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Educação com enfoque CTS em documentos curriculares regionais: o caso das diretrizes curriculares de física do estado do Paraná* * A pesquisa que originou este artigo teve apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES).

STS education in Brazilian regional curriculum documents: the case of physics curriculum guidelines of the state of Paraná

Resumos

Acreditando que a consolidação do movimento que prioriza as relações entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS) na educação científica perpassa as decisões curriculares, buscamos compreender como esta vertente se insere nas Diretrizes Curriculares de física do Estado do Paraná (DCE/PR). Após caracterizarmos Educação com enfoque CTS, a partir de Ziman, Aikenhead e Yager, utilizamos a metodologia da Análise Textual Discursiva para estabelecer categorias de análise. A constituição dos dados se deu a partir da análise documental das DCE/PR de Física e de entrevistas com autores. Deste processo, emergiram as seguintes categorias de análise: aplicação da ciência, interdisciplinaridade, enfoques histórico, filosófico e sociológico, problematização, contextualização, tomada de decisões, currículo orientado no aluno, e cidadania. Os resultados apontam que, mesmo não tendo sido elaboradas com o propósito de favorecer a Educação com enfoque CTS, as DCE/PR de Física contemplam elementos que remetem às dimensões supracitadas.

Educação CTS; Currículo; Ensino de física; Análise textual discursiva


Believing that the improvement of the Science, Technology and Society (STS) movement in scientific education involves curriculum decisions, we dedicate this research to understanding how these relations were considered in the Physics curriculum guidelines of the state of Paraná (Portuguese acronym: DCE/PR). After characterizing STS Education from Ziman, Aikenhead and Yager, we used Discursive Textual Analysis, in order to establish some analysis categories. The data sources where composed of the documental analysis of the state of Paraná Physics curriculum and of some interviews with text authors. From this process, the following categories emerged: approaches through application of science, interdisciplinary, historical, philosophical and sociological approaches, problem solving approaches, contextualization, decision making, and student oriented curriculum and citizenship. As results we show that, despite of STS Education not being considered as a possible approach, the document presents some elements that could be associated with it.

STS Education; Curriculum; Physics teaching; Discoursive textual analysis


Introdução

Dentre as várias linhas de pesquisa presentes hoje na área de Ensino de Ciências no Brasil, uma que vem ganhando destaque é aquela que aborda a importância da discussão das relações entre ciência, tecnologia e sociedade nas disciplinas do núcleo das Ciências Naturais. Desde o final da década de 1980, com as primeiras tentativas de trazer questões acerca deste movimento para o debate no contexto brasileiro, e tendo levado ainda mais de uma década para se constituir oficialmente como uma linha de pesquisa (ROEHRIG; CAMARGO, 2013ROEHRIG, S. A. G.; CAMARGO, S. A educação com enfoque CTS no quadro das tendências de pesquisa em ensino de ciências: algumas reflexões sobre o contexto brasileiro atual. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 117-131, 2013.), esta vertente vem atraindo cada vez mais pesquisadores interessados em compreender como a educação científica com enfoque CTS pode contribuir para melhorar a formação dos cidadãos.

Apesar do atraso, uma vez que este movimento é considerado consolidado em países da Europa e América do Norte há pelo menos duas décadas, pesquisas que se referem à Educação CTS já fundamentam algumas ações que envolvem reformas curriculares no Brasil, estando presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais e nas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Alguns Estados, no entanto, acabam produzindo seus próprios documentos, como forma de valorizar a identidade local no currículo escolar presente no seu contexto educacional.

A pesquisa que resultou neste artigo surgiu do interesse em compreender como a vertente em questão se configura no contexto do Estado do Paraná. Tendo em vista que o planejamento docente é elaborado com base em referenciais curriculares, consideramos adequado estudar como as relações CTS são abordadas no documento que rege o trabalho pedagógico dos professores de Física das escolas públicas do Estado do Paraná: as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE/PR). Acreditando na relevância desta tendência no âmbito do ensino de Ciências, procuramos estabelecer uma investigação que revelasse como estas questões foram levadas em consideração na construção do texto curricular.

A partir da revisão bibliográfica, foi possível estabelecer alguns elementos fundamentais que compõem a ideia de Educação com enfoque CTS, especialmente de autores como Ziman (1980)ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980., Aikenhead (1994)AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59. e Yager (1996)YAGER, R. Science/technology/society as reform in science education. New York: State University of New York, 1996.. Tais aspectos, combinados a entrevistas com alguns sujeitos envolvidos no processo de elaboração do documento, possibilitaram a constituição do quadro de categorias discutidas neste trabalho. Acreditamos que este processo possibilitou uma melhor compreensão de como a vertente CTS se configura no contexto da Educação Básica no Estado do Paraná.

As Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná (DCE/PR)

As DCE/PR constituem um documento curricular regional, elaborado com a finalidade de nortear a prática docente nas escolas públicas do Estado do Paraná. O processo de construção dos textos se deu a partir de discussões entre as equipes disciplinares da Secretaria da Educação do Estado do Paraná (SEED) e os professores da rede, no período compreendido entre os anos de 2004 e 2008. Após a publicação dos textos, em forma de cadernos por disciplina, foi enviada, às residências dos professores, uma cópia do volume específico da sua disciplina.

O principal fator que desencadeou o processo de construção do documento, de acordo com os então gestores da SEED, está relacionado a críticas às políticas educacionais adotadas pela gestão anterior a 2003, que teria alterado "[...] a função da escola ao negligenciar a formação específica do professor e esvaziar as disciplinas de seus conteúdos de ensino, de modo que o acesso à cultura formal ficou mais limitado, principalmente para as camadas socialmente marginalizadas" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 7).

Em outras palavras, a gestão acreditava que era preciso reestabelecer o modelo disciplinar com foco nos conteúdos, bem como a formação continuada voltada para aspectos das disciplinas em si, em contraposição às ações tomadas pelo governo anterior, responsável pela adoção e implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) no Estado do Paraná.

Ao adotar os PCN, de acordo com Paraná (2008)PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., a gestão anterior teria favorecido o "esvaziamento de conteúdos", na medida em que traz uma perspectiva de trabalho a partir de eixos estruturantes, com os temas transversais e projetos interdisciplinares. A crítica se fundamenta no argumento de que o professor, ao trabalhar sob tal enfoque, acaba priorizando as "necessidades de desenvolvimento pessoal do indivíduo, em prejuízo da aprendizagem dos conhecimentos histórica e socialmente construídos pela humanidade" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 18).

