não foi impeditiva para a organização de movimentos sociais e de protesto (Abers & Bülow, 2021).

Do dia 25 de maio até meados de junho de 2020, as ruas de vários países foram tomadas por manifestantes gritando em uníssono que vidas negras importam, ou black lives matter, expressão que dá nome ao movimento que ficou conhecido como BLM. No episódio do assassinato de George Floyd, a hashtag #BlackLivesMatter chegou ao Trending Topics (TTs) do Twitter TTs norte-americano no dia 26 de maio, às 15h, quando as manifestações de rua começaram a ser organizadas. Já no Brasil, a hashtag #BlackLivesMatter chegou ao TTs no dia 27 de maio, às 00h, em último lugar, e foi ganhando força no ranking até chegar ao topo às 15h do dia 28 e permanecer até as 20h do mesmo dia.

Esse espraiamento de mobilizações para além das fronteiras de um país num contexto de pandemia de Covid-19 é o tema central desta pesquisa. Com efeito, embora tenham sido produzidos vários estudos sobre o BLM recentemente, a questão da desterritorialização das manifestações digitais e sua expansão além das fronteiras de determinado país não tem sido tratada de maneira aprofundada, com oferta de evidências sistemáticas que ilustrem a ocorrência desse fenômeno. Por exemplo, Carney (2016), Lebron (2023) e Penrice (2022) abordam o tema associando ao ativismo digital, mas esses estudos se restringem ao território norte-americano. Ainda são raras e recentes as abordagens que buscam examinar a possibilidade de movimentos como o BLM produzirem repertórios de ação que se espraiam além das fronteiras territoriais (Genova, 2019; Pereira et al., 2023; Shahin et al., 2024). O presente artigo busca aprofundar essa linha de análise, e abordar a questão de como as ferramentas digitais permitem a organização de novas formas de ação coletiva, mesmo em tempos de isolamento social (Abers & Bülow, 2021), como foi o caso da pandemia de Covid-19.

Com efeito, Risoto et al. (2019) apontam que o Twitter se tornou o centro nervoso do “ativismo de hashtag”, que em nosso caso de estudo, pode ser revelado, por exemplo, com a aparição de hashtags como: #GeorgeFloyd e #JusticeForGeorgeFloyd, no topo do TTs norte-americano. Já para Malini e coautores, “as hashtags funcionam em uma dinâmica de folksonomia, ou seja, quando um conteúdo na rede é nomeado e classificado através de uma tag, assumindo assim o papel de concatenadoras de narrativas” (Malini et al., 2013, p. 392). O resultado disso é que as redes sociais potencializam a participação de novos ativistas que alargam a mobilização e escalam os esforços do movimento (Mundt et al., 2018). Contudo, a lacuna científica está em saber se as abordagens dos dois países se aproximam discursivamente ou não, bem como ofertar evidências de tais fenômenos.

Nesse sentido, a questão mais geral deste estudo é verificar se há um transbordamento territorial na mobilização dos movimentos sociais nativos da internet, e se eles revelam as características apresentadas pelo conceito de ação conectiva proposto por Bennett & Segerberg (2012), elaborado como se sabe a partir de uma releitura da abordagem ação coletiva de Olson (2011). Para dar conta disso, este artigo propõe uma comparação da atuação dos atores políticos brasileiros e norte-americanos no Twitter, questionando se as dinâmicas no uso da hashtag #BlackLivesMatter nos dois países se assemelham ou se distanciam discursivamente. Nesse contexto, buscaremos responder as seguintes questões de pesquisa: a) no contexto da pandemia de Covid-19, as mídias digitais serviram para organizar as mobilizações populares?; b) houve evidências de “transbordamento territorial” desses movimentos?; c) quais são suas semelhanças e diferenças, em diversos contextos?

Para o desenho da pesquisa, foram comparados os fluxos de ranqueamento da hashtag #BlackLivesMatter no trending dos Estados Unidos e do Brasil. Com isso, foi possível perceber como as hashtags se movimentaram no ranking durante as manifestações e como os acontecimentos decorrentes influenciaram a ascensão e o descenso das hashtags. A hashtag #VidasNegrasImportam, tradução da hashtag norte-americana, também foi observada e analisada no trending do Brasil, a fim de acompanhar como essa narrativa foi apropriada pelo ativismo nacional, assim como as hashtags #WhiteLivesMatter e #allLivesMatter, que funcionaram como contranarrativas ao discurso do BLM. Nisso, buscou-se compreender a dinâmica do ativismo digital no decorrer dos dias e em que medida os discursos se aproximaram, se distanciaram ou se deslegitimaram, nos enunciados das hashtags.

A observação sistemática do Trending Topics do Twitter do Brasil e dos Estados Unidos foi feita de forma simultânea, e considerou o fuso horário dos dois países, permitindo que pudéssemos encontrar nuances do BLM na plataforma virtual. Por meio de um script rodado pelo software R, foram coletados os Trending Topics nos horários de 00h, 05h, 10h e 20h, do dia 25 de maio, dia do assassinato de Floyd, até o dia 9 de junho de 2020, data do funeral, nosso recorte temporal de análise, situado no contexto da pandemia.

Para abordar esses pontos, este artigo está dividido da seguinte forma: (1) inicialmente, faremos uma caracterização geral do BLM, destacando a atuação nas redes sociais desde sua gênese; (2) em seguida, faremos uma breve discussão teórica sobre os conceitos de ação coletiva e ação conectiva, tendo em vista as principais mudanças nas lógicas de atuação introduzidas pelas tecnologias digitais; e (3) analisaremos evidências dos fenômenos observados na forma de gráficos, fluxos e nuvens de palavras sobre o corpus coletado.

Esta pesquisa mostra como se dão as estratégias e comportamentos de atores políticos frente a uma situação de abuso de poder por parte de autoridades do sistema democrático e, também, ilustra as mudanças estruturais na teoria da ação coletiva com o avanço do ativismo social nas redes sociais online, num contexto pandêmico.

Deve-se sublinhar, por fim, que ainda não há consenso entre os pesquisadores de ativismo social em reconhecer o BLM como movimento social. Por isso, um dos pressupostos deste artigo é a possibilidade de que o BLM possa ser visto como movimento social a partir da mudança na lógica da ação proposta por Bennett e Segerberg (2012). Por questões de espaço, será impossível entrar nessa divergência aqui. Apenas indiquemos que, na maior parte da literatura consultada, o BLM é tratado como um movimento social (Pereira et al., 2024).

