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Divulgação... de qual ciência? Reflexões sobre a representação de cientistas na revista Ciência Hoje das Crianças

Dissemination... of what kind of science? Reflections on the representation of scientists in the journal Ciência Hoje das Crianças

Resumo:

Este estudo objetivou analisar as representações de cientistas presentes na revista Ciência Hoje das Crianças (CHC), apresenta uma abordagem qualitativa e tipologia documental. Utilizou-se o referencial da análise de conteúdo, a partir do qual emergiram três categorias: individualista-elitista, gênero-posição e origem. Com base nas análises, foi possível inferir que a revista CHC apresenta uma dualidade em suas representações, uma vez que ainda traz em seu conteúdo exemplos elitistas e individualistas sobre os(as) cientistas, ao mesmo tempo em que apresenta exemplos com pluralidade de corpos, gêneros etc. Por fim, destacase que o periódico em questão apresenta importância para o Ensino de Ciências, que contribui diretamente para a construção de um imaginário sobre cientistas para quem a lê, tornando-se um espaço fundamental para a quebra de paradigmas que há muito são perpetuados em materiais de Divulgação Científica.

Palavras-chave:
Educação infantil; Divulgação científica; Representação mental; Percepção; Cientista

Abstract:

This study aimed to analyze the representations of scientists present in the journal Ciência Hoje das Crianças (CHC). The research presents a qualitative approach and documentary typology. The content analysis framework was used, from which three categories emerged: individualist-elitist, gender-position, and origin. Based on the analyses, it was possible to infer that the CHC journal presents a duality in its representations, given that it still brings in its content elitist and individualistic examples of scientists, there are also examples with plurality of bodies, genders, etc. Finally, it is important to highlight that the CHC journal is important for science teaching that directly contributes to the construction of an imaginary about scientists for those who read it. Thus, it becomes a fundamental space for breaking paradigms that have long been perpetuated in Scientific Dissemination materials.

Keywords:
Child education; Science dissemination; Mental representation; Perception; Scientist

Introdução

O ensino de Ciências tem enfrentado diversas dificuldades nas últimas duas décadas, entre as quais se destaca a apresentação de conhecimentos prontos e a memorização sem que existam possibilidades de proporcionar aos estudantes uma aproximação das atividades características do trabalho científico. Essa situação contribui para um ensino descontextualizado que, por sua vez, transmite visões de Ciência que se afastam radicalmente da forma como se constroem os conhecimentos científicos (CACHAPUZ et al., 2011CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J.; VILCHES, A. A necessária renovação do ensino de ciências. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.; GIL PÉREZ et al., 2001GIL PÉREZ, D.; FERNÁNDEZ MONTORO, I.; CARRASCOSA ALÍS, J.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001. Doi: https://doi.org/gpq6.
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).

Materiais de Divulgação Científica (DC)1 1 Doravante, faremos uso da sigla DC sempre que estivermos falando de Divulgação Científica. podem contribuir para a contraposição de representações estereotipadas da Ciência, em busca de uma imagem mais real e próxima do concreto. Tonin e Azubel (2017)TONIN, J.; AZUBEL, L. Nas representações, imagens e imaginários. Memorare, Tubarão, SC, v. 4, n. 2-II, p. 121-137, 2017. Disponível em: https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/memorare_grupep/article/view/5232. Acesso em: 14 fev. 2023.
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, ao discutirem acerca da complexidade do elo entre as representações, imagens e imaginário, afirmam que toda relação estabelecida entre os seres humanos se origina a partir da imagem que se faz do outro. As representações são concebidas como quadros estruturantes da sociedade, e esta existe apenas pela representação que os seres humanos fazem dela.