Os PCN são classificados, nas DCE/PR, como "projeto neoliberal de educação" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 18), por se fundamentarem em concepções psicológicas, humanistas e sociais, colocando como foco a totalidade de experiências vivenciadas pelo aluno em detrimentos dos conteúdos. De acordo com o documento,

Uma vez que esta concepção de currículo não define o papel das disciplinas escolares na organização do trabalho pedagógico com a experiência, o utilitarismo surge como um jeito de resolver esse problema, aproximando os conteúdos das disciplinas das aplicações sociais possíveis do conhecimento. (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 18)

Assim, com o objetivo de resgatar o modelo de currículo que vigorara até a implementação dos PCN, a proposta das DCE/PR se constitui, em linhas gerais, em um "[...] currículo como configurador da prática, produto de ampla discussão entre os sujeitos da educação, fundamentado nas teorias críticas e com organização disciplinar" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 19).

Ao se fundamentarem nas teorias críticas, as DCE/PR retomam elementos do Currículo Básico, primeiro documento curricular do Estado do Paraná publicado em 1990, que tinha, como tendência pedagógica base, a Pedagogia Histórico-Crítica, fomentada pelo filósofo e pedagogo Demerval Saviani na década de 1980. Sob esta perspectiva, "cabe à escola dosar e sequenciar o saber sistematizado, o conhecimento científico, tendo em vista o processo de sua transmissão-assimilação" (PARANÁ, 1990PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Currículo básico para a escola pública do estado do Paraná. Curitiba, 1990., p. 16), conferindo, à escola, o papel de instituição socializadora do saber escolar presente nos conteúdos disciplinares, sendo este aspecto considerado fundamental para oferecer, ao estudante, uma formação crítica.

Esta breve apresentação das DCE/PR teve como objetivo situar o leitor com relação ao documento e seu processo de elaboração. Cabe ressaltar que este documento é, atualmente, o currículo vigente nas escolas públicas estaduais, e os professores da rede são orientados, pelas equipes pedagógicas de suas escolas, a seguir as diretrizes de suas disciplinas. Isso implica que o uso dos PCN como referência no planejamento docente acaba não sendo estimulado, por apresentarem uma concepção contrária ao documento regional, contrária às concepções adotadas e defendidas pela gestão que organizou a elaboração dos textos que compõem as DCE/PR. Neste trabalho, focaremos, especificamente, no documento da disciplina de Física, analisando como elementos que remetem à Educação com enfoque CTS são abordados no texto.

Educação com enfoque CTS

Ao olharmos para as pesquisas na área de Ensino de Ciências, percebemos a existência de diversos enfoques e abordagens, cujos objetivos e motivações recaem, em geral, na necessidade de promover avanços na compreensão dos mais diversos aspectos relacionados a este campo de estudos. Dentre elas, destacamos a Educação com enfoque Ciência/Tecnologia/Sociedade (CTS). Definir tal vertente não é tão simples, em função das muitas interpretações que lhe são atribuídas. Nesse sentido, ao trazermos a contribuição de alguns autores que versam sobre o trabalho com as relações CTS no Ensino de Ciências, pretendemos estabelecer um panorama geral do que pode ser considerado elementar sobre essa temática.

Ziman (1980)ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980. argumenta que o foco do Ensino de Ciências convencional é ensinar a ciência 'válida', que é aquela produzida dentro dos padrões estabelecidos pela comunidade científica. Neste âmbito, fatores externos não são considerados, e os contextos social e político não entram em pauta. Para o autor, a intenção principal é treinar futuros cientistas, já que se priorizam os conteúdos que envolvem o estudo do conhecimento acumulado ao longo das gerações de pesquisadores de uma determinada área. O autor ainda chama a atenção para o fato de haver "pouca referência às necessidades da maioria dos alunos que não irão, de fato, seguir carreira de cientista" (ZIMAN, 1980ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980., p. 29, tradução nossa).

Com relação à utilidade e ao significado da ciência para o aluno, Yager (1996YAGER, R. Science/technology/society as reform in science education. New York: State University of New York, 1996., p. 17) argumenta, citando resultados de pesquisas, que a maioria dos adultos, ao olhar para trás e lembrar de sua experiência na ciência escolar, apresenta uma visão negativa desta, não encontrando significado ou utilidade para aqueles conceitos estudados no seu cotidiano. Além disso, a ciência aprendida na escola parece não ser internalizada pelo aluno; pesquisas conduzidas por psicólogos cognitivistas (CHAMPAGNE; KLOPFER, 1984 apud YAGER, 1996YAGER, R. Science/technology/society as reform in science education. New York: State University of New York, 1996., p. 21) mostram que a maioria dos alunos que concluem o high school (Ensino Médio) apresenta concepções ingênuas e equivocadas sobre o mundo real, por serem incapazes de estabelecer relações entre os conceitos estudados e os fenômenos ou acontecimentos que ocorrem ao seu redor. Tais argumentos reforçam a ideia da necessidade de mudanças radicais no ensino de ciências; nesse sentido, a perspectiva da Educação CTS parece fornecer subsídios, no mínimo, interessantes para uma efetiva reformulação curricular.

Há muitas formas de definir o que é Educação CTS. Aikenhead (1994)AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59., ao abordar essa temática, traz vários aspectos de um currículo pensado sob tal perspectiva. Quanto à função do currículo CTS, o autor destaca que é orientado no aluno , ao invés de ser orientado no cientista , como ocorre no currículo tradicional. Para o autor, ensinar ciência a partir da perspectiva CTS significa "ensinar sobre os fenômenos naturais de maneira que a ciência esteja embutida no ambiente social e tecnológico do aluno" (AIKENHEAD, 1994AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59., p. 48, tradução nossa). Isso porque, no currículo tradicional, o conteúdo de ciências é ensinado de forma isolada da tecnologia e sociedade. Num currículo CTS, o conteúdo da ciência é conectado e integrado ao cotidiano do aluno, indo ao encontro de sua tendência nata de associar a compreensão pessoal de seu ambiente social, tecnológico e natural, passando a encontrar sentido na ciência em suas experiências diárias.

Um dos objetivos do ensino CTS é reverter a visão negativa que se tem das ciências, com o intuito de instigar o interesse pelos assuntos científicos, "particularmente pelos alunos brilhantes e criativos que são muitas vezes desencorajados por um currículo tedioso e irrelevante" (AIKENHEAD, 1994AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59., p. 49, tradução nossa). Além disso, a responsabilidade social na tomada de decisões em assuntos que envolvem ciência e tecnologia figura entre as prioridades do currículo CTS, já que, cada vez mais, o cotidiano das pessoas é modelado de acordo com o surgimento de novas tecnologias.

No que condiz ao conteúdo num curso CTS, Aikenhead (1994)AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59. afirma que, para o Ensino Médio, as experiências concretas dos estudantes ocupam posição central no trabalho. Nessa perspectiva, os aspectos humanos e sociais da ciência são abordados de forma simples, porém "intelectualmente honesta". Devem ser abordados, simultaneamente, conteúdos científicos e as relações CTS, de modo que haja interação entre ciência e tecnologia, ciência e sociedade ou tecnologia e sociedade, além de considerar aspectos históricos, filosóficos ou epistemológicos que porventura influenciam essas comunidades.