O MOVIMENTO BLACK LIVES MATTER

O Movimento Black Lives Matter (BLM) surgiu em meados de 2013, quando Alice Garza (Oakland-CA) publicou em seu perfil pessoal do Facebook um texto intitulado “Um bilhete de amor aos negros”. A ativista finalizou o post dizendo: “nossas vidas são importantes, vidas negras importam” (tradução livre). Nisso, Patrisse Cullors (Los Angeles-CA) e Opal Tometi (Phoenix-AZ) comentaram a postagem com a hashtag #BlackLivesMatter, e endossaram o posicionamento. A hashtag tornou-se, então, um fórum de debate e passou a agregar mais atores na discussão.

A figura 1 mostra os picos de ascensão da hashtag #BlackLivesMatter no Trending Topics do Twitter de 2013 a 2018.

Em 2014, após o assassinato de Michael Brown por um policial branco, o Movimento BLM tomou as ruas norte-americanas e passou a ser conhecido nacionalmente. O episódio ficou marcado pelas manifestações e protestos em Ferguson, Missouri, que levaram o governador Jay Nixon (Democrata) a decretar toque de recolher na cidade. Em 2015, ano pré-eleitoral no âmbito presidencial nos EUA, o BLM começou a questionar publicamente os políticos estadunidenses sobre suas posições nas questões raciais. Nesse mesmo ano, o movimento percebeu um crescente interesse internacional, depois dos protestos em Baltimore, estado de Maryland, motivados pelo assassinato de Freddie Gray. À semelhança do episódio de Ferguson, a hashtag #BlackLivesMatter levou milhares de pessoas às ruas de Baltimore, o que culminou em um movimento global de ativismo que atingiu europeus, africanos, caribenhos e latino-americanos.

Entre 2016 e início de 2020, os abusos por parte da polícia contra negros desarmados continuaram aumentando, porém, por outro lado, a cobertura jornalística diminuiu drasticamente. Donald Trump, o então presidente dos EUA, sinalizou apoio à polícia. Porém, nos primeiros meses de 2020, as mortes de Ahmaud Arbery (Geórgia) em 23 de fevereiro; Breonna Taylor (Kentucky) em 13 de março; e George Floyd (Minnesota) em 25 de maio, escancaram para o país o problema contínuo do assassinato de negros por parte de policiais e vigilantes. O assassinato de Floyd foi especialmente chocante porque o vídeo do incidente mostrou o policial ajoelhado sobre seu pescoço, enquanto ele gritava: “I can’t breathe”, instantes antes de morrer asfixiado. Eric Garner dizia essa mesma frase em 2014 quando também foi morto por policiais brancos. A frase inspira o título deste artigo. O vídeo de Floyd repercutiu mundialmente e quase que imediatamente gerou protestos de rua que continuaram até meados de julho de 2020, mesmo em tempos de isolamento social por conta da pandemia de Covid-19.

A magnitude desses protestos em apoio aos esforços do BLM levou a reformas policiais em dezenas de cidades, bem como a alterações na legislação estadual e nacional que exigiu mudanças nas táticas e no comportamento da polícia norte-americana. Além disso, os protestos iniciaram um enxame nacional de manifestações contra injustiça racial, inclusive, com apoio de diversas ligas esportivas como: NBA, Premier League, Fórmula1, WNBA, entre outras. No Brasil, a hashtag #VidasNegrasImportam tem ecoado a voz do BLM no Twitter brasileiro já há alguns anos. Inclusive, alguns dias antes do caso Floyd, às 5h da manhã, do dia 20 de maio, a hashtag #VidasNegrasImportam se destacava no TTs como manifestação virtual em prol de justiça por João Pedro, garoto assassinado em uma operação policial em São Gonçalo-RJ.

O BLM é inspirado em grupos organizados dos anos 1960, como o Movimento dos Direitos Civis, Poder Negro, bem como nos movimentos feministas dos anos 1980, porém é uma rede descentralizada e não tem nenhuma hierarquia ou estrutura formal como vista nos movimentos sociais anteriores. O site oficial do BLM funciona como uma página independente da mídia corporativa, e o Twitter/Facebook são usados para organizar conferências de planejamento estratégico. O BLM se tornou um modelo de como os grupos de libertação negra podem se organizar e criar campanhas eficazes de direitos de liberdade. Isso acabou contribuindo para o engajamento daqueles às margens dos movimentos tradicionais de liberdade negra, incluindo mulheres, deficientes, imigrantes ilegais e os que se identificam como transgêneros e/ou LGBTQIA+.

AÇÃO COLETIVA E AÇÃO CONECTIVA: PARÂMETROS TEÓRICOS

Redes sociais online como o Twitter (atual X), ainda que potencialmente, permitem a formação de públicos que se engajam por interesses comuns originando o que Papacharissi (2014) intitula de “públicos afetivos”. A autora enfatiza que os discursos produzidos via Twitter devem ser interpretados como elementos suaves de sentimento, não como ferramentas deliberativas de engajamento cívico organizadas pelo discurso racional. Papacharissi (2014) sugere que o sentimento pré-formatado e mediado funciona como uma bússola em uma esfera em que tendências e tensões culturais, econômicas e políticas estão em colapso. Nisso, as emoções e sentimentos definem modalidades de pertencimento, ao passo que estranhos se conectam e se vinculam mutualmente, para além da racionalidade ou da deliberação.

Discursos colaborativos gerados através da lógica das hashtags no Twitter podem ser entendidos como concatenadores de pertencimento que evoluem ultrapassando as fronteiras do discurso racional. Por afetarem o microcosmo, as narrativas que atravessam as hashtags convidam o público politicamente sensibilizado, desprezando a consciência política previamente definida. O debate a respeito de como a discussão política em ambientes informais pode influenciar ou contribuir para a democracia, leva-nos também a reflexões sobre como a participação política em ambientes virtuais é tangenciada pela ação coletiva (Bimber et al., 2005), pela ação conectiva (Bennett & Segerberg, 2012), pelo ativismo digital (Alcântara, 2015) e, também pelo ativismo de hashtag (Risoto et al., 2019; Ramos, 2019; Bülow e Dias, 2019; Chagas, 2019; Goswami, 2018; Recuero, 2015). De acordo com Goswami, (2018) a ideia do ativismo de hashtags apareceu pela primeira vez no jornal inglês The Guardian em 2011 durante a cobertura do movimento Occupy Wall Street. Segundo o autor (2018, p. 1), as “hashtags indexam e ordenam conversas” no ambiente online.