Ocorre, portanto, um processo de retroalimentação, em que o indivíduo ora molda, ora é moldado pelas representações. Ressalta-se que esse processo não é estático e, ao longo dos anos, podem ocorrer evoluções ou involuções. O imaginário social ganha mais destaque, já que se torna o substrato simbólico, de onde surgem as imagens que vão formar as representações, as quais, por sua vez, também produzirão a atualização desse imaginário. As autoras destacam ainda que:

Os imaginários são bacias semânticas de onde jorram representações em forma de imagens. Imagens, imaginários e representações se retroalimentam, se interpenetram, se confundem; são senhas sem as quais não se pode pensar a comunicação, mesmo a vida em sociedade. (TONIN; AZUBEL, 2017TONIN, J.; AZUBEL, L. Nas representações, imagens e imaginários. Memorare, Tubarão, SC, v. 4, n. 2-II, p. 121-137, 2017. Disponível em: https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/memorare_grupep/article/view/5232. Acesso em: 14 fev. 2023.
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, p. 122).

Para Freire Filho (2005)FREIRE FILHO, J. Força de expressão: construção, consumo e contestação das representações midiáticas das minorias. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 12, n. 28, p. 18-29, 2005. Doi: https://doi.org/jwkj.
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, as representações são influentes quadros teóricos de referência e sofisticadas ferramentas de análise, que afetam o modo como nós vemos, somos vistos e tratados pelos outros. O termo representação se traduz como um campo de batalha simbólica das artes e das indústrias da cultura, pois traz o uso dos variados sistemas significantes disponíveis para fala por ou falar sobre categorias ou grupos sociais.

Os materiais midiáticos (jornais, telenovelas, redes sociais, revistas etc.) corroboram para a construção de representações sobre si mesmo, sobre o outro e sobre o mundo (TONIN; AZUBEL, 2017TONIN, J.; AZUBEL, L. Nas representações, imagens e imaginários. Memorare, Tubarão, SC, v. 4, n. 2-II, p. 121-137, 2017. Disponível em: https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/memorare_grupep/article/view/5232. Acesso em: 14 fev. 2023.
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). Nesse ínterim, os materiais de DC se tornam artefatos cruciais ao se pensar nas reflexões e análises das representações sobre os(as) cientistas, uma vez que possuem em seu objetivo a divulgação para a sociedade.

A DC pode ser entendida como a difusão, para a população em geral, dos conhecimentos científicos e tecnológicos que estão restritos aos centros de pesquisa e à academia. A partir desse conceito, os conhecimentos científicos correspondem não somente àqueles ligados às Ciências Exatas ou Biológicas, mas, também, às ciências humanas, sociais, políticas, entre outras (ZAMBONI, 2001ZAMBONI, L. M. S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Editores Associados, 2001.).

Para além da divulgação dos conhecimentos científicos, a DC vem ganhando novos objetivos e funcionalidades nas discussões acadêmicas, tais como: promover inter-relações entre o conhecimento científico e fenômenos do dia a dia, auxiliar na compreensão da Natureza das Ciências, fomentar discussões e oportunizar uma formação que seja críticocidadã. Desse modo, a DC concretiza-se como um meio pelo qual o conhecimento e o fazer científico possam ser democratizados para o público em geral (CALDAS, 2010CALDAS, G. Divulgação científica e relações de poder. Informação & Informação, Londrina, v. 15, n. esp, p. 31-42, 2010. Doi: https://doi.org/jwkg.
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; FRAGA; ROSA, 2015FRAGA, F. B. F. F.; ROSA, R. T. D. Microbiologia na revista Ciência Hoje das Crianças: análise de textos de divulgação científica. Ciência & Educação, Bauru, v. 21, n. 1, p. 199-218, 2015. Doi: https://doi.org/jwkh.
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; QUEIROZ; FERREIRA, 2013QUEIROZ, S. L.; FERREIRA, L. A. Traços de cientificidade, didaticidade e laicidade em artigos da revista ‘Ciência Hoje’ relacionados à química. Ciência & Educação, Bauru, v. 19, n. 4, p. 947-969, 2013. Doi: https://doi.org/jwkr.
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).

A DC deve deixar de ser vista apenas como uma mera reprodução do conhecimento científico e passa a ter um olhar crítico que pode auxiliar a romper com os velhos paradigmas da sociedade (CALDAS, 2010CALDAS, G. Divulgação científica e relações de poder. Informação & Informação, Londrina, v. 15, n. esp, p. 31-42, 2010. Doi: https://doi.org/jwkg.
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).

Nessa concepção, a DC e seus materiais podem contribuir para a produção de sentido e para a construção de imagens que a sociedade atribui à Ciência e vice-versa, além de veicular informações que possam promover a construção de uma cidadania crítica.