Com relação ao grande número de possíveis interpretações para a Educação com enfoque CTS, Ziman (1994)______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31. as atribui ao fato de ser impossível descrever ou, simplesmente, estabelecer uma forma para tal movimento, por possuir origens nas mais diversas fontes e fluir para os mais diversos caminhos. Entretanto, o autor esclarece que as diferentes abordagens possíveis numa educação com enfoque CTS não são contraditórias, e, sim, complementares, uma vez que cada uma delas seria designada a estabelecer pontes "ao longo de determinados setores do fosso que circunda a ciência 'válida'" (ZIMAN, 1994______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31., p. 22, tradução nossa).

Ziman (1994)______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31. reconhece a existência de uma multiplicidade de abordagens e destaca sete dimensões, indicando seus objetivos e chamando a atenção para suas principais vantagens e desvantagens; são elas: enfoque na aplicação da ciência, enfoque vocacional, interdisciplinaridade, enfoque histórico, enfoque filosófico, enfoque sociológico e problematização. Traremos alguns aspectos importantes de cada uma delas mais adiante, na discussão dos resultados, quando tais dimensões constituirão algumas das categorias de análise no âmbito desta pesquisa.

A partir das dimensões destacadas por Ziman (1994)______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31. e as contribuições de Aikenhead (1994)AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59. para uma possível caracterização da Educação com enfoque CTS, temos a possibilidade de estabelecer categorias de análise a priori , que podem nos auxiliar a compreender de que forma as DCE/PR de Física contemplam esta vertente.

Metodologia aplicada

A constituição dos dados desta pesquisa - cuja proposta é analisar as DCE/PR de Física com o objetivo de compreender como elementos da Educação com enfoque CTS se configuram neste documento - ocorre basicamente em duas etapas: pesquisa documental, sendo as DCE/PR de Física a fonte sujeita à análise, e entrevistas com os sujeitos envolvidos na elaboração do referido documento.

Para analisar como o texto das DCE/PR de Física aborda aspectos que remetem à Educação com enfoque CTS, no sentido de sugerir que o professor considere tais discussões em seu planejamento docente, utilizamos a metodologia da Análise Textual Discursiva (MORAES; GALIAZZI, 2007MORAES, R.; GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.). De acordo com os autores,

[...] a análise textual discursiva corresponde a uma metodologia de análise de dados e informações de natureza qualitativa, com a finalidade de produzir novas compreensões sobre os fenômenos e discursos. Insere-se entre os extremos da análise de conteúdo tradicional e a análise de discurso, representando um movimento interpretativo de caráter hermenêutico (MORAES; GALIAZZI, 2007MORAES, R.; GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007., p. 7, grifo dos autores)

Para Moraes e Galiazzi (2007MORAES, R.; GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007., p. 12), a Análise Textual Discursiva "pode ser compreendida como um processo auto-organizado de construção de compreensão"; para que novas compreensões sobre o objeto de estudo sejam estabelecidas, é preciso caracterizar uma sequência recursiva de três componentes: (1) unitarização: desmontagem ou desconstrução do corpus da análise textual, com o objetivo de encontrar unidades constituintes dos fenômenos estudados; (2) categorização: constituição de relações entre as unidades de base, de modo a formar conjuntos que congregam elementos próximos, resultando num sistema de categorias; (3) nova compreensão: a compreensão renovada emerge a partir da impregnação nos materiais de análise, desencadeada nos passos anteriores.

No âmbito deste trabalho, o processo de unitarização se deu a partir da leitura crítica do documento curricular investigado. Tendo em vista o foco da pesquisa, procurou-se desmembrar o texto a fim de identificar unidades de análise que abrangessem elementos relacionados à Educação com enfoque CTS ou outras possíveis indicações metodológicas.

A partir da unitarização, foi possível organizar o processo de constituição das categorias de análise, que representa a segunda etapa da Análise Textual Discursiva. De acordo com Moraes e Galiazzi (2007)MORAES, R.; GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007., há dois tipos de categorias: categorias a priori e categorias emergentes. A partir da pesquisa bibliográfica, identificamos elementos que consideramos fundamentais para uma caracterização do trabalho com as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Tais elementos constituem possíveis dimensões da Educação com enfoque CTS, e serão aqui considerados como categorias a priori ; são eles: enfoque na aplicação da ciência, interdisciplinaridade, enfoque histórico, enfoque filosófico, enfoque sociológico e problematização (ZIMAN, 1980ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980., 1994______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31.); contextualização, tomada de decisões e currículo orientado no aluno (AIKENHEAD, 1994AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59.).

Houve a preocupação em não forçar o enquadramento de qualquer unidade de análise em categorias preestabelecidas, motivo pelo qual o sistema final apresenta três categorias emergentes: formação crítica/cidadania, outras vertentes do Ensino de Física, e aspectos políticos nas decisões curriculares. Neste trabalho não discutiremos as duas últimas categorias, pelo seu caráter multifacetado, no que concerne à especificidade com as relações CTS para o ensino de Ciências; tais categorias são, no entanto, discutidas no trabalho completo (ROEHRIG, 2013ROEHRIG, S. A. G.; CAMARGO, S. A educação com enfoque CTS no quadro das tendências de pesquisa em ensino de ciências: algumas reflexões sobre o contexto brasileiro atual. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 117-131, 2013.).

Com relação às entrevistas, cinco pessoas envolvidas no processo de elaboração dos textos das DCE/PR foram ouvidas, sendo elas: um consultor externo; um técnico pedagógico da SEED/PR de Física; um técnico pedagógico de Ciências; um leitor crítico da DCE de Física, e um coordenador de área. Na discussão das categorias, estas pessoas, quando citadas, serão referenciadas como E1, E2, E3, E4 e E5. A partir destas entrevistas, foi possível conhecer com maior profundidade o contexto da elaboração do documento e compreender quais os fatores que influenciaram nas decisões tomadas pela equipe responsável pela construção do texto.

Para as entrevistas, foi utilizada a técnica da entrevista aberta, em que "o entrevistador introduz o tema e o entrevistado tem liberdade para discorrer sobre o tema sugerido" (BONI; QUARESMA, 2005BONI, V.; QUARESMA, S. J. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em ciências sociais. Em Tese, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 68-80, 2005., p. 74). Neste caso, o tema sugerido foi a construção do texto das DCE, e cada entrevistado foi convidado a contar como foi sua participação neste processo. Neste artigo, trazemos alguns trechos das transcrições que apresentam relação com as categorias discutidas. Procuramos mostrar falas que, de alguma forma, contribuem para a compreensão de como as categorias aparecem no documento; por se tratar de uma entrevista aberta, nem todo o conteúdo transcrito pôde ser aplicado, o que justifica o fato de poucas falas terem sido contempladas neste trabalho3 3 Transcrições e trechos utilizados na análise podem ser encontrados no trabalho completo (ROEHRIG, 2013). .

