RESUMO
O artigo analisa os processos de intermediação que definem o acesso de grupos sociais desfavorecidos a políticas públicas. Baseia-se em pesquisa de campo, realizada na região central de Brasília, envolvendo o acompanhamento de centenas de encontros entre pessoas em situação de rua e as instituições responsáveis pela provisão de serviços. O material põe em questão o pressuposto de relações diretas entre burocratas de linha de frente e usuários, frequentemente assumido pela literatura de implementação de políticas públicas. Mobilizando aportes que permitem enxergar as políticas como experiências cotidianas, que envolvem diversos terceiros, os achados apontam para: a) caminhos teórico-metodológicos para incorporação da intermediação como objeto central para o estudo de processos de implementação; e b) uma melhor compreensão das condições subjacentes à intermediação, dos diferentes intermediadores e das consequências desses processos para as pessoas em situação de rua, implicando conhecimento útil para ações com foco em acesso equitativo.
Palavras-chave:
intermediação; experiências; pessoas em situação de rua; implementação de políticas públicas; acesso a políticas públicas.
ABSTRACT
This study analyzes the brokerage processes involved in granting access to public policies for disadvantaged social groups. It is based on field research conducted in downtown Brasília (Brazil), observing hundreds of interactions between people experiencing homelessness and the institutions providing public services for this population. The study questions the assumptions regarding direct relationships between street-level bureaucrats and users, connections often taken for granted in the literature on public policy implementation. By drawing on perspectives of policies as everyday experiences involving various third parties, the findings indicate: a) theoretical and methodological proposals for incorporating brokerage as a central object of study in policy implementation processes; and b) a deeper understanding of the underlying conditions of brokerage, the variations among brokers, and the consequences of these processes for people experiencing homelessness, offering valuable insights for actions aimed at promoting equitable access to public services.
Keywords:
brokerage; experiences; people experiencing homelessness; public policy implementation; access to public policies
RESUMEN
El artículo analiza los procesos de intermediación que caracterizan el acceso de los grupos sociales desfavorecidos a las políticas públicas. Se basa en una investigación de campo realizada en Brasilia, que involucra la observación de cientos de interacciones entre personas en situación de calle y las instituciones responsables de la provisión de servicios. El estudio cuestiona el supuesto de relaciones directas entre los burócratas y los usuarios, que a menudo se da por sentado en la literatura sobre implementación de políticas públicas. A través de perspectivas que consideran las políticas como experiencias cotidianas que implican a diversos terceros, los hallazgos señalan: a) propuestas teórico-metodológicas para incorporar la intermediación como objeto central de estudio en los procesos de implementación; y b) una mejor comprensión de las condiciones subyacentes a la intermediación, de los diferentes intermediarios y de las consecuencias de esos procesos para las personas en situación de calle, ofreciendo valiosos conocimientos para la promoción de acceso equitativo.
Palabras clave:
intermediación; experiencias; personas en situación de calle; implementación de políticas públicas; acceso a políticas públicas
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, observamos importantes avanços nas pesquisas sobre implementação de políticas públicas, que têm contribuído para a melhor compreensão de como decisões governamentais são colocadas em prática, superando perspectivas normativistas e distanciadas dos contextos locais de execução (Faria, 2012; Hill & Hupe, 2014; Lotta, 2019). Em especial, as perspectivas teóricas que enfocaram as interações entre cidadãos e agentes nas linhas de frente dos serviços públicos (Hupe, 2019; Lipsky, 1980; Maynard-Moody & Musheno, 2003) apresentaram caminhos interpretativos profícuos para explicar a dinamicidade e as transformações operadas nos processos de implementação. Por constituírem a interface mais concreta e visível do Estado e por tomarem decisões importantes para a inclusão e exclusão das pessoas atendidas ou para a qualidade dos serviços prestados, a literatura costuma descrever esses trabalhadores da linha de frente como gatekeepers ou controladores do acesso aos serviços públicos (Brodkin, 2015; Brodkin & Majmundar, 2010; Tummers et al., 2015).
Apesar das contribuições inestimáveis, cabe notar que parte significativa desse esforço acadêmico assumiu o pressuposto de que as relações entre cidadãos e agentes públicos são diretas. Por exemplo, o enquadramento proposto pela teoria da “burocracia do nível de rua” (Brodkin, 2015; Lipsky, 1980; Maynard-Moody & Musheno, 2003) parte de uma demarcação clara entre, de um lado, os trabalhadores de linha de frente e, de outro, as pessoas que demandam os serviços. Até mesmo a corrente da sociologia do guichê francesa, que assumiu uma perspectiva interacionista crítica e que enfatiza os encontros entre cidadãos e agentes públicos, insistiu na metáfora do “guichê” como forma de explicitar uma clara demarcação dos polos envolvidos (Dubois, 1999; Pires, 2017; Siblot, 2006).
O pressuposto de que as relações sejam diretas obscurece o fato de que esses encontros não operam de modo igual para os diferentes sujeitos sociais, uma vez que deixa fora do alvo de análise os processos e condições os quais permitem (ou dificultam) que as pessoas cheguem até a fatídica interação com os operadores dos serviços. Além disso, as análises sobre os trabalhadores da linha de frente tendem a focar os efeitos de suas ações sobre as organizações, regras e práticas profissionais embutidas na política pública. Ou seja, os estudos mais tradicionais de implementação não têm como foco analítico os demais sujeitos envolvidos (e suas experiências) nesses encontros (Dubois, 2023).
