RESUMO
Este artigo documenta quatro inovações sociais para promoção da segurança alimentar em São Paulo durante a pandemia de Covid-19: a distribuição de refeições saudáveis pela Agência Solano Trindade na periferia sul da cidade, a distribuição de cestas básicas na favela São Remo, as “cestas abertas” da Casa do Povo, no centro, e as Cozinhas Solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). A análise destaca como os vínculos comunitários e parcerias intersetoriais contribuíram para enfrentar a fome e renovar práticas cidadãs. O estudo, a partir da análise dos modos de institucionalização praticados pelas iniciativas, destaca a relevância de estratégias bottom-up para flexibilizar modelo tradicionalmente top-down de formulação de políticas públicas. O método incluiu revisão bibliográfica, 29 entrevistas semiestruturadas e observações de campo, explorando as trajetórias, dificuldades, adaptações e sustentabilidade dessas inovações sociais.
Palavras-chave:
inovações sociais; Covid-19; insegurança alimentar; modos de institucionalização; participação social
RESUMEN
Este artículo documenta cuatro innovaciones sociales para promover la seguridad alimentaria en São Paulo durante la pandemia de COVID-19: la distribución de comidas saludables por parte de la Agencia Solano Trindade en la periferia sur de la ciudad, la distribución de canastas básicas de alimentos en la favela São Remo, las “cestas de alimentos abiertas” de la Casa do Povo, en el centro, y los Comedores Solidarios del Movimiento de los Trabajadores Sin Techo (MTST). El análisis destaca cómo los vínculos comunitarios y las asociaciones intersectoriales han contribuido a abordar el hambre y renovar las prácticas cívicas. El estudio, basado en el análisis de los métodos de institucionalización practicados por las iniciativas, destaca la relevancia de las estrategias de abajo hacia arriba para flexibilizar el modelo tradicionalmente de arriba hacia abajo de formulación de políticas públicas. El método incluyó revisión bibliográfica, 29 entrevistas semiestructuradas y observaciones de campo, explorando las trayectorias, dificultades, adaptaciones y sostenibilidad de esas innovaciones sociales.
Palabras Clave:
innovaciones sociales; COVID-19; inseguridad alimentaria; modos de institucionalización; participación social
INTRODUÇÃO
O cenário de insegurança alimentar no Brasil foi agravado pela pandemia de Covid-19, que atingiu o país em março de 2020 e aprofundou as desigualdades, especialmente nas periferias das grandes cidades. A insegurança alimentar, conforme definida pela FAO (1996), refere-se à falta de acesso físico, social e econômico suficiente, seguro e nutritivo a alimentos que atendam às necessidades dietéticas para uma vida ativa e saudável. Esse contexto foi exacerbado pela demora do governo federal, então presidido por Jair Bolsonaro, em reconhecer a gravidade da crise sanitária (Werneck & Carvalho, 2020).
Aquilo que as pesquisas científicas mostraram, a partir de 2021, sobre a maior precarização do trabalho, a diminuição da renda da população e o consequente agravamento da insegurança alimentar nas periferias (Fontes, 2021), os moradores e lideranças comunitárias perceberam quase que imediatamente e se mobilizaram para reverter ou, pelo menos, minimizar o problema. Em pesquisa realizada pela Rede de Pesquisa Solidária (Castello et al., 2020), entre 5 e 11 de maio de 2020, junto a lideranças comunitárias de diversas regiões metropolitanas do Brasil, identificou-se que, para 74% dos entrevistados, a insegurança alimentar era um dos principais problemas vividos por suas comunidades e 61% fizeram referência à perda de trabalho, emprego e renda. Assim, foi a percepção imediata da gravidade do problema que motivou a ação social nesses territórios.
Diante dessa situação, lideranças comunitárias desempenharam um papel central, respondendo de forma rápida e emergencial às necessidades das populações mais vulneráveis, com destaque para ações voltadas à promoção da segurança alimentar. Soluções criativas e adaptáveis à realidade de cada território, aqui entendidas como inovações sociais (Smith et al., 2017), surgiram em diversos locais da cidade de São Paulo. Argumentamos que essas inovações sociais, especialmente aquelas que passaram por algum modo de institucionalização ao longo do processo (Lavalle & Szwako, 2023), podem contribuir para a flexibilização do modelo top-down de implementação de políticas públicas, tornando-as mais porosas ao modelo bottom-up, que mobiliza a experiência e o conhecimento de lideranças comunitárias que estão em contato com as especificidades do ambiente em que vivem.
Dentre as diversas iniciativas que emergiram no contexto da pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo, destacam-se quatro casos representativos que ilustram diferentes formas de resposta às necessidades urgentes das populações vulneráveis. A Agência Solano Trindade, localizada na periferia sul da cidade, organizou a distribuição de refeições saudáveis, valorizou ingredientes locais e promoveu a economia solidária. Na favela São Remo, a distribuição universal de cestas básicas garantiu acesso imediato a alimentos essenciais para milhares de famílias. No centro da cidade, a Casa do Povo implementou a entrega de “cestas abertas”, que incluíam alimentos frescos e produtos diversificados, em um formato que promovia a autonomia dos beneficiários. Já o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) criou as Cozinhas Solidárias, que ofereceram refeições gratuitas em diversas regiões da cidade, com o objetivo de mitigar os impactos da fome em comunidades marginalizadas.
A partir da observação desses casos, esta pesquisa busca responder à seguinte questão: Quais foram os modos de institucionalização derivados ou potenciais das inovações sociais surgidas no contexto da pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo? Ao responder essa pergunta, pretendemos, em termos analíticos, aproximar a literatura sobre inovações sociais, que foca em iniciativas da sociedade para resolução de problemas públicos, da literatura sobre institucionalização dos atores sociais, que tem como foco analisar a sustentabilidade dessas iniciativas.