Resultados e discussão

Para a discussão das categorias de análise, levaremos em conta a fundamentação teórica, a leitura crítica das DCE/PR de Física e o discurso dos entrevistados, no sentido de triangular informações para estabelecer uma nova compreensão sobre o objeto de estudo. A seguir, abordaremos as dez categorias constituídas a partir do processo descrito anteriormente: (1) enfoque na aplicação da ciência; (2) interdisciplinaridade; (3)enfoque histórico; (4) enfoque filosófico; (5) enfoque sociológico; (6) problematização ; (7)contextualização; (8) tomada de decisões; (9) currículo orientado no aluno ; (10) formação crítica para exercício da cidadania.

Sobre o enfoque na aplicação da Ciência , Ziman (1980ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980., 1994______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31.) afirma que currículos convencionais de disciplina científicas sugerem o ensino da ciência "válida" a partir de suas aplicações práticas e tecnológicas, aproveitando-se do fato de tais aplicações estarem presentes no cotidiano dos alunos. Tal enfoque, de acordo com o autor, é inadequado do ponto de vista de uma perspectiva CTS mais ampla, pois favorece uma atitude tecnocrática, em que se assume que a sociedade deveria ser modelada de acordo com princípios científicos e tecnológicos.

Nesse aspecto, as DCE/PR de Física parecem rejeitar práticas que foquem apenas na aplicação tecnológica da ciência, argumentado que "o ensino de física vai além da mera compreensão do funcionamento dos aparatos tecnológicos" (PARANÁ, 2008, p. 57). No entanto, apesar de colocar que é preciso considerar sua influência na sociedade, encontramos um trecho em que se sugere que, no trabalho com o conteúdo estruturante Eletromagnetismo, sejam tratados "conteúdos relacionados a circuitos elétricos e eletrônicos, responsáveis pela presença da eletricidade e dos aparelhos eletrônicos no cotidiano" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 60).

Um dos sujeitos envolvidos na elaboração do texto curricular, ao comentar sobre as relações CTS no documento, alega que tal perspectiva não foi considerada porque um dos "cuidados" que foram tomados pela equipe foi o de "[...] não cair numa questão utilitarista, como se a tecnologia fosse a salvadora do universo, e daí cair num campo menos crítico... menos crítico não: acrítico, que é essa ideia de que a relação sociedade, tecnologia e ciência é harmônica, que a Ciência e a Tecnologia estão a serviço da Sociedade" (E5).

Na mesma linha deste fragmento, porém em outro momento, o sujeito declara que "evitou-se falar de CTS" acreditando que cairia "num campo acrítico", e que houve um "cuidado que tanto a equipe de Ciências quanto a equipe de Física teve, de filtrar autores que parece que vão por esse caminho assim, de se encantar com a tecnologia" (E5). Com relação aos trechos destacados, percebemos que há uma compreensão distorcida sobre o que a vertente que abarca o estudo das relações CTS tem como pressuposto, na medida em que o que se tentou evitar para que o documento tivesse mais "criticidade" é justamente o que o movimento em questão discute: a complexidade das relações entre ciência, tecnologia e sociedade.

Com relação à interdisciplinaridade, Ziman (1994)______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31. afirma que um dos grandes movimentos na educação científica tem sido a tentativa de romper com as barreiras da Ciência, de modo a favorecer uma integração desta com as demais áreas do conhecimento, numa abordagem mais ampla e multidisciplinar. Para o autor, uma abordagem interdisciplinar efetiva envolveria uma organização curricular em torno de grandes temas, como, por exemplo, 'energia' ou 'meio ambiente'; isso porque "tanto um fenômeno natural como um processo útil podem ser estudados por múltiplos vieses, desde o da ciência dura e tecnologia, até as ciências sociais e humanas" (ZIMAN, 1980ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980., p. 117, tradução nossa).

Nesse aspecto, observamos que houve uma preocupação em promover a interdisciplinaridade em Paraná (2008)PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., mas, em tópico específico para essa dimensão, procurou-se estabelecer qual conceito de interdisciplinaridade seria adotado nas DCE/PR. Neste item do documento, afirma-se que a interdisciplinaridade não envolveria uma readequação metodológica tal qual aquela que a pedagogia dos projetos teria proposto no passado, mas seria "uma questão epistemológica e está na abordagem teórica e conceitual dada ao conteúdo em estudo, concretizando-se na articulação das disciplinas cujos conceitos, teorias e práticas enriquecem a compreensão desse conteúdo" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 27). A visão adotada representa uma postura específica e particular do grupo, já que, na sequência, há uma crítica a concepções de interdisciplinaridade de acordo com teorias pós-modernas e estudos culturais da educação: "Tal pressuposto [adotado nas DCE] descarta uma interdisciplinaridade radical ou uma antidisciplinaridade, fundamento das correntes teóricas curriculares denominadas pós-modernas" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 27).

A questão é retomada num momento posterior, na sessão do documento destinada às especificidades da disciplina de Física. Inicialmente, há uma crítica ao período em que os PCN foram adotados, que seria o motivo da mobilização para a construção das DCE, "considerando-se a necessidade de um documento crítico para orientar a prática pedagógica nas escolas paranaenses e o lapso de tempo em que o professor ficou à margem dessas discussões" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 49). Assim, todo esse movimento teria como meta fazer o professor "retomar o que é específico de sua disciplina e, a partir dela, estabelecer uma prática de ensino que contemple relações interdisciplinares" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 49). Enfatiza-se que os conteúdos disciplinares "são socialmente reconhecidos e não devem ser generalizados, nem esvaziados" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 49).

Após tais colocações, o texto traz uma citação que defende um "novo reconhecimento da disciplinaridade" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 55), em que "demarcar o espaço da Física, explicar seu campo de legislação" é visto como uma ideia importante a ser considerada. Mesmo que esse conceito vá ao encontro da concepção de interdisciplinaridade adotada no documento, trata-se de uma perspectiva que vai numa direção oposta ao que se espera em um trabalho que privilegia as relações CTS. Isso porque romper com as barreiras de demarcação é um dos grandes objetivos deste movimento (ZIMAN, 1980ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980., 1994______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31.).

Ao questionarmos E5 sobre como a SEED esperava que os professores trabalhassem a interdisciplinaridade, o entrevistado alega que esta questão foi bastante trabalhada junto aos professores durante as discussões, mas numa perspectiva diferente daquela presente nos PCN, que trazem os chamados temas transversais. A orientação era no sentido de que "as disciplinas conversem umas com as outras por meio dos seus quadros conceituais de referência", de modo que "os professores buscassem essa interdisciplinaridade, não uma interdisciplinaridade temática, como se fazia nos temas geradores, alguns anos atrás, ou metodológica, mas uma interdisciplinaridade teórico-conceitual" (E5). No entanto, de acordo com E5, não houve oferta de formação continuada que trouxesse subsídios aos professores para planejar e trabalhar sob tal concepção de interdisciplinaridade.