Este artigo pretende abordar essa lacuna ao questionar: Como a interação de grupos sociais vulnerabilizados com os serviços públicos é mediada pela presença e atuação de terceiros? E quais são as consequências dessas intermediações para a compreensão das relações entre cidadãos e Estado? Assim, nosso objetivo é colocar em questão o pressuposto das relações diretas e demonstrar os ganhos analíticos do reconhecimento de processos de intermediação como objetos centrais nos estudos de implementação e nas ações que almejam ampliar ou melhorar o acesso a serviços públicos por parte de grupos sociais historicamente desfavorecidos.
Para alcançar esse objetivo, começamos pelo debate no plano teórico, buscando contribuir para o desenvolvimento de uma perspectiva analítica que privilegie o olhar para a política pública como experiência cotidiana (Naples, 1998), por meio do deslocamento da atenção para o outro lado da rua (Spink & Burgos, 2019) e com o apoio de abordagens centradas nas pessoas (Dubois, 2023), em um verdadeiro exercício de mirada ao revés (Boullosa, 2019). Esse movimento, e as diferentes expressões que tem assumido, parte do reconhecimento de que há ganhos analíticos importantes em pensar as políticas públicas para além do foco usual nas instituições, atores e processos tipicamente organizados na esfera estatal, compreendendo também as experiências das pessoas e o papel de outros tipos de atores como parte indissociável da ação pública (Lascoumes & Le Galès, 2012).
Em um próximo passo, propomos que esse tipo de abordagem poderia ser incrementado com a incorporação de conceitos e discussões presentes nos debates contemporâneos da Antropologia da Intermediação (anthropology of brokerage). Trata-se de literatura que chama atenção para a multiplicidade de atores envolvidos em processos de governo, colocando em relevo o trabalho que intermediários desempenham ao conectar grupos sociais subalternos a elites que controlam o acesso a bens e serviços. Olhar para a implementação sob esse enfoque contribui para problematizar concepções já consagradas sobre relações diretas nas linhas de frente dos serviços públicos.
Na seção metodológica, apresentamos a pesquisa de campo, realizada no centro de Brasília e orientada para a aproximação com as experiências das pessoas em situação de rua em suas tentativas de acessar diferentes serviços públicos. O acompanhamento dessas situações de contato entre essas pessoas e os serviços públicos de documentação, saúde, assistência social, moradia, segurança pública, entre outros, propiciou a sistematização de evidências qualitativas e renovadas percepções sobre as formas como operam os acessos de grupos vulnerabilizados a esses serviços.
Os achados indicam que a intermediação emerge em decorrência de barreiras de acesso que se originam em limitações das instituições e da população vulnerável em busca dos serviços. Contextos caracterizados por diversidade social, extrema vulnerabilidade e fraqueza institucional em promover acesso equitativo levam à atuação de uma ampla gama de intermediários. Apresentamos um mapeamento de diferentes modalidades de agentes e processos de intermediação, a partir de variações no grau de profissionalização e proximidade com o território e público pesquisados. Discutimos também os desfechos e as consequências de processos de intermediação, que podem fomentar maior autonomia e empoderamento ou aprofundar a dependência das pessoas em situação de rua em relação a terceiros.
Em conclusão, argumentamos que as lentes analíticas focadas em relações diretas e ações e decisões dos burocratas de nível de rua deixam de revelar tudo aquilo que acontece previamente para possibilitar o encontro nos guichês do serviço público. Nesse sentido, apontamos vantagens na reconceitualização do trabalho na linha de frente como parte de uma cadeia estendida de processos de intermediação. Para além do foco tradicional nos atos discricionários de controle de acesso pelos trabalhadores de linha de frente (gatekeepers), destacamos a importância do investimento analítico nos percursos e enredamentos que efetivamente levam pessoas vulneráveis a acessarem os serviços públicos que necessitam.
MIRANDO OS GUICHÊS A PARTIR DAS RUAS: APORTES TEÓRICOS SOBRE EXPERIÊNCIAS E INTERMEDIAÇÕES NO ACESSO A SERVIÇOS PÚBLICOS
Estudos recentes no campo de políticas públicas vêm apontando direções promissoras para ampliarmos o olhar para os demais atores envolvidos nos encontros da linha de frente. Dialogando com a teoria da burocracia do nível de rua, o trabalho de Spink e Burgos (2019) vem indicando um campo de possibilidades de análises existentes entre o serviço e o outro lado da rua. Dubois (2023) reivindica que as análises dos encontros nas linhas de frente podem assumir uma abordagem centrada nas pessoas, tirando-as de um lugar passivo e chamando atenção para como elas percebem, avaliam e adotam estratégias para lidar com as instituições públicas, seus agentes e suas exigências. Já Boullosa (2019) propõe uma mirada ao revés, que, em diálogo crítico com o estadocentrismo característico das abordagens mais tradicionais, propõe ângulos de análise capazes de revelar a multiplicidade de atores sociais implicados em fluxos de políticas públicas.
A procura das pessoas pelas instituições públicas ocorre no emaranhado diário de experiências individuais em suas redes de cuidado e afeto, relações de emprego e renda e outras dimensões da vida que se entrecruzam no nível local (Spink, 2008). Assim, o deslocamento do olhar para a experiência cotidiana tem o potencial de revelar as lacunas e contradições entre as expectativas institucionais sobre as pessoas e o que elas de fato vivem e fazem quando interagem com políticas públicas.