Na teoria da ação coletiva (Olson, 1965), o autor empenha-se em mostrar porque o comportamento racional dos atores é diferente. Para ele, os indivíduos racionais e centrados nos próprios interesses não agem na promoção de interesses comuns sem que haja alguma coerção ou algum incentivo. Ações coletivas voltadas aos interesses comuns acabam gerando bens públicos que, se estiverem disponíveis para alguém, têm que estar para todos, ainda que nem todos os indivíduos tenham contribuído para o desenvolvimento coletivo. Esse é um dos vieses da teoria da ação coletiva que Olson chama de “carona”. A observação pontual de Olson é que as pessoas não agem juntas apenas porque têm um problema ou objetivo em comum, principalmente, se estiverem integradas a grandes grupos, em que as contribuições individuais são menos perceptíveis. Segundo o autor, uma ação coletiva sustentável e eficaz requer níveis variados de organização, mobilização de recursos, liderança, desenvolvimento de estruturas de ação e aparatos para suprimir as diferenças organizacionais. Contudo, o trabalho de Bimber et al. (2005) demonstra que o uso recente de tecnologias de informação e comunicação para ação coletiva parece, em alguns casos, violar o princípio da carona e desmistificar a necessidade de uma organização formal para o movimento social acontecer.

Sobre o princípio da carona, Bimber et al. (2005) sugerem que o uso da tecnologia cria um ambiente cada vez mais rico em informação e comunicação. E, como a informação é amplamente distribuída, os indivíduos apoiam repositórios de informações com nenhum ou, apenas com conhecimento parcial de outros participantes ou colaboradores e, também, sem nenhuma intenção ou clareza de que estão contribuindo para informações comunitárias. Isso diminui a sensação de que a contribuição não estaria valendo a pena porque os outros não estão colaborando. Nesse sentido as pessoas estão construindo um bem comum sem nem mesmo perceber, apenas, fornecendo dados e mais dados, que são coletados, analisados e utilizados estrategicamente nas mídias sociais.

Por outro lado, sobre a necessidade de uma organização formal, os autores reconhecem que há três funções básicas para toda ação coletiva: (a) um meio de identificar pessoas com interesses relevantes e potenciais no bem público; (b) um meio de comunicar mensagens comumente perceptíveis entre elas; e (c) um meio de coordenar, integrar ou sincronizar suas contribuições. No entanto, com o surgimento de mídias como e-mail, salas de bate-papo, sites e afins, organizações informais, descentralizadas e flexíveis ou os próprios indivíduos agora têm o potencial de se comunicar e coordenar ações entre si, que até então eram viáveis apenas para organizações formais.

A partir dos apontamentos de Bimber et al. (2005), Bennett e Segerberg (2012) relatam que uma pesquisa realizada com manifestantes do 15M, na Espanha, mostrou que a relação entre indivíduos e organizações agora é diferente daquela vista em movimentos mais convencionais. Segundo os autores, apenas 38% dos entrevistados se envolveu no protesto por meio do espaço físico das organizações, assim como, apenas 13% dessas organizações ofereceram qualquer possibilidade de associação ou afiliação, e, por fim, a média de idade das organizações em protestos passados que variava de 10 a 40 anos, no 15M não passou da média de 3 anos de existência.

Bennett e Segerberg (2012) também apresentam dois padrões que caracterizam a ação coletiva em redes digitais. A primeira envolve a coordenação dos bastidores das organizações, que atingem uma rede de engajamento público mais ampla usando mídia digital, o que facilita a personalização de temas de ação que ajudam os cidadãos a espalhar a notícia por suas redes pessoais. O segundo padrão, segundo os autores, também foi visto nos protestos do Occupy nos EUA, que é a utilização das plataformas digitais para coordenar as ações que atingem pessoas em áreas geograficamente distantes, e contribui com decisões, planos e ações importantes, que antes estavam potencialmente isoladas.

Outra característica interessante das mobilizações mediadas digitalmente é que sua natureza estratificada e a sua fluidez comunicativa permitem que o grande público seja atendido diretamente com conteúdos produzidos pelos próprios manifestantes. Isso ocorre, inclusive, sem sugestões de pautas da mídia convencional, que até utilizam os conteúdos informais em suas próprias coberturas. A mídia independente também acaba contribuindo para o rastreamento dos movimentos políticos que partem em direções diferentes, tratando de outros temas dentro do mesmo protesto.

Bennett e Segerberg (2012) denominam essa ação coletiva atravessada pelas mídias digitais de ação conectiva. Nisso, destacam a comunicação como um princípio organizador das ações personalizadas digitalmente. Esse foco chama a atenção para redes que envolvem grandes escalas da comunicação ao nível pessoal, como estruturas organizacionais diretas. Os autores elencam características para apontar contrastes com os meios familiares de organizar a ação coletiva que consomem muitos recursos e, dessa forma, desenvolvem identificações com teorias subjacentes ao modelo de ação conectiva. Na lógica da ação conectiva, o que muda é a dinâmica da ação: redes operam por meio de processos organizacionais de mídia social, e isso não requer um forte controle organizacional ou a construção simbólica de um “nós” reunido em local físico, além de gerar a diminuição drástica dos custos da ação coletiva e do engajamento cívico.

Quando as pessoas procuram caminhos mais personalizados para uma ação coletiva, elas já estão familiarizadas com práticas de trabalho em rede em sua vida cotidiana e, por terem acesso a tecnologias de celulares e computadores, estão também familiarizadas com uma lógica diferente de organização: a lógica da ação conectiva. Essa lógica permite que o enquadramento pessoal da comunicação não acarrete mudanças drásticas no pensamento, na identificação emocional ou no cálculo de risco ou custo, e ainda, que os atores individuais possam se unir a outros quando a conectividade é estabelecida e coordenada em redes organizadas por recursos humanos ou agentes tecnológicos. Portanto, para compreender como a ação coletiva e a ação conectiva contribuem para o trabalho dos movimentos sociais, é fundamental identificar em que momento elas se sobrepõem. Para isso, um primeiro passo é reconhecer que as duas lógicas estão associadas a dinâmicas distintas e, claro, em dimensões diferentes de análise.

De acordo com Bennett e Segerberg (2012), redes de ação conectiva são tipicamente constituídas de processos mais individualizados e tecnologicamente organizados que resultam em ações que não exigem enquadramento de identidade coletiva ou altos níveis de recursos organizacionais. Os autores chamam de “produção por pares”, porque se baseia na cooperação voluntária entre os participantes na execução de um projeto de valor mútuo, a fim de produzir um bem público. O sistema de recompensa da produção entre pares é uma mistura de reconhecimento pessoal pelas contribuições para a rede e os benefícios ou resultados que essas colaborações trazem.