O enfoque histórico , de acordo com Ziman (1994)______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31., pode contribuir para o trabalho com as relações CTS, proporcionando uma maior compreensão de como a evolução e as mudanças da ciência e tecnologia ocorrem em associação com as sociedades em que estão incorporadas. Além disso, pode contribuir para modificar a visão distorcida que se tem da atividade científica, expondo seu caráter de construção humana, que está sujeita às mesmas fraquezas e problemas de qualquer outra atividade.

Em Paraná (2008), recomenda-se o uso da História da Ciência, mas com algumas ressalvas: abordagens que focam na história de grandes físicos, ou de cientistas que se "apoiaram em ombros de gigantes" são visões que "negam a construção humana ao colocar o conhecimento como resultado de uma inspiração genial de uma determinada pessoa" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 26). Seriam, então, abordagens que "referem-se a uma História que não interessa ao ensino de Física" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 26). Curiosidades motivadoras, como a história da descoberta da gravidade por Newton a partir da queda da maçã configuram, para as DCE, um "tipo de anedota que não é útil ao ensino" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 26). Considera-se, também, um fator importante que "muitas concepções espontâneas dos estudantes, relacionadas ao conhecimento científico, encontram paralelo na História da Ciência" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 26).

Entre os sujeitos entrevistados, apenas E4 teria feito referência à forma como a História da Ciência é colocada nas DCE. Cita um pesquisador que defende "que História da Ciência serve para formar o professor, mas que não deve ser utilizada em sala de aula; ele [o pesquisador mencionado] tem dúvidas da validade disso" (E4). Não podemos negar, no entanto, que a dimensão histórica tenha sido privilegiada, de modo que, neste quesito, as DCE de Física dão uma abertura que pode levar a discussões acerca das relações CTS.

Sobre o enfoque filosófico, um dos principais objetivos da educação CTS, de acordo com Ziman (1994)______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31., é dar conta da natureza da Ciência, questionando a validade de teorias, do método científico e o status de verdade absoluta, tradicionalmente atribuído aos conhecimentos das mais diversas disciplinas científicas. Nos documentos curriculares paranaenses da disciplina de Física, aspectos de História, Filosofia e Sociologia da Ciência, aparecem quase que simultaneamente. Apesar de tentarmos discutir esses aspectos em tópicos distintos, as relações são aqui estabelecidas sempre que necessário.

As incertezas e o caráter provisório da Ciência são aspectos colocados em Paraná (2008)PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008. como fatores que influenciam diretamente o ensino de Física, o que justificaria a inclusão da Filosofia da Ciência no planejamento docente. Um fator que dificulta o trabalho pedagógico nesse sentido, de acordo com o texto, é o enfoque disciplinar presente nos livros didáticos, em que os modelos científicos, muitas vezes, aparecem "como verdades incontestáveis e absolutas, resultantes de procedimentos experimentais" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 63). Defende-se, então, que é preciso mostrar, aos estudantes, que tais modelos são provisórios, por serem construções humanas. Além disso, enfatiza-se que "o professor deve ter em vista que a produção científica não é uma cópia fiel do mundo ou da realidade perceptível pelo senso comum, mas uma construção racional, uma aproximação daquilo que se entende ser o comportamento da natureza" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 56).

O ensino dogmático e rígido do método científico, presente em alguns livros didáticos, é criticado no documento, afirmando-se que "não se deve pensar no método como uma sequência lógica e única" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 72). Além disso, considera-se que "a ciência não revela a verdade, mas propõe modelos explicativos construídos a partir da aplicabilidade de métodos(s) científico(s)" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 65).

Com relação ao enfoque sociológico, um dos grandes objetivos de uma educação com enfoque CTS, de acordo com Ziman (1994)______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31., é reconhecer a ciência e tecnologia como instituições sociais organizadas internamente para produzir conhecimento, e cujos interesses e influências repercutem diretamente na sociedade. Discutir aspectos políticos e econômicos e mostrar que a ciência não é uma atividade autônoma e neutra, mas, sim, fortemente influenciada pela política e pela economia num determinado contexto social, está entre os principais objetivos de um trabalho que prioriza as relações entre ciência, tecnologia e sociedade.

Considerar a Ciência na sociedade onde é produzida, perceber os interesses das instituições de pesquisa que a apoiam e sustentam, e conhecer os avanços técnicos e científicos que mudam em função do meio social, são considerados, em Paraná (2008)PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., aspectos que devem ser levados em conta. Neste documento, elementos de História, Filosofia e Sociologia da Ciência aparecem combinados, o que é comum devido à proximidade que estas áreas possuem entre si. Considerar que o cientista é um ser humano, que é determinado pelo seu contexto social, político, econômico e cultural, e que o conhecimento por ele produzido é socialmente construído, configura uma das preocupações que o professor deve ter em seu planejamento docente, segundo o documento. Além disso, defende-se que

[...] a física, tanto quanto as outras disciplinas, deve educar para a cidadania e isso se faz considerando a dimensão crítica do conhecimento científico sobre o Universo de fenômenos e a não-neutralidade da produção desse conhecimento, mas seu comprometimento e envolvimento com aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 50)

Com relação à tecnologia, ao serem abordados na escola, defende-se que "é preciso considerar, também, seu papel nas mudanças econômicas e sociais da sociedade contemporânea, bem como o fato de não serem acessíveis para todos" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 61). Argumentase, ainda, que é preciso considerar que "na sua atividade prática os cientistas erram e acertam, avançam e retrocedem, testam algumas de suas hipóteses ou deixam de testá-las pela impossibilidade técnica" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 73), no sentido de que, como qualquer atividade humana, a Ciência não tem um desenvolvimento linear.

Numa tentativa de conhecer como as relações CTS eram percebidas pelos sujeitos envolvidos na ocasião da elaboração das DCE, foi questionado, nas entrevistas, se houve discussões acerca da possibilidade de incluir elementos desta vertente. Uma das pessoas entrevistadas fez o seguinte comentário:

A gente evitou usar esse termo, porque CTS também é aquela história: você pode discutir ciência com uma abordagem de ciência e tecnologia para manter a neutralidade, a suposta neutralidade, e você pode discutir para politizar; por isso a gente preferiu falar no contexto social, histórico, político, cultural, a gente insistiu muito nisso e preferiu não usar esse termo. (E2)

Como já foi observado, percebemos que há uma compreensão distorcida do que a Educação com enfoque CTS envolve como pressupostos, em que muitos acabam estabelecendo significados a partir da sigla, sem procurar um aprofundamento teórico para que seja possível julgar se podem ou não ser incorporadas ideias desta tendência num documento curricular. Reforçamos que estamos cientes da polissemia do termo e das diversas interpretações que podem ser atribuídas à sigla CTS, mas nos chama a atenção o fato de um profissional da educação envolvido na produção de um texto curricular para a disciplina de Física acreditar que o trabalho com as relações CTS vai "manter a neutralidade" da Ciência e Tecnologia, e que tais discussões não viriam a "politizar" o aluno. Entretanto, é fato que as discussões sobre sociologia da Ciência estão presentes no documento, mesmo não tendo sido abordadas com a intenção de favorecer a Educação com enfoque CTS.