Nesse aspecto, o estudo de Naples (1998) é inspirador. A partir de uma abordagem que assume o ponto de vista de mulheres beneficiadas por políticas sociais de empregabilidade e fomento ao estudo nos EUA, a autora mostra como as expectativas institucionais sobre as mulheres atendidas pelo programa não eram compatíveis com as obrigações de estudante universitária e com suas condições de vida e cuidado dos filhos. Isto é, ao pensar a referida política por meio do olhar para as experiências das mulheres, tornou-se claro como o próprio desenho da política impunha comandos contraditórios, dificilmente reconciliáveis e pouco adaptados às realidades das beneficiárias. Para além de apontar deficiências na política, o estudo de Naples revela um “trabalho invisível” (hidden work) feito rotineiramente pelas mulheres para conciliar maternidade, trabalho, estudos e demais exigências burocráticas. Trata-se de esforços feitos pelas mulheres como forma de sustentação da sua condição de destinatárias de uma política pública originalmente desenhada para apoiá-las.
O acesso e a sustentação da relação com os serviços públicos por parte das usuárias, assim, passam a ser enxergados como dependentes não apenas de estratégias de autoapresentação que deem conta da compatibilização das situações vividas com as idealizações institucionais sobre o público-alvo, mas, também, da mobilização de terceiros que provenham os apoios necessários para tal. Dubois et al. (2018) sugerem que, especialmente para os grupos sociais desfavorecidos, cujas experiências com as instituições podem ser caracterizadas por sentimentos como medo de errar e de não ser bem tratado, desorientação e incompreensão, percebe-se uma tendência à desindividualização das relações com os serviços públicos, por meio da mobilização frequente de outras pessoas que possam ajudar.
Assim, o olhar para as experiências cotidianas das pessoas com as políticas públicas contribui para trazer à tona o papel desempenhado por outros atores - individuais ou coletivos, formais ou informais - até então pouco visibilizados pelas lentes analíticas dos estudos de implementação. Além disso, substitui a pressuposição de relações diretas pelo reconhecimento de processos de intermediação, em que o acesso a serviços públicos é indireto, uma vez que envolve esforços (recursos, habilidades, tempo etc.) aportados por outros. Nesse ponto, os conceitos e debates da antropologia da intermediação (Lindquist, 2015) podem oferecer valiosas contribuições.
Esse campo do conhecimento assume a conexão entre grupos socialmente desfavorecidos e elites sociais e políticas como seu objeto central. Os agentes de intermediação aparecem em contextos diversos e com diferentes nomes, como intermediários, mediadores, middlemen, brokers, patrons etc. A nomenclatura costuma ter relação com variações qualitativas nas práticas, que podem envolver maior ou menor controle dos recursos envolvidos na intermediação - financeiros, materiais, informacionais - bem como maior ou menor poder de transformar aquilo que está sendo intermediado. Na visão de Latour (2005), por exemplo, os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos de que eles deveriam ser portadores, enquanto os intermediadores não teriam a capacidade de interferir no conteúdo das transações.
Os processos de intermediação tendem a se tornar mais visíveis em contextos de rápida mudança social (Lindquist, 2015) ou em transições de modos de governança (James, 2011). Transformações sociais com implicações para as relações entre Estado e sociedade, como as crises econômicas, conflitos políticos, imigração, reformas do setor público orientadas para a austeridade, pauperização das classes médias e a ampliação das desigualdades sociais em todo o mundo, criam contextos que demandam esse tipo de análise. Nesses ambientes, as estruturas de autoridade social entram em concorrência, e os intermediários encontram muito espaço de manobra (Biershenck et al., 2002). A competição de poderes, no nível local, abre espaço para a atividade de intermediação, o que revela não necessariamente uma ausência do Estado, mas a complexificação dos modos de governança que se estabelecem a partir do maior entrelaçamento do Estado com a sociedade civil e o setor privado (Matthews, 2012).
Nesses contextos, o intermediário não é um simples representante político de uma dada experiência de sujeito coletivo. Sua singularidade reside na coabitação de mundos diversos, no “entre mundos” (James, 2011). A “carreira” de um intermediário é altamente instável, na medida em que ele está comprimido entre racionalidades de governo e interesses diversos, realizando justamente o arriscado trabalho político de criação de vínculos de confiança, a fim de suturar as assimetrias de poder e conhecimento entre as várias partes envolvidas (Pollock, 2021). O intermediário corporifica racionalidades que podem ser contraditórias e sofre as consequências morais e psicológicas dessa ambiguidade (Bjorkman, 2021; James, 2011).
Diversos estudos buscam compreender as práticas e os trabalhos que são desempenhados pelos agentes de intermediação. Kirwan (2016), ao analisar serviços de aconselhamento oferecidos por organizações não governamentais (ONGs), no contexto britânico, sublinha o trabalho de tradução entre emaranhados jurídicos complexos e indivíduos com problemas específicos e concretos. Tal como definido por McDermont (2013), muitas vezes o trabalho do intermediário é marcado por “atos de tradução” que permitem a transformação de questões pessoais em questões públicas. Porém, esse trabalho de exprimir a vida e os problemas dos atendidos em termos das categorias jurídicas vigentes requer habilidades comunicacionais e emocionais relevantes. Assim, a intermediação não pode ser reduzida a uma mera provisão de informação ou tradução entre idiomas. Trata-se de um trabalho intensivo em fluxos emocionais entre o intermediário e os sujeitos atendidos e na regulação dos sentimentos desses sujeitos no decurso das interações (Kirwan, 2016).
Como sugere Pollock (2021), um eixo importante para caracterizarmos a atuação dos intermediários diz respeito ao fato de que eles desempenham tais atividades de modo formal e profissional, como trabalhadores remunerados e reconhecidos por tal função, ou de modo informal, como alguém que acaba por fazer esse papel circunstancialmente, por força da situação ou como apoio a algum amigo ou familiar. Ao estudar o acesso de imigrantes às políticas de saúde e assistência social no Reino Unido, Pollock (2021) identifica uma tensão entre a crescente profissionalização de intérpretes, turbinada pela contratação pública de empresas multinacionais, e o tradicional recurso a familiares e amigos nas interações com os serviços. Se, por um lado, a intermediação profissional permite maior isonomia nas oportunidades de acesso e uma suposta objetividade na conduta do profissional, por outro lado, a interpretação informal, por parte de pessoas próximas, pode promover maior fidedignidade das demandas, por conta da participação na cultura e no mundo do usuário. Trata-se de estratégias com diferentes potencialidades e riscos que devem ser examinados em cada contexto específico.