Apesar de as inovações sociais aqui estudadas terem como foco a dimensão da segurança alimentar, essas ações se articularam com outras iniciativas na área de saúde, geração de trabalho e renda, além da atuação político-institucional, o que permite caracterizá-las como intersetoriais. Além disso, essas iniciativas recorreram a diversos modos de institucionalização a partir de sua interação com o Estado no intuito de promover uma maior sustentabilidade das ações realizadas pelas comunidades. Lavalle e Szwako (2023) identificam quatro modos de institucionalização: programático, posicional, simbólico e prático. Ao longo da descrição dos casos, procuraremos apresentar como os três primeiros modos de institucionalização são ativados ou não pelas inovações sociais aqui analisadas.
A presente pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, que utiliza técnicas de coleta de dados tanto primárias quanto secundárias. Entre as técnicas primárias, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com lideranças comunitárias que desempenharam um papel central nas iniciativas analisadas. Essas lideranças foram identificadas por meio da técnica de bola de neve, que permite acessar atores-chave nos casos estudados. Além disso, foi realizado trabalho de campo com observações diretas em cada um dos locais investigados.
As técnicas secundárias incluíram a análise de matérias jornalísticas, sites das instituições envolvidas e suas redes sociais, que foram utilizadas para verificar datas e informações pontuais. Também foram consultados relatórios e outros documentos relevantes para complementar a interpretação dos dados.
Em relação às entrevistas, foi elaborado um roteiro semiestruturado adaptado às especificidades de cada caso, que incorporou situações e variáveis específicas para aprofundar as dinâmicas observadas. As entrevistas foram realizadas ao longo de 2023 e 2024 pelos pesquisadores responsáveis, após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido pelos participantes. As entrevistas foram gravadas, transcritas e anonimizadas para garantir a confidencialidade dos dados. A duração média das entrevistas foi de uma hora e a análise foi realizada por meio de codificação manual, de forma a identificar os núcleos temáticos que permitiram realizar comparações entre os casos. No total, foram realizadas 29 entrevistas, distribuídas da seguinte forma: oito na Casa do Povo, quatro na Agência Solano Trindade, oito em São Remo e nove nas Cozinhas Solidárias. Os registros de campo obtidos durante as visitas e observações foram documentados em um diário de campo, que foi posteriormente transcrito para análise.
Os dados foram sistematizados em uma tabela a partir das categorias propostas por Smith et al. (2017) com acréscimo de outras categorias elaboradas pela equipe. As análises foram discutidas coletivamente pelo grupo de pesquisa e em seminários e rodas de conversa com alguns dos interlocutores da pesquisa.
O artigo está dividido em outras três partes, além desta introdução. Na próxima seção, apresentaremos um breve enquadramento teórico a respeito do que estamos chamando de “inovações sociais” e de “modos de institucionalização”. Em seguida, detalharemos cada um dos casos analisados, com foco nas trajetórias das inovações sociais, suas dificuldades, adaptações e capacidade de sustentabilidade. Por fim, reservamos algumas linhas para as considerações finais.
INOVAÇÕES SOCIAIS EM UM CONTEXTO DE CRISE E MODOS DE INSTITUCIONALIZAÇÃO
Na década de 1970, a academia começou a estudar a inovação social como um conceito. Taylor (1970) desenvolveu sua pesquisa sobre a reabilitação psicológica de populações desfavorecidas e concluiu que a inovação social atenderia às necessidades sociais, materializando-se em uma “invenção social”. Nesse sentido, Cloutier (2003) entende a inovação social como uma resposta a situações sociais desfavoráveis que busca o bem-estar dos indivíduos ou da comunidade por meio de ações locais e mudanças sustentáveis.
Pel et al. (2020) definem inovação social como um processo de mudança nas relações sociais. Mais especificamente, afirmam que a inovação social é uma propriedade qualitativa de ideias, objetos, atividades ou (grupos de) pessoas, que podem ser consideradas socialmente inovadoras na medida em que contribuem para a transformação dessas relações sociais. De forma semelhante, Gasparin et al. (2021) entendem inovação social como produtos e serviços inovadores desenvolvidos para atender a uma necessidade social.
De acordo com Bignetti (2011, p. 3), inovações sociais são “resultado do conhecimento aplicado a necessidades sociais por meio da participação e da cooperação de todos os atores envolvidos, gerando soluções novas e duradouras para grupos sociais, comunidades ou para a sociedade em geral”. Desse modo, há certo consenso na literatura de que as inovações sociais: 1) estão focadas em satisfazer as necessidades latentes da sociedade ou surgem como resposta a situações sociais desfavoráveis; 2) partem de ações locais e de um conhecimento prévio aplicado a essas necessidades; 3) têm o potencial de transformar as relações sociais.
A inovação social pode ser compreendida sob diferentes perspectivas, que variam em função de seus objetivos e dinâmicas. Inovações Sociais Transformadoras e Inovações de Base (Transformative Social Innovation e Grassroots Innovation) são teorias atuais que representam abordagens contrastantes, mas complementares, que exploram a relação entre a mudança social e as instituições. Enquanto a Inovação Social Transformadora depende, em alguma medida, de processos de institucionalização para desafiar e substituir estruturas dominantes (Pel et al., 2020), a Inovação de Base concentra-se nas iniciativas originadas diretamente das comunidades, destacando o poder do povo em resolver problemas localizados (Seyfang et al., 2007; Hossain, 2016, 2018).
Para Avelino et al. (2020), o empoderamento é tanto uma condição quanto um objetivo da Inovação Social Inovadora, pois possibilita que indivíduos e grupos transformem relações sociais e instituições estabelecidas (De Haan & Rotmans, 2011). Nesse processo, a institucionalização é fundamental para consolidar e amplificar o impacto das inovações sociais, integrando práticas locais a sistemas globais. Essa abordagem muitas vezes requer que o modelo top-down de formulação de políticas públicas seja complementado ou substituído por práticas bottom-up, que valorizam a experiência real e o conhecimento de quem está diretamente conectado ao ambiente em que vive (Transit, 2015; Nascimento, 2020).