Diante desse cenário, é fundamental que existam pesquisas que problematizem sobre como os(as) cientistas vêm sendo divulgados nesses materiais, com quais intencionalidades estão ali presentes, e como podem influenciar o imaginário da população ou, até mesmo, as relações de poder inerentes às produções desses materiais. Diante o exposto, o objetivo do presente trabalho foi analisar as representações de cientistas presentes na revista Ciência Hoje das Crianças.

A revista Ciência Hoje das Crianças

Ciência Hoje das Crianças (CHC) surgiu em 1986 e se tornou um marco na consolidação da DC no Brasil, sendo a primeira revista voltada exclusivamente para o público infanto-juvenil. Ao longo dos anos, ganhou notoriedade por sua relevância e qualidade de material, sendo distribuída pelo MEC para mais de 60 mil escolas da rede de educação pública nacional desde 1991 como um recurso educacional a ser usado no ensino de Ciências na Educação Básica (ALMEIDA; GIORDAN, 2014ALMEIDA, S. A.; GIORDAN, M. A revista Ciência Hoje das Crianças no letramento escolar: a retextualização de artigos de divulgação científica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 4, p. 999-1014, 2014. Doi: https://doi.org/jwkn.
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; BORIM; ROCHA, 2018BORIM, D. C. D. E.; ROCHA, M. B. Revista Ciência Hoje das Crianças: uma análise documental sobre lixo, coleta seletiva e reciclagem (2007-2016). Revista Contexto & Educação, Ijuí, RS, v. 33, n. 106, p. 231-253, 2018. Doi: https://doi.org/jwkm.
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; FRAGA; ROSA, 2015FRAGA, F. B. F. F.; ROSA, R. T. D. Microbiologia na revista Ciência Hoje das Crianças: análise de textos de divulgação científica. Ciência & Educação, Bauru, v. 21, n. 1, p. 199-218, 2015. Doi: https://doi.org/jwkh.
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).

Sua publicação, desde a época de seu lançamento, ocorre periodicamente: são onze edições por ano, publicadas mensalmente, com exceção dos meses de janeiro e fevereiro, cuja publicação se dá de forma conjunta. A revista CHC teve uma pausa em sua produção em 2017, que perdurou de abril daquele ano até junho de 2018. Esse hiato foi necessário para que houvesse uma reformulação em toda a revista, com o intuito de trazer uma nova proposta com sua distribuição totalmente on-line e uma reestruturação em seu formato às novas demandas tecnológicas dos anos 2010, com um formato totalmente digital, sendo agora denominada de CHC on-line (INSTITUTO CIÊNCIA HOJE, 2023INSTITUTO CIÊNCIA HOJE. Ciência Hoje: história. [Rio de Janeiro: Instituto Ciência Hoje, 2023]. Disponível em: http://cienciahoje.org.br/instituto/historia. Acesso em: 1 fev. 2022.
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; TEIXEIRA; PEREIRA; STUEBER, 2019TEIXEIRA, M. R. F; PEREIRA, J. C.; STUEBER, K. Alfabetização científica: possibilidades didático-pedagógicas da revista Ciência Hoje das Crianças online. Ensino em Re-vista, Uberlândia, v. 26, n. 2, p. 457-480, 2019. Doi: https://doi.org/jwkw.
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).

A CHC conta com diversas seções que despertam curiosidade e discussões sobre temas científicos em seus leitores, tai como: artigos; experimentos; bate-papo; cartas dos leitores; passatempos; jogos; quando eu crescer eu vou ser, etc., sendo elaborada por cientistas vinculados a instituições de pesquisa e por jornalistas científicos. Além disso, a revista tenta abordar temáticas ecléticas que circundam as áreas das Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ciências Sociais (INSTITUTO CIÊNCIA HOJE, 2023INSTITUTO CIÊNCIA HOJE. Ciência Hoje: história. [Rio de Janeiro: Instituto Ciência Hoje, 2023]. Disponível em: http://cienciahoje.org.br/instituto/historia. Acesso em: 1 fev. 2022.
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).

Percurso metodológico

A abordagem adotada nesta pesquisa é qualitativa, uma vez que visamos a compreensão e explicações dos fenômenos e processos estudados de forma mais descritiva e profunda (GERHARDT; SILVEIRA, 2009GERHARDT, T. E.; SILVEIRA, D. T. Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.). Quanto à sua tipologia, trata-se de uma pesquisa documental, a qual, conforme o autor McCulloch (2004)McCULLOCH, G. Documentary research: in education, history and the social sciences. London: Routledge, 2004., caracteriza-se pela análise de documentos, sejam eles de natureza física ou mesmo eletrônica, de forma a compreender o texto por meio de seu contexto. Para esse mesmo autor, a pesquisa documental é fundamental para a investigação social, pois os documentos são construções histórico-sociais que podem revelar, em suas constituintes, evidências de continuidades e mudanças do período histórico de elaboração, do público alvo, bem como as suas finalidades de elaboração.

Ferreira Filho (2005)FREIRE FILHO, J. Força de expressão: construção, consumo e contestação das representações midiáticas das minorias. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 12, n. 28, p. 18-29, 2005. Doi: https://doi.org/jwkj.
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afirma que as representações, como parte fundamental do processo social de constituição de sentido, são organizadas e reguladas pelos diferentes meios nos quais circulam, colidem e se articulam em um espaço historicamente situado. Sendo assim, para esse autor, existe uma disputa por hegemonia entre grupos sociais dominantes e subordinados para construção ou a supressão de significados, identificações, prazeres e conhecimentos presente nos espaços e mercados midiáticos.

Por intermédio de filmes, ficções seriadas, canções, videoclipes, noticiários, editoriais, artigos, reportagens, entrevistas, depoimentos, testes, dicas, concursos e anúncios, as indústrias da cultura fornecem descrições textuais e visuais daquilo que é conveniente em matéria de personalidade, aparência, conduta moral e cívica, postura política, relacionamento afetivo e comportamento sexual – modelos e recursos simbólicos a partir dos quais os consumidores podem construir o seu senso do que significa ser 'moderno', 'civilizado', 'cidadão', 'vitorioso'; 'atraente', cool, in, fashion... A avaliação que os indivíduos fazem de si mesmo [sic] e de seus interesses, sob o influxo crescente dos referenciais midiáticos, interfere substancialmente, por sua vez, nas demandas políticas que expressam ou deixam de pleitear [...]. (FREIRE FILHO, 2005FREIRE FILHO, J. Força de expressão: construção, consumo e contestação das representações midiáticas das minorias. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 12, n. 28, p. 18-29, 2005. Doi: https://doi.org/jwkj.
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, p. 21).

Caldas (2010)CALDAS, G. Divulgação científica e relações de poder. Informação & Informação, Londrina, v. 15, n. esp, p. 31-42, 2010. Doi: https://doi.org/jwkg.
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pontua que a produção de materiais de DC é permeada por relações de poder que vão desde as tensões sobre quem faz Ciência e quem produz o material, até o conteúdo presente nos materiais que devem ser usados para compartilhar o saber com a sociedade, assumindo um caráter educativo.

Com base nessa concepção, utilizamos como objeto de nosso estudo os textos publicados na revista Ciência Hoje das Crianças.

Ao utilizarmos a revista CHC, constituímos o corpus de análise composto por 24 revistas a partir da realização de um recorte temporal estabelecido, em que foram incluídas as edições que compreendem o período de março de 2016 a abril de 2017, época na qual a revista ainda era impressa, além das edições de junho de 2018 a junho de 2019, época de transição para o formato on-line.

Os textos foram submetidos à análise de conteúdo à luz do referencial teórico-metodológico da autora Bardin (2011). Para esta autora, tal análise diz respeito a uma técnica que objetiva alcançar indicadores e inferências de conhecimentos de produção/ recepção de mensagens por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos, descrições de conteúdos e significados presentes nas mensagens. Segundo Santos (2012)SANTOS, F. M. Análise de conteúdo: a visão de Laurence Bardin. Reveduc, São Carlos, SP, v. 6, n. 1, p. 383-387, 2012. Disponível em: https://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/291. Acesso em: 31 jan. 2023.
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, a análise de conteúdo pode auxiliar nas pesquisas documentais, uma vez que, ao se utilizar dessa análise para documentos, tem-se uma condensação das informações para consulta e armazenamento, que permite inferir sobre a presença de significados em seu conteúdo.

Bardin (2011)BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011. divide a análise de conteúdo em grandes etapas, são elas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Na pré-análise, há a leitura flutuante a fim de estabelecer um maior contato com os documentos. Nesse momento, houve uma leitura exaustiva de todo o material analisado, em que ocorreu a elaboração de índices e indicadores, importantes para as etapas seguintes da análise. Para a identificação destes, utilizamos as palavras: cientista, cientistas, pesquisador, pesquisadores, pesquisadora, pesquisadoras, especialista e especialistas.

A partir da identificação dos índices, partimos para segunda etapa, denominada de exploração do material, que consistiu na construção de categorias de análise e na codificação do material analisado. Para este trabalho, foram estabelecidas três categorias a posteriori, de acordo com o material e o objetivo a ser alcançado, são elas: individualistaelitista, gênero e posição, e origem. Para a construção das categorias, utilizamos os trabalhos desenvolvidos por Cachapuz et al. (2011)CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J.; VILCHES, A. A necessária renovação do ensino de ciências. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011., e Pinheiro (2019)PINHEIRO, B. C. S. Educação em ciências na escola democrática e as relações étnico-raciais. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 19, p. 329-344, 2019. Doi: https://doi.org/gqck.
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. No quadro 1 encontram-se as categorias, suas respectivas descrições, e índices.

Quadro 1
Categorias de análise sobre a representação dos e das cientistas na revista CHC

As categorias elaboradas tiveram como propósito desenhar um panorama sobre as características, formas, lugares e detalhes de como os(as) cientistas estavam representados(as) nas revistas. Por fim, foi realizada a terceira etapa, que se refere à inferência e interpretação dos resultados, com exposição e discussão dos dados obtidos com base no referencial teórico-metodológico pré-estabelecido, o qual será apresentado a seguir.

Os(as) cientistas a partir da revista Ciência Hoje das Crianças

Atualmente, as representações associadas aos (às) cientistas se alinham a uma caracterização estereotipada de um homem branco, heteronormativo, utilizando jaleco branco e, geralmente, artefatos de um laboratório, como, por exemplo, béquer, tubos de ensaio e microscópio, sendo essa uma representação equivocada que reforça mitos da profissão de pesquisador (CACHAPUZ et al., 2011CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J.; VILCHES, A. A necessária renovação do ensino de ciências. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.; PINHEIRO; OLIVEIRA, 2019PINHEIRO, B. C. S.; OLIVEIRA, R. D. V. L. Divulgação... de qual ciência? Diálogos com epistemologias emergentes. In: ROCHA, M. B.; OLIVEIRA, R. D. V. L. Divulgação científica: textos e contextos. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2019. p. 1-11.).

À medida que nos aprofundamos em nossas análises, mais sentidos e significados emergiram da palavra cientista e de suas variantes na revista CHC, haja vista que, ao longo das 24 revistas analisadas, é dada a chance ao público de entender, não somente a respeito da Ciência, suas metodologias, indagações, explicações etc., mas também, se essas publicações contribuem para a construção do imaginário sobre quem a produz, ou seja, a personificação do ser cientista em diferentes prismas. Os resultados foram divididos de acordo com as três categorias propostas e seus exemplos retirados das revistas relacionados a cada uma das categorias. Sendo assim, partimos para a primeira categoria analisada, denominada de individualista-elitista.

Individualista-elitista

Esta categoria traz a representação de cientistas presentes na CHC como pesquisadores que desenvolvem suas pesquisas sozinhos, tidos como seres iluminados, que obtêm resultados bem sucedidos facilmente por serem portadores de uma inteligência quase inalcançável. Segundo Cachapuz et al. (2011)CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J.; VILCHES, A. A necessária renovação do ensino de ciências. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011., essa característica ganha força quando, frequentemente, as produções científicas são apresentadas como uma obra de gênios isolados e ignoram o papel do trabalho coletivo essencial ao se desenvolver pesquisas. Em nossas análises, poucos foram os exemplos encontrados que apresentavam diretamente essa tendência mais individualista, sendo possível observar somente alguns resquícios que podem ser vistos a seguir: Santos-Dumont é para nós, brasileiros, o ‘pai’ da aviação (SANTOS-DUMONT..., 2016SANTOS-DUMONT é para nós, brasileiros, o ‘pai’ da aviação. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 280, 2016., p. 6, grifo nosso).