Buscando sistematizar as discussões feitas até aqui, apresentamos uma tipologia de agentes de intermediação (Tabela 1), alicerçada em dois eixos: a) um relativo às posições (proximidade ou distância) ocupadas por intermediários em relação aos sujeitos atendidos; e b) outro com foco nas formas de atuação (situacional ou profissional) no exercício da intermediação. Essa tipologia adapta a proposta original de Dubois et al. (2018) ao contexto da pesquisa com pessoas em situação de rua no Brasil, a partir dos aportes teóricos mobilizados acima.
Com relação aos desfechos e consequências dos processos de intermediação, a literatura identifica possíveis desdobramentos tanto para as instituições e os serviços públicos que implementam quanto para os sujeitos atendidos (Tabela 2). No campo dos desdobramentos para as instituições, chama atenção, conforme demonstrado por Koch e James (2022), como a ação de intermediários pode contribuir para a melhor coordenação da ação fragmentada dos governos, promovendo fluxos efetivos de informação, comunicação e recursos entre os serviços.
Já no que tange aos desdobramentos sobre os sujeitos de grupos sociais desfavorecidos, identificamos estudos que apontam para como as experiências com as políticas e serviços públicos podem ser moldadas pela ação dos intermediários. De modo geral, por preencherem as lacunas, estabelecendo conexões, identifica-se que os intermediários podem contribuir para uma maior “humanização” do serviço público (Massicard, 2022). Mas, para além de povoar e facilitar o acesso aos serviços, as práticas, comportamentos e valores dos intermediários podem também influenciar a forma como os sujeitos experimentam o Estado e suas instituições.
Por exemplo, o estudo de Kirwan et al. (2016) discute essas repercussões na própria forma como se concebe a cidadania. Os autores analisaram o trabalho cotidiano de uma ONG no Reino Unido (Citizen Advice Bureau - CAB), que recruta voluntários com o objetivo de estimular uma “ética entre pares”. Tais agentes de intermediação afetam as imaginações e as práticas dos sujeitos atendidos em torno da ideia de cidadania ao mobilizar diferentes conteúdos do imaginário popular - seja como um conjunto de direitos e deveres, uma dada nacionalidade ou a partir de abordagens mais igualitárias - que, então, são recepcionados pelos atendidos como os sentidos capazes de acionar “acessos” naquele contexto.
Por fim, a ação dos intermediários também nos leva a indagar sobre seus possíveis efeitos nas relações de dominação. Tal como refletem Dubois et al. (2018), de um lado, o recurso a intermediários permite aos indivíduos menos favorecidos acessar mais facilmente as instituições. E, em certos casos, essa desindividualização do acesso pode até contribuir para fortalecer a coesão social entre familiares e amigos ou em bases associativas. Mas, de outro lado, a intermediação pode também aportar o risco de uma combinação perversa entre a dominação administrativa, baseada na distância e na privação de outras formas de acesso, e a dominação associada à dependência pessoal do intermediário. Isto é, a intermediação pode tanto contribuir para ampliar oportunidades e fortalecer vínculos sociais quanto para restringir a autonomia e provocar o desempoderamento.
CONTEXTO E ESTRATÉGIAS DE PESQUISA
A pesquisa de campo foi realizada na região central de Brasília, mais especificamente, no Setor Comercial Sul (SCS). Essa delimitação territorial justifica-se por se tratar de uma das áreas com maior circulação na capital, com fluxo diário estimado de 150 mil pessoas, além de contar com um alto número de equipamentos e serviços públicos, incluindo alguns voltados especificamente para o atendimento à população em situação de rua.
O último censo da população em situação de rua no Distrito Federal, realizado em 2022, pela Codeplan/IPEDF, identificou 2.932 pessoas nessa condição, ao passo que o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua registra 5.281, com base nos dados do Cadastro Único para 2021. O censo da Codeplan/IPEDF permite uma análise do perfil dessa população, caracterizada por ser majoritariamente negra (71,1%) e masculina (80,7%), com idade entre 31 a 49 anos (47,2%). No SCS, especificamente, não há informações precisas sobre a quantidade de pessoas em situação de rua. Segundo estimativas do Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS), em agosto de 2020, foram abordadas 134 pessoas, ficando 35 a maior parte do tempo no território. São homens e mulheres adultos, com maior tempo de permanência em situação de rua, além de haver uma presença menor de famílias e crianças, em comparação com outras regiões.
A pesquisa de campo foi conduzida entre junho de 2021 e março de 2022. A entrada em campo foi viabilizada pela parceria com a associação sem fins lucrativos Tulipas do Cerrado, dedicada a ações de redução de danos e apoio a mulheres em situação de rua, mulheres transexuais e profissionais do sexo. A fundadora e principal liderança possui fortes vínculos com o SCS, tendo vivido a maior parte da infância, toda a adolescência e o início da vida adulta nas ruas da região central de Brasília.
Ao longo desse processo, interagimos com 51 pessoas em situação de rua e pudemos acompanhar 120 situações de contato entre elas e os diferentes serviços públicos que buscavam acessar, tais como documentação, saúde, assistência social, moradia, segurança pública, entre outros. Essas situações foram registradas por meio de 78 diários de campo (DC), contendo observações sobre o desenrolar dos encontros entre pessoas, serviços e demais agentes envolvidos. Construímos maior proximidade com 14 dessas pessoas, com as quais foi possível fazer repetidas rodadas de entrevistas, permitindo maior aprofundamento sobre suas histórias de vida e experiências de acesso aos serviços.