Por outro lado, a Inovação de Base surge de iniciativas comunitárias que utilizam conhecimentos, tradições e recursos locais para desenvolver soluções altamente adaptadas às necessidades específicas do contexto (Hossain, 2016). Ao adotar uma abordagem bottom-up, essas inovações refletem o empoderamento de comunidades que, diante de falhas nos sistemas estabelecidos, criam respostas inclusivas e sustentáveis (Gupta, 2013; Smith et al., 2017). Embora enfrentem desafios como acesso limitado a recursos e dificuldades de escalabilidade, as Inovações de Base se destacam pela resiliência e criatividade, e reforçam o papel das comunidades como agentes de transformação social (Gupta, 2020; van Lunenburg et al., 2020). Dessa forma, as Inovações Sociais Transformadoras e as Inovações de Base se complementam ao integrar mudanças estruturais e soluções locais, promovendo um ecossistema de inovação social mais inclusivo e sustentável.
No contexto da pandemia e de agravamento da insegurança alimentar apresentado anteriormente, as favelas e periferias urbanas se tornam um ambiente propício para o florescimento das inovações sociais, pois esses espaços, além de marcados pela desigualdade e falta de acesso aos bens públicos, são também lugares de coabitação e coexistência de vivência de diversas realidades, reafirmando laços de pertencimento e sociabilidade (Souza & Cassab, 2020).
Neste artigo, propomos a articulação da literatura sobre inovações sociais com a literatura sobre as formas de interação entre sociedade e Estado, diálogo que raramente acontece. A partir dessa conexão teórica, pretendemos analisar se e como as inovações sociais surgidas no contexto da pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo foram capazes de se sustentar ao longo do tempo.
O debate sobre as interações sócio-estatais tem ganhado cada vez mais destaque nas Ciências Sociais. Trabalhos recentes avançaram no sentido de demonstrar que as formas de interação entre Estado e sociedade vão além da dicotomia contestação versus cooptação, frequentemente mobilizada pelas teorias clássicas dos movimentos sociais (McAdam et al., 2001). Para lidar com a complexidade dessas relações, a literatura tem empregado conceitos como ativismo institucional (Abers, 2019) e repertórios de interação (Abers et al., 2014). Neste artigo, optamos por utilizar o conceito de modos de interação, com o objetivo de identificar os fatores que favorecem ou dificultam a durabilidade dos efeitos dos movimentos sociais dentro do Estado. Lavalle e Szwako (2023) apontam para quatro possíveis modos de institucionalização: programático, posicional, simbólico e prático. O modo programático tem relação com a criação de corpos administrativos, definição de programas e políticas e a criação de canais permanentes de intermediação entre a sociedade e o Estado. O modo posicional diz respeito à ocupação de cargos dentro da burocracia estatal ou das instituições representativas por ativistas. O modo simbólico se relaciona com a criação de categorias, ressignificação de visões de mundo e reformatação da linguagem do Estado (Szwako & Lavalle, 2019). Por fim, o modo prático se relaciona com uma dimensão mais técnica da institucionalização, com a forma como o Estado implementa as políticas públicas e os instrumentos utilizados. A seguir, analisaremos se e como os modos de institucionalização foram praticados nos nossos estudos de caso e como eles atuaram para a promoção da sustentabilidade das iniciativas.
AGÊNCIA SOLANO TRINDADE E QUILOMBO PERIFÉRICO
A Agência Solano Trindade, organização social criada em 2009 e localizada no bairro do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo, distribuiu alimentos na forma de cestas básicas e de marmitas saudáveis, tanto durante o período mais crítico da pandemia quanto depois. No primeiro ano da pandemia, foram distribuídas cerca de 30 mil cestas básicas com produtos orgânicos. Em torno de 100 mil famílias tiveram acesso a esses alimentos e a Agência foi bem-sucedida em articular uma rede capaz de expandir a distribuição de alimentos.
Antes da pandemia, o foco de atuação da Agência Solano Trindade era o fortalecimento da economia local a partir do incentivo ao “empreendedorismo”. Além disso, a instituição tem tido um papel de destaque na promoção de ações ligadas à cultura, como os saraus e os festivais de música. Com o advento da pandemia, a Agência passou a atuar mais fortemente na questão da segurança alimentar nas periferias.
A ideia de promover uma alimentação saudável nas periferias e combater a insegurança alimentar impulsionou a criação do restaurante Organicamente Rango, ainda em 2017. O restaurante busca promover uma alimentação saudável “na quebrada” e defende a ideia de que “comida sem veneno é direito e não privilégio”, enquadrando a questão da segurança alimentar como uma dimensão fundamental da cidadania. Nas palavras de Thiago Vinícius, líder da Agência, “aqui quem tem dinheiro come. Quem não tem dinheiro come também, já que nosso empreendimento é totalmente ligado ao nosso sonho de dignidade” (Expresso Estadão, 2022).
Do ponto de vista dos modos de institucionalização, a atuação da Agência Solano Trindade tem procurado uma interlocução cada vez maior com o Estado, seja por meio da participação em editais de fomento à cultura (modo programático), como no caso do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), criado em 2003 pela prefeitura de São Paulo, seja por meio da ocupação de cargos representativos (modo posicional). Em termos de institucionalização simbólica, a Agência Solano Trindade tem sido capaz de dar visibilidade pública ao problema da insegurança alimentar nas periferias, possibilitando que esse problema público se torne objeto de políticas públicas.
Um dos principais frutos do processo de institucionalização da Agência aconteceu nas eleições municipais de 2020, quando o Quilombo Periférico, mandato coletivo composto por lideranças periféricas da cidade de São Paulo, foi eleito para ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de São Paulo. Entre as lideranças que compunham o mandato, estava Alex Barcellos, membro da Agência Solano Trindade. No caso do Quilombo Periférico, os modos de institucionalização praticados foram tanto o posicional, com a eleição de Alex Barcellos, quanto o programático, com a proposição e aprovação de projetos de lei aderentes às demandas da Agência Solano Trindade e das demais organizações periféricas que compõem o mandato.