Quando redes interpessoais são ativadas por plataformas tecnológicas em muitos e variados projetos, a ação conectiva se assemelha à ação coletiva, mas sem o mesmo papel desempenhado pelas organizações formais ou a necessidade de enquadramentos exclusivos. No lugar do conteúdo distribuído e relacionamentos intermediados por hierarquias, as redes de ação conectiva envolvem cooperação, coprodução e compartilhamento, e revelam uma lógica econômica e psicológica diferente: produção por pares e distribuição com base em uma expressão personalizada.

No entanto, os trabalhos que analisaram o ativismo de hashtag nos últimos anos (von Bülow e Dias, 2019; Ramos, 2019; Recuero et al., 2021 e Chagas, 2022) passaram a perceber uma mudança nos enunciados das hashtags que despontam no Trending Topics do Twitter. Ao lado das hashtags dos movimentos sociais, que mobilizam ações de ativismo digital, passaram a aparecer também as hashtags de contranarrativa como #allLivesMatter ou hashtags que promovem a imagem de ícones do establishment, como é o caso da militância pró-Bolsonaro no Brasil, por meio de movimentos de astroturfing digital (Chagas, 2022). Por isso, passa-se a ter a percepção de uma disputa pelos primeiros lugares no ranking do TTs. Além disso, existe também o entendimento de que a extrema-direita teria cooptado as estratégias de ativismo digital para promover suas próprias agendas, como apontam Bennett e Livingstone (2018), ao analisarem como os “ativistas alt-right” utilizam a desinformação para atrair adversários políticos para armadilhas midiáticas. Essas ações de disputa de sentido também são contempladas pela análise oriunda da metodologia apresentada no próximo tópico.

METODOLOGIA

A questão mais geral desta pesquisa, portanto, é compreender o que está em jogo na lógica da ação conectiva do ativismo digital, num contexto pandêmico. Nisso, elencamos algumas hipóteses para investigar a relação entre ativistas e elementos de poder como a mídia hegemônica, o Estado e as instituições. A (h1) afirma que os componentes do ecossistema das plataformas digitais (como o Trending Topics) são capazes de revelar expressividade discursiva, visibilidade e/ou audiência das narrativas de protesto, na compreensão de que o ativismo digital se dá por discurso, ferramenta e visibilidade, como aponta Ugarte (2008). A (h2) sustenta que há relação entre os discursos dos atores de países diferentes – Brasil e Estados Unidos –, que levam em consideração as abordagens teóricas que sugerem que os atores se unem pelos afetos e não pela proximidade geográfica. Por fim, a hipótese 3 (h3) postula a existência de possíveis diferenças nos fenômenos de swarming nos dois países. Seguindo estudos pioneiros no campo do ativismo em rede (Ugarte, 2008), por swarming (literalmente, enxameamento) entendemos os fenômenos de criação de uma ação coletiva ou “ordem espontânea” sem orientação de uma organização centralizada, que podem se exprimir tanto em atividades presenciais e manifestações de rua, como em formas de criação de inteligência coletiva e estratégicas discursivas online.

Começando pela observação do Trending Topics, por meio da análise de fluxo da hashtag #BlackLivesMatter, este artigo busca demonstrar como o movimento norte-americano BLM atuou dentro do ecossistema do Twitter. Dessa forma, procuramos identificar possíveis relações entre a ação do movimento norte-americano e as manifestações antirracismo no Brasil, durante o mesmo recorte temporal. Desde janeiro de 2020, foram feitas coletas no Trending Topics diariamente às 00h, 05h, 10h, 15h e 20h, tanto no Trending brasileiro, quanto no norte-americano. A coleta foi realizada manualmente por meio de um script do software R que se comunica com a API do Twitter e entrega um ranking com 50 tags, composto por termos (palavras sem o #) e por hashtags.

Para perceber a dinâmica das hashtags em relação ao assunto dentro do ranking, foi feito um fluxo de ranqueamento pelo aplicativo online Rank Flow [http://labs.polsys.net/tools/rankflow/]. Essa ferramenta calcula a distância com polarização de classificação (RBD) para quantificar as alterações de uma coluna para a seguinte. Quanto maior o valor de RBD, mais alterações. O parâmetro “RBD p” (valor entre 0,01 e 0,99) permite determinar quão “ponderado” o cálculo deve ser. De acordo com Webber et al. (2010), com um p baixo, as alterações no topo das listas são mais pesadas, com p se aproximando de 1, todas as alterações são tratadas da mesma forma. As figuras que serão apresentadas nos resultados foram originadas diretamente do aplicativo Rank Flow, que impede qualquer tipo de customização da imagem.

Asur et al. (2011) fazem um estudo no Trending Topics do Twitter para demonstrar empiricamente que a atividade e a quantidade de seguidores do usuário não influenciam nos assuntos que persistem no trending. Os autores analisam de forma quantitativa a ascensão e o descenso das trends identificando fatores que causam a formação e a persistência dos assuntos no ranking. Por outro lado, Hagen (2019) utiliza a análise de fluxos de ranqueamento para compreender porque alguns tópicos nos fóruns políticos do 4chan duram tão pouco tempo. O autor sugere que houve uma ação conectiva dos “anons” (apelido dos usuários anônimos do 4chan), que potencializou os discursos pró-Trump e também criou a narrativa de que os Clinton teriam uma rede de pornografia infantil em porões de pizzarias.

Para identificação das narrativas acionadas pelos atores que reagiram discursivamente ao movimento, coletamos uma amostra dos tuítes e depois separamos as palavras mais utilizadas nos tweets das três hashtags mais importantes: #BlackLivesMatter; #AllLivesMatter; e #VidasNegrasImportam, criando uma rede de palavras. O método de rede de palavras foi baseado em Souza et al. (2014), que elimina palavras sem significados intrínsecos (artigos, pronomes pessoais, e possessivos, adjetivos possessivos, advérbios etc.) tratados pelos pacotes tm, tidytext e network no R.