Os DC e as entrevistas foram transcritos e submetidos à análise qualitativa, baseada em codificação in vivo, axial e temática (Charmaz, 2006), seguida da exploração de co-ocorrências (Saldaña, 2015), com o apoio do software Atlas.ti. Esse procedimento resultou em uma sistematização das observações e narrativas de interações entre pessoas em situação de rua e serviços públicos, sob a forma de uma matriz, a partir da qual foi possível identificar os intermediários presentes, suas formas de envolvimento e atuação, além dos desfechos e consequências desses processos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Desde o início da pesquisa de campo, o fenômeno da intermediação mostrou-se incontornável para compreender as experiências das pessoas em situação de rua com os serviços públicos. Nesta seção, buscamos analisá-lo em três partes: a) condições que favorecem a intermediação; b) variedades de agentes de intermediação; e c) desfechos e consequências desses processos.
Condições que favorecem a intermediação
Havia um claro desencaixe entre a operação dos serviços públicos e as pessoas em situação de rua no SCS. Da parte das instituições públicas responsáveis pela provisão dos serviços, sujeitas ao subfinanciamento e às restrições impostas pelo Governo Distrital, eram notórias as deficiências materiais, a insuficiência de recursos, a incipiência dos esforços de busca ativa, acessibilização e comunicação simples, além de instabilidades e problemas de articulação entre os diferentes serviços.
Já da parte das pessoas acompanhadas, percebemos limitações relacionadas à falta de informação sobre os serviços, dificuldades em percorrer distâncias necessárias para o acesso, na superação de barreiras de acessibilidade e no atendimento de exigências institucionais que variavam desde a apresentação de documentos e o cumprimento de agendamentos ao domínio de ferramentas digitais. As dificuldades para lidar com os benefícios oferecidos foram expressas como descontentamento por Noel (todos os nomes são fictícios), um homem pardo idoso e em situação de rua há mais de 10 anos:
Esse auxílio-aluguel paga um mês e no outro mês não paga; e aí, se a gente não arrumou emprego, vai ficar com o auxílio-aluguel, vai para dentro de uma casa, não tem uma cama, não tem um bujão de gás, não tem comida. Se comprar um celular, é roubado, porque os outros vai e rouba. Documento eles roubam, aí fica tudo complicado. É falta de chance, falta de articulação do governo, desse pessoal... (Entrevista D19, 16/8/2021)
Foi justamente nesses desencaixes - expressão de um modo de governança transitório e precário (Biershenck et al., 2002; James, 2011) - que percebemos a operação dos intermediários, buscando superar as barreiras de acesso aos serviços, decorrentes de dificuldades associadas tanto às instituições quanto às condições de vida dessas pessoas (Bjorkman, 2021).
A situação narrada a seguir (DC 73, 23/6/2021) evidencia alguns desses elementos. André é um homem negro e idoso. Quando o conhecemos, ele havia perdido o documento de identidade e falou que precisava dele para poder fazer uma viagem de ônibus interestadual, com o intuito de reencontrar um familiar. Perguntamos se ele já havia ido ao Na Hora (posto integrado de serviços do Governo Distrital), que fica na rodoviária, solicitar uma segunda via. Ele informou que o serviço exigia agendamento e não adiantava aparecer lá. A redutora de danos prontificou-se a conseguir um agendamento, dizendo que conhecia o coordenador do serviço há seis anos e que tinha um acordo com ele para viabilizar encaixes. No dia seguinte, nos dirigimos ao Na Hora, mas, ao solicitarmos para falar com o tal coordenador, fomos informados de que ele já não trabalhava mais lá. O novo coordenador, quando perguntado sobre a possibilidade de continuidade do trato, demonstrou estranhamento e sinalizou o limite de um encaixe por dia em horários específicos. Apesar de sairmos do encontro com um agendamento para André, a redutora de danos viu-se diante da necessidade de refazer o trabalho de aproximação e convencimento com o novo coordenador, em um esforço contínuo de construção e manutenção de parcerias com as instituições públicas, visando o atendimento das pessoas em situação de rua.
Além disso, o atendimento exigia o pagamento de uma taxa para emissão da segunda via. André não tinha mais direito à isenção para pessoas carentes, porque esse benefício só pode ser utilizado uma vez. Ele tampouco dispunha de recursos próprios. Mas o apoio para o pagamento foi obtido por meio de uma outra ONG com atuação no SCS. Assim, combinamos com André de nos encontrarmos às 7 h da manhã seguinte na porta do Na Hora. Porém ele não compareceu. Foi visto dormindo em outra parte da rodoviária. André, por vezes, passa a noite bebendo para suportar a situação de rua, indo dormir no início da manhã, quando se sente mais protegido, com o início da circulação de pessoas.
Trata-se de um cenário em que a vulnerabilidade das instituições (Spink et al., 2021) em enxergar e se adaptar às pessoas em situação de rua se soma às vulnerabilidades e dificuldades dessas pessoas em satisfazer as exigências institucionais (procedimentos, esperas, comportamentos etc.) Esse vazio relacional, em que as estruturas de autoridade social ainda não se encontram estabilizadas, cria oportunidades para o envolvimento de diversos outros atores (Biershenck et al., 2002).
Variedades de intermediários
Observamos a atuação de diversos intermediários na produção de conexões entre a população em situação de rua e os serviços públicos no SCS. A tipologia desenvolvida a partir da discussão teórica embasou a identificação de oito tipos de agentes de intermediação e a sua caracterização a partir dos eixos associados à posição/vínculo (proximidade ou distância) e à forma de atuação (profissional ou situacional), conforme apresentado na Figura 1.