A atuação das organizações da sociedade civil durante a pandemia foi um dos fatores que fortaleceu a conexão entre lideranças periféricas e fez com que o caráter transterritorial das iniciativas surgidas durante a pandemia de Covid-19 tivesse também uma expressão na política institucional. Desde o início, o foco da atuação do mandato do Quilombo Periférico tem sido a promoção de políticas públicas para o combate ao racismo estrutural e institucional. Nas palavras do próprio mandato, eles pretendem “hackear” e “aquilombar” a política institucional, promovendo a ocupação da política com corpos historicamente silenciados.
Após o período mais crítico da pandemia, em que muitas doações foram recebidas, tanto de pessoas físicas quanto de empresas e órgãos privados, o financiamento das iniciativas tem sido um aspecto desafiador. No auge da pandemia, a Agência recebeu doações de empresas privadas e instituições internacionais. O financiamento da organização inglesa The Caring Family Foundation tem possibilitado a continuidade de parte das atividades relacionadas à segurança alimentar, como a entrega de 750 refeições por dia para moradores de favelas e ocupações da Zona Sul de São Paulo. O fato de a Agência Solano Trindade ter dependido de doações de empresas privadas no auge da pandemia pode apontar para uma fraca institucionalização da organização, algo que, de acordo com nossos interlocutores, pretende ser desenvolvido nos próximos anos.
CASA DO POVO
A Casa do Povo (CdP) é um Centro Cultural Comunitário localizado no bairro do Bom Retiro. O prédio foi fundado em 1946 e inaugurado em 1953 por uma parte da comunidade judaica, com o objetivo de promover a cultura judaica e constituir um espaço de resistência e memória de forma apartidária. Habitada por vários grupos, movimentos e coletivos, a CdP atua no campo da cultura por meio de uma programação transdisciplinar, processual que tem a arte como ferramenta crítica no processo de transformação social.
Durante a Pandemia da Covid-19, a CdP tornou-se um espaço de articulação de estratégias de apoio à comunidade e às pessoas mais vulneráveis que moram na região. As atividades artísticas e culturais foram interrompidas e a CdP foi se reestruturando para realizar ações de apoio à comunidade por meio de um novo eixo denominado “Articulação comunitária”, que deu origem às “frentes de ação”.
A Cesta Aberta surgiu como um desdobramento de uma frente de ação desenvolvida no contexto de emergência sanitária denominada “Banquinha do Auxílio Emergencial”, que por meio de um cadastro das pessoas do bairro permitiu elaborar um mapeamento daqueles que estavam sob algum grau de insegurança alimentar. Nesse mesmo momento, a CdP começou a receber cestas básicas da prefeitura, o que permitiu organizar uma primeira distribuição de alimentos, baseada no cadastro surgido na Banquinha do Auxílio. A partir daí, a CdP começou a receber doações de alimentos de maneira sistemática, tanto da prefeitura, quanto do Sesc (pelo programa Mesa Brasil) e de organizações e movimentos como Casa Verbo, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP), Serviço Social do Comércio (SESC), Instituto Chão, Armazém do Campo, entre outros.
O cadastro feito na “Banquinha Auxílio Emergencial” foi fundamental para organizar a distribuição das cestas básicas. Esse cadastro foi completado após a organização das primeiras distribuições de alimentos. Várias pessoas foram contatadas pela comunidade escolar, mas a maioria das pessoas ficaram sabendo via boca-boca logo depois da primeira cesta aberta. Isso fez com que o cadastro fosse completado: “Juntando esse mapeamento com essas doações, a Cdp passou a convocar essas pessoas que estavam no apoio do auxílio emergencial (...) Começaram a fazer um cadastro e em seguida tinham 250 famílias cadastradas. A maioria dessas pessoas eram imigrantes (...) 70% imigrantes”, nos relatou uma das coordenadoras do Cesta Aberta. Também foi criado um grupo de Whatsapp para compartilhar as informações.
A Cesta Aberta foi a maior iniciativa da CdP durante a pandemia e a principal inovação social. Diferentemente de outros projetos de cesta básica, na CdP, as doações eram organizadas numa dinâmica de cesta aberta, que correspondia ao tipo de alimentação mais frequente nos diversos grupos sociais. A Cesta Aberta foi, então, uma inovação social que respondeu a uma adaptação para melhor proporcionar alimentos segundo a variada população do território. “Cada pessoa escolhe, aqui é bairro de imigrantes, os hábitos alimentares são bem diferentes, tem muita gente que não come tudo que vem na cesta, não sabe o que que é couve, não como feijão, sei lá”, relatou uma das articuladoras.
O público-alvo, em sua maioria, era formado por pessoas migrantes da América Latina, especialmente da Bolívia. Muitas dessas pessoas trabalhavam na indústria têxtil de maneira “informal” e, portanto, durante a pandemia perderam sua renda e empregos. A maioria eram mulheres moradoras dos cortiços, pensões e ocupações do bairro.
Em 2021 a situação de insegurança alimentar se agravou, mas o número de doações recebidas diminuiu, o que dificultou o atendimento das 250 famílias anteriormente atendidas. A CdP deu apoio financeiro para continuar com o projeto por meio de um novo formato, denominado “Cesta Aberta na Rua”. Assim, o grupo de pessoas que atuavam na Cesta Aberta passou a assistir famílias que moravam nas pensões e cortiços do bairro. Essas visitas eram feitas por um grupo de seis pessoas aproximadamente, nos fins de semana, duas vezes por mês. A seleção das famílias que seriam contempladas pela Cesta Aberta passou a se basear nos critérios de vulnerabilidade determinados a partir de um mapeamento feito por visitas domiciliares o que permitiu entender o nível de insegurança alimentar de cada uma das pessoas e famílias: “Visitar as pessoas levou a gente a conseguir visualizar isso melhor”, nos disse um dos membros do projeto.
