Resumo:
O estudo apresenta e problematiza significados de teoria e prática que se produzem no campo de formação de professores de Matemática. Questiona quais significados de teoria e prática estão descritos nos Projetos Pedagógicos de Cursos (PPC) de Licenciatura em Matemática e quais movimentos podem ser mobilizados na perspectiva da indissociabilidade de teoria e prática. A pesquisa é de natureza qualitativa, considerando dois PPC de Licenciatura em Matemática de uma instituição federal de ensino do sul do Brasil. A análise empreendida mostra os significados de teoria e prática imbricados no uso alargado da expressão prática como aplicação da realidade, na prescritividade imposta pela reflexão sobre a prática e nas interlocuções da teoria, quando relacionada à sustentação e ao embasamento da prática. São propostos movimentos na perspectiva de superação da dicotomia teoria e prática com a apresentação dos significados dessas expressões nos PPC e revisão das adjetivações, o que tende a borrar as fronteiras entre essa divisão.
Palavras-chave:
Ensino de matemática; Curso de licenciatura; Projeto pedagógico; Formação docente
Abstract:
This research challenges and provides alternative definitions for theor y and practice used in mathematics teacher education. It questions the definitions of theory and practice in a Course Pedagogical Project (CPP) for a Degree in Mathematics Teaching and suggests revisions and future movements. The study focuses on two CPP Degrees in Mathematics Teaching from a federal university in Southern Brazil. Through qualitative analysis, the study emphasizes the inseparable interdependence between theory and practice and how they are intertwined in the extended use of the expression 'practice' as an application of reality. It highlights how prescriptive reflection on practice is as well as interactions with theory, when theory is related to support and grounding for practice. The study proposes some initiatives to overcome the dichotomy between theory and practice, such as providing clear definitions of expressions in PPCs and revising adjectives that tend to blur the boundaries between theory and practice.
Keywords:
Mathematics teaching; Degree course; Pedagogical project; Teacher training
Introdução
Como que para resolver a polarização, tem sido comum intercalar a teoria com a prática. Em termos do currículo, isso significa adotar um desenho curricular em que haja uma alternância entre disciplinas ou atividades teóricas e disciplinas ou atividades práticas ( Veiga-Neto, 2015, p. 116VEIGA-NETO, A. Anotações sobre as relações entre teoria e prática. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 113-140, 2015. Disponível em: https://tinyurl.com/4xrbbwke. Acesso em: 6 jan. 2023.
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Iniciamos o artigo com uma epígrafe de Veiga-Neto (2015)VEIGA-NETO, A. Anotações sobre as relações entre teoria e prática. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 113-140, 2015. Disponível em: https://tinyurl.com/4xrbbwke. Acesso em: 6 jan. 2023.
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que nos desafia a pensar sobre as relações entre teoria e prática expressas nos currículos de cursos de Matemática, em especial, em Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) de Licenciatura em Matemática, colocando sob tensão (e sob suspeita) os usos e significados dessas dimensões na formação de professores de Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.
Dentre as prescrições mais recorrentes para minimizar a suposta dicotomia entre teoria e prática, criada pelos que polarizam a relação entre essas dimensões, estão a adoção de um desenho curricular que alterne disciplinas ou atividades consideradas práticas e disciplinas ditas teóricas ou, então, a aposta na utilização de “[...] exemplos práticos para ilustrar os conteúdos teóricos, bem como discussões teóricas para questionar o que vai acontecendo na prática” (Veiga-Neto, 2015, p. 116VEIGA-NETO, A. Anotações sobre as relações entre teoria e prática. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 113-140, 2015. Disponível em: https://tinyurl.com/4xrbbwke. Acesso em: 6 jan. 2023.
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). Tais prescrições, construídas na formação de professores desde muito tempo, têm sido alvo de discussões também no campo da Educação Matemática (Boff; Fabris, 2022BOFF, D. S. FABRIS, E. T. H. Outras formas de pensar as docências em matemática: os usos de teoria e prática na formação de professores. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 38, p. 1-15, 2022. Doi: https://doi.org/10.1590/0102-4698236387.
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; Fürkotter; Morelatti, 1997FÜRKOTTER, M.; MORELATTI, M. R. M. A articulação entre teoria e prática na formação inicial de professores de matemática. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 319-334, 2007. Disponível em: https://tinyurl.com/bdhza5dd. Acesso em: 16 fev. 2023.
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; Moriel; Cyrino, 2009MORIEL, J. G.; CYRINO, M. C. C. T. Propostas de articulação entre teoria e prática em cursos de licenciatura em matemática. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 535-557, 2009. Disponível em: https://tinyurl.com/37fx6e4j. Acesso em: 6 jan. 2023.
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).
O nosso interesse pela temática é desencadeado a partir de um projeto de pesquisa que investiga a formação e a constituição do professor de Matemática, sendo maximizado pela recorrente separação entre teoria e prática, instituída nos componentes curriculares de cursos de formação de professores de Matemática, na região Sul do Brasil. Temos vivenciado um período de reestruturação dos PPCs, no que tange ao acolhimento da legislação relativa à extensão (BRASIL, 2018BRASIL. Resolução CNE/CES nº 7, de 18 de dezembro de 2018. Estabelece as diretrizes para a extensão na educação superior brasileira e regimenta o disposto na meta 12.7 da lei nº 13.005/2014 que aprova o plano nacional de educação 2014-2024 e dá outras providências. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. Disponível em: https://tinyurl.com/3yryaym5. Acesso em: 7 dez. 2023.
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), aos embates gerados pela aprovação da Resolução nº 02/2019, que propõe a reformulação dos cursos de licenciatura e institui a Base Nacional Comum (BNC) para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (Costa; Mattos; Caetano, 2021COSTA, E. M.; MATTOS, C. C.; CAETANO, V. N. S. Implicações da BNC-formação para a universidade pública e formação docente. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. esp.1, p. 896-909, 2021. Doi: https://doi.org/10.21723/riaee.v16iEsp.1.14924.
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; Rodrigues; Pereira; Mohr, 2021RODRIGUES, L. Z.; PEREIRA, B.; MOHR, A. Recentes imposições à formação de professores e seus falsos pretextos: as BNC formação inicial e continuada para controle e padronização da docência. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 21, p. 1-39, 2021. Doi: https://doi.org/j26k.
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; Tiroli; Jesus, 2022TIROLI, L. G.; JESUS, A. R. Tensões e embates na formação docente: perspectivas históricas e análise crítica da BNC-Formação e BNC-Formação continuada. Olhar de Professor, Ponta Grossa, v. 25, p. 1-24, 2022. Doi: https://doi.org/10.5212/OlharProfr.v.25.20732.066.
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). Esses e outros engendramentos têm produzido tensionamentos entre os profissionais da educação, em especial, em relação à caracterização das disciplinas, à divisão da carga horária semanal em teórica e prática e à ênfase em uma dimensão ou em outra, o que, no nosso entendimento, reforça a dicotomia já mapeada no cenário nacional e classifica as disciplinas específicas de Matemática como teóricas e as disciplinas de cunho pedagógico, como práticas. Argumentamos que tal classificação reforça a concepção polarizada de teoria e prática, tal como discutem Garcia, Fonseca e Leite (2013)GARCIA, M. M. A.; FONSECA, M. S.; LEITE, V. C. Teoria e prática na formação de professores: a prática como tecnologia do eu docente. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, p. 233-264, 2013. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-46982013000300010.
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, uma vez que naturaliza e mantém o distanciamento entre essas dimensões. Além disso, como alerta Veiga-Neto (2015, p. 126-127)VEIGA-NETO, A. Anotações sobre as relações entre teoria e prática. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 113-140, 2015. Disponível em: https://tinyurl.com/4xrbbwke. Acesso em: 6 jan. 2023.
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, “Na sua grande maioria, tais publicações não questionam ‘de fora’ a existência da relação, mas a tomam como natural e se lançam a procurar as melhores maneiras de transitarem entre a teoria e a prática [...]”.
Os documentos oficiais para a formação docente, principalmente os publicados a partir dos anos 2000, apontam para uma tendência na valorização de aspectos pragmáticos, que emergem de uma racionalidade em que grande parte dos conhecimentos profissionais advém da experiência e das reflexões sobre a mesma. Parece estar naturalizado nas discussões sobre a formação de professores, que os aspectos práticos da docência sejam a dimensão fundamental da profissão (Garcia; Fonseca; Leite, 2013GARCIA, M. M. A.; FONSECA, M. S.; LEITE, V. C. Teoria e prática na formação de professores: a prática como tecnologia do eu docente. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, p. 233-264, 2013. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-46982013000300010.
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), produzindo um modus operandi de conceber tal formação, isto é, “[...] uma maneira de agir, de executar, de viver a docência, conforme determinadas prescrições e procedimentos, como se fossem códigos de conduta profissional” (Oliveira; Weschenfelder, 2018, p. 61OLIVEIRA, S.; WESCHENFELDER, V. I. A docência como matriz de experiência e a constituição do/a professor/a em uma sociedade inclusiva. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, RS, v. 26, n. 3, p. 52- 67, 2018. Doi: https://doi.org/10.17058/rea.v26i3.11754.
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).
Neste texto, procuramos dar visibilidade às significações demonstradas pelos usos das expressões teoria e prática nos PPCs, que formam professores de Matemática, indicando possíveis condições que fazem com que alguns dos enunciados, especialmente os de ordem dicotômica, permaneçam como potência neste campo de formação. Pensamos ser importante mostrar o que pode ser (re)produzido ao permanecermos considerando teoria e prática como instâncias polarizadas nos currículos de formação ou, quando, de forma aligeirada, usamos a palavra prática sem considerar suas distintas significações (embora todas aparentadas) ou, ainda, quando estabelecemos uma hierarquia ao potencializar uma ou outra dimensão. Diante desses tensionamentos, parece-nos relevante questionar: (i) Que significados de teoria e prática estão descritos em PPCs de Licenciatura em Matemática? e (ii) Que movimentos podem ser mobilizados na perspectiva da indissociabilidade teoria e prática?
Para responder a essas questões, consideramos como superfície de análise dois PPCs de Licenciatura em Matemática, ofertados em uma Instituição Federal do sul do Brasil, em que uma das autoras é docente, acrescido de trechos das legislações que os embasam. Com isso, pretendemos ampliar algumas das discussões sobre teoria e prática, tensionando seus significados na formação de professores de Matemática e apresentando essas dimensões como constituintes de uma mesma materialidade, no caso, o conhecimento. Isso porque compreendemos que é possível olhar para as dimensões teórica e prática como duas faces de uma mesma moeda, que coexistem nos currículos de formação e que, embora sejam recorrentes, em determinados momentos, evidenciar uma face, não faz com que a outra desapareça, pelo contrário, a amplia e a significa (Boff; Fabris, 2022BOFF, D. S. FABRIS, E. T. H. Outras formas de pensar as docências em matemática: os usos de teoria e prática na formação de professores. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 38, p. 1-15, 2022. Doi: https://doi.org/10.1590/0102-4698236387.
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).
Como inspiração analítica, tomamos os estudos de Foucault (1990FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990., 2002FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2002.) e seus comentadores (Castro, 2016CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.; Veiga-Neto, 2009VEIGA-NETO, A. Teoria e método em Michel Foucault: (im)possibilidades. Cadernos de Educação, Pelotas, n. 34, p. 83-94, 2009., 2011VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.), no que tange às discussões sobre enunciado e discurso, e o pensamento tardio de Wittgenstein (2010WITTGENSTEIN, L. Gramática filosófica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2010., 2014WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014.) e seus comentadores (Condé, 2004CONDÉ, M. L. L. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2004.; Moreno, 1993MORENO, A. R. Wittgenstein através das imagens. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.), considerando sua compreensão de linguagem e jogos de linguagem, para discutir a formação de professores de Matemática e as dimensões teórica e prática.
O artigo é apresentado em cinco seções, sendo, a primeira, a Introdução. Na segunda, evidenciamos as teorizações que movimentaram nosso pensar e as escolhas que realizamos para cercar o problema de pesquisa. A terceira apresenta os significados de teoria e prática descritos nos PPCs de Licenciatura em Matemática: o uso alargado de prática; a ideia de prática como aplicação da realidade; a prescrição: refletir sobre a prática e a teoria em relação à sustentação e ao embasamento da prática. Na quarta seção, trazemos alguns movimentos na perspectiva de superação da dicotomização teoria e prática. Por fim, elencamos algumas considerações finais que nos motivam a continuar pensando as dimensões teórica e prática na formação de professores de Matemática.
Escolhas metodológicas e teorizações que movimentam o pensar
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione (Foucault, 2015, p. 132FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.).
Com Foucault (2015)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., abrimos nossa caixa de ferramentas para pensar teoria e prática de forma não dicotômica. Em tal compreensão, trocamos a lente (ou ajustamos o foco) dos óculos pelo qual vemos e compreendemos o mundo e a materialidade nele presente. Salientamos que, no campo da formação docente, tem sido bastante comum prescrever a articulação teoria-prática como uma forma de extinguir a suposta distância e dissociação entre essas dimensões. A desarticulação entre teoria e prática não é uma problemática atual e nem escassa de discussões, uma vez que marca o pensamento educacional, ao menos mais recorrentemente, desde a metade do século passado, seja com a separação e a hierarquização entre conteúdo e metodologia ou com a separação das disciplinas específicas e as pedagógicas (Moriel; Cyrino, 2009MORIEL, J. G.; CYRINO, M. C. C. T. Propostas de articulação entre teoria e prática em cursos de licenciatura em matemática. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 535-557, 2009. Disponível em: https://tinyurl.com/37fx6e4j. Acesso em: 6 jan. 2023.
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).
Embora as ideias dicotômicas sejam recorrentes nos cursos de formação, intencionamos movimentar outras formas de pensar para ensaiarmos possibilidades de sair da dicotomia. Nesse sentido, o artigo busca apontar para outra(s) direção(ões), menos universal(is) e mais contingente(s). Isso porque, imersos na dicotomia, parece ser mesmo difícil nos desvencilharmos do arco platônico e da compreensão de um mundo dual e hierarquizado. Como alerta Veiga-Neto (2015, p. 126)VEIGA-NETO, A. Anotações sobre as relações entre teoria e prática. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 113-140, 2015. Disponível em: https://tinyurl.com/4xrbbwke. Acesso em: 6 jan. 2023.
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:
[...] sob o abrigo do arco platônico, tudo o que concerne aos fatos e feitos no mundo sensível diria respeito às práticas, enquanto que tudo o que concerne ao que se pensa verdadeiramente e se diz verdadeiramente (sobre tais práticas) diria respeito à teoria – ou, talvez melhor: seria resultado da boa e correta aplicação da teoria. Eis aí a correspondência entre a doutrina dual e o binário teoria-e-prática; [...].
Na contramão desse pensamento binário, olhamos de modo mais contingente para a formação de professores de Matemática, considerando outra chave de leitura. Com ela, buscamos descrever os significados de teoria e prática descritos em Projetos de Curso de Licenciatura em Matemática para dar visibilidade e problematizar os enunciados que eles movimentam no campo de formação. Tal direcionamento nos parece ser um primeiro caminho para compreendermos essas dimensões, teórica e prática, de forma não dicotômica.
Desse modo, ancorando-nos em uma perspectiva wittgensteiniana, consideramos que é por meio da linguagem que interagimos no mundo, produzindo significados e dando sentido às coisas e às nossas experiências ( Veiga-Neto, 2011VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.). Isso implica considerar que os significados de teoria e prática são, também, dados pelos usos dessas palavras na nossa linguagem, uma “[...] linguagem [que] enraíza-se não do lado das coisas percebidas, mas do lado do sujeito em sua atividade” (Foucault, 1990, p. 305FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.). Ainda, com Wittgenstein (2014, p. 19)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014., entendemos jogos de linguagem como sendo “[...] a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”. Esse conceito nos ajuda a compreender que as palavras adquirem significado pelo seu uso na linguagem, não havendo um sentido intrínseco a elas. Ver como as palavras funcionam pode nos possibilitar a compreensão das racionalidades que são mobilizadas nas diferentes ações dos sujeitos.
Tais discussões possibilitam ultrapassarmos o arco platônico, que abriga a dicotomização teoria e prática, e ponderar que “[...] não há uma coisa ou fato fora e independente daquele(s) que pensa(m) sobre a coisa ou o fato” ( Veiga-Neto; Lopes, 2007, p. 22VEIGA-NETO, A.; LOPES, M. C. Identidade, cultura e semelhanças de família: as contribuições da virada linguística. In: BIZZARRO, R. (org.). Eu e o outro: estudos multidisciplinares sobre identidade(s), diversidade(s) e práticas interculturais. Porto: Areal, 2007. p. 19-35.), pois o “[...] pensamento e o conhecimento não espelham, numa mente, uma suposta realidade que estaria fora e independente dessa mente; ao contrário, toda forma de pensamento e conhecimento é, necessariamente, uma relação entre mente e coisa” ( Veiga-Neto; Lopes, 2007, p. 22VEIGA-NETO, A.; LOPES, M. C. Identidade, cultura e semelhanças de família: as contribuições da virada linguística. In: BIZZARRO, R. (org.). Eu e o outro: estudos multidisciplinares sobre identidade(s), diversidade(s) e práticas interculturais. Porto: Areal, 2007. p. 19-35.).
Com isso, assumimos que não há um sentido único (ou mais verdadeiro) para as palavras teoria e prática, sendo seus significados construídos na linguagem e visibilizados pela maneira com que são empregados. Assim, compreender o significado de uma palavra implica entender o contexto em que ela é empregada, sendo seus usos estabelecidos em conformidade com as regras que são aceitas como verdade em determinados espaços e tempos. Por isso, a ideia de regra em Wittgenstein (2014)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014. é importante. Com ela, entendemos, também, o funcionamento da linguagem. Assim, uma expressão tem significado se seu uso obedecer às regras praticadas por um grupo social, o que, na perspectiva wittgensteiniana, implica dizer que seus usos seguem uma gramática. Segundo esse mesmo autor, a gramática consiste nas regras normativas para o uso da linguagem, que orientam os significados produzidos e mobilizados pelos praticantes nos jogos de linguagem dos quais fazem parte.
Com o direcionamento dado por essas teorizações, produzimos uma pesquisa de abordagem qualitativa, em que a metodologia foi sendo traçada no contexto da investigação, a partir das aproximações com o objeto e com os questionamentos levantados (Meyer; Paraíso, 2021MEYER, D. E.; PARAÍSO, M. A. Metodologias de pesquisas pós-críticas ou sobre como fazemos nossas investigações. In: MEYER, D. E.; PARAÍSO, M. A. (org.). Metodologias de pesquisa pós-críticas em educação. 2. ed., Belo Horizonte: Mazza, 2021. p. 17-23.). Além disso, nos preocupamos com
[...] um certo modo de perguntar, de interrogar, de formular questões e de construir problemas de pesquisa que é articulado a um conjunto de procedimentos de coleta de informações – que, em congruência com a própria teorização, preferimos chamar de ‘produção’ de informação – e de estratégias de descrição e análise (Meyer; Paraíso, 2021, p. 18MEYER, D. E.; PARAÍSO, M. A. Metodologias de pesquisas pós-críticas ou sobre como fazemos nossas investigações. In: MEYER, D. E.; PARAÍSO, M. A. (org.). Metodologias de pesquisa pós-críticas em educação. 2. ed., Belo Horizonte: Mazza, 2021. p. 17-23.).
Nesse percurso, colocamos sob tensão os significados de teoria e prática descritos nos PPCs que formam professores de Matemática de uma Universidade Federal do Sul do Brasil. Tomamos como material da pesquisa, dois Projetos Pedagógicos presenciais de Licenciatura em Matemática, reestruturados em 2019: o PPC1, integral e diurno (Universidade Federal de Pelotas, 2019aUNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
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) e o PPC2, noturno (Universidade Federal de Pelotas, 2019bUNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
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).
Escolhemos utilizar como materialidade apenas dois documentos, pois nosso interesse se fixou na possibilidade de problematizar alguns ditos movimentados por projetos de curso e não estabelecer generalizações para outros espaços e tempos educativos. Com o material selecionado e escrutinado, realizamos diferentes operações: (re)leitura, identificação de recorrências, destaques nas singularidades, construção de categorias para as significações, construção de grupos de sentido, os quais problematizamos a partir das teorizações que nos serviram como ferramentas para pensar a materialidade.
Em um primeiro movimento de busca pelo texto descrito no PPC1 identificamos que a palavra teoria é arrolada 54 vezes, sendo 34 na seção das disciplinas, e prática é apresentada 191 vezes, sendo 105 na seção das disciplinas. Além disso, a expressão teoria e prática aparece 13 vezes e teoria-prática, três vezes. No PPC2 identificamos 194 vezes o uso de prática, sendo 105 no capítulo da descrição das disciplinas, e teoria aparece 55 vezes, sendo 33 na descrição das disciplinas. Ainda, a expressão teoria e prática aparece 10 vezes e teoria-prática, três vezes. Embora compreendamos que a frequência no uso desses termos também esteja relacionada a questões conceituais, mobilizada pela adequação à própria legislação (Brasil, 2020BRASIL. Resolução CNE/CP Nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores para a educação básica e institui a base nacional comum para a formação inicial de professores da educação básica (BNC-formação). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 87-90, 10 fev. 2020.), nos mobilizamos para pensar o que a palavra prática (em vez de prática de ensino) pode indicar, que outras enunciações pode potencializar, se pode mostrar uma tendência de valorização do pragmatismo docente e a maximização daquilo que, usualmente, é significado como prática na formação do professor. Nossa preocupação residiu, então, em explicitar os usos (e os significados) das expressões teoria e prática na formação de professores de Matemática, tensionando direcionamentos possibilitados por essas compreensões.
Em um breve processo de digressão, Fiorentini (2008)FIORENTINI, D. A pesquisa e as práticas de formação de professores de matemática em face das políticas públicas no Brasil. Bolema, Rio Claro, v. 21, n. 29, p. 43-70, 2008. Disponível em: https://tinyurl.com/22mcfep2. Acesso em: 13 jan. 2023.
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mostra que, a partir do ano 2000, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a Formação de Professores apresentam uma ruptura com modelos de formação baseado em uma racionalidade técnica, que organizava a formação docente pautada no 3+1, que investia na formação teórica nos primeiros três anos e, no último ano, na formação prática. Porém, é importante marcar que tais diretrizes não deixam explicitadas como teoria e prática são compreendidas, o que abre possibilidades para que se mantenha a relação dicotômica entre essas dimensões (Fiorentini, 2008FIORENTINI, D. A pesquisa e as práticas de formação de professores de matemática em face das políticas públicas no Brasil. Bolema, Rio Claro, v. 21, n. 29, p. 43-70, 2008. Disponível em: https://tinyurl.com/22mcfep2. Acesso em: 13 jan. 2023.
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; Fiorentini; Castro, 2003FIORENTINI, D.; CASTRO, F. C. Tornando-se professor de matemática: o caso de Allan em prática de ensino e estágio supervisionado. In: Fiorentini, D. (org.). Formação de professores de matemática: explorando novos caminhos com outros olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 121-156.). Osório e Fonseca (2016)OSÓRIO, M. R. V.; FONSECA, M. S. Ajustando um currículo de licenciatura em matemática em tempos de diretrizes curriculares para a formação de professores da educação básica. Acta Scientiae, Canoas, v. 18, n. 3, p. 637-648, 2016. Disponível em: https://tinyurl.com/nhefz9s7. Acesso em: 23 mar. 2023.
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, ao analisarem os impactos das DCN (Brasil, 2002BRASIL. Parecer CNE/CES 1.302/2001. Diretrizes curriculares nacionais para os cursos de matemática, bacharelado e licenciatura. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 15, 4 mar. 2002.) nos cursos de Licenciatura em Matemática, mostram que a prática é defendida "como um discurso hegemônico para a formação de professores”, pois apresentam algumas proposições que capacitam o professor “[...] a analisar a própria prática para atuar no sentido de transformá-la, criando, portanto, uma expectativa de que, por ela, os professores têm a real dimensão dos problemas que atingem a educação brasileira” (Osório; Fonseca, 2016, p. 647OSÓRIO, M. R. V.; FONSECA, M. S. Ajustando um currículo de licenciatura em matemática em tempos de diretrizes curriculares para a formação de professores da educação básica. Acta Scientiae, Canoas, v. 18, n. 3, p. 637-648, 2016. Disponível em: https://tinyurl.com/nhefz9s7. Acesso em: 23 mar. 2023.
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).
A maximização da dimensão prática (entendida por nós como prática docente), cada vez mais recorrente no discurso educacional, tanto nas DCN (Brasil, 2002BRASIL. Parecer CNE/CES 1.302/2001. Diretrizes curriculares nacionais para os cursos de matemática, bacharelado e licenciatura. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 15, 4 mar. 2002., 2015BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Define as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. Resolução CNE/CP n. 02/2015, de 1º de julho de 2015. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 124, p. 8-12, 2 jul. 2015. como na BNC-Formação (2020), dá visibilidade a uma chave de leitura que naturaliza e busca minimizar alguns problemas mapeados na educação. Embora isso (e sem apontar questões de mérito de tal direcionamento), o que vemos é a produção e o reforço de enunciados dicotômicos sobre teoria e prática, que separam e hierarquizam o que está mais na ordem do pensamento e o que está mais na ordem da ação. Os significados descritos na próxima seção ajudam a ampliar nossa compreensão sobre as dimensões teórica e prática na formação de professores.
Os múltiplos significados de teoria e prática nos PPCs de formação de professores de Matemática
O significado de uma palavra é seu uso na linguagem ( Wittgenstein, 2014, p. 38WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014.).
Inscritas em uma perspectiva wittgensteiniana, destacamos, nesta seção, como os PPCs analisados colocam em movimento os significados de teoria e prática para a futura docência de professores de Matemática. Buscamos evidenciar os usos dessas palavras na linguagem que é utilizada neste campo de formação, uma vez que, com Wittgenstein (2014, p. 38)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014., compreendemos que o “significado de uma palavra é o seu uso na linguagem”. Para o autor, não existe um significado único nos usos das palavras, podendo haver uma semelhança de família, isto é, um parentesco entre esses usos, como em uma família, em que seus membros têm semelhanças em relação à cor dos olhos, do temperamento, do modo de andar.
Considerando essa compreensão, na leitura atenta dos PPCs (Universidade Federal de Pelotas, 2019aUNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, 2019bUNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
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), identificamos que a expressão prática é utilizada com uma significação bem mais alargada do que a expressão teoria. Esse uso, aparentemente aligeirado para a palavra prática, parece produzir na formação de professores de Matemática certa dificuldade de entendimento, uma vez que mistura o que é considerado como prática de docência (como o estágio, por exemplo) e o que é considerado como prática do componente específico, neste caso, a prática da Matemática (em geral, relacionada com a aplicação do conhecimento em alguma realidade). Além disso, o que vemos é o uso um pouco deliberado para a palavra prática, que agrega também as expressões prática pedagógica, prática de ensino-aprendizagem, prática docente, prática profissional, conforme mostramos nos excertos a seguir.
O Estágio Obrigatório (EO) de ensino é entendido como o tempo de aprendizagem da prática da docência. Ele deve se constituir no polo articulador das relações entre os elementos teóricos (conteúdos disciplinares/conhecimentos) desenvolvidos durante o Curso e às análises e ações desenvolvidas junto às escolas. Deve favorecer possíveis encaminhamentos de alternativas para a sala de aula por meio de discussões e de instrumentos teóricos que possibilitem conflitos e evidenciem a necessidade de constantes revisões de ideias, de concepções, de práticas e de atitudes (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 24UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4uek44tv.... , 2019b, p. 17UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4a94p5b9.... , grifo nosso).
A prática, em articulação à teoria, fundamenta e organiza as ações na dimensão de prática como componente curricular e no estágio supervisionado, com destaque para o necessário acompanhamento e supervisão desses momentos formativos, [...] Tais cursos devem garantir a unidade teoria-prática ao longo de toda a formação, de modo a fortalecer e valorizar a docência como princípio formativo, de acordo com a recomendação do Parecer CNE/CP nº 28 (2001), retomado pelas DCNFP (2015) (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 50UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4uek44tv.... , 2019b, p. 41UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
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Diante dos estudos de Wittgenstein (2014)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014. e considerando nossa experiência na formação de professores, autorizamo-nos a dizer que o uso um pouco alargado da palavra prática potencializa as ideias dicotômicas já construídas no campo da formação de professores, reforçando a suposta falta ou o suposto excesso de uma ou de outra dimensão. Ao não deixar claro de que prática está se falando na formação, deixa-se espaço para a produção de diferentes significados para essa dimensão, que são constituídos no contexto linguístico de cada profissional que atua no curso de Licenciatura em Matemática. Isso pode desencadear a ideia de que a prática da docência é aprendida/desenvolvida apenas no estágio, que oportuniza a articulação dos elementos teóricos (em geral, presentes apenas no curso superior) com as ações desenvolvidas na escola, ou, ainda, a ideia de que a articulação entre teoria e prática é mobilizada/vivenciada apenas nas disciplinas de Prática como Componente Curricular e nos estágios supervisionados.
Com isso, pontuamos que algumas das divergências de entendimento sobre o que está sendo dito se potencializa na tendência de tentarmos fixar um sentido externo às palavras, como se o significado se localizasse fora do seu uso na linguagem. Nesses termos, Vilela (2010)VILELA, D. S. A terapia filosófica de Wittgenstein e a educação matemática. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 24, n. 48, p. 435-456, 2010. Disponível em: http://tinyurl.com/v35fupnv. Acesso em: 8 fev. 2024.
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destaca que as adjetivações oferecem uma ideia dos usos empreendidos das palavras e, consequentemente, dos significados, o que pode fornecer uma visão panorâmica do conjunto de usos nos jogos de linguagem. Segundo Wittgenstein (2014)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014., por meio dos usos das palavras e expressões em diferentes contextos, a linguagem funciona obedecendo regras, como em um jogo. A carência desse tipo de recurso, de esclarecimento dos significados das palavras, induz a algumas incoerências quanto aos significados, principalmente, no caso da palavra prática, pois como podemos evidenciar nos excertos abaixo, tal palavra tende a ser entendida no seu sentido mais usual, no seu significado ‘ostensivo’, como em oposição à teoria, direcionando para uma falsa convergência (oposta) de significações. Com Wittgenstein (2014)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014., entendemos que o significado ostensivo é produzido pela ligação associativa entre a palavra e a coisa, mobilizando imagens mentais ligadas a noções essencialistas e referenciais, que, em geral, desconsideram os usos das palavras.
[...] Para que haja aprendizagem, o profissional em formação precisa conhecer a realidade na qual irá intervir, estudar os problemas e as soluções prováveis, aplicá-los nessa mesma realidade, refletir sobre os resultados e, assim, produzir conhecimento. Nota-se que nesse modelo não existe a ordem de teoria, primeiro, para depois a prática. Existe a teoria e a prática lado a lado, no desenvolvimento de um profissional novo, de onde se vê, então, como necessário é a ligação entre pesquisa e extensão na promoção da aprendizagem. (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 196UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4uek44tv.... , 2019b, p. 127UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4a94p5b9.... , grifo nosso).
No excerto apresentado, relacionam-se os significados de prática com a ideia de conhecer a realidade ou de solucionar os problemas e aplicar na realidade. Ainda, nota-se a ressalva de que não existe uma ordem de importância entre teoria e prática, pois considera-se que a formação profissional acontece “[...] seja pelo exercício direto in loco, seja pela presença participativa no ambiente escolar, sob a responsabilidade de um profissional já habilitado, seja na reflexão e avaliação de sua prática” (Universidade Federal de Pelotas, 2019b, p. 23-24UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
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). Com isso, a intenção é o desenvolvimento de um modelo de formação, em que o professor seja “[...] capaz de tomar decisões, refletir sobre sua prática e ser criativo na ação pedagógica, reconhecendo a realidade em que se insere a escola. Mais do que isto, avançar sobre a visão de que a prática escolar é um espaço de aplicação dos conhecimentos adquiridos” (Universidade Federal de Pelotas, 2019b, p. 23-24UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, grifo nosso).
Essas ideias de aplicação na realidade de prática escolar como espaço para aplicação do aprendido (da teoria), de ação prática, têm perpassado os PPCs, alinhando alguns modos de ensinar mais voltados ao concreto e ao cotidiano do aluno, vinculando- se, também, com as perspectivas de (trans)formação e de mudança a partir da aplicação de fórmulas para resolver os problemas. Com isso, ao ensinar matemática voltada à realidade do aluno, haveria garantia de aproximá-la dos jogos de linguagem da Matemática Escolar e, também, iria ao encontro da ideia de que “[...] trazer a 'realidade' do aluno para as aulas de matemática é importante para transformar socialmente o mundo” (Knijnik; Duarte, 2010, p. 874KNIJNIK, G.; DUARTE, C. G. Entrelaçamentos e dispersões de enunciados no discurso da educação matemática escolar: um estudo sobre a importância de trazer a 'realidade' do aluno para as aulas de matemática. Bolema, Rio Claro, v. 23, n. 37, p. 863-886, 2010. Disponível em: https://tinyurl.com/2x9y6dbf. Acesso em: 14 maio 2021.
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). De acordo com essas autoras, tais enunciações produziriam uma compreensão do mundo [única e essencialista], que aposta na perspectiva da reflexão e da discussão, com o objetivo de transformar a 'realidade'.
[...] Pretendemos desenvolver um novo modelo de formação, onde o professor é capaz de tomar decisões, refletir sobre sua prática e ser criativo na ação pedagógica, reconhecendo a realidade em que se insere a escola. Mais do que isto, avançar sobre a visão de que a prática escolar é um espaço de aplicação dos conhecimentos adquiridos, confirmando uma visão de que a ação prática é geradora de conhecimentos (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 24UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4uek44tv.... , 2019b, p. 17UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4a94p5b9.... , grifo nosso).
[...] O propósito é formar o acadêmico para a docência na Educação Básica a partir de situações reais de ação pedagógica, tomada de decisões e reflexões sobre sua prática. [...] (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 211UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4uek44tv.... , grifo nosso).
Também compreendemos que o exercício reflexivo sobre a docência envolve um trabalho de rememorar e ressignificar acontecimentos, visando (trans)formação e aprimoramento da conduta profissional. Acrescido a isso, entendemos que o processo de ressignificação dos acontecimentos passa pela linguagem e se constitui no uso das palavras na reconstrução das vivências no cotidiano escolar. Isso implica que o processo reflexivo não vai acessar a experiência genuinamente, mas as reações e os reflexos internos ao acontecimento, pois eles irão compor a ressignificação almejada na medida em que permitem novas relações entre as palavras e seus significados, modificando o pensamento e as imagens de mundo (Moreno, 1993MORENO, A. R. Wittgenstein através das imagens. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.).
Com relação à prática, destacamos, ainda, que há uma busca nos PPCs em vincular a prática do professor a de um pesquisador e investigador do ambiente escolar. Ao descrever as competências do professor de Matemática, espera-se que ele possa “Programar e executar novas experiências de ensino, tanto do ponto de vista matemático quanto do ponto de vista metodológico, é vivenciar uma prática de professor pesquisador em sala de aula e em laboratórios de ensino de matemática [...]” (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 25UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, 2019b, p. 18UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4a94p5b9....
, grifo nosso). Quanto ao estágio, ressalta-se que:
[...] O licenciando torna-se, nesse período, investigador do ambiente escolar devendo realizar entrevistas, coletar dados sobre o entorno, problematizar, propor e desenvolver pequenas ações que expressem, de forma prática, os saberes que têm sobre a educação básica, o ensino, os alunos e os professores. [...] (Universidade Federal de Pelotas, 2019b, p. 40UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4a94p5b9.... , grifo nosso).
As ideias de professor reflexivo, de pesquisador e de reflexão sobre a prática, estão atreladas às visões sobre formação e docência, instituindo o perfil do professor desejável em nossos tempos. Como diz Pereira (2008)PEREIRA, M. V. Traços de fundamentalismo pedagógico na formação de professores. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, v. 47, n. 5, p. 1-13, 2008. Disponível em: https://rieoei.org/RIE/article/view/2265. Acesso em: 15 mar. 2023.
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, tais noções aparecem na onda das teorias crítico-reflexivas, que colonizaram o campo educacional e que tratam da formação do professor no espaço da prática, principalmente na década de 1990 e início dos anos 2000. O autor, ao considerar artigos no campo da formação, se deparou "[...] com o funcionamento escancarado de uma retórica de 'inovação', de 'mudança', de 'professor reflexivo' etc., mas isso tudo sob uma matriz deveras conservadora, reproduzindo as velhas dicotomias adjacentes à teoria/prática" (Pereira, 2008, p. 7PEREIRA, M. V. Traços de fundamentalismo pedagógico na formação de professores. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, v. 47, n. 5, p. 1-13, 2008. Disponível em: https://rieoei.org/RIE/article/view/2265. Acesso em: 15 mar. 2023.
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). Tais ideias parecem estar (re)produzidas pelos entrelaçamentos entre os PPCs, as DCNs e outros discursos oficiais, que enxergam o fazer docente como elemento primordial para entender a realidade do trabalho docente (Osório; Fonseca, 2016OSÓRIO, M. R. V.; FONSECA, M. S. Ajustando um currículo de licenciatura em matemática em tempos de diretrizes curriculares para a formação de professores da educação básica. Acta Scientiae, Canoas, v. 18, n. 3, p. 637-648, 2016. Disponível em: https://tinyurl.com/nhefz9s7. Acesso em: 23 mar. 2023.
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).
Como alertam Garcia, Fonseca e Leite (2013, p. 243)GARCIA, M. M. A.; FONSECA, M. S.; LEITE, V. C. Teoria e prática na formação de professores: a prática como tecnologia do eu docente. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, p. 233-264, 2013. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-46982013000300010.
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, a legislação, ao tentar “[...] conferir um estatuto diferenciado à prática e à experiência na formação inicial dos docentes [...], estabelece e reforça polarizações que pretendia redimir”. Essas autoras consideram que as tentativas de valorizar a prática profissional, em definir carga horária prática em diferentes componentes e embasadas em referenciais de cunho prático-reflexivo, acabam por dicotomizar cada vez mais o que se faz na formação de professores.
Nos discursos oficiais, marcamos, por exemplo, a expressão prática, que parece significar a atividade docente de ensinar e, não necessariamente, está relacionada à realização de uma ação qualquer. Os PPCs apontam que os estágios “[...] seguem as DCNFP (Resolução CNE 02/2015), que definem os estágios supervisionados como atividades com relação entre teoria e prática, de modo a oportunizar aos estudantes sua formação profissional para a docência na Educação Básica no campo profissional. [...]” (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 46UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, 2019b, p. 38UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, grifo nosso). Esse excerto, que se remete ao que determinam os discursos oficiais, fortalece a relação dicotômica entre teoria e prática no campo dos estágios, pois reforça a suposta distância entre as teorizações estudadas no curso de Licenciatura em Matemática (nomeadas por teoria) e o espaço da Educação Básica (nomeado por prática), de exercício da prática docente. Por isso, mesmo que esses discursos propaguem a relação entre teoria e prática nas orientações curriculares, os tempos e espaços continuam sendo dicotomizados (Garcia; Fonseca; Leite, 2013GARCIA, M. M. A.; FONSECA, M. S.; LEITE, V. C. Teoria e prática na formação de professores: a prática como tecnologia do eu docente. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, p. 233-264, 2013. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-46982013000300010.
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).
No que se refere aos significados da palavra teoria, identificamos algumas delimitações, em que teoria aparece como fundamentação e sustentação, tanto em relação aos conhecimentos de Matemática como aos conhecimentos de didática. Os PPCs, ao se referirem à participação em projeto, propõem que tais atividades “[...] contemplem elementos que rompam com o ensino transmissivo, apresentando fundamentação e sustentação teórica (tanto em relação aos conhecimentos de Matemática como aos conhecimentos de didática) para tal. [...]” (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 48UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, 2019b, p. 40UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
http://tinyurl.com/4a94p5b9....
, grifo nosso). Ao tratar dos estágios obrigatórios, os PPCs explicitam que se constituam no “[...] polo articulador das relações entre os elementos teóricos (conteúdos disciplinares/conhecimentos) desenvolvidos durante o Curso e às análises e ações desenvolvidas junto às escolas. [...]” (Universidade Federal de Pelotas, 2019a, p. 24UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, 2019b, p. 17UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, grifo nosso). Entendemos que esses significados de teoria estão voltados para um campo de conhecimentos científicos que são necessários na formação de professores de Matemática, uma vez que “[...] o conhecimento teórico pretende dar sustentação, ‘base sólida’, ao que se pode observar e fazer na prática [docente]” (Santos, 2015, p. 68SANTOS, S. A. Docen ci/ç ação: do dual ao duplo da docência em matemática. 2015. 196 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/131918. Acesso em: 10 dez. 2021.
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, grifo do autor). No entanto, nessa lógica, a teoria que serve como embasamento para a prática, seria proposta anteriormente à prática? Isso proporcionaria uma ordem: primeiro a teoria das disciplinas e depois a prática docente desenvolvida na escola.
Tais considerações nos conduzem a tensionar: Que outras possibilidades/movimentos são possíveis para pensarmos a teoria e a prática em cursos de formação de professores de Matemática? É o que desejamos discutir.
Alguns movimentos na perspectiva da indissociabilidade teoria e prática
Com a problematização dos significados produzidos nos PPCs para teoria e prática, marcamos, nesta seção, alguns movimentos que permitem projetar a indissociabilidade teoria e prática na formação de professores de Matemática. Intencionamos tensionar, retorcer e problematizar o hiato teoria e prática, na perspectiva de levantarmos alguns indícios do que tem reforçado e produzido tal dicotomia e alguns possíveis movimentos para a sua superação.
Um ponto que tensionamos e que, no nosso entendimento, reforça a dicotomia teoria e prática, refere-se à separação da carga horária dos componentes curriculares em horas teóricas e práticas, como exemplificado no quadro 1, em que mostramos os componentes do primeiro e do segundo semestres dos PPCs analisados (Universidade Federal de Pelotas, 2019aUNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática. Pelotas: UFP, 2019a. Disponível em: http://tinyurl.com/4uek44tv. Acesso em: 22 jan. 2022.
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, 2019bUNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática: noturno. Pelotas: UFP, 2019b. Disponível em: http://tinyurl.com/4a94p5b9. Acesso em: 22 jan. 2022.
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).
Tais dicotomizações também promovem a velha e desgastada separação dos componentes curriculares em específicos, pedagógicos e de formação geral, sem uma vinculação entre eles, pautados em uma perspectiva rígida de sua abordagem. Quanto às significações de prática, entendemos que elas ora podem estar vinculadas à prática docente, ora à prática do componente específico, no caso, da Matemática. Propomos, conforme Oliveira et al. (2018)OLIVEIRA, M. O.; CARDONETTI, V. K.; SANTOS, C. A.; GARLET, F. G. Revezamentos entre teoria e prática: Movimentos que acionam outros modos de pensar o ensino da arte. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 31, n. 1, p. 94-107, 2018. Doi: https://doi.org/10.21814/rpe.14061.
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, a ideia que tensiona e complexifica a relação hierárquica da teoria com a prática, no caminho de um borramento das fronteiras “[...] que se erguem entre elas, de forma que não se trata de apologia de uma ou de outra, mas da potencialização de ambas” (Oliveira et al., 2018, p. 3OLIVEIRA, M. O.; CARDONETTI, V. K.; SANTOS, C. A.; GARLET, F. G. Revezamentos entre teoria e prática: Movimentos que acionam outros modos de pensar o ensino da arte. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 31, n. 1, p. 94-107, 2018. Doi: https://doi.org/10.21814/rpe.14061.
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).
Com essa ideia, defendemos que seja explicitado nos PPCs os significados que teoria e prática assumem, em especial, marcando aqueles que se referem às práticas de ensino. Uma sugestão é deixar claro que o que está se 'separando' nos componentes curriculares, em termos de carga horária, conforme preconiza a legislação, são as práticas de ensino (e, não, separando, teoria da prática).
Outro ponto que tensionamos, refere-se ao alargamento do significado de prática e o uso restrito da palavra teoria, que pode contribuir para produzir a falsa ideia da prática como aplicação da teoria ou da prática como inspiradora da teoria. Sobre isso, entendemos ser necessário reforçar a compreensão de que, em um âmbito mais amplo, na formação de professores, teoria e prática são dimensões indissociáveis do conhecimento.
Para Deleuze, em conversa com Foucault (2008)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008., a teoria é uma caixa de ferramentas, que precisa ser útil, ou melhor, é apenas uma lente para olharmos para fora. Por isso, a "teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica" (Foucault, 2008, p. 71FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008.). Isso quer dizer que não há uma aplicação da teoria, nem um espelhamento da mesma, pois "[...] a teoria nunca dá conta da prática e a prática nunca dá conta da teoria, já que ambas estão constantemente sendo produzidas nesse revezamento, sempre em obra" (Oliveira et al., 2018, p. 3OLIVEIRA, M. O.; CARDONETTI, V. K.; SANTOS, C. A.; GARLET, F. G. Revezamentos entre teoria e prática: Movimentos que acionam outros modos de pensar o ensino da arte. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 31, n. 1, p. 94-107, 2018. Doi: https://doi.org/10.21814/rpe.14061.
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). De forma mais ampla, como nos ensina Foucault (2008, p. 71)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008., podemos considerar que “[...] a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática”.
E para continuar...
Na perspectiva de continuarmos pensando outros movimentos para as significações de teoria e prática, e as possibilidades de superarmos as ordens dicotômicas que perfazem os PPCs de formação de professores de Matemática, sintetizamos alguns apontamentos/ tensionamentos que entendemos ser pertinentes na perspectiva da indissociabilidade teoria e prática: (i) a explicitação dos significados de teoria e prática na construção/ atualização dos PPCs dá visibilidade às compreensões que desejamos que sejam mobilizadas pelo leitor, pois explicitam-se, pelos significados, algumas das regras de funcionamento da linguagem usada; (ii) as adjetivações das expressões teoria e prática mostram que uma palavra não apreende um significado exclusivo; (iii) a descrição detalhada das dimensões por meio de suas adjetivações (como usar prática de ensino quando nos referirmos ao exercício de ensinar; ou prática docente nas interlocuções do estudante com o exercício docente, que inclui atividades para além do ensino) diminui desentendimentos e conduz a compreensões produtivas que multiplicam e potencializam, ao invés de produzir fragmentações (Oliveira et al., 2018OLIVEIRA, M. O.; CARDONETTI, V. K.; SANTOS, C. A.; GARLET, F. G. Revezamentos entre teoria e prática: Movimentos que acionam outros modos de pensar o ensino da arte. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 31, n. 1, p. 94-107, 2018. Doi: https://doi.org/10.21814/rpe.14061.
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; Vilela, 2010VILELA, D. S. A terapia filosófica de Wittgenstein e a educação matemática. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 24, n. 48, p. 435-456, 2010. Disponível em: http://tinyurl.com/v35fupnv. Acesso em: 8 fev. 2024.
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); (iv) a problematização dos discursos oficiais, que trazem orientações e normatizações para os cursos de formação de professores, permite enxergar os desafios da educação e da formação inicial docente sob outras perspectivas. Por isso, investir esforços na fluidez de sentidos pela semelhança de significações entre teoria e prática talvez seja mais frutífero do que buscar relacioná-las, identificando-as como polos separados.
Por fim, consideramos que essas e outras problematizações envolvem processos de pensamento sobre a formação, a docência, a escola, o ensino, a aprendizagem, o professor, o aluno, a teoria, a prática, a Matemática, as matemáticas, dentre outros. Isso parece ser produtivo a quem quer avançar na construção de formas não dicotômicas de descrever e de conduzir a formação de professores.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
05 Abr 2023 -
Aceito
20 Out 2023