Ao focarmos o lado esquerdo da Figura 1, temos os tipos profissionais de agentes de intermediação, isto é, instituições, serviços e agentes que têm como missão formal garantir o acesso de pessoas em situação de rua aos seus direitos. Podem ser instituições ou serviços públicos, como a Defensoria Pública e o SEAS. O primeiro caso representa uma atuação profissional mais distanciada, mediada por procedimentos formais, protocolos e motivada por demandas que a população em situação de rua consegue lhe trazer. Esse é o caso, por exemplo, de solicitação de assistência para lidar com as forças de segurança, especialmente em abordagens policiais que, não raro, envolvem episódios de violência física ou flagrantes forjados.
Já o segundo caso ilustra a possibilidade de atuação profissional com proximidade, uma vez que, no SEAS, há recrutamento de pessoas com experiência de vida em situação de rua, e o trabalho é realizado nas ruas, em contato cotidiano com o público-alvo. Os profissionais do SEAS dividem-se em equipes, que se vinculam aos usuários para acompanhamento. Presente no território e realizando abordagens cotidianas, o serviço auxilia os cidadãos atendidos a acessarem diversos serviços, como documentação, saúde ou assistência social. Tal como relata Donizete, um homem pardo de meia-idade que migrou do Maranhão para as ruas de Brasília há cinco anos:
Preciso tirar minha identidade, eles vão lá, agendam, marcam, pegam o carro, me leva lá e traz de volta. Se precisa deles pra ir ao hospital, eles desembolam. Eles estão aqui pra favorecer o nosso dia a dia. (Entrevista D134, 20/9/2021)
Na atuação profissional, há, ainda, profissionais liberais ou do setor privado, como os advogados, que entram com ações contra instituições e serviços públicos, ou empresas, para garantir o acesso a direitos por pessoas em situação de rua. A intermediação mais comum é no acesso ao sistema de justiça, mas, também, situações de acesso a direitos trabalhistas ou de seguridade social. Em geral, a atuação de advogados ocorre em troca de um percentual dos ganhos resultantes, como um desconto em um eventual benefício social recebido, uma indenização trabalhista ou mesmo aposentadoria. Esse foi o caso do Mário, homem branco de meia-idade, que passou a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) mediante ação judicial. Seu acordo com o advogado que o auxiliou é pagar 25% do que ele recebe, por 12 meses: “Até um ano, 300 reais são dele e 900 são meus” (Entrevista D128, 15/9/2021).
Já no extremo direito da Figura 1, observamos tipos mais informais de intermediação, que emergem por força das situações de interação com as pessoas em situação de rua. Isso aconteceu quando profissionais de diferentes serviços públicos se compadeceram com a necessidade urgente de alguma pessoa em situação de rua e buscaram auxiliar o acesso a algum outro serviço público, exercendo atividades que estavam para além de suas obrigações oficiais. Essa forma contingencial da intermediação também foi exercitada por sujeitos caracterizados por maior proximidade às pessoas em situação de rua apoiadas. Por vezes, eram os próprios pares das pessoas em situação de rua (amigos, familiares ou parceiros) que atuavam provendo o apoio necessário para a consecução do acesso a algum serviço público.
Observamos uma cena na qual um grupo de profissionais do Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas (CAPS AD) esforçava-se para se comunicar com Daniel, um homem negro, idoso e convalescente. Avisados pelo Consultório na Rua de que Daniel estava desidratado, o médico e o psicólogo do CAPS AD tentavam, sem sucesso, convencê-lo de que ele precisava se internar. A situação mudou quando Mário, amigo que compartilhava um espaço com Daniel na rua, convenceu-o a se levantar, sentar na cadeira de rodas e deixar que o conduzissem ao CAPS AD. Mário chegou até a se internar também, pois sabia que, sem isso, Daniel não ficaria na enfermaria do serviço. Foram o convencimento e o apoio emocional de uma pessoa próxima que levaram a que as necessidades de saúde de Daniel pudessem ser atendidas (DC 56, 15/7/2021).
Há um outro tipo de intermediário importante, que são os ditos “padrinhos”, pessoas de melhor situação socioeconômica que atuam no mesmo território e acabam desenvolvendo, ao longo do tempo, vínculos de proximidade com pessoas em situação de rua. Esses padrinhos mobilizam os recursos a seu alcance para ajudar pessoas em situação de rua a acessarem bens, serviços e direitos. Em um dos relatos, Felipe, homem pardo de meia-idade, contou que já recebeu a ajuda de um engenheiro, que trabalha no SCS e joga futebol com pessoas em situação de rua, para o pagamento da taxa de emissão de um documento (DC 20, 16/8/2021). A importância da intermediação exercida pelos padrinhos é explicada por Marcondes, que vive nas ruas do SCS desde criança, trabalhando como guardador de carros:
É que nem eu falo com o pessoal aqui, que o dinheiro é bom, mas a amizade é muito mais valiosa do que o dinheiro. A minha irmã é bem gorda, a cirurgia bariátrica dela na época ia custar uns 18 mil reais e eu consegui de graça. A cirurgia da vista da minha mãe ia ser uns 15 mil reais, eu consegui na clínica de graça [...] Tudo com o pessoal daqui. Eu consegui a aposentadoria da minha mãe [...] Tá vendo aquele Corolla preto? Foi a doutora que aposentou a minha mãe. Minha irmã não pagou quatro anos o INSS, minha mãe só ia aposentar ano que vem. Ano passado eu roubei os documentos da minha mãe e tirei xerox [para conseguir aposentadoria com ajuda da advogada] (Entrevista D23, 18/8/2021).