Hoje a CA atende uma vez por mês cerca de 100 famílias e distribui alimentos in natura e itens de cesta básica. O requisito para acessar a cesta é ou residir ou trabalhar no Bom Retiro e estar numas dessas camadas de insegurança alimentar. Além disso, a Cesta Aberta realiza jantares coletivos quinzenalmente na cozinha da Casa do Povo, no qual são preparadas refeições pela equipe do voluntariado e famílias assistidas, onde as pessoas se sentam à mesa, conversam e organizam o espaço. Os cardápios são pensados coletivamente a partir do desejo do grupo, e buscam trazer uma refeição saudável, de preparo acessível e saborosa.
O caso da Cesta Aberta não foi institucionalizado até mesmo porque a natureza e as práticas desenvolvidas na Casa do Povo não têm a institucionalização como horizonte, dado seu caráter apartidário e fora das lógicas estatais. No entanto, o registro dessa inovação nos parece relevante na medida em que a experiência pode apontar para um modo de institucionalização simbólico a partir das categorias que orientam suas ações, como a relação com a agricultura familiar, a reivindicação por soberania alimentar e, sobretudo, a autonomia de escolha por parte dos beneficiários.
COLETIVO SÃO REMO CONTRA A COVID
A ação e articulação dos moradores da favela São Remo teve início ainda no mês de março de 2020, apenas algumas semanas depois que a pandemia de Covid-19 chegou oficialmente ao Brasil. A favela São Remo fica localizada no Butantã, Zona Oeste da cidade de São Paulo, ao lado do principal campus da Universidade de São Paulo (USP). Por estar situada em um bairro de classe média e próxima a um dos mais importantes centros de produção de conhecimento científico da América Latina, a comunidade sempre foi foco de projetos sociais desenvolvidos por estudantes, professores e moradores em parceria com o poder público e entidades filantrópicas nacionais e internacionais.
Logo no início da pandemia, o Projeto Alavanca, um desses projetos sociais, recebeu uma doação de R$ 49.225,00 da Associação Redes da Maré, que deveria ser destinada para compra e doação de alimentos para os moradores da favela. Com o intuito de dar o melhor destino para os recursos, os membros do Alavanca convidaram outras lideranças e organizações para formarem o “Coletivo São Remo Contra a Covid”, por meio do qual seriam discutidas ações articuladas de enfrentamento da pandemia e de suas consequências. Essa primeira rodada de alimentos foi comprada do MST e priorizou o atendimento a mães solo e pessoas com doenças crônicas.
Na sequência, o Alavanca abriu uma campanha de arrecadação por meio de uma plataforma online de matchfunding, em parceria com a Fundação Tide Setubal. Com isso, foi possível arrecadar cerca de 30 mil reais no total. Além de comprar mais alimentos para a distribuição de cestas básicas, o projeto deu início a um trabalho de confecção de máscaras por meio de costureiras da própria comunidade. As máscaras eram então distribuídas entre a população local. Com isso, buscava-se, ao mesmo tempo, oferecer uma alternativa de trabalho e renda para mulheres desempregadas e atuar na prevenção da Covid-19 no território.
O trabalho desempenhado pelo Alavanca e pelo Coletivo São Remo contra a Covid teve um papel essencial na mobilização local e atendimento dos moradores durante a pandemia e a repercussão de suas ações ganhou destaque em veículos de imprensa. Com isso, no dia 30 de março de 2020, o Instituto Butantã, que também é vizinho da favela, buscou as lideranças locais para desenvolver um projeto-piloto de testagem em massa da população.
O contato inicial do Butantã foi feito via redes sociais com um membro do coletivo cultural Ideologia Fatal, um grupo de hip-hop que promove o Sarau Composição Urbana na favela, na esteira dos coletivos culturais que se expandiram nas periferias de São Paulo nas últimas décadas (Fontes, 2020b). Como eles não faziam parte do Coletivo São Remo contra a Covid, o contato foi enviado para a presidente da Associação Poliesportiva que passou a fazer a intermediação junto ao Butantã. Mesmo adotando formas de ação e mobilização diferentes, o caso aponta para a inevitável conexão territorial entre diferentes gerações de moradores das favelas e periferias que atuam politicamente nesses locais (Fontes, 2020a).
Além de testar, isolar e orientar pessoas que eventualmente estivessem contaminadas, o Butantã buscava realizar um processo de cadastramento e identificação de pessoas com vulnerabilidades para estabelecer um modelo de atuação em outras comunidades. Como contrapartida pelo apoio de entidades e lideranças locais, o Instituto ofereceu a doação de cestas básicas para todas as famílias da comunidade.
Para viabilizar a distribuição das cestas, o primeiro desafio de articulação local já estava vencido, pois as principais lideranças e organizações estavam atuando de forma conjunta no Coletivo. O segundo desafio, relacionado ao conhecimento do perfil e quantidade dos moradores, foi possibilitado por um projeto anteriormente desenvolvido, nesse caso, em parceria com a USP. Entre 2018 e 2019, o Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) realizou um censo demográfico na região, com o apoio de moradores e de outras instituições públicas e privadas (IEA, 2020). Quando o Butantã ofereceu a doação de cestas, as lideranças locais já sabiam que no território abarcado pela favela São Remo residiam 2400 famílias. O Instituto se comprometeu, assim, com a doação trimestral de 2500 cestas básicas, o que ocorreu ao longo de 2020 e 2021.
Uma terceira questão de ordem burocrática foi colocada para as lideranças. Havia a necessidade de uma entidade registrada com CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) regularizado para firmar o acordo com o Butantã e se responsabilizar pelo recebimento das doações. A Associação de Moradores seria a escolha natural, mas ela estava com problemas em seu cadastro junto à Receita Federal. Assim, o Projeto Alavanca se disponibilizou a assumir esse papel.
O primeiro lote de doações chegou em 9 de abril de 2020 e o desafio seguinte era organizar a logística da distribuição de cestas para garantir que todas as famílias de fato recebessem e que não houvesse sobreposição de doações. Com o conhecimento adquirido pela experiência de realização do censo e pela vivência local, as lideranças dividiram as ruas da favela em quadrantes e passaram de casa em casa distribuindo senhas que, depois, seriam trocadas pelas cestas básicas na sede da Associação de Moradores.