A problematização de questões referentes à ciência e tecnologia, que afetam diretamente a sociedade, é uma das grandes frentes da Educação com enfoque CTS. Problemas mundiais - como crise energética, superpopulação, escassez de recursos, poluição ambiental, fome etc. - constituem uma realidade presente na sociedade, em que cientistas e tecnólogos estão envolvidos em tentativas de resolvê-los (ZIMAN, 1980ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980., 1994______. The rationale of STS education is in the approach. In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 21-31.). Trazer essas discussões para a sala de aula é um dos grandes objetivos do movimento CTS, considerando-se que tal prática pode contribuir para a formação de cidadãos bem informados sobre as repercussões do mau uso da Ciência e da Tecnologia na Sociedade.

Em Paraná (2008)PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., há uma crítica à abordagem que privilegia "problemas de física", com enunciados como, por exemplo, "Considere um bloco de massa m...", defendendo que "se problemas como esses eram distantes da realidade do professor quando estudante, também o são, hoje, do cotidiano dos alunos" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 66). De acordo com o documento, tal prática contribui para perpetuar a ideia distorcida da Física, e uma solução para este fato seria que o professor, ao utilizar tais modelos, discutisse seus limites e sua validade levando em conta fatores que influenciam os fenômenos estudados.

Em outro momento, considera-se que "problematizar o conhecimento já construído pelo aluno" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 62), no sentido de fazer com que os estudantes formulem questões sobre temas estudados, é desejável no planejamento docente. A resolução de problemas de física, prática comum em professores que costumam seguir a metodologia de determinados livros didáticos, é considerada prejudicial por focar na resolução de exercícios matemáticos. Tal encaminhamento, de acordo com Paraná (2008)PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., levaria ao professor a possibilidade de levantar as concepções prévias dos alunos, promovendo "debates e discussões aproximando os sujeitos e facilitando a criação, a análise, a formulação de conceitos" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 73).

De modo geral, percebemos que a problematização de situações sugerida no documento privilegia a compreensão dos conteúdos, partindo de ideias que os alunos trazem de suas experiências diárias. Tal concepção vai de encontro à ideia de problematização do ponto de vista da Educação com enfoque CTS, sugerida por Ziman (1980)ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.. Isso porque não envolve problemas oriundos no contexto social, mas, sim, situações-problema que são tradicionalmente utilizados no Ensino de Física como forma de estudar e compreender fenômenos físicos. No entanto, destacamos, como um aspecto positivo nestes documentos, o fato de reconhecerem que os problemas de física, que envolvem a utilização de modelos matemáticos, não oferecem uma perspectiva de aprendizagem efetiva aos estudantes e não contribuem para uma formação crítica.

Para caracterizar a contextualização, recorremos a Aikenhead (1994AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59., p. 48, tradução nossa), que defende que ensinar ciências sob este enfoque significa "ensinar sobre os fenômenos naturais de maneira que a ciência esteja embutida no ambiente social e tecnológico do aluno". Isso porque, no currículo tradicional, o conteúdo de ciências é ensinado de forma isolada da tecnologia e sociedade. Há, no entanto, várias formas de definir contextualização, e nem todas vão ao encontro daquela defendida na Educação com enfoque CTS.

Em Paraná (2008)PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., houve um movimento no sentido de esclarecer qual a concepção de contextualização adotada no documento. Para isso, o capítulo da primeira parte das DCE, intitulado A Contextualização Sócio-Histórica, é dedicado à caracterização deste conceito, adotada pela equipe. Após afirmar que interdisciplinaridade e contextualização sócio-histórica se relacionam entre si como "princípio integrador do currículo" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 28), argumenta que contexto seja apenas o "ponto de partida da abordagem pedagógica, cujos passos seguintes permitam o desenvolvimento do pensamento abstrato e da sistematização do conhecimento" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 28). Isso porque, de acordo com o documento,

É preciso [...] que o professor tenha cuidado para não empobrecer a construção do conhecimento em nome de uma prática de contextualização. Reduzir a abordagem pedagógica aos limites da vivência do aluno compromete o desenvolvimento de sua capacidade crítica de compreensão da abrangência dos fatos e fenômenos. (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 28)

Posteriormente, ao tratar os aspectos particulares para a disciplina de Física, Paraná afirma (2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 55) que, no trabalho pedagógico, relativo à seleção e abordagem dos conteúdos de ensino, "é preciso considerar a sociedade e o contexto histórico em que o conhecimento é produzido. Isso requer considerar as ideias de um cientista à luz do seu tempo e não limitar-se a contar histórias ou lendas". Considera importante que se leve em conta "a realidade socioeconômica e cultural da região onde se situa a escola para contextualizar os conteúdos e permitir aos estudantes ampliar as construções de significados no acesso ao conhecimento científico" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 58). Uma das práticas sugeridas no texto é agregar o uso da História da Ciência ao planejamento "para contextualizar a produção do conhecimento em estudo" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 69).

Em uma das entrevistas realizadas, percebemos que houve uma grande preocupação com a contextualização, mas a sua proximidade com as relações CTS não era percebida pelos autores dos textos. Por exemplo, E2 afirma que preferiu-se "falar no contexto social, histórico, político, cultural, a gente insistiu muito nisso e preferiu não usar esse termo [CTS]" . Ou seja, alega que preferiram não utilizar os pressupostos da Educação com enfoque CTS porque acreditavam que tal abordagem negaria a contextualização; mais uma vez é evidente a compreensão distorcida dos pressupostos desta vertente pedagógica.

De acordo com Aikenhead (1994)AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59., a dimensão referente à responsabilidade social na tomada de decisões , em assuntos que envolvem ciência e tecnologia, figura entre as prioridades do currículo CTS. Santos e Mortimer (2001SANTOS, W. L.; MORTIMER, E. Tomada de decisão para ação social responsável no ensino de ciências. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 1, p. 95-111, 2001., p. 97) apontam que "o principal objetivo dos cursos CTS é capacitar os alunos para a tomada de decisão e para uma ação social responsável". Os autores ainda argumentam que "não basta fornecer informações atualizadas sobre questões de ciência e tecnologia para que os alunos de fato se engajem ativamente em questões sociais" (SANTOS; MORTIMER, 2001SANTOS, W. L.; MORTIMER, E. Tomada de decisão para ação social responsável no ensino de ciências. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 1, p. 95-111, 2001., p. 107). Neste sentido, destacam que é preciso ir além do ensino conceitual, de modo que questões sociais vinculadas aos alunos, que envolvam ciência e tecnologia, constituam temas de trabalho a serem abordados no sentido de auxiliar na formação de atitudes e valores.