A utilização do Rank Flow serviu para mostrar o transbordamento territorial da hashtag #BlackLivesMatter, apontando para semelhanças no uso do termo nos dois países nos primeiros dias e, depois, a utilização do termo traduzido na hashtag #VidasNegrasImportam. Já a nuvem e rede de palavras mostram nuances na tipografia usada para burlar o algoritmo da plataforma e também demonstrar como as narrativas se articulam na correlação entre os termos usados durante a pandemia, seja na aproximação ou no distanciamento em cada termo no ranking.

RESULTADOS E ANÁLISES

Neste tópico vamos apresentar como a metodologia nos ofereceu a possibilidade de fazer inferências sobre a dinâmica dos protestos no ecossistema do Twitter. Para melhor compreensão, o tópico está dividido conforme as técnicas: (1) fluxo de ranqueamento e (2) rede de palavras.

Análise de Rank Flow

Para otimizar a apresentação dos resultados, foram selecionadas as 15 posições ao topo do ranking do Trending Topics. No cabeçalho das tabelas, os horários das coletas estão dispostos por Timestamp (carimbo de data/hora), categoria que gera um valor numérico para data/horário, conforme: https://www.unixtimestamp.com. As figuras 2, 3 e 4 mostram o comportamento da hashtag #BlackLivesMatter nos dias 26 e 27 de maio, 28 e 29 de maio, e 30 e 31 de maio de 2020, correspondentes aos Timestamp 1579996800 a 1580155200, respectivamente, notação que se mantém nos demais gráficos. É possível perceber o crescimento evolutivo da hashtag a partir das ações em função dos protestos.

Figura 2
Trending Topics EUA 26 e 27 de maio de 2020

Figura 3
Trending Topics EUA 28 e 29 de maio de 2020

Figura 4
Trending Topics Brasil 28 de maio de 2020

A hashtag #BlackLivesMatter chega ao segundo lugar do ranking às 15h do dia 26 de maio (4ª coluna da figura 2Timestamp: 1580050800). Mas, além da #BlackLivesMatter, a figura 2 também mostra várias hashtags oriundas do assassinato de Floyd, como pode ser visto #GeorgeFloyd; #JusticeForGeorgeFloyd; #GeorgeFloydWasMurder. As hashtags funcionam em uma disputa pelo sentido das narrativas, umas reivindicam uma postura mais direta por justiça, enquanto outras combatem a narrativa que visa amenizar a violência policial, como é o caso da hashtag “George Floyd foi assassinato” (tradução livre). Contudo, a hashtag Black Lives Matter é usada para concentrar a mobilização do movimento.

Ainda na mesma ideia de disputa pelo sentido, também é mostrada, na Figura 2, a hashtag #allLivesMatter já despontando como reativa ao movimento BLM, ao ocupar o terceiro lugar do ranking às 5h do dia 27 de maio. Isso evidencia uma disputa entre os afetos, pois a narrativa de que “todas as vidas importam” tenta promover na consciência coletiva a sensação de que não há mais racismo, mas, na prática, acaba desempenhando a função de minimizar a luta por igualdade promovida pelos movimentos antirracistas.

Na Figura 3, a hashtag #BlackLivesMatter já aparece mais consolidada nos primeiros lugares. Os protestos de rua começam a acontecer e a hashtag passa a ser também uma forma de cobertura midiática do que estava acontecendo nas ruas dos EUA.

Nos dias 28 e 29 de maio, a hashtag #BlackLivesMatter permanece no trending norte-americano, e chega ao topo do ranking em dois momentos da coleta, às 20h do dia 28 e às 15h do dia 29. Isso é resultado da articulação em torno da hashtag para a organização das manifestações de rua. Essa é uma demonstração de como a hashtag pode ser utilizada como uma ferramenta para dar visibilidade aos discursos e acontecimentos que não são divulgados pela grande mídia. Curioso também notar que aparece o termo “Rosa Parks”, que faz referência à mulher negra, protagonista do início do movimento pelos direitos civis, liderado pelo reverendo Martin Luther King. Curiosamente, na Figura 3, a hashtag #allLivesMatter já não aparece mais, mostrando que o engajamento com o movimento BLM supera a postura reativa de minimização do debate contra o racismo.

A Figura 4 mostra o comportamento da #BlackLivesMatter no Trending Topics do Brasil, que curiosamente não utilizou de imediato a versão traduzida #VidasNegrasImportam, ou seja, os internautas brasileiros optaram por associar seus discursos com os dos norte-americanos, ao assinarem seus tuítes com a hashtag em inglês.

Observar a hashtag Black Lives Matter no Twitter do Brasil nos leva a comprovar, ao menos parcialmente, que as pessoas alinham seus discursos mesmo vivendo em lugares diferentes do globo, em pleno contexto da epidemia da Covid-19, e se articulam e cooperam pelos interesses em comum. No Brasil, a hashtag #BlackLivesMatter chega ao Trending ainda no dia 27, mas alça o topo do ranking no dia 28 a partir da 00h, ocupando o sexto lugar e, depois, na coleta das 15h e das 20h aparece em primeiro lugar, superando as hashtags que compõem controvérsias da discussão política brasileira. Esse padrão ilustra a ideia de que as hashtags funcionam como concatenadoras de narrativas, inclusive em países diferentes, algo também apontado pela literatura científica que sugere mudanças na forma como a ação coletiva é modulada sob a influência das redes sociais.

No dia 30 de maio, às 10h, a hashtag do Movimento BLM chega ao topo do trending em um novo formato: #BLACK_LIVES_MATTER, como mostra a Figura 5.

Figura 5
Trending Topics EUA 30 e 31 de maio de 2020

A mudança no formato de escrita da hashtag indica uma estratégia utilizada para ludibriar o algoritmo da plataforma e posicionar novamente a mesma expressão nas posições mais altas do ranking. Um dos critérios para uma hashtag chegar no Trending Topics é ela não ter sido usada em dias anteriores. Para enganar o algoritmo, os militantes utilizam as hashtags com caixa alta, ou escrevem propositalmente a palavra com uma ortografia incorreta. Dessa forma, o algoritmo não reconhece a palavra em momentos anteriores e permite que a hashtag volte ao ranking. Outras duas hashtags importantes que apareceram nas coletas foram: #GeorgeFloydProtests e #protests2020, que funcionam tanto para articular os protestos de rua, quanto para uma transmissão em tempo real de tudo o que acontece ao redor do mundo.

O formato #BLACK_LIVES_MATTER e a hashtag #GeorgeFloydProtests também apareceram no trending brasileiro, mas a hashtag que ganhou força mesmo foi a versão “tupiniquim”: #VidasNegrasImportam, que divide espaço no trending do dia 31, com as hashtags: #Somos57milhões e #Somos70porcento, que protagonizam uma discussão entre eleitores de Bolsonaro e os 70% da população que votou em outro candidato na eleição de 2018, o que pode ser visto na Figura 6.