Em 2020, doações de pessoas físicas ou entidades filantrópicas chegaram à comunidade em abundância. A destinação dos alimentos, recursos e materiais extras foi o primeiro ponto de atrito entre os membros do Coletivo que deveriam decidir sobre os critérios para a distribuição do excedente. Alguns membros defendiam que as ações deveriam permanecer restritas aos moradores da São Remo, enquanto outros gostariam de atender também comunidades vizinhas.
A partir de 2021, as doações começaram a diminuir e outros atritos surgiram. Acusações de que alguns moradores estariam sendo privilegiados a partir de suas relações pessoais com algumas lideranças ou que as decisões tomadas estavam mais focadas em garantir a repercussão das ações ou o prestígio individual e não em torná-las mais efetivas surgiram de parte a parte. Diante desses desentendimentos e da relativa melhora na situação da pandemia, o coletivo foi se desfazendo. Formou-se, então, um novo grupo, o Coletivo Conexão São Remo, composto apenas pelo projeto Alavanca, pela Associação Poliesportiva, pela Igreja Católica e por lideranças individuais.
No caso da São Remo, a parceria com o poder público e os modos de institucionalização aparecem apenas de forma secundária e são traduzidos em uma diversidade de visões a respeito do Estado e da política de maneira geral. Alguns dos nossos interlocutores são bastante críticos de quaisquer canais de participação ou representação política, pois veem nesses espaços apenas como “encheção de linguiça”, uma vez que as políticas públicas “não chegam aqui”. Mesmo assim, atuam em parceria com órgãos públicos como receptores e distribuidores de cestas básicas ou recursos públicos.
Em outros casos, a aposta institucional era mais forte e as lideranças locais passaram a atuar em conselhos gestores de políticas públicas, sobretudo no Conselho da Unidade Básica de Saúde (UBS) local ou como operadores locais (brokers) de mandatos parlamentares (Hoyler, 2022). Por fim, uma leitura realizada por alguns de nossos interlocutores aponta a falta de experiência ou conhecimento sobre o funcionamento do Estado por parte das próprias lideranças locais como principal problema dessa relação. Nesse sentido, a falta de efetividade das ações do Estado estaria nas demandas apresentadas aos parlamentares e gestores públicos, pois as pessoas da comunidade pediriam “pequenas doações, como camisas de futebol, ou outras doações pontuais ao invés de fazer um convênio ou pedido maior”.
Assim, entre a rejeição e adesão institucional, há contradições internas, leituras diversas e mudanças de postura que observamos ao longo do tempo. No caso da São Remo, a institucionalização das ações sociais que pudemos observar é bastante frágil e ocorreu sobretudo de modo posicional, com a ocupação de cargos no legislativo local ou em conselhos gestores ou ainda com convênios pontuais com a prefeitura.
Além disso, tal como no caso da Casa do Povo, a experiência de distribuição universal de cestas para todas as famílias da comunidade pode apontar um importante aprendizado em termos de políticas públicas e um potencial de institucionalização simbólica. A universalização da assistência evitou, em um primeiro momento, práticas – ou acusações – clientelistas por parte das lideranças comunitárias, pois não haveria possibilidade de favorecimento a determinadas pessoas. Ademais, diante da conhecida vulnerabilidade social de moradores de favelas e periferias que frequentemente não têm trabalhos formais e, em situações de crise, podem ver seus rendimentos variar fortemente de um mês para outro, a assistência universal pode ser uma forma de assegurar que nenhuma família fique desassistida em momentos emergenciais como foi a pandemia.
COZINHAS SOLIDÁRIAS
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) surgiu no final da década de 1990, fruto da crescente insatisfação e necessidade de luta por moradia digna nos grandes centros urbanos do Brasil. Inspirado pela tradição dos movimentos sociais de luta pela terra, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o MTST organiza famílias de baixa renda que vivem em condições precárias de habitação, mobilizando-as em torno da luta por direitos habitacionais e sociais. As principais bandeiras de luta do MTST incluem a reivindicação por moradia digna, o acesso a serviços básicos como água, luz e saneamento, e a promoção de políticas públicas inclusivas e justas.
Com o início da pandemia de Covid-19 em 2020, o MTST se viu diante de um novo e urgente desafio: a fome e a vulnerabilidade social agravadas pela crise sanitária e econômica. Frente a esse cenário, o MTST mobilizou-se para criar uma rede de solidariedade, e para arrecadar e distribuir cestas básicas, produtos de higiene e outros itens essenciais às famílias afetadas pela pandemia. No entanto, percebeu-se que com o aprofundamento da crise, as famílias não conseguiam mais pagar pelo gás de cozinha e relataram a necessidade de vender parcialmente os itens da cesta para conseguir comprar gás. Com isso, apenas uma parte dos alimentos era usada para o consumo efetivo das famílias que recebiam as doações.
Surgiu dessa necessidade latente a ideia das Cozinhas Solidárias, que tiveram sua criação formalmente aprovada em fevereiro de 2021. O objetivo era criar espaços permanentes, geridos e operados pelos próprios membros do MTST, nos quais fosse possível preparar e distribuir refeições quentes e balanceadas para a população em situação de vulnerabilidade social.
Mais que isso, o MTST sabia do potencial do espaço físico da cozinha como local de formação e engajamento político. As ocupações tradicionais do movimento, que podem ser melhor descritas como acampamentos, têm a cozinha como um ponto de encontro da militância, onde são propostas discussões e formações políticas, para além de ser um local em que a alimentação é fornecida. Em várias localidades, as cozinhas promovem rodas de conversa, oficinas e outras atividades que fortalecem o tecido social da comunidade. Além disso, algumas cozinhas possuem hortas comunitárias, que fornecem ingredientes frescos para as refeições e contribuem para a educação ambiental e alimentar. Tal experiência prévia foi extremamente importante para o sucesso das Cozinhas Solidárias.