Por fim, os achados da pesquisa também sugerem a importância de considerarmos os eixos da tipologia como um continuum, e não como quadrantes rígidos ou categorizações estanques. Observamos que, entre um extremo e outro da Figura 1, há intermediários que podem ser caracterizados por uma atuação não profissional, por não ser regular nem remunerada, mas que também não chega a ser situacional. Esse é o caso das ONGs que atuavam na área, sejam as de defesa de direitos da população em situação de rua ou as de base local e identificadas com o território. No primeiro caso, identificou-se maior grau de proximidade, por serem organizações lideradas ou integradas por pessoas com experiência de vida em situação de rua. Em uma dessas situações, acompanhamos o caso de Consuelo, uma mulher lésbica que trabalhava com a venda de cachaça e cigarro picado, que vinha sendo repetidamente assediada e tendo o seu material apreendido por um policial. A líder da ONG levantou as informações necessárias e prontificou-se a denunciar o policial ao Ministério Público (DC 55, 18/7/2021).
Desfechos e consequências da intermediação
Para além de compreender a variação entre os tipos de intermediários, buscamos também analisar os desfechos desses processos que visam conectar as pessoas em situação de rua aos serviços públicos, discutindo também suas potenciais consequências.
Em primeira observação, constatamos que as intermediações podem ter desfechos resolutivos ou frustrados. No primeiro caso, percebemos que a intermediação, em várias situações, contribuiu para resolver as demandas apresentadas, seja por meio da coordenação em face da fragmentação dos agentes governamentais (Koch & James, 2022), seja por meio da humanização dos serviços diante das situações específicas das pessoas (Massicard, 2022). Nessas situações, pessoas em situação de rua são finalmente conectadas ao serviço público e conseguem acessar algum benefício, regularizar sua documentação ou receber atendimento em um equipamento de saúde, por exemplo.
Mas, em outros casos, a intermediação pode fracassar em prover o encaminhamento de uma situação ou a solução de algum problema. Trata-se de tema ainda pouco tratado na literatura mobilizada. Mas, tal como observamos na pesquisa, esse desfecho pode ocorrer em função tanto das pessoas atendidas e das instituições envolvidas quanto das capacidades dos intermediários. A frustração tende a se materializar na demora excessiva na produção das conexões necessárias. Um exemplo é o caso de Pedro, um homem pardo que vive no SCS há mais de cinco anos. Quando recebeu a resposta da ONG sobre a sua demanda por um tratamento de ejaculação precoce, reagiu: “Ela diz que tá tentando arrumar, já faz três anos que ela me diz isso” (DC 119, 8/9/2021).
A frustração da intermediação pode ser provocada também pelo desinteresse das pessoas atendidas nas opções de encaminhamentos oferecidos. Em uma das várias situações em que estava passando mal, Daniel foi abordado por bombeiros que, atuando como intermediários, ofereceram levá-lo para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de uma região distante do centro de Brasília, alegando que ali havia vaga para atenção imediata e especializada. Mas Daniel, mesmo diante de muita insistência, dispensou o atendimento oferecido. Preferiu não ser removido das imediações do SCS e lidar com o problema de alguma outra forma (DC 53, 28/7/2021).
Entre a resolução e a frustração, percebemos também desfechos parciais, que podem anteceder a resolução ou a eventual frustração do acesso. Trata-se de atendimentos, apoios ou entregas realizadas pelos intermediários para as pessoas em situação de rua, ao longo do processo de produção das conexões necessárias entre elas e os serviços públicos. O primeiro tipo desses desfechos parciais diz respeito à tradução e provisão de informação sobre direitos e ofertas de serviços, por meio da qual intermediários associam procedimentos institucionais com necessidades pessoais (Kirwan, 2016; McDermont, 2013). Por exemplo, enquanto Raíssa, uma mulher cisgênero, trabalhadora sexual, aguardava o retorno da equipe do Consultório na Rua sobre a possibilidade de tratamento do seu quadro de sífilis, a redutora de danos da ONG indicou que ela procurasse o Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA): “É aqui na rodoviária, um segundo, você vai andando, você chega lá a qualquer momento do horário comercial e você consegue fazer isso” (DC 91, 10/11/2021).
Outra possibilidade de desfecho parcial são o acolhimento e a escuta dos problemas. O acolhimento é um desfecho comum nos primeiros contatos com intermediários ou quando as demandas ainda estão sendo amadurecidas. Nesses casos, a intermediação opera por meio da escuta, da conscientização e da ajuda sobre como nomear uma demanda para os serviços. Tal como propôs Kirwan (2016, p.463), trata-se de um “trabalho emocional” intensivo na regulação de sentimentos. Esse foi o caso de Mônica, mulher negra e idosa, que tem um filho preso a quem não consegue visitar e ter notícias há mais de dois anos, pois ela se encontra em livramento condicional. Uma das redutoras de danos acolheu, escutou o relato desesperado, buscou tranquilizar Mônica e a orientou no sentido de pedir ao juiz uma autorização, argumentando que, por ser mãe e não ser corréu no mesmo processo, há grande chance de resolver o problema.
Por fim, a análise do material indicou que as relações entre as pessoas em situação de rua e os intermediários podem ter consequências diversas. Em muitos casos, intermediários não só contribuem para o acesso aos serviços públicos, mas, também, reforçam o empoderamento, a capacitação e o estímulo à autonomia, afetando as imaginações e práticas das pessoas em situação de rua na busca pela resolução dos problemas junto às instituições (Kirwan et al., 2016). No entanto, ecoando análises que abordaram a dependência estrutural dos cidadãos em relação aos burocratas nos guichês dos serviços públicos (Dubois, 1999), observamos que a relação com os intermediários pode também apresentar riscos nesse sentido. O hábito de recorrer a intermediários pode levar à acomodação e desestimular que as pessoas aprendam a procurar elas mesmas pela solução de suas demandas. Desse modo, a intermediação pode promover dependências e reproduzir dificuldades de acesso, na ausência dos intermediários (Dubois et al., 2018).