Figura 6
Trending Topics Brasil 31 de maio de 2020

É interessante observar que, mesmo a hashtag do movimento BLM estando presente no Brasil e tendo ganho uma tradução própria, ainda assim, em 2020 é possível perceber que a militância bolsonarista era muito mais atuante no trending do que os movimentos sociais. No dia 1 junho, a hashtag #VidasNegrasImportam ganha mais força entre as primeiras colocadas do ranking brasileiro, mas a hashtag #BlackLivesMatter só volta para o topo do ranking norte-americano dia 2. Agora uma nova hashtag ocupa o topo: #BlackOutTuesday, que convoca os manifestantes para “cancelar” a terça-feira e se dedicarem aos protestos. Isso pode ser visto na Figura 7.

Figura 7
Trending Topics EUA 2 de junho de 2020

A ideia de cancelamento em prol da manifestação já é uma prática mais comum na ação coletiva. Um exemplo próximo ao nosso tema em debate poderia ser o famoso boicote aos ônibus de Montgomery, depois da prisão de Rosa Parks, que levou ao estopim do movimento pelos direitos civis. A diferença aqui é que a organização em Montgomery foi a partir da vizinhança de Rosa Parks, já no caso de 2020 a mobilização acontece pela internet.

No dia 3, as hashtags #WhiteLivesMatter e #allLivesMatter também voltam a aparecer no ranking dos EUA, como uma tentativa de amenizar os ânimos dos manifestantes em prol da política antirracismo. Em contrapartida, mais uma vez a hashtag do movimento BLM ganha um novo formato para aparecer no ranking, agora #blacklifematters. Ao lado das disputas entre “blacks” e “whites”, surgem também hashtags que denotam uma disputa ideológica entre apoiadores e detratores de Donald Trump, protagonizada pelas hashtags #TrumpOut2020 e #AmericaConTrump, como pode ser visto na Figura 8.

Figura 8
Trending Topics EUA 3 e 4 de junho de 2020

A Figura 9 mostra que, no Brasil, do dia 1 ao dia 3 de junho as hashtags do trending norte-americano aparecem de forma recorrente no ranking brasileiro, mostrando a influência da pauta internacional no Twitter nacional.

Figura 9
Trending Topics Brasil 1, 2 e 3 de junho de 2020

As hashtags #BlackLivesMatter, #BlackOutTuesday e WhiteLivesMatter também foram acompanhadas de outras hashtags locais como a #anonymousbrasil, por exemplo. No Brasil, o Trending Topics não apresenta a mesma homogeneidade de discussão como nos EUA. Por aqui, muitos temas atravessaram a pauta dos protestos contra o racismo. Na Figura 9 é possível ver hashtags reativas ao movimento BLM, outras puxando debates políticos locais como a questão do PL 2630/2020 (projeto de lei que institui a lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na Internet, o chamado “projeto das Fake News”) e outras em ataque aos reacionários como a hashtag #Antifacista. Muito provavelmente, é essa capilaridade de hashtags do trending do Brasil que dificulta que o ativismo passe da internet e avance para as ruas, pois não há uma convergência na direção de protestos como se vê no trending dos EUA. Deve-se enfatizar também que, embora ambos os países estivessem com medidas de confinamento durante a pandemia, essa não foi óbice para manifestações presenciais nos EUA.

Análise de Rede de Palavras

A diferença na estrutura tipográfica da dinâmica dos dois movimentos pode ser melhor analisada pela comparação da rede de palavras, que mostra a correlação dos termos a partir de nós e arestas. As figuras 10, 11 e 12 apresentadas a seguir são as redes de palavras formadas a partir das hashtags #BlackLivesMatter, #VidasNegrasImportam e #WhiteLivesMatter. Essas hashtags foram escolhidas porque desvelaram a principal narrativa do Movimento BLM, a versão brasileira da hashtag e a contranarrativa, ou a narrativa de enfrentamento de grupos oposicionistas ao movimento BLM.

Figura 10
Rede de Palavras da #BlackLivesMatter

Figura 11
Rede de Palavras da #VidasNegrasImportam

Figura 12
Rede de Palavras da #WhiteLivesMatter

Na rede de palavras da Figura 10, é possível perceber que as palavras “black” e “people” complementam a centralidade da rede com a #BlackLivesMatter. Para um lado da rede, consolida-se um laço forte entre “#georgefloyd” e “#justicegerogefloyd” que aparecem à periferia da rede. Ao outro lado da rede, as palavras “racism”, “White” e “police” formam outro cluster de laços. Assim como, as palavras “justice”, “protest” e “right” consolidam outro grupo de termos entrelaçados.

Isso revela pelo menos duas estratégias discursivas construídas a partir da hashtag #BlackLivesMatter. Por um lado, há a integração entre a hashtag principal e outras duas hashtags que carregam o nome de George Floyd. E, no lado oposto, está a narrativa que elenca discursivamente a polícia, os brancos e o racismo. Esses dados podem ser interpretados como um indicio do aferimento da hipótese (h3), em que identificamos a técnica de swarming (Ugarte, 2008) sendo utilizada para fomentar o debate dentro da rede.

Na Figura 11, a hashtag #VidasNegrasImportam é o epicentro da rede, mas consolida um laço extraforte com a hashtag #BlackLivesMatter. A rede brasileira conecta a palavra “racismo” com pautas que trazem as palavras “luta”, “contra” e “precisamos”, e revelam a ideia de que é um tema a ser combatido. Por outro lado, as palavras “branco”, “policial” e “homem” formam um cluster entrelaçado com “vídeo” e “nota de repúdio”, apontado para o caso norte-americano.

Por fim, na rede brasileira, também se nota uma abordagem em relação ao isolamento social, que a princípio deveria inibir qualquer tipo de manifestação de rua. As palavras “pandemia”, “durante”, “ficar”, “casa”, revelam uma possível articulação para restringir os protestos no país, e mostra que a pandemia da Covid-19 teve papel decisivo na articulação de narrativas reacionárias no caso brasileiro, ao contrário do que é afirmado em estudos recentes (Shahin et al., 2024).