No caso das Cozinhas Solidárias, a inovação social se manifesta na capacidade do projeto de adaptar-se, evoluir e responder de forma proativa às necessidades emergentes das comunidades. O primeiro passo foi a mobilização para a arrecadação de alimentos, produtos de limpeza e outros itens essenciais. Em seguida, foi lançada uma “vaquinha” online permanente e o sucesso dessa campanha impulsionou a expansão das Cozinhas Solidárias.
As Cozinhas Solidárias buscam se distanciar da ideia de caridade, posicionando-se firmemente na luta pelo direito à alimentação, justamente pelo caráter de formação política que o movimento traz em suas raízes. De acordo com nossos interlocutores, a ideia é que cada marmita distribuída carregue consigo um ato de resistência e a afirmação de que a fome não pode ser normalizada. Ao mesmo tempo, o projeto visa empoderar as comunidades, envolvendo-as ativamente no processo e na gestão das cozinhas.
Hoje, são mais de 40 Cozinhas Solidárias espalhadas pelo Brasil, com uma presença marcante no estado de São Paulo. Esses espaços se tornaram pontos de referência nas comunidades locais onde as pessoas podem encontrar não apenas alimento, mas também apoio e solidariedade. O projeto serve cerca de 6 mil refeições todos os dias da semana, e contribui para a segurança alimentar das regiões atendidas.
Para operacionalizar as cozinhas, o MTST ainda mantém o financiamento coletivo por meio de ‘vaquinha’ online. Os fundos financeiros são centralizados e depois distribuídos às Cozinhas Solidárias com base em seu tamanho. As Cozinhas têm a liberdade de obter doações de lojas e varejistas locais. Apesar da presença de nutricionistas voluntários para garantir padrões de higiene, as refeições são preparadas com os alimentos disponíveis, podendo não seguir recomendações nutricionais estritas. O projeto atualmente conta com 3.869 apoiadores mensais, que contribuem com aproximadamente R$ 210.000,00.
Ao longo do tempo, as Cozinhas Solidárias ganharam notoriedade e chamaram a atenção do cenário político nacional. A visibilidade e o reconhecimento conquistados pelas Cozinhas Solidárias também abriram caminho para sua transformação em política pública. O reconhecimento do seu valor como ferramenta de combate à fome e promoção de inclusão social culminou na aprovação do PL 203/2023, de autoria do deputado federal Guilherme Boulos, ex-coordenador nacional do MTST, que propõe a inclusão das Cozinhas Solidárias nas políticas públicas nacionais de combate à fome e garante recursos para esse tipo de iniciativa, o que revela um modo programático e posicional de institucionalização.
COMPARAÇÃO ENTRE AS INOVAÇÕES SOCIAIS E OS MODOS DE INSTITUCIONALIZAÇÃO
A análise das inovações sociais ocorridas na cidade de São Paulo durante o período da Covid-19 revelou o acionamento de diferentes modos de institucionalização por meio dos atores sociais e, consequentemente, diferentes níveis de sustentabilidade das iniciativas ao longo do tempo. Sintetizamos a análise comparativa dos nossos casos na tabela 1.
Modos de institucionalização ativados pelas inovações sociais ocorridas durante a pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo
Recapitulando, o modo de institucionalização programático refere-se à incorporação das demandas dos movimentos sociais pelo Estado na forma de programas governamentais ou projetos de lei. O modo posicional diz respeito à ocupação de cargos no Estado por representantes dos movimentos sociais. Já o modo simbólico está relacionado à institucionalização de ideias e categorias oriundas dos movimentos sociais.
O caso da Agência Solano Trindade, entre os analisados, foi o que mais ativou os diferentes modos de institucionalização em sua interação com o Estado, a partir da apresentação de projetos de lei aderentes às pautas defendidas pela organização (modo programático), eleição de representante para a Câmara Municipal por meio do mandato coletivo do Quilombo Periférico (modo posicional) e reforço simbólico da categoria de “insegurança alimentar”. Esses modos de institucionalização possibilitaram que as inovações sociais implementadas pela organização tivessem efeitos dentro do Estado mesmo após o término da pandemia. No entanto, o mandato do Quilombo Periférico, que contava com Alex Barcellos da Agência Solano Trindade como um de seus covereadores, apesar de ter se candidato nas eleições de 2024, não foi reeleito, o que pode impor limites para a sustentabilidade das iniciativas da organização no próximo período.
Os casos da Casa do Povo e do Coletivo São Remo contra a Covid-19, por sua vez, foram os que menos se institucionalizaram. A Casa do Povo pode ser enquadrada em um modo de institucionalização simbólico, uma vez que as inovações sociais produzidas pela organização se articularam em torno de categorias como “agricultura familiar”, “soberania alimentar” e autonomia de escolha por parte dos beneficiários, o que confere maior visibilidade pública a esses conceitos. Já o Coletivo São Remo contra a Covid-19 se institucionalizou de modo mais posicional e pontual, com a presença de ativistas em Conselhos e em mandatos parlamentares, além de ter apontado para a relevância de se pensar em políticas universais de assistência. No caso da Casa do Povo, o baixo nível de institucionalização está relacionado ao próprio perfil da organização, que apresenta uma visão mais crítica ao Estado, e atua em suas margens. No caso do Coletivo, a baixa institucionalização está relacionada a uma dificuldade das organizações envolvidas em obter apoio para suas iniciativas e por divergências internas ao grupo.
Por fim, o caso das Cozinhas Solidárias apresentou um alto nível de institucionalização por meio da aprovação de um projeto de lei apresentado pelo deputado Guilherme Boulos no Congresso Nacional que transformou as Cozinhas Solidárias em uma política pública do governo federal. Esse modo de institucionalização programático fez com que uma iniciativa vinda dos movimentos sociais fosse institucionalizada no Estado e se tornasse uma política pública do atual governo. No entanto, conforme informaram nossas interlocutoras de pesquisa, a implementação da lei ainda está enfrentando muitos obstáculos, como o repasse de verbas do governo federal para as Cozinhas Solidárias e as dificuldades relacionadas ao preenchimento dos documentos para obtenção de recursos públicos.