Após a leitura crítica das DCE/PR, percebemos que o documento não faz alusão alguma à dimensão relativa à tomada de decisões. Isto é, não há indicativos de metodologias que promovam a problematização de questões referentes à ciência e tecnologia, que coloquem o aluno como um agente decisor responsável por atitudes que influenciam aspectos relativos a tais áreas na sociedade em que vive.

Para Aikenhead (1994)AIKENHEAD, G. What is STS science teaching? In: SOLOMON, J.; AIKENHEAD, G. STS education: international perspectives on reform. New York: Teachers College Press, 1994. p. 47-59., um currículo orientado no aluno contempla as relações CTS, em contraposição ao currículo convencional, que é orientado no cientista, ou seja, segue uma lógica que privilegia o ponto de vista do cientista, o que, supostamente, levaria à formação de alunos que seguiriam a carreira de cientista.

O documento objeto de estudo desta pesquisa (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008.), ao justificar a opção pelo currículo disciplinar, expõe três matrizes curriculares e suas particularidades: (1) currículo vinculado ao academicismo e ao cientificismo; (2) currículo vinculado às subjetividades e experiências vividas pelo aluno; (3) currículo como configurador da prática, vinculado às teorias críticas. Após criticar as duas primeiras matrizes, assume a adoção da terceira matriz, em que se mantém a organização disciplinar, sendo "produto de ampla discussão entre os sujeitos da educação" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 19-20), em que se "priorizem diferentes formas de ensinar, de aprender e de avaliar", destacando que "as disciplinas escolares, apesar de serem diferentes na abordagem, estruturam-se nos mesmos princípios epistemológicos e cognitivos [da ciência de referência]".

Percebemos que a segunda matriz apresentada se aproxima de um currículo orientado no aluno, indo ao encontro de uma abordagem que privilegia as relações CTS. Esta proposta é, no entanto, criticada e rejeitada no documento, por ter "o foco do currículo [...] deslocado do conteúdo para a forma, ou seja, a preocupação foi centrada na organização das atividades, com base nas experiências, diferenças individuais e interesses da criança" (ZOTTI, 2008 apud PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 18). Utilizando o mesmo autor, justifica-se que tanto esta matriz, quanto aquela vinculada ao academicismo e cientificismo, tem como objetivo "adaptar a escola e o currículo à ordem capitalista, com base nos princípios de ordem, racionalidade e eficiência" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 19).

O modelo adotado, que seria fundamentado nas teorias críticas, prioriza os conteúdos disciplinares e indica que estes devem ser trabalhados com diferentes metodologias e abordagens; apesar de deixar uma abertura quando sugere que a escolha de metodologias e abordagens fica por conta do professor, apresenta uma lista de "conteúdos básicos", derivados dos conteúdos estruturantes, que "devem ser tomados como ponto de partida para a organização da proposta pedagógica curricular das escolas" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 92). Sobre tais conteúdos, afirma-se que

Por serem conhecimentos fundamentais, não podem ser suprimidos nem reduzidos, porém, o professor poderá acrescentar outros conteúdos básicos na proposta pedagógica, de modo a enriquecer o trabalho de sua disciplina naquilo que a constitui como conhecimento especializado e sistematizado. (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 92)

Ao considerar que os conteúdos básicos constituem conhecimentos fundamentais, acreditamos que tal posição se aproxima de uma orientação curricular que privilegia a perspectiva do cientista, que, naturalmente, atribui maior importância aos conhecimentos produzidos em sua área de atuação. Sobre a escolha destes conteúdos, um dos sujeitos entrevistados alega que "o quadro dos conteúdos básicos que acabou sendo construído nos DEB itinerante"4 4 DEB (Departamento de Educação Básica) itinerante: momentos de formação continuada em que representantes da SEED/PR promovem discussões juntos aos professores nas escolas estaduais. [...] foi uma solicitação dos professores" (E5); já E2 alega que foi uma solicitação da chefia à época, que precisava de uma lista de conteúdos para definir critérios nas avaliações do EJA. Independentemente dos motivos que levaram à construção desta lista de conteúdos, o contexto parece apontar para um currículo em que se privilegia o ponto de vista do cientista.

Já faz parte do senso comum que a escola deve oferecer uma formação crítica para exercício da cidadania. Tal aspecto está presente nos PCN, e, consequentemente, em documentos orientadores, como as Orientações Curriculares para o Ensino Médio. As Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, mesmo seguindo um caminho diferente dos documentos nacionais, enfatizam a questão da formação para a cidadania em vários momentos. Afirma-se que

[...] a física, tanto quanto as outras disciplinas, deve educar para cidadania e isso se faz considerando a dimensão crítica do conhecimento científico sobre o Universo de fenômenos e a não-neutralidade da produção desse conhecimento, mas seu comprometimento e envolvimento com aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 50)

A formação do cidadão crítico está presente não só no documento, mas, também, no discurso dos professores na ocasião da elaboração das DCE/PR. De acordo com E2, nos questionários que eram enviados aos docentes para promover discussões sobre o currículo, "uma das coisas que mais aparecia quando a gente perguntava para que ensinar Física na escola, a resposta era: para preparar para o aluno para o exercício da cidadania" (E2). Esse fato leva a crer que a formação do cidadão crítico é reconhecida pelos professores como um fator determinante na prática pedagógica. Porém, E2 assinala que o fato de os professores assumirem esse objetivo não significa necessariamente que sua prática seja condizente. Coloca a pergunta: "que exercício de cidadania você faz com v = v0 + a.t?", fazendo uma alusão à prática comum no ensino de Física tradicional, em que se aborda Cinemática, como foco em resolução de problemas matemáticos, ao longo de quase todo o primeiro ano do Ensino Médio.

A formação de um cidadão crítico perpassa os objetivos de uma Educação com enfoque CTS. No entanto, sob esta perspectiva, a dimensão da tomada de decisões e da problematização torna-se fundamental, uma vez que tal trabalho favorece o exercício da argumentação por parte dos alunos, que precisam utilizar os conhecimentos científicos de modo a relacioná-los com os problemas que vivenciam na sociedade da qual fazem parte. Conforme já foi apontado, o estudo mostrou que tais dimensões não são contempladas nas DCE/PR de Física, uma vez que priorizam o foco em conteúdos considerados importantes, em detrimento de situações ou temas oriundos da realidade social dos estudantes.

Considerações finais

Após a discussão das categorias de análise, que constituem dimensões de um trabalho que leva em consideração as relações CTS, podemos fazer algumas inferências acerca do documento curricular paranaense da disciplina de Física. Tais considerações são fruto de nossa interpretação dos fenômenos, a partir da triangulação entre os dados obtidos a partir da fundamentação teórica, da leitura crítica do documento e das entrevistas com os sujeitos envolvidos no processo de construção das DCE/PR de Física.