Já, na rede de palavras da hashtag #WhiteLivesMatter, há uma estratégia que visa articular discursivamente que os próprios negros são racistas, assim, é possível perceber nos laços fortes construídos a partir dos termos “people” e “black” que se aproxima muito do cluster construído pelas hashtags #WhiteLivesMatter; #allLivesMatter; e #BlackLivesMatter. Como pôde ser visto na Figura 12.

DISCUSSÃO

O simples fato da hashtag #BlackLivesMatter entrar no Trending Topics do Brasil, no mesmo período que está em alta nos Estados Unidos, já sinaliza para a internacionalização do movimento BLM e de que os públicos nas redes sociais se consolidam a partir de afetos, como Papacharissi (2014) propõe. Além disso, percebemos o uso da forma da hashtag em caixa alta, isto é, #BLACKLIVESMATTER, uma estratégia para ludibriar o algoritmo do Twitter, também se destacando entre as primeiras colocadas no Brasil, que nos dá a percepção de que o público brasileiro estava atento às direções que os norte-americanos estavam seguindo durante a ação. Observa-se, ainda, a utilização da expressão traduzida para o português #VidasNegrasImportam, que também revela o quanto o movimento norte-americano exerce influência sobre as ações coletivas antirracismo no Brasil.

O fluxo de ranqueamento nos ajudou a perceber como a pauta foi abordada nos dois países, assim como nos dá noção da importância que cada país deu ao tema, de acordo com a colocação da hashtag no ranking. Já a rede de palavras contribui para que sejam identificadas as narrativas que se criaram em torno do tema. Percebemos que a questão do isolamento social, por exemplo, foi mais relevante para os brasileiros do que para os norte-americanos. A análise comprova a hipótese de que houve um transbordamento territorial da proposição do movimento BLM, que foi possibilitado pela mudança da lógica da ação coletiva, e corroborou, assim, as proposições vigentes na literatura que apontam para a possibilidade de uma organização coletiva descentralizada e des-hierarquizada, atravessada integralmente pelos afetos e pelas narrativas num agrupamento ao estilo de swarming. Contudo, novas hipóteses de pesquisa podem surgir se considerarmos a dramaticidade do caso George Floyd. Ao que tudo indica, as pessoas são mobilizadas com mais facilidade quando há uma situação trágica, com vídeos e apoio de atores políticos conhecidos pela militância virtual, o que contorna os filtros e modulações algorítmicas sob controle das big techs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sugerir que as pessoas deveriam ficar em casa em vez de fazer protestos de rua funcionava como uma contranarrativa, pois o isolamento social havia se tornado uma prerrogativa atribuída aos atores de oposição ao governo, já que o presidente Bolsonaro minimizava a questão pandêmica. Ou seja, a argumentação do isolamento social no caso do #BlackLivesMatter, no Brasil, buscava coibir qualquer tipo de protesto antirracismo, que, por convenção, está ligada a grupos mais à esquerda do espectro ideológico brasileiro.

No entanto, respondendo às questões de pesquisa postas no início deste artigo, as análises acima fornecem evidências de como os movimentos sociais, atravessados pelas plataformas digitais de rede sociais online, como o antigo Twitter, conseguem estabelecer e aumentar o engajamento internacional, provocando inclusive impactos no processo de agendamento e elaboração de políticas públicas (Pereira et al., 2024). Isso coloca uma ampla agenda de pesquisa sobre as novas formas de mobilização de novos atores e de seus impactos nos processos de agendamento e elaboração de políticas públicas, articulando análises quantitativas, como a relatada neste texto, com estudos de cunho qualitativo, que não foi possível empreender nos limites deste estudo.

  • Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo.
  • O relatório de revisão por pares está disponível neste link