No que diz respeito à literatura sobre inovações sociais, as quatro iniciativas aqui apresentadas podem ser definidas como Inovações de Base (Grassroots Innovations), pois surgiram diretamente das comunidades e utilizaram conhecimentos, tradições e recursos locais para desenvolver soluções altamente adaptadas às necessidades específicas do contexto (Seyfang et al., 2007; Hossain, 2016, 2018). No caso das iniciativas da Agência Solano Trindade e das Cozinhas Solidárias, podemos, diante do elevado grau de institucionalização programático e posicional, defini-las como Inovações Sociais Transformadoras (Transformative Social Innovation), uma vez que elas apresentam um potencial de transformação das relações sociais e das próprias instituições políticas, podendo desafiar e substituir estruturas dominantes (De Haan & Rotmans, 2011). Com isso, o modelo top-down de formulação e implementação de políticas públicas é tensionado na prática e sua lógica é desafiada pela efetividade das próprias inovações sociais aqui apresentadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa pesquisa analisou quatro inovações sociais surgidas durante a pandemia de Covid-19 em diferentes territórios da cidade de São Paulo e os modos de institucionalização ativados por elas. A pandemia trouxe inúmeros desafios e agravou as crises política, econômica e sanitária vividas pelo Brasil. Os efeitos da pandemia não foram igualmente sentidos pela população de São Paulo, a maior cidade do País. Comunidades que vivem em áreas periféricas da cidade foram especialmente afetadas e tiveram que se organizar coletivamente e criar soluções criativas para enfrentar problemas como a fome e o risco de morte, em um contexto em que os diferentes níveis de governo estavam agindo de forma descoordenada e muitas vezes insuficiente.
Com relação aos modos de institucionalização, as inovações sociais analisadas pela nossa pesquisa recorreram a dois modos principais: o posicional e o programático. No entanto, percebemos variações significativas entre os níveis de institucionalização em cada caso, desde posturas mais críticas até formas de aproximação que geraram efeitos dentro do Estado. Nos casos do Cozinha Solidária, que articulou a aprovação do PL que transformou a iniciativa em uma política pública do governo federal, e da Agência Solano Trindade, que teve uma de suas lideranças eleitas como parte de um mandato coletivo da Câmara Municipal de São Paulo, houve níveis maiores de institucionalização. Por outro lado, os casos da Casa do Povo e da favela São Remo revelaram tensões significativas na interação entre as inovações sociais e o Estado, e demonstraram que não apenas a institucionalização, mas também o apoio entre lideranças comunitárias, a cooperação com organizações governamentais, movimentos sociais e empresas privadas pode promover a resiliência das iniciativas. Isso aponta para uma limitação da literatura sobre os modos de institucionalização que, ao focar nas interações entre movimentos sociais e Estado, não aprofunda a análise sobre as formas de interação entre movimentos sociais e outros atores sociais.
Em todos os casos analisados, a institucionalização simbólica se fez presente, uma vez que as inovações aqui discutidas, juntamente com inúmeras outras iniciativas, contribuíram para trazer para o centro do debate público a questão da segurança alimentar, tema frequentemente negligenciado pelo então governo federal, e apresentar formas concretas de atacar o problema.
Assim, reconhecemos essas experiências como inovações sociais porque tiveram o envolvimento ativo de atores sociais e criaram novas parcerias para enfrentar problemas práticos vividos pelas comunidades. Dessa forma, mudanças foram introduzidas na forma de obtenção e distribuição de alimentos e no desenvolvimento de uma abordagem intersetorial, que variava de acordo com o contexto e as experiências anteriores. Essas iniciativas apoiaram efetivamente cidadãos pobres no acesso a alimentos em um contexto de emergência sanitária e agravamento da fome no Brasil. Em suma, trata-se de novas formas de fazer as coisas, novas parcerias para criá-las e financiá-las, e um firme propósito de encontrar maneiras de proteger a comunidade da pandemia, do sofrimento, da pobreza extrema e da morte.
A tensão entre sociedade e Estado na formulação e implementação de políticas públicas tem raízes históricas no contexto brasileiro. Concluímos sugerindo que as inovações sociais criadas em São Paulo apoiaram esforços para enfrentar desigualdades porque apresentaram soluções criativas baseadas em relações de baixo para cima. Nesse sentido, essas iniciativas podem inspirar políticas mais flexíveis, diferentes de uma perspectiva de cima para baixo dominada pelo Estado. Nossos casos apontam para a possibilidade e a capacidade social de apresentar soluções rápidas para problemas complexos, inspirando a renovação de políticas públicas. As políticas públicas produzidas e implementadas pelo Estado são fundamentais para lidar com problemas sociais e desigualdades, mas podem ser enriquecidas a partir das inovações sociais aqui apresentadas, inspirando formas de se fazer políticas públicas que sejam mais conectadas com as realidades, os conhecimentos e as lideranças locais.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem à Vera Schattan Coelho pela coordenação da pesquisa que deu origem a este artigo e aos interlocutores de pesquisa na São Remo, Casa do Povo, Cozinhas Solidárias, Agência Solano Trindade e Quilombo Periférico que nos doaram seu tempo e possibilitaram que essa pesquisa fosse realizada.
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Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo.
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FINANCIAMENTO
A pesquisa foi financiada pelo projeto “Reconstrução, comunidades e intersetorialidade: Trabalhando com Respostas Comunitárias e Colaborações Intersetoriais para promover avanços na Saúde e na Justiça Alimentar durante e após a pandemia de Covid-19” por meio do Acordo de Cooperação T-AP - Trans-Atlantic Platform, processo FAPESP 2021/07841-7.
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Editado por
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Editores convidados:
Lizandra Serafim, Leonardo Barros Soares e Matheus Mazzilli Pereira
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
23 Out 2024 -
Aceito
13 Mar 2025