Esse tipo de reflexão foi externalizado pela líder da ONG, quando questionada, pelos pesquisadores, sobre o motivo de não se engajar imediatamente no atendimento a uma demanda de cuidado de saúde feita por Valter, um homem branco frequentemente apoiado pelas ações da Tulipas do Cerrado:
ele não faz por onde, se ele quisesse se cuidar ele sabe onde ele tem que ir, quem ele tem que procurar [...] nós vamos deixar ele aí hoje para ver se ele se vira, se ele se mexe, porque isso também é importante, a gente acha que esse excesso de assistencialismo também tá prejudicando as pessoas de se mexerem, e na quarta-feira, se a gente chegar aqui e ele ainda estiver aí com esse problema, a gente vai botar ele no carro e levar ele lá no posto de saúde da 612 Sul, que é a base do consultório na rua. (DC 108, 18/10/2021)
É importante destacar ainda que essa oposição entre promover autonomia ou dependência não é estanque. A complexidade implicada nos processos de intermediação pode levar a que um mesmo atendimento tenha caráter dual, promovendo autonomia e, ao mesmo tempo, reiterando que pessoas em situação de rua não conseguem efetivar seus direitos sozinhas (Dubois et al., 2018). Até no caso das instituições, a aproximação promovida pelos intermediários pode provocar aprendizagem e acomodação nas formas de lidar com as pessoas em situação de rua. Em suma, o olhar para os desfechos da intermediação e suas consequências revela a importância desses processos em produzir acessos, mas, também, os riscos de reforço da subalternidade, captura e acomodação das configurações vigentes para as relações entre pessoas vulneráveis e políticas públicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, procuramos desenvolver uma análise da implementação de políticas públicas, focando a experiência cotidiana das pessoas a quem elas se destinam (Naples, 1998). Reconhecendo os múltiplos atores implicados na produção do acesso a políticas públicas, por meio da aproximação com a antropologia da intermediação, nós analisamos os processos e agentes que conectam grupos sociais vulneráveis ao Estado.
A intermediação decorre das barreiras de acesso configuradas por desencaixes recíprocos entre instituições e pessoas vulneráveis. As instituições têm dificuldade de abordar as pessoas em situação de rua, seja por falta de recursos e orientação organizacional para busca ativa, despreparo para lidar com as especificidades psicossociais desse público ou pela reprodução de preconceitos e estereótipos. Além disso, a falta de articulação entre setores torna a busca pelos serviços fragmentada e dispersa. Já as pessoas em situação de rua enfrentam desafios sociais que prejudicam a adequação de suas condutas às expectativas delineadas pelas instituições.
Nesse cenário, a intermediação opera como dispositivo que promove os alinhamentos necessários e constantes entre pessoas em situação de vulnerabilidade e instituições. Trata-se de um esforço de “montagem do social”, em que intermediários forjam conexões e encaixes, ressignificando o acesso a serviços públicos como produto de um amálgama de diferentes atores, objetos e instituições que “funcionam juntos”, em um enredamento produtivo (Koster & Leynseele, 2018).
Os tipos de intermediários mapeados variam conforme os eixos de proximidade e distância, em relação às pessoas em situação de rua, e pelo caráter profissional ou situacional da intermediação. Também as consequências dessa atividade são variadas: a intermediação tanto pode ter desfechos resolutivos, que sanam a demanda da pessoa em situação de rua, quanto pode ser incipiente, parcial ou mesmo inefetiva, reforçando frustrações de acesso. Ainda, a intermediação pode promover autonomia e efetivação de direitos, mas, por outro lado, pode engendrar dependência, na medida em que não tem condições de incidir sobre o que causa as dificuldades nas pessoas vulneráveis e nas instituições.
Ao situar os intermediários no centro da análise, buscamos contribuir para uma agenda de pesquisa que amplie o foco analítico para além das instituições estatais e dos atores tipicamente abordados nos estudos de implementação de políticas públicas (Brodkin, 2015; Lipsky, 1980). Com o apoio de outros estudos que fizeram movimento semelhante, demonstramos a multiplicidade de atores que intervêm na produção do acesso, por meio de esforços de tradução, acolhimento, articulação institucional e superação de barreiras diversas. A ampliação e melhoria do acesso a políticas públicas, especialmente pelos segmentos mais vulneráveis, exige maior atenção às experiências cotidianas e aos enredamentos sociais que emergem nessas zonas intermediárias entre sujeitos desfavorecidos e instituições de Estado.
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Cristiano Parra Duarte https://orcid.org/0000-0003-0924-4573, Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Ciências Sociais, São Carlos, SP, Brasil
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Avaliadores/as: O/A primeiro/a avaliador/a não autorizou a divulgação de sua identidade.
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Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo. Editor Associado: Diogo Henrique Helal
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FINANCIAMENTOFinanciamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) Processo n.402767/2021-7 - Projeto Classes Subordinadas e Instituições Públicas no Brasil.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem a Juma Santos, Joana Mostafa, Marcelo Galiza, Maria Paula Santos, Rogério Medeiros, Nínive Machado, Gabriela Lotta e Giordano Magri pelas discussões e colaborações ao longo do processo de pesquisa.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
14 Nov 2024 -
Aceito
13 Maio 2025