O termo pai, presente no exemplo, quando associado a uma figura cientista, usualmente denota o sentido de grande inventor, o gênio por trás, e até mesmo, o único provedor daquela área. Essa ideia foi, durante muitas décadas, naturalizada em diversos materiais, tais como os livros didáticos, filmes e desenhos animados, além de ser reforçada pelas grandes mídias. Em todas as áreas, temos exemplos de um autor que é denominado como pai, seja na biologia com Darwin, na matemática com Pitágoras, na química com Lavoisier, na psicologia com Freud, na educação com Piaget. Em todas as áreas, eles estão lá.

Segundo Tomazi et al. (2009)TOMAZI, A. L.; PEREIRA, A. J.; SCHÜLER, C. M.; PISKE, K.; TOMIO, D. O que é e quem faz ciência? Imagens sobre a atividade científica divulgadas em filmes de animação infantil. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 11, n. 2, p. 335-353, 2009. Doi: https://doi.org/jwkx.
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, a apresentação de cientistas calcada em um lugar resguardado a uma minoria especialmente dotada de um saber sobre-humano contribui para uma concepção elitista da Ciência, transmitindo, assim, expectativas negativas com discriminações explícitas de natureza social e de gênero. Diante disso, é importante que se possa pensar em estratégias para reverter essa representação de cientistas para uma concepção que seja mais próxima do real e que demande características mais humanas e humanizadas de uma construção científica (GIL PÉREZ et al., 2001GIL PÉREZ, D.; FERNÁNDEZ MONTORO, I.; CARRASCOSA ALÍS, J.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001. Doi: https://doi.org/gpq6.
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; ZOMPERO, GARCIA; ARRUDA, 2005ZOMPERO, A. F.; GARCIA, M. F. L.; ARRUDA, S. M. Estudo comparativo sobre concepções de ciência e cientista entre alunos do ensino fundamental. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 5., Bauru, 2005. Atas [...]. Bauru: Unesp. 2005.).

Ao levantarmos discussões como essa, não temos o intuito de menosprezar os feitos e contribuições que esses diversos autores e pesquisadores tiveram dentro de suas áreas. De fato, muitos deles quebraram paradigmas e reconstruíram a História da Ciência, entretanto, nossa ideia aqui é refletir que, quando se dá a um pesquisador o título de pai, criador e único, acabamos por, direta ou indiretamente, causar um apagamento das historicidades presentes anteriormente, contribuindo para um entendimento sobre Ciência fragmentado, não cumulativo, distanciando a imagem do cientista da sociedade em geral e, além disso, "[...] esquecendo o papel essencial das hipóteses como focalizadoras da investigação e dos corpos coerentes de teorias disponíveis que orientam todo o processo" (CACHAPUZ et al., 2011CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J.; VILCHES, A. A necessária renovação do ensino de ciências. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 43), uma vez que ele(a) passa a ser visto como um mito inalcançável. Além disso, cabe um adendo como forma de questionamento: onde estavam as mães? Uma vez que somente os homens em sua personificação socialmente aceita ascendem como provedores de uma área, essa temática será melhor discutida na seção a seguir.

Ainda, em alguns momentos, a revista CHC pode trazer a representação de cientistas como seres que não comentem erros. “[...] O governo Brasileiro consultou especialistas franceses que indicaram Oswaldo Cruz, jovem médico brasileiro que havia estudado na França, para cuidador do problema. Foi um sucesso!” (ARAUJO; FERREIRA, 2017ARAUJO, A.; FERREIRA, L. F. Um pouco da sujeira da história. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 288, p. 5, 2017., p. 5, grifo nosso).