REFERÊNCIAS

  • Abers, R. N.; Bülow, M. von. (2021). Solidarity during the pandemic in Brazil: Creative recombinations in social movement frames and repertoires. In M. Fernandez, & C. Machado (Orgs.), COVID-19’s political challenges in Latin America: Latin American societies. Springer, Cham, p. 87-101. https://doi.org/10.1007/978-3-030-77602-2_7
    » https://doi.org/10.1007/978-3-030-77602-2_7
  • Alcântara, L. M. (2015). Ciberativismo e movimentos sociais: mapeando discussões. Aurora, 8(23). https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/22474
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/22474
  • Anderson, M.; Smith, A; Caiazza, T. (2018, July).“Activism in the Social Media Age. Pew Research Center https://www.pewresearch.org/internet/2018/07/11/activism-in-the-social-media-age/
    » https://www.pewresearch.org/internet/2018/07/11/activism-in-the-social-media-age/
  • Asur, A.; Huberman, B.; Szabo, G.; Wang, C. (2011). Trends in social media: persistence and decay. SSRN Electronic Journal https://doi.org/10.2139/ssrn.1755748
    » https://doi.org/10.2139/ssrn.1755748
  • Bennett, W. L., & Livingston, S. (2018). The disinformation order: Disruptive communication and the decline of democratic institutions. European Journal of Communication, 33(2), 122-139. https://doi.org/10.1177/0267323118760317
    » https://doi.org/10.1177/0267323118760317
  • Bennett, W. L.; Segerberg, A. (2012). The logic of connective action. Information, Communication & Society, 15(5), 739-768. https://doi.org/10.1080/1369118X.2012.670661
    » https://doi.org/10.1080/1369118X.2012.670661
  • Bimber, B.; Flanagin, A. Stohl, C. (2005, Nov.). Reconceptualizing Collective Action in the Contemporary Media Environment. Communication Theory https://doi.org/10.1111/j.1468-2885.2005.tb00340.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1468-2885.2005.tb00340.x
  • Black Lives Matter. (2024). Site Oficial do Movimento Black Lives Matter https://BlackLivesMatter.com
    » https://BlackLivesMatter.com
  • Bruns, A.; Burgess, J. (2015). Twitter Hashtags from ad hoc to calculated publics. In Hashtag publics: the power and politics of discursive networks. Ed. Nathan Rambukkana, Peter Lang Publishing, Inc. New York.
  • Bruns, A.; Burgess, J. E. (2011). The use of Twitter hashtags in the formation of ad hoc publics. In: Proceedings of the 6th European Consortium for Political Research (ECPR). https://ecpr.eu/Events/Event/PaperDetails/8779
    » https://ecpr.eu/Events/Event/PaperDetails/8779
  • Carney. N. (2016). All lives matter, but so does race: Black Lives Matter and the evolving role of social media. Humanity & Society, 40(2). https://doi.org/10.1177/0160597616643868
    » https://doi.org/10.1177/0160597616643868
  • Chagas, V. (2019). O que está acontecendo? O que os Trending Topics podem nos dizer a respeito de ações políticas coletivamente orquestradas. Trabalho apresentado ao 2º Congresso do INCT.DD,– 3 a 4 de outubro, Bahia, Salvador.
  • Chagas, V. (2022). WhatsApp and Digital Astroturfing: a Social Network Analysis of Brazilian Political Discussion Groups of Bolsonaro’s Supporters. International Journal of Communication, 16 https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/17296
    » https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/17296
  • Chatelain, M. & Asoka, K. (2015, Verão). Women and Black Lives Matter: An Interview with Marcia Chatelain. Dissent Magazine https://www.dissentmagazine.org/article/women-black-lives-matter-interview-marcia-chatelain
    » https://www.dissentmagazine.org/article/women-black-lives-matter-interview-marcia-chatelain
  • Genova, N. (2019). The “migrant crisis” as racial crisis: do Black Lives Matter in Europe? In Race and Crisis, London: Routledge. https://doi.org/10.4324/9780429401619-2
    » https://doi.org/10.4324/9780429401619-2
  • Goswami, M. (2018). Social media and hashtag activism: Liberty, dignity and change in journalism. Kanishka Publication.
  • Hagen, S. (2019). Rendering legible the ephemerality of 4chan/pol/. In Open Intelligence Lab (OIL). https://oilab.eu/rendering-legible-the-ephemerality-of-4chanpol/
    » https://oilab.eu/rendering-legible-the-ephemerality-of-4chanpol/
  • Lebron, C. J. (2023). The making of Black Lives Matter: A brief history of an idea. Oxford: Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/oso/9780197577349.001.0001
    » https://doi.org/10.1093/oso/9780197577349.001.0001
  • Lütticke, M. (2014, 20 de agosto). Entenda o caso Michael Brown e os protestos em Ferguson. DW. https://www.dw.com/pt-br/entenda-o-caso-michael-brown-e-os-protestos-em-ferguson/a-17861142
    » https://www.dw.com/pt-br/entenda-o-caso-michael-brown-e-os-protestos-em-ferguson/a-17861142
  • Malini, F. & Amtoun, H. (org.). (2013). A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina.
  • Mundt, M.; Ross, K. & Burnett, C. (2018). Scaling social movements through social media: The case of Black Lives Matter. Social media and society https://doi.org/10.1177/2056305118807911
    » https://doi.org/10.1177/2056305118807911
  • Olson, M. (2011). A lógica da Ação Coletiva: os benefícios públicos e uma terodia dos grupos sociais / Mancur Olson; tradução Fabio Fernandes – 1 ed. 1. Reimp - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
  • Papacharissi, Z. (2014). Affective Publics: sentiment, technology and politics. New York: Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199999736.001.0001
    » https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199999736.001.0001
  • Penrice, R. (2022) Cracking the wire during Black Lives Matter. New York: Fayetteville Mafia Press.
  • Pereira, C. L. P.; Mitshcell-Walthour, G. L.; & Morrison, M. K. C (2024). Black Lives Matter in Latin America: continuities in racism, cross-national resistance and mobilization in Americas. Switzerland: Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-031-39904-6
    » https://doi.org/10.1007/978-3-031-39904-6
  • Ramos, R. R. (2019). Batalha de Hashtags: uma proposta metodológica para monitoramento de controvérsias políticas no Twitter 105 f. [Dissertação de Mestrado em Comunicação]. Universidade Federal Fluminense, Niterói.
  • Recuero, R., Zago, G., Bastos, M. T. (2015). Hashtags Functions in the Protests Across Brazil. SAGE Open, 5(2), pp. 1-14. doi: https://doi.org/10.1177/2158244015586000
    » https://doi.org/10.1177/2158244015586000
  • Recuero, R.; Soares, F.; &Vinhas, O. (2021). Discursive strategies for disinformation on WhatsApp and Twitter during the 2018 Brazilian presidential election. First Monday, 26, 1-17. https://doi.org/10.5210/fm.v26i1.10551
    » https://doi.org/10.5210/fm.v26i1.10551
  • Risoto, C. Saraiva, A. Nascimento, L. (2019). #Elenão: conversação política em rede e trama discursiva do movimento contra Bolsonaro no Twitter Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019.
  • Ruffin, H. G. (2015, 23 de agosto). Black lives matter: the growth of a new social justice movement. Black Past. https://www.blackpast.org/african-american-history/black-lives-matter-growth-new-social-justice-movement/
    » https://www.blackpast.org/african-american-history/black-lives-matter-growth-new-social-justice-movement/
  • Shahin, S., Nakahara, J., & Sánchez, M. (2024). Black Lives Matter goes global: Connective action meets cultural hybridity in Brazil, India, and Japan. New Media & Society, 26(1), 216-235. https://doi.org/10.1177/14614448211057106
    » https://doi.org/10.1177/14614448211057106
  • Souza, J.; Lyra, D.; Cavalcanti, J; Simão, R.; Cézar, Z.; Duarte, A. N.; & Brito, A. V. (2014). Análise de redes de palavras baseada em títulos extraídos de um sistema de atendimento. XXXIV Congresso da Sociedade Brasileira de Computação, 279-284. https://sol.sbc.org.br/index.php/brasnam/article/view/6827
    » https://sol.sbc.org.br/index.php/brasnam/article/view/6827
  • Ugarte, D. (2008). O poder das redes. Manual ilustrado para pessoas, organizações e empresas chamadas a praticar o ciberativismo. Porto Alegre: EDIPUCRS.
  • von Bülow, M.; & Dias, T. (2019). O ativismo de hashtags contra e a favor do impeachment de Dilma Rousseff [The hashtag activism in favor and against the impeachment of Dilma Rousseff]. Revista Crítica de Ciências Sociais, 120, 5–32. https://scielo.pt/pdf/rccs/n120/n120a01.pdf
    » https://scielo.pt/pdf/rccs/n120/n120a01.pdf
  • Webber, W., Moffat, A., & Zobel, J. (2010). A similarity measure for indefinite rankings. ACM Transactions on Information Systems (TOIS), 28(4), 1-38. https://doi.org/10.1145/1852102.1852106
    » https://doi.org/10.1145/1852102.1852106

Editado por

  • Editores convidados:
    Lizandra Serafim, Leonardo Barros Soares e Matheus Mazzilli Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2024
  • Aceito
    13 Mar 2025
location_on
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo Cep: 01313-902, +55 (11) 3799-7898 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadernosgpc-redacao@fgv.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro