Open-access Cultivo de comunidades de prática na formação continuada de professores em Educação em Ciências: uma proposta

Fostering communities of practice among in-service Science Education teachers: a proposition

Resumo

A literatura em Educação em Ciências aponta o potencial das Comunidades de Prática (CoP) em fomentar espaços que articulem Escola e Universidade na Formação Continuada de Professores. Entretanto, as indicações existentes para o cultivo dessas estruturas sociais são incipientes. No presente trabalho, propomos diretrizes para tal fim a partir da articulação de conceitos da Teoria Social da Aprendizagem de Etienne Wenger com resultados de uma pesquisa educacional de caráter histórico realizada com uma CoP voltada para a formação docente. As referidas diretrizes são apresentadas em forma de questões, em dez eixos temáticos, de modo a auxiliar profissionais da Educação no fomento e manutenção de relações comunitárias de aprendizagem.

Palavras-chave Integração universidade-educação básica; Ensino de ciências; Comunidades de prática; Formação continuada do professor

Abstract

The literature on Science Education suggests that Communities of Practice (CoP) can be a powerful tool to integrate Schools and Universities, especially for In-service Teachers. However, fostering such social structures is still a vague notion. In this paper, we provide guidelines to address this issue, using a combination of concepts from Etienne Wenger's Social Theory of Learning and results of an educational study that applied a historical method to investigate a CoP focused on teacher education. These guidelines are presented in the form of questions, grouped in ten thematic categories, so that educational professionals can better create and maintain community-based relations for learning.

Keywords School-University partnership; Science education; Communities of practice; In-service teacher

Introdução

Fomentar e sustentar vínculos entre Escola e Universidade de modo a amparar o trabalho docente está entre as principais urgências educacionais contemporâneas. Diversos autores destacam a percepção de que poucos resultados da pesquisa educacional são considerados relevantes e adequadamente utilizados ao longo da elaboração e reflexão sobre a prática pedagógica (EL-HANI; GRECA, 2011; SILVA; BARTELMEBS, 2013). Como argumenta McIntyre (2005), os resultados da pesquisa educacional enfrentam dificuldade em traduzir-se em conhecimentos práticos necessários às situações vividas em sala de aula, principalmente, devido à diferença de natureza destes conhecimentos. Embora não se trate de uma solução única e, tampouco, definitiva para este complexo problema, a constituição de espaços de relações voltadas à aprendizagem colaborativa entre profissionais atuantes na Escola e na Universidade é um caminho promissor.

O campo da Formação Continuada de Professores (FCP) mostra-se como lugar natural para a articulação entre Escola e Universidade, ganhando sentido ao estudar e promover ações na construção colaborativa de saberes relevantes ao trabalho docente e com o ativo envolvimento dos professores em suas próprias trajetórias formativas. Entretanto, o modelo predominante de FCP no Brasil apresenta características de uma descontinuidade persistente, afastando-se do ideal de articulação entre Escola e Universidade. Privilegia-se formações de curta duração em momentos específicos da carreira e o afastamento dos professores do seu ambiente de trabalho para participar de encontros formativos (BARCELOS; VILLANI, 2006; FREITAS; VILLANI, 2002; GATTI; BARRETO, 2009). Nesse modelo, docentes não protagonizam os processos educativos, que são distanciados de suas necessidades de trabalho e do contexto de sala de aula. A formação se centra na individualidade profissional, em detrimento de uma atuação coletiva em equipes de trabalho e com demais profissionais atuantes na instituição escolar, dificultando a efetivação da Escola como locus da formação no trabalho docente (DAVIS et al., 2012). Além disso, o acompanhamento e o amparo dos professores por formadores universitários, não raras vezes, cessa diante do retorno às salas de aula e o início das tentativas de transformação da prática pedagógica (BARCELOS; VILLANI, 2006).

Nesse sentido, participar de um programa ou estrutura de FCP envolve aceitar "[...] um planejamento feito, muitas vezes, longe do dia a dia das práticas e problemáticas das salas de aula, o que impede a articulação da formação dos profissionais a partir de uma série de conhecimentos que podem ser acionados no curso do exercício da profissão" (MAGALHÃES; AZEVEDO, 2015, p. 27). A potencialidade da FCP em aproximar Escola e Universidade passa, diante desses desafios, pela promoção de modelos alternativos que favoreçam a criação e sustento de redes de apoio profissional para a articulação de saberes e práticas docentes em sala de aula e conhecimentos da pesquisa educacional.

No contexto da formação profissional na área de Educação em Ciências, as chamadas Comunidades de Prática têm sido utilizadas na aproximação entre Escola e Universidade (MEGA et al., 2020). Essas estruturas, elementos centrais na Teoria Social da Aprendizagem de Etienne Wenger (WENGER, 2001), congregam pessoas interessadas na consecução de empreendimentos coletivos constituindo, ao longo do tempo, práticas sociais comuns que permitem, além do fazer partilhado, a coesão de suas relações sociais e identificação mútua (WENGER, 2001; WENGER; McDERMOTT; SNYDER, 2002).

Na Formação Continuada de Professores (FCP), as comunidades de prática constituem currículos vivos nos quais é possível aprender, por exemplo, em discussões sobre conhecimentos teóricos e na avaliação e acompanhamento de iniciativas de transformação das práticas docentes em sala de aula. Permitem aos professores interagir e colaborar com diferentes profissionais da Educação em espaços de aprendizagem na fronteira entre práticas da Escola e da Universidade.

Ainda que sejam consideradas como "ferramenta valiosa para a interação produtiva entre seus participantes" (EL-HANI; GRECA, 2011, p. 597), as CoP de professores de Ciências da Natureza exigem cuidados para serem fomentadas e sustentadas ao longo do tempo. As proposições teóricas em torno do cultivo de CoP, conforme indicado por Wenger, McDermott e Snyder (2002), apresentam caráter generalista, delineando caminhos para comunidades ligadas aos mais distintos interesses e práticas. Por outro lado, a literatura não apresenta indicações sistemáticas para a reflexão em torno do fomento e manutenção de CoP na FCP de Ciências da Natureza, indicando apenas a importância do desafio, do trabalho colaborativo, da explicitação de um ambiente seguro para a interação e da possibilidade de uso de ambientes virtuais (FURTAK; HEREDIA, 2014; KIM; HERBERT, 2012; KIM et al., 2012; MIN; NOH; PAIK, 2017; SILVA; BARTELMEBS, 2013). Diante da necessidade de indícios para a reflexão sobre o cultivo e sustento destas configurações sociais, julgamos como fundamental a realização de estudos de experiências consideradas bem-sucedidas de FCP, à luz do referencial da Teoria Social da Aprendizagem de Wenger, que envolvam a colaboração entre Escola e Universidade.

Em trabalho anterior (SOUZA; ARAUJO, VEIT, 2021), apresentamos uma narrativa histórica da iniciativa do Núcleo de Pesquisas em Inovação Curricular (Nupic), do Laboratório de Pesquisa e Ensino de Física (LaPEF) da Universidade de São Paulo (USP) entre os anos de 2003 e 2013. Professores de Física da Educação Básica (EB), docentes universitários, estudantes de graduação e pós-graduação em Ensino de Ciências se envolveram profundamente em projetos de pesquisa de larga escala, financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Os resultados encontrados foram interpretados a partir da Teoria Social da Aprendizagem de Wenger e, a partir deles, neste artigo, propomos questionamentos que podem orientar o cultivo de CoP na FCP de Ciências da Natureza, divididos em dez eixos temáticos.

Estudos anteriores

A revisão da literatura realizada por Mega et al. (2020) proporciona um panorama sobre o uso do conceito de Comunidades de Prática (CoP) na área de pesquisa em Educação em Ciências. Foram consultados artigos publicados em periódicos especializados no Brasil, entre 1991 e 2018, classificados na área de Ensino (Qualis Periódicos 2013-2016) pertencentes aos estratos A1, A2 e B1. No contexto internacional, foram buscados artigos presentes na plataforma Scopus, reconhecida base de dados de artigos científicos. Os autores identificaram expressiva quantidade de pesquisas desenvolvidas em torno de CoP cultivadas (45 de 70 artigos analisados) e voltadas à FCP (23 de 70). Nesta seção, discutimos trabalhos que se dispõem a destacar aspectos relevantes para o cultivo de CoP na FCP.

Explicitar um ambiente seguro para a criação e adoção de inovações é reconhecido por Silva e Bartelmebs (2013) como um importante elemento do sustento de uma CoP. No contexto brasileiro, os pesquisadores desenvolveram uma pesquisa participante com

professoras interessadas no desenvolvimento de atividades didáticas para o Ensino de Astronomia nas séries iniciais do Ensino Fundamental. As professoras participantes do estudo se encontravam semanalmente em reuniões presenciais em uma instituição escolar e puderam estabelecer relações com a pesquisa educacional, obtendo amparo e segurança para sustentar as escolhas pedagógicas e metodológicas que fizeram. O crescimento na autonomia em relação ao exercício profissional docente e a criação de uma "cultura de confiança mútua" (SILVA; BARTELMEBS, 2013, p. 206) entre colegas de profissão estão entre os ganhos advindos do trabalho na CoP.

Trabalhar colaborativamente na criação de recursos para o ensino e a aprendizagem é evidenciado como fundamental para a formação de uma prática social na pesquisa de Furtak e Heredia (2014). As pesquisadoras investigaram as formas pelas quais sequências de aprendizagem foram utilizadas como orientações para o planejamento pedagógico e a criação de avaliações por professores estadunidenses em duas CoP distintas. Em uma primeira comunidade, os participantes colaboraram na construção de sequências de aprendizagem que os auxiliassem a planejar sua prática pedagógica, enquanto os membros da segunda receberam prontos esses recursos, ainda que com a mesma finalidade. A pesquisa evidenciou diferentes apropriações dos recursos: na primeira CoP, as sequências de aprendizagem alinharam o aprendizado e as práticas docentes dos participantes envolvidos; entretanto, quando levados à segunda, os recursos pedagógicos foram interpretados como mais um entre outros disponíveis, perdendo parte de sua força de alinhamento de práticas docentes.

Dada a importância do trabalho colaborativo na formação docente, Kim et al. (2012) e Kim e Herbert (2012) advogam em favor do uso de ambientes digitais livres para sustentar a comunicação dos professores entre si e com outros profissionais. Os pesquisadores utilizaram o referencial de CoP para explorar o potencial das wikis - sites que permitem aos usuários alterar colaborativamente conteúdos e estruturas na página digital - na formação de professores em início de carreira nos Estados Unidos da América. A comunidade de professores de Ciências da Natureza, engenheiros e cientistas contava com atividades voltadas à pesquisa e ao compartilhamento de conhecimentos baseadas no uso de wikis. Kim e Herbert (2012) investigaram como os recursos disponibilizados nas plataformas colaborativas atuam como objetos de fronteira entre comunidades de docentes e de pesquisadores, enquanto Kim et al. (2012) avaliaram a percepção dos professores e suas interações em postagens realizadas na wiki. Os trabalhos revelam o potencial de plataformas digitais livres em permitir a horizontalidade das interações entre os participantes, o compartilhamento e gestão de conhecimentos e o trabalho com professores de distintas escolas sem os retirar do ambiente de trabalho.

Por fim, fomentar a percepção de desafio mostrou-se um importante diferencial na constituição das CoP no estudo de Min, Noh e Paik (2017). As pesquisadoras investigaram como duas CoP de professores da Coreia do Sul se engajaram na construção e reflexão sobre práticas de avaliação. Na pesquisa foi identificado que apenas uma CoP, que entendeu a negociação de práticas avaliativas como parte do desafio a ser enfrentado em sua prática docente, foi capaz de produzir uma verdadeira identificação entre os membros e um espaço para a aprendizagem em torno de processos avaliativos. Os participantes desta comunidade puderam perceber-se como colegas de profissão com os quais é legítimo, seguro e produtivo compartilhar avaliações e interpretações de respostas dos estudantes.

Os estudos permitem perceber a relevância das CoP no contexto de FCP na Educação em Ciências. Os autores dos artigos científicos apresentam indicações sutis quanto ao cultivo de CoP, baseadas em suas próprias experiências com essas estruturas sociais. Desse modo, nossa investigação tem lugar frente à literatura como uma tentativa de propor, de modo sistemático e embasado em uma pesquisa empírica, questionamentos para orientar o cultivo das CoP na FCP em Educação em Ciências.

Quadro teórico-metodológico

Nesta seção, discutimos a Teoria Social da Aprendizagem de Wenger, enfatizando sobretudo o cultivo de Comunidades de Prática. Em seguida, delineamos a metodologia de pesquisa que orientou o processo investigativo e culminou na proposição de um panorama para a reflexão sobre o cultivo de CoP.

Teoria social da aprendizagem de Wenger

A Teoria Social da Aprendizagem de Wenger constitui um referencial para a compreensão da aprendizagem humana enquanto elemento base da participação em práticas sociais, fenômeno situado no contexto da experiência humana de participação no mundo (LAVE; WENGER, 1991; WENGER, 2001; WENGER; MCDERMOTT; SNYDER, 2002). Aprender como fenômeno situado é entendido como processo de inserção em práticas sociais nas chamadas Comunidade de Prática, estruturas sociais que permitem aos seus membros engajar-se mutuamente em torno de empreendimentos sociais e, assim, transformar sua identidade.

Ainda que as estruturas de diferentes CoP possam ser imensamente distintas, é possível indicar as práticas sociais como fonte de coesão social dessas estruturas sociais, ou seja, aquilo a que os participantes se dedicam é o que permite a identificação mútua e a continuidade das formas particulares de existência do seu tecido de relações interpessoais (LI et al., 2009; WENGER, 2001). Isso porque as práticas de uma CoP fornecem o fundamento para a experiência significativa do mundo, uma vez que, ao longo do tempo, os membros das CoP criam uma história de significados próprios sobre sua forma de interpretar o que fazem e quem são. Assim, como percebemos o mundo e nosso compromisso nele como algo significativo, assume a forma de um processo de negociação de significados, com a aproximação, ampliação, afastamento, reprodução e transformação dos significados construídos na trajetória histórica de uma CoP, mantendo-as dinâmicas e vivas ao longo do tempo.

A negociação de significados fundamenta-se na convergência entre participação e reificação: a participação se refere a "um processo ativo nas práticas de comunidades sociais" (MEGA; ARAUJO; VEIT, 2020, p. 5), enquanto a reificação indica o processo de "[...] criação de recursos em torno de seus [das CoP] repertórios que capturem e representem o conhecimento e as práticas destas comunidades" (FURTAK; HEREDIA, 2014, p. 984, tradução nossa). Tratam-se de processos complementares responsáveis pela criação de continuidades na prática ao longo do tempo. Por conta disso, a negociação de significados não só sustenta a forma como as CoP desenvolvem suas práticas, como consiste no modo pelas quais essas estruturas sociais permitem a aprendizagem, a memória e o esquecimento das experiências nelas desenvolvidas.

Fomentar e auxiliar no sustento das CoP envolve, por isso, uma atenção especial à negociação de significados. Mas esse processo de cultivo é possível? A grande maioria das CoP que alguém participa durante sua vida surge de maneira espontânea e pode nunca ser reconhecida através desse rótulo. Colegas de trabalho, clubes ou grupos atuando em torno de um interesse comum podem ter atuado como uma CoP sob determinado ponto de vista e em algum período de sua existência. Para citar alguns exemplos contidos nos fundamentos do referencial, pesquisadores buscaram entender como grupos formados por alcoolistas em abstinência, gerações de famílias de parteiras e processadoras de requisições em uma empresa de seguros poderiam ser entendidas como CoP (LAVE; WENGER, 1991; WENGER, 2001). Após o final de sua primeira grande sistematização da Teoria Social da Aprendizagem, Wenger (2001) avança no entendimento de que a aprendizagem ocorrida nas CoP pode ser facilitada, ainda que nunca controlada, em um processo que interpretamos como parte do cultivo de comunidades sociais. Seria necessário constituir estruturas que fomentassem e amparassem o processo de negociação de significados e, com isso, o surgimento de CoP.

Para Wenger (2001), uma forma de projetar sistemas sociais para a aprendizagem seria envolvendo a reflexão acerca do tensionamento entre: (1) participação e reificação: projetar para a prática envolve fornecer meios de negociar os significados de participações e reificações; (2) projetado e emergente: há uma incerteza intrínseca a qualquer forma de planejamento, que deve aproveitar oportunidades emergentes para seu desenvolvimento; (3) local e global: ao mesmo tempo que nenhuma comunidade pode ser totalmente planejada por outra ou por alguém, ela também não pode se planejar totalmente; (4) identificação e negociabilidade: como uma proposta de identidades, todo projeto deve proporcionar um convite a adentrar um campo de identificação e negociabilidade, através do estabelecimento de diferentes níveis de participação. Esse panorama oferece bases para planejar espaços para a aprendizagem por meio do arranjo de condições para a participação e a reificação.

Outra estrutura de referência para o cultivo de CoP foi oferecida por Wenger, McDermott e Snyder (2002). O cultivo é entendido como o planejamento, fomento e sustento de um sistema de atenção interna e externa às CoP, indispensável para que alcancem seu pleno potencial. Os autores desenvolvem sete princípios para incentivar a organização de relações sociais e atividades de modo a amparar a experiência de aprendizagem conjunta:

  1. Planejar para a evolução.

  2. Abrir para o diálogo entre perspectivas internas e externas.

  3. Convidar a diferentes níveis de participação.

  4. Desenvolver espaços públicos e privados de comunidade.

  5. Foco em valores.

  6. Combinar familiaridade e novidade.

  7. Criar um ritmo para a comunidade. (WENGER; McDERMOTT; SNYDER, 2002, p. 51, tradução nossa).

Os princípios trazem importantes considerações para o cultivo de CoP, como a ideia de valor e a necessidade de planejá-las visando sua própria evolução.

Reconhecemos as CoP como lugares privilegiados de aquisição, renegociação e criação de conhecimentos (WENGER, 2001) e que a aprendizagem permeia todos os ambientes e instâncias da vida humana, apesar de com intensidades e formas distintas, podendo ser facilitada ou frustrada. Essa proposição nos leva a investigar formas de facilitar a aprendizagem através da promoção de CoP na FCP na Educação em Ciências. Para isso, serão considerados os elementos de uma arquitetura de aprendizagem em seus tensionamentos entre participação e reificação, para tecer questionamentos que orientem esse cultivo. Os tensionamentos entre projeto e emergência, localidade e globalidade, identificação e negociabilidade, por sua vez, nos auxiliarão na reflexão sobre os limites deste cultivo.

Contexto da investigação

De modo a subsidiar a articulação com o referencial teórico, investigamos as experiências de trabalho do Núcleo de Pesquisas em Inovação Curricular, grupo de pesquisa marcado historicamente pela colaboração entre professores da Educação Básica e discentes na Universidade de São Paulo. Em trabalho anterior (SOUZA; ARAUJO, VEIT, 2021), apresentamos a narrativa histórica que forneceu lições capazes de, em contraste aos indicativos teóricos para o cultivo de CoP, oferecer orientações específicas para a Formação Continuada de Professores na interface entre Escola e Universidade. Nele são apresentados em detalhes a metodologia do estudo, os participantes da pesquisa e os instrumentos analíticos utilizados para a análise e construção da narrativa histórica. Retomamos os pontos essenciais às discussões levantadas neste artigo.

Orientamos nossa pesquisa a partir das indicações de Johnson e Christensen (2014), que propõem cinco etapas para orientar a investigação sistemática do passado: (1) a escolha de um problema de pesquisa, a elaboração de hipóteses e a revisão da literatura; (2) a escolha e obtenção de fontes históricas; (3) a avaliação das fontes de pesquisa; (4) a síntese das informações obtidas; e (5) a apresentação dos conhecimentos construídos. Essas etapas, como salientam os pesquisadores, não constituem uma linearidade e, por isso, também permitem a flexibilidade característica de uma pesquisa qualitativa.

As fontes históricas que serviram de base à nossa investigação assumiram a forma de registros orais e documentais. Centramo-nos em torno dos relatos fornecidos por participantes do Nupic entre os anos de 2003 e 2013, proveniente de entrevistas semiestruturadas realizadas, gravadas e posteriormente transcritas em sua integralidade. Foram escolhidos oito participantes que atuaram como professores de Física da EB, professores universitários ou estudantes de pós-graduação ao longo de sua passagem no grupo. De modo a corroborar, ampliar e contextualizar as informações fornecidas, nos valemos de registros documentais, como projetos de pesquisa, relatórios de atividades e currículos Lattes dos entrevistados.

Para analisar as entrevistas recorremos às técnicas propostas por Bardin (2011). O processo se fundamenta em estender o período entre o contato inicial com o conjunto de documentos e a inferência dos significados a partir deles, feito em três etapas: a pré-análise, com a organização dos documentos a serem analisados e a construção dos indicadores para a codificação dos textos; a exploração do material através da codificação de trechos do corpus documental e categorização em torno de uma temática, respectivamente; e a inferência controlada, a construção de conhecimentos a partir das categorias construídas.

Em nossa pesquisa, privilegiamos o tema como foco de nossas codificações. Construímos indicadores para realizar uma análise de conteúdo em torno de categorias prévias baseadas no referencial teórico (compreender prática, identidade e valor) e

categorias emergentes (relacionamento institucional do Nupic e da cronologia histórica dos eventos citados pelos entrevistados) (SOUZA, 2021). O processo de codificação foi realizado com o auxílio do software de análises qualitativa de dados NVivo 12, disponibilizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que permitiu a extensa segmentação das entrevistas em torno dos chamados nós, criados previamente ou de modo emergente ao longo do processo de codificação. Uma vez que a apresentação dos indicadores e os principais trechos codificados está além do objetivo do artigo, os disponibilizados em Souza, Araujo e Veit (2022).

Articulamos as lições provenientes da compreensão histórica sobre as experiências de FCP vividas no Nupic com as indicações de Wenger (2001) e Wenger, McDermott e Snyder (2002) sobre o cultivo de CoP. Desse modo, foi possível traçar questões diretrizes para profissionais da Educação orientarem suas ações em torno do fomento e sustento de espaços comunitários de aprendizagem para a FCP de Ciências da Natureza, que passamos a explicitar na próxima seção.

Análise e discussão de resultados

De modo a apresentar os resultados de nossa investigação, retomaremos brevemente os pontos centrais da narrativa histórica construída que permitiu induzir dez temáticas em torno das quais refletir sobre o cultivo CoP na FCP em Educação em Ciências. Estas são discutidas em torno das componentes da negociação de significados. As discussões foram sintetizadas de modo a constituir um instrumento para orientar discussões entre formadores docentes e demais profissionais da educação. Ao final, trazemos uma reflexão sobre os limites do processo de cultivo.

Escolhemos apresentar nossa proposta de orientações para o cultivo de CoP na forma de questões por entendermos que este formato explicita a necessidade de que este processo seja conduzido de modo reflexivo. As respostas aos questionamentos podem variar em função dos contextos específicos em que se aplicam, assim como variar no tempo. Salientamos também o papel decisivo do envolvimento entre professores e demais profissionais da Educação no cultivo dessas configurações sociais.

Práticas do Nupic situadas em uma narrativa histórica

Foi possível identificar, nas relações relatadas pelos entrevistados, a dinâmica de trabalho de uma Comunidade de Prática em torno do Laboratório de Pesquisa e Ensino de Física da Universidade de São Paulo. A narrativa foi constituída por três períodos: entre 1998 e 2002, o surgimento de condições para a existência de uma CoP no LaPEF-USP; entre 2003 e 2008, a trajetória ascendente de relações em torno do projeto de pesquisa financiado pela FAPESP intitulado Atualização do currículo de física no ensino médio de escolas estaduais: a transposição das teorias modernas e contemporâneas para a sala de aula, e os antecedentes do segundo projeto; e entre 2009 e 2013, após a formalização do Nupic, os acontecimentos em torno do projeto de pesquisa A física moderna no ensino médio e a formação de multiplicadores para a rede pública de professores de física, que culminaram na dissolução dos indícios de uma CoP entre os membros do Nupic.

A narrativa apresenta o surgimento e enfraquecimento de uma CoP que se estabeleceu em torno de um empreendimento conjunto tríplice - a transposição de conhecimentos de Física Moderna e Contemporânea para as salas de aula de Ensino

Médio da Rede Pública de São Paulo, através da atuação na interface entre Escola e Universidade centrada na formação profissional de docentes e pesquisadores em Educação em Ciências. O primeiro projeto se articulou em torno da constituição de uma rotina semanal de trabalho colaborativo de estudo e discussão na construção de sequências e materiais didáticos, que foram implementados nas salas de aulas dos professores de Física da EB membros do grupo, e avaliados por todos para seu contínuo desenvolvimento. Com a transição para o segundo projeto, passou a assumir posição de destaque a construção e oferta de cursos de formação continuada em larga escala para professores de Física de toda a Rede Estadual de Ensino. Na percepção dos participantes, as relações sociais e institucionais constituídas no trabalho coletivo conferiram grande relevância ao grupo em suas trajetórias de vida, tanto em nível profissional quanto pessoal.

Proposta de eixos para o cultivo de CoP na FCP em educação em ciências

Organizamos eixos em torno dos quais propomos reflexões para o cultivo de CoP em termos de participação e reificação, de forma que constituam elementos para sustentar a negociação de significado. Tais eixos são apresentados na sequência.

Sustentar a negociação de significados ao longo da participação

A disponibilidade das pessoas em aprender conjuntamente por meio da participação é a necessidade primeira de toda a CoP. Na história do Nupic, o LaPEF permitiu e legitimou a participação de professores da EB que passaram a trabalhar com professores universitários e seus orientandos em torno de um projeto comum. Esses sujeitos puderam se reconhecer como pessoas com quem contar e aprender, constituindo um tecido de relações e valores no Nupic. A partir das indicações situadas na narrativa histórica, constituímos eixos que sustentam a participação como profissional, valorativo, político-institucional, diretivo e intergeracional.

Eixo profissional

Incentivar a colaboração entre professores da EB, professores em formação inicial e professores universitários auxilia no desenvolvimento de uma competência no trabalho e aprendizagem conjunta. Para que CoP voltadas à FCP entre Escola e Universidade possam existir, é preciso que os conhecimentos dos diferentes profissionais da Educação sejam valorizados ao longo da participação conjunta, dando-se oportunidades concretas para que sejam legitimados, explicitados, discutidos e transformados. Assim, consideramos ser relevante questionar quais serão os profissionais que buscarão aprender conjuntamente, bem como a concepção de conhecimento profissional docente que carregam. Quais profissionais irão compor a CoP em conjunto com os professores da EB? Quais concepções sobre conhecimento profissional e as perspectivas de carreira poderão ser partilhadas entre os participantes? Que oportunidade será propiciada para que os conhecimentos dos diferentes profissionais sejam legitimados? Como serão discutidas as transformações nestes conhecimentos? Como permitir que professores da EB e outros profissionais tragam suas próprias histórias para compor a história de aprendizagem da CoP?

Eixo valorativo

Para manter os vínculos comunitários a longo prazo, torna-se relevante investir na compreensão daqueles elementos que podem ser fonte de valor para os participantes da CoP. É relevante disponibilizar espaços para que os diferentes participantes expressem suas expectativas e necessidades, em torno das quais seja possível organizar um compromisso mútuo. Além disso, a relação entre a participação na CoP e a carreira docente pode ser um importante elemento para a reflexão coletiva, explicitando-se os benefícios advindos da afiliação. À luz da experiência histórica investigada, alguns dos valores que podem ser fomentados são: auxílio mútuo, apoio institucional e a importância de atuar na interface entre Escola e Universidade. Os valores identificados podem ser encontrados de maneira sintética em Souza, Araujo e Veit (2022). Dessa maneira, é possível organizar uma linha reflexiva em torno das seguintes questões: quais desejos, expectativas e necessidades os participantes, especialmente dos professores da EB, apresentam em relação ao seu exercício profissional? Quais valores podem ser compartilhados entre os diferentes membros da CoP? Quais temáticas de interesse para os participantes? Quais benefícios para a carreira docente precisam ser explicitados para a participação na CoP? Valores como a colaboração, o respeito mútuo e a importância de estabelecer vínculos entre a Escola e a Universidade podem ser importantes fontes de coesão das relações estabelecidas na FCP.

Eixo político-institucional

O terceiro aspecto sobre a participação é de ordem político-institucional. As CoP, embora não tenham caráter institucional, permeiam esses ambientes, enriquecendo-os com sua dinâmica própria (WENGER; McDERMOTT; SNYDER, 2002). Como comunidade social voltada à FCP, deverá manter seus laços com distintas instituições, acompanhada por um trabalho de negociação constante dos meios pelos quais manter vínculos ao longo do tempo. Em nível escolar, a cooperação com a gestão e a coordenação pedagógica e a articulação com os currículos escolares parece-nos indispensável, aos moldes do ocorrido com o Nupic, em consonância com o trabalho das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação. Em termos da relação com as Instituições de Ensino Superior, fundamental é aproximar-se dos tempos e espaços da Escola. Outras instituições também podem fazer parte dessa rede de manutenção das CoP, como agências financiadoras. Com quais instituições a CoP manterá vínculos? Como essas instituições podem contribuir para que a CoP possa se sustentar no tempo? Como manterá contato com Escola e com a Universidade, de maneira especial? Como serão articuladas as condições fornecidas pela legislação (sobre FCP e currículo escolar, por exemplo) para fomentar e sustentar a CoP?

Eixo diretivo

Ao longo da história do Nupic, a colaboração na condução dos processos de aprendizagem se destacou na relação entre a participação ativa dos professores da EB em torno de sua formação, e a existência da figura do coordenador do grupo. A existência de diferentes posições hierárquicas em uma CoP, ou de posições consideradas de liderança mencionadas por Wenger (2001) e Wenger, McDermott e Snyder (2002), conferem legitimidade na negociação de significados por todos - colegialidade, nas palavras do coordenador do Nupic entrevistado para a pesquisa - permitindo a divisão do poder nas CoP, especialmente conferindo aos professores da EB acesso às discussões sobre a condução dos percursos do grupo. Qual atuação os professores da EB terão sobre sua própria formação? Como serão conduzidos os caminhos do grupo e que formas compartilhadas de decisão serão escolhidas para a CoP? Haverá líderes? Sob qual ideia de liderança?

Eixo intergeracional

A narrativa histórica das aprendizagens coletivas no Nupic também evidencia como as relações entre participantes novos e antigos é importante tanto para a continuidade das práticas entre Escola e Universidade quanto para a aprendizagem dos participantes. A impossibilidade de acesso a uma participação plena por parte de novos professores esteve entre as condições limitantes que conduziram ao final do período de dez anos de atividades desenvolvidas entre Escola e Universidade. Torna-se, dessa forma, fundamental fornecer meios para que os professores da EB possam assumir distintas posições relevantes na negociação de significados em suas comunidades, destinando atenção ao amparo das relações intergeracionais entre participantes mais e menos experientes na CoP. Consideramos relevante questionar: Que espaços haverá para que participantes de diferentes gerações possam se encontrar? Quais caminhos para a evolução das CoP podem ser vislumbrados e planejados? Quais oportunidades de crescimento devem ser levadas em conta?

As CoP negociam suas práticas em torno de uma rede de recursos usados para iniciar, sustentar e expandir a participação. Como dispor e articular elementos que facilitem a reificação é indispensável na constituição de CoP para a FCP entre Escola e Universidade, orientamos a reflexão sobre o cultivo de modo a contemplar dimensões espacial, temporal, material-financeira, teórico-metodológica e identitária-narrativa, aprofundadas a seguir.

Eixo espacial

Reconhecemos, na narrativa sobre as experiências do Nupic, a importância do espaço físico imediato da sala do LaPEF, permitindo aos participantes segurança e certeza do encontro com condições favoráveis para suas práticas. Nas CoP para a FCP dos tempos atuais, mesmo além do contexto da pandemia que ainda assola o mundo, passa a ser indispensável não apenas aproveitar espaços físicos de encontro presencial, mas também utilizar recursos digitais para estabelecer a comunicação entre os membros, como wikis e outros ambientes virtuais (KIM; HERBERT, 2012; KIM et al., 2012; MEGA et al., 2020). É relevante considerar como dar base para que os participantes possam interagir: Que local haverá para os participantes interagirem? Quais as limitações e possibilidades desse espaço (físico e virtual) de ação conjunta? Esse espaço pode ser mantido ao longo do tempo?

Eixo temporal

Além do espaço presencial e virtual de encontros, é fundamental negociar o período para as interações, uma vez que o tempo é precioso e escasso tanto na Escola quanto na Universidade. A periodicidade do encontro permitiu ao Nupic a criação de uma rotina de trabalho capaz de sustentar a participação por um longo período, de modo a ser fortemente incentivada em futuras CoP. Percebemos também que os espaços para a interação interpessoal na FCP precisam de atenção. Organizar o tempo na FCP em CoP exige refletir sobre: como será a rotina da CoP, especialmente os períodos de encontro? Haverá interações fora da rotina? Como os professores da EB poderão se organizar nessa rotina, tendo em vista seu cotidiano de trabalho?

Eixo material-financeiro

O quarto eixo relacionado à reificação é o material-financeiro. A Formação Continuada de Professores exige a mobilização de recursos financeiros. A FAPESP, de maneira significativa, por meio do Programa de Melhoria do Ensino Público, amparava financeiramente as relações e o trabalho no Nupic, que não poderiam ser desenvolvidos sem o auxílio do projeto. Ao receber um auxílio de valor significativo, esses profissionais puderam renunciar parte do seu tempo de trabalho nas instituições de ensino para dedicar-se à sua formação continuada e à consecução das pesquisas educacionais do Nupic. Ainda que não seja o único eixo relevante para a formação de uma CoP, o auxílio financeiro proveniente de agências e de verbas públicas são extremamente desejáveis para a constituição de qualquer projeto de trabalho na formação docente, fornecendo bases para que o trabalho coletivo possa ser organizado e levado adiante por professores e outros profissionais. Dessa forma, é importante refletir sobre como, nas estruturas de FCP, pretende-se orientar ações de financiamento: Qual tipo de apoio financeiro pode ser mobilizado para auxiliar professores a dedicar mais tempo ao grupo? Há instituições capazes de promover esse tipo de apoio? Como será utilizado o recurso financeiro nas CoP para a compra de materiais a serem negociados entre os participantes?

Eixo teórico-metodológico

Fomentar uma CoP implica reconhecer a fundamental indissolubilidade das relações entre teorias e práticas (WENGER, 2001), uma vez que não há prática realizada sem uma visão de mundo e teoria que não seja situada em contextos específicos para ser significativa. Torna-se necessário promover recursos para a negociação desses elementos explicitamente como uma unidade. Pode-se orientar a constituição dos domínios teórico-metodológicos da CoP em torno das seguintes questões: Quais interesses de aprendizagem podem ser compartilhados entre os participantes? Quais (e como) conhecimentos das áreas de Educação em Ciências e Educação serão discutidos? E das disciplinas específicas? Quais perspectivas teóricas e metodológicas poderão ser compartilhadas entre os professores da EB e os demais participantes? Qual o papel será reservado à pesquisa educacional na CoP? Quais conhecimentos formados na profissão e em outros contextos serão discutidos?

Eixo identitário-narrativo

Permeando as dimensões anteriores, os participantes do Nupic tinham intenções e desejos diferentes que puderam ser articulados em torno de uma narrativa coletiva que sustentava a compreensão da importância do trabalho que realizariam. Reconhecemos, assim, que na FCP também é importante a construção de uma história comum, com colegas de profissão capazes de refletir sobre suas experiências comuns. Construir uma narrativa conjunta, que dê significado à participação em uma estrutura de FCP, é parte importante do desenvolvimento de relações sociais nas CoP. São questões que podem orientar a discussão desse eixo: Como permitir que professores da EB e outros profissionais tragam suas próprias histórias para compor a história da CoP? Quais símbolos serão compartilhados, construídos ou transformados na CoP? Como identidades mútuas podem ser produzidas e projetadas a partir da participação?

Síntese das discussões

O quadro 1 apresenta a síntese das indicações propostas, formando por si um instrumento para o cultivo de comunidades sociais de aprendizagem a partir de questões-diretrizes organizados em torno de dez eixos principais.

Quadro 1
Questões-diretrizes para a constituição e amparo de Comunidades de Prática de Professores de Ciências da Natureza

Limites em torno do cultivo

O processo de convergência entre a participação dos sujeitos e suas reificações permite que as práticas das comunidades sociais sejam constituídas, transformadas e sustentadas. Por conta disso, estes modos duais precisam ser amparados e cultivados em conjunto, de modo que "[...] para possibilitar um é necessário possibilitar o outro" (WENGER, 2001, p. 89, tradução nossa) e foram escolhidos como estruturadores das indicações propostas. Esse panorama constitui elementos de arquiteturas de aprendizagem que auxiliam a cultivar CoP. Por conta disso, embora estejam articulados em torno da tensão entre participação e reificação, é necessário discutir os limites do planejamento de arquiteturas de aprendizagem e problematizar a posição de organizador de oportunidades de aprendizagem nas comunidades sociais. Cultivar também exige refletir sobre as tensões entre planejado e emergente, entre local e global e a identificação e a negociação.

Wenger (2001) considera que, por vivermos em um mundo em grande parte previsível, a mudança e o improviso são essenciais em qualquer planejamento. Desse modo, "[...] a prática não pode ser o resultado de um projeto, mas sim uma resposta a ele" (WENGER, 2001, p. 278, tradução nossa). Isso significa que os eixos propostos em torno dos quais pensar a FCP, bem como o ciclo de práticas identificado, são apenas

parte do trabalho na criação de uma CoP. A FCP deve promover a constante abertura ao novo, que apenas pode ser encontrado na situação concreta de coletividade.

Aproveitar oportunidades emergentes exige responsabilização dos participantes, em nível individual e coletivo, e bases para que elas possam ser desenvolvidas. Consideramos de importância fundamental reconhecer, no processo de cultivo de CoP, que jamais se pode projetar totalmente as relações comunitárias, pois a aprendizagem situada que a une não pode controlar todos os seus desdobramentos. Por outro lado, Wenger (2001) considera que, porque a participação é intrinsecamente limitada, não há prática que abarque a totalidade da experiência de vida no mundo. Os participantes das CoP precisam estar ativamente envolvidos na construção dos caminhos de aprendizagem do coletivo. Em última instância, devem assumir a responsabilidade por decidir "[...] o que aprender, o que faz falta para tornar-se um participante pleno e de como se deve introduzir novos participantes na comunidade" (WENGER, 2001, p. 279, tradução nossa).

Por fim, consideramos importante destacar que, ao passo que os participantes de uma CoP na FCP devem tomar parte ativa na constituição de sua prática e assumir a responsabilidade pela aprendizagem individual e coletiva, as relações comunitárias "[...] não se devem abandonar à própria sorte" (WENGER, 2001, p. 279, tradução nossa). Planejar uma CoP em conjunto com seus participantes, em sua independência intrínseca, precisa levar em conta os contextos amplos em que essa configuração social estará inserida, pois nenhuma comunidade tem a capacidade de planejar integralmente sua própria aprendizagem.

Considerações finais

Algumas dificuldades importantes enfrentadas por docentes em formação continuada para conectar conhecimentos teóricos com suas práticas em sala de aula podem ser reflexo da descontinuidade das ligações entre Escola e Universidade, presentes no próprio modelo formativo de que participam. Poucos profissionais dispõem de uma rede de apoio institucional capaz de incentivá-los e ampará-los no processo de transformação de suas práticas pedagógicas. Nesse sentido, espaços de aprendizagem que conectem profissionais atuantes em escolas e/ou universidades podem ser constituídos a partir de uma CoP.

No presente trabalho, apresentamos um instrumento capaz de orientar discussões e ações para o cultivo de Comunidades de Prática na Formação Continuada de Professores na área de Ciências da Natureza. As questões-diretrizes propostas podem guiar as iniciativas em torno do sustento de formas de participação e da criação de reificações de comunidades de professores e demais profissionais interessados na criação e negociação de conhecimentos. Em torno de dez eixos temáticos, os questionamentos pretendem abrir discussão de modo a integrar professores, formadores de professores e outros profissionais interessados em Educação em Ciências no processo de constituição de uma comunidade de aprendizagem.

Vislumbramos nessas estruturas sociais uma forma de facilitar, apoiar e incentivar o processo de adoção de inovações didáticas por meio da criação de uma rede de apoio a professores em espaços de aprendizagem na interface entre Escola e Universidade. Na FCP essas configurações sociais podem estar presentes em um modelo formativo que facilite a construção e mobilização de conhecimentos híbridos por parte de professores, pesquisadores e outros profissionais interessados em aprender coletivamente. Entendemos que o comprometimento mútuo, base das relações estabelecidas nas CoP, deve servir como pilar fundamental para o estabelecimento de relações duradouras entre Escola e Universidade, capaz de enriquecer conhecimentos e práticas constituídas nestes diferentes espaços do saber.

Agradecimentos

Agradecemos aos participantes da pesquisa pela disponibilidade e atenção. O primeiro autor agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de mestrado e o segundo autor agradece a bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

  • BARCELOS, N. N. S.; VILLANI, A. Troca entre universidade e escola na formação docente: uma experiência de formação inicial e continuada. Ciência & Educação, Bauru, v. 12, n. 1, p. 73-97, 2006. doi: https://doi.org/b5bv28
    » https://doi.org/b5bv28
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo Lisboa: Edições 70, 2011.
  • DAVIS, C. L. F.; NUNES, M. M. R.; ALMEIDA, P. C. A.; SILVA, A. P. F.; SOUZA, J. C. Formação continuada de professores: uma análise das modalidades e das práticas em estados e municípios brasileiros. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2012.
  • EL-HANI, C. N.; GRECA, I. M. Participação em uma comunidade virtual de prática desenhada como meio de diminuir a lacuna pesquisa-prática na educação em biologia. Ciência & Educação, Bauru, v. 17, n. 3, p. 579-601, 2011. doi: https://doi.org/fxzddw
    » https://doi.org/fxzddw
  • FREITAS, D.; VILLANI, A. Formação de professores de ciências: um desafio sem limites. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 17, n. 3, p. 25-37, 2002.
  • FURTAK, E. M.; HEREDIA, S. C. Exploring the influence of learning progressions in two teacher communities. Journal of Research in Science Teaching, Hoboken, v. 51, n. 8, p. 982-1020, 2014. doi: https://doi.org/f6g85r
    » https://doi.org/f6g85r
  • GATTI, B. A.; BARRETO, E. S. S. (coord.). Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO, 2009.
  • JOHNSON, R. B.; CHRISTENSEN, L. Educational research: quantitative, qualitative and mixed approaches. 5. ed. London: Sage, 2014.
  • KIM, H. J.; HERBERT, B. Inquiry resources collection as a boundary object supporting meaningful collaboration in a wiki-based scientist-teacher community. Journal of Science Education and Technology, Dordrecht, v. 21, n. 4, p. 504-512, 2012.
  • KIM, H. J.; MILLER, H. R.; HERBERT, B.; PEDERSEN, S.; LOVING, C. Using a wiki in a scientist-teacher professional learning community: impact on teacher perception changes. Journal of Science Education and Technology, Dordrecht, v. 21, n. 4, p. 440-452, 2012. doi: https://doi.org/dbgc8q
    » https://doi.org/dbgc8q
  • LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge: Cambridge Univertity Press, 1991.
  • LI, L.; GRIMSHAW, J. M.; NIELSEN, C.; JUDD, M.; COYTE, P. C.; GRAHAM, I. D. Use of communities of practice in business and health care sectors: a systematic review. Implementation Science, London, UK, v. 4, n. 27, 2009. doi: https://doi.org/cjd2dq
    » https://doi.org/cjd2dq
  • MAGALHÃES, L. K. C.; AZEVEDO, L. C. S. S. Formação continuada e suas implicações: entre a lei e o trabalho docente. Cadernos Cedes, Campinas, v. 35, n. 95, p. 15-36, 2015. doi: https://doi.org/h64s
    » https://doi.org/h64s
  • McINTYRE, D. Bridging the gap between research and practice. Cambridge Journal of Education, Abingdon, UK, v. 35, n. 3, p. 357-382, 2005. doi: https://doi.org/fcv32h
    » https://doi.org/fcv32h
  • MEGA, D. F.; ARAUJO, I. S.; VEIT, E. A. Centro de tecnologia acadêmica da UFRGS como comunidade de prática e possibilidade de criação de espaços não formais de aprendizagem: um estudo etnográfico. Ensaio, Belo Horizonte, v. 22, p. 12139, 2020. doi: https://doi.org/h66k
    » https://doi.org/h66k
  • MEGA, D. F.; SOUZA, D. G.; VERA-REY, E. A.; VEIT, E. A. Comunidades de prática no ensino de ciências: uma revisão da literatura de 1991 a 2018. Revista Brasileira de Ensino de Física, São Paulo, v. 42, 2020. doi: https://doi.org/h66m
    » https://doi.org/h66m
  • MIN, H.; NOH, H. J.; PAIK, S. H. Communities of practice for student assessment in a South Korean middle school. Eurasia: journal of mathematics, science and technology education, Eastbourne, UK, v. 13, n. 10, p. 6369-6394, 2017. doi: https://doi.org/h66n
    » https://doi.org/h66n
  • SILVA, J. A.; BARTELMEBS, R. C. A comunidade de prática como possibilidade de inovações na pesquisa em ensino de ciências nos anos iniciais. Acta Scientiae, Canoas, v. 15, n. 1, p. 191-208, 2013.
  • SOUZA, D. G. O cultivo de comunidades de prática para a formação continuada de professores na interface escola-universidade: um olhar histórico sobre as vivências do núcleo de pesquisas em inovação curricular. 2021. Dissertação (Mestrado em Ensino de Física) - Instituto de Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.
  • SOUZA, D. G.; ARAUJO, I. S.; VEIT, E. A. Formação continuada de professores viabilizada pela aproximação entre escola e universidade: uma narrativa histórica das experiências da iniciativa Nupic (USP). Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 26, n. 3, p. 134-156, 2021.
  • SOUZA, D. G.; ARAUJO, I. S.; VEIT, E. A. Indicadores e codificações do projeto de pesquisa espaços de interlocução escola-universidade na formação continuada de professores em ciências: uma investigação histórica à luz da teoria social da aprendizagem de Wenger. 2022. Disponível em: https://cutt.ly/BZPUFHq Acesso em: 12 abr. 2022.
    » https://cutt.ly/BZPUFHq
  • WENGER, E. Comunidades de práctica: aprendizaje, significado e identidad. Buenos Aires: Paidós, 2001.
  • WENGER, E.; MCDERMOTT, R.; SNYDER, W. M. Cultivating communities of practice Boston, US: Harvard Business School Press, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2021
  • Aceito
    31 Mar 2022
location_on
Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências, campus de Bauru. Av. Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Campus Universitário - Vargem Limpa CEP 17033-360 Bauru - SP/ Brasil , Tel./Fax: (55 14) 3103 6177 - Bauru - SP - Brazil
E-mail: revista@fc.unesp.br
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Acessibilidade / Reportar erro