No exemplo apresentado acima, tem-se a ideia de que o (a) cientista sempre acerta e que seus inventos ou que suas contribuições são sempre um sucesso. Entretanto, essa não é a realidade, já que, enquanto construção humana, a Ciência é feita a partir de erros também. Essa perspectiva apresentada no exemplo implica diretamente na concepção de linearidade da Ciência em que há um silenciamento de suas contradições, que são importantes e inerentes ao processo da construção do conhecimento científico.

Destacamos que, ao reconhecermos a Ciência como uma atividade essencialmente humana, ela apresenta características intrínsecas ao seu fazer, tais como a não isenção de erros, a possibilidade de dúvidas, redefinições no meio de sua construção, a busca de novas vias etc., que mostram o papel essencial da investigação e da criatividade que vai de encontro a toda ideia de um método rígido e algorítmico (CACHAPUZ et al., 2011CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J.; VILCHES, A. A necessária renovação do ensino de ciências. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.; ENGELMANN, 2017ENGELMANN. G. L. Percepção de cientistas e da história da ciência em livros didáticos de química. 2017. 236 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2017.; GIL PÉREZ et al., 2001GIL PÉREZ, D.; FERNÁNDEZ MONTORO, I.; CARRASCOSA ALÍS, J.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001. Doi: https://doi.org/gpq6.
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; TOMAZI et al., 2009TOMAZI, A. L.; PEREIRA, A. J.; SCHÜLER, C. M.; PISKE, K.; TOMIO, D. O que é e quem faz ciência? Imagens sobre a atividade científica divulgadas em filmes de animação infantil. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 11, n. 2, p. 335-353, 2009. Doi: https://doi.org/jwkx.
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).

Os autores Zompero, Garcia e Arruda (2005)ZOMPERO, A. F.; GARCIA, M. F. L.; ARRUDA, S. M. Estudo comparativo sobre concepções de ciência e cientista entre alunos do ensino fundamental. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 5., Bauru, 2005. Atas [...]. Bauru: Unesp. 2005. apontam a importância de uma visão humanizada sobre os(as) cientistas como iguais a todas as pessoas, uma vez que não consideram o(a) cientista como uma pessoa neutra, alheia à sociedade, mas como uma pessoa comum, um trabalhador(a) como os(as) demais. Não diferente, é importante compreendermos que, ao apresentarmos os(as) pesquisadores(as) com uma ótica mais humanizada, pode haver, em consequência, uma contribuição para desmistificar a ideia de Ciência como atividade para poucos possuidores de uma inteligência anormal ou de hábitos adversos a todos(as). Desse modo, as revistas de DC podem contribuir para que cada vez mais as representações idealizadas na sociedade sejam próximas de uma Ciência real, feita a partir de pesquisadores comuns, que são alcançáveis e possíveis.

Essa representação pode ser vista em nossas análises quando a revista CHC apresenta uma ideia de Ciência colaborativa realizada por meio de diversos pesquisadores que coexistem e oferecem sua ajuda uns aos outros em suas pesquisas. Isso pode ser visto nos exemplos a seguir: “[...] Por isso, de tempos em tempos, cientistas do Brasil inteiro se reúnem para avaliar quais são as espécies em perigo de extinção por aqui” (BEHR; CHAGAS, 2016BEHR, M.; CHAGAS, C. Onde fica o Jalapão? Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 284, p. 18, 2016., p. 18, grifo nosso); “[...] Não é sempre que uma equipe de cientistas se reúne para procurar na floresta um animal. Mas biólogos brasileiros, americanos, mexicanos e venezuelanos estão decididos” (FUKUI, 2016FUKUI, L. T. Quem tem medo de ave de rapina? Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 285, p. 7, 2016., p. 7, grifo nosso); “[...] Nesse evento, vários pesquisadores trocaram informações e discutiram as vantagens da automedicação animal.” (GIANNINI, 2019GIANNINI, A. L. A farmácia natural dos animais. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 296, p.15, 2019. p. 15, grifo nosso).

Percebemos, por meio dos exemplos supracitados, que há uma ideia de uma Ciência feita por meio da reunião de pesquisadores e de forma coletiva. As revistas ainda trazem uma ideia marcante desse apoio internacional feito por meio de várias nações, como México, Austrália, Estados