Das dimensões aqui discutidas, que favorecem um trabalho docente que condiz com a Educação com enfoque CTS, aquelas que estão presentes nas DCE/PR de Física incluem: o enfoque na aplicação da ciência, quando o documento condena práticas que favorecem a compreensão de que a tecnologia é mera aplicação da ciência, bem como os enfoques histórico, filosófico e sociológico, e aborda o uso da história da ciência, seu caráter de verdade provisória, sua não-neutralidade, entre outros. Nestes aspectos, podemos dizer que há uma abertura para um trabalho sob esta perspectiva. No entanto, a partir das entrevistas, percebemos que estas dimensões foram contempladas pelos autores sem a intenção de favorecer a vertente CTS, uma vez que alguns dos entrevistados demonstraram não reconhecer tais fundamentos como componentes deste movimento.

As categorias interdisciplinaridade, problematização e contextualização constituem termos presentes nas DCE/PR de Física, mas suas concepções não convergem para aquelas presentes na literatura especializada em Educação com enfoque CTS. Defende-se uma interdisciplinaridade teórico-conceitual, que seria pautada nos conteúdos disciplinares, a contextualização sócio-histórica, que leva em conta o contexto da produção do conhecimento, e a problematização do conhecimento a partir das concepções prévias dos alunos. Vimos que, numa perspectiva CTS, a interdisciplinaridade envolve o rompimento de barreiras entre as áreas do conhecimento, ao passo que o documento curricular paranaense defende a delimitação do campo; a contextualização envolve mais trabalhos com temas oriundos do cotidiano dos alunos, do que práticas cujo foco são os conteúdos em si; a problematização deve partir de questões ou problemas vividos pela sociedade, questões que afetam tanto a comunidade local quanto a mundial, no que as DCE/PR de Física estimulam uma problematização com foco em conteúdos estruturantes, básicos e específicos.

No que se refere a tomada de decisões, trata-se de uma dimensão ausente nas DCE/PR de Física. Não há referência a trabalho com questões sociais que envolvem a utilização de ciência e tecnologia, em que os alunos sejam solicitados a tomar decisões a partir do uso de conhecimentos científicos previamente abordados.

Com relação à orientação do currículo, as DCE/PR de Física apontam ser orientadas no cientista, ao invés de ser um currículo orientado no aluno, como seria condizente a uma Educação com enfoque CTS. Este documento nega a matriz curricular que leva em conta as necessidades do aluno, presente nos PCN, por julgar que faz parte de um "projeto neoliberal de educação" (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: física. Curitiba, 2008., p. 18). Tendo como base as teorias críticas, acredita-se que o domínio dos conteúdos daria, ao aluno, uma formação crítica, e que trabalhos com temas ou eixos estruturantes limita sua formação crítica devido ao "esvaziamento" de conteúdos.

Elementos relacionados à formação crítica para exercício da cidadaniaestão presentes em todo o texto, no entanto apresentam uma perspectiva em que só é possível atingir tal meta com o enfoque disciplinar com foco em conteúdos. Alguns entrevistados demonstraram não compreender que esta é, também, uma das metas da Educação com enfoque CTS. Aparentemente, não houve um movimento, por parte dos elaboradores das DCE/PR, no sentido de estudar ou conhecer melhor os pressupostos desta tendência para o ensino de Ciências, já que ficou evidente a compreensão distorcida de elementos básicos que tal corrente abrange, apresentada pelos sujeitos da pesquisa.

Assim, podemos inferir que, mesmo sem terem como propósito a inclusão da Educação com enfoque CTS, as DCE/PR de Física abarcam alguns elementos que podem favorecer sua inserção no planejamento docente. Entretanto, algumas dimensões cruciais, para que um efetivo trabalho sob tal perspectiva seja possível, não são considerados. Há vários fatores limitantes, como a estrutura cujo foco está em conteúdos chamados estruturantes e básicos, em que acaba sendo seguida uma lógica específica do campo de conhecimento da Física, e eles podem vir a dificultar um trabalho que contemple as múltiplas faces da ciência, bem como suas relações com a tecnologia e com a sociedade.

Do ponto de vista desta pesquisa, reconhece-se que a falta de tradição nesta vertente no Brasil pode ser usada como justificativa para que um documento curricular não a leve em conta; entretanto, nos parece preocupante que uma proposta tão recente, como as DCE/PR, não incorpore uma abordagem presente de maneira significativa nas pesquisas na área, e que ignore dimensões que vêm sendo aceitas como bons caminhos na tentativa de promover avanços na educação científica dos jovens que passam pela Educação Básica.

Como já foi apontado, a Educação com enfoque CTS está presente de maneira explícita em documentos nacionais, como nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006BRASIL. Ministério da Educação. Orientações curriculares para o ensino médio: ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Brasília, 2006. v. 2.). Neste sentido, e por se tratar de um documento contemporâneo, acreditamos que um estudo mais aprofundado das abordagens sugeridas nestas orientações poderiam ter contribuído para a elaboração de um texto mais aberto a trabalhos que remetem à Educação com enfoque CTS nas DCE/PR de Física. Contudo, como a proposta de currículo paranaense não foi concebida com a intenção de levar em conta os documentos nacionais, pode ser este um fator que influenciou na manutenção de um currículo tradicional com foco em conteúdos específicos, em contraposição aos temas estruturantes presentes nos PCN, estes sim indo ao encontro das dimensões de um ensino que leva em conta as relações entre ciência, tecnologia e sociedade.

Defendemos uma posição em que é preciso se reconsiderarem determinadas práticas na área do ensino de Física, no sentido de se superar a forma tradicional como esta disciplina vem sendo trabalhada. A Educação com enfoque CTS apresenta dimensões que, certamente, podem contribuir para esta superação, mas, para isso, ela precisa estar presente no contexto do currículo. Tal condição pode vir a possibilitar o desencadeamento de ações no âmbito governamental, no sentido de promover reflexões e debates juntos aos professores, de modo que tais pressupostos passem a ser incorporados na prática pedagógica docente.

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    A pesquisa que originou este artigo teve apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES).
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    Transcrições e trechos utilizados na análise podem ser encontrados no trabalho completo (ROEHRIG, 2013ROEHRIG, S. A. G. Educação com enfoque ciência, tecnologia e sociedade - CTS - nas diretrizes curriculares de física do estado do Paraná. 2013. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e em Matemática) - Setor de Ciências Exatas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.).
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    DEB (Departamento de Educação Básica) itinerante: momentos de formação continuada em que representantes da SEED/PR promovem discussões juntos aos professores nas escolas estaduais.

Referências

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  • ROEHRIG, S. A. G. Educação com enfoque ciência, tecnologia e sociedade - CTS - nas diretrizes curriculares de física do estado do Paraná 2013. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e em Matemática) - Setor de Ciências Exatas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.
  • ROEHRIG, S. A. G.; CAMARGO, S. A educação com enfoque CTS no quadro das tendências de pesquisa em ensino de ciências: algumas reflexões sobre o contexto brasileiro atual. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 117-131, 2013.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2012
  • Aceito
    28 Ago 2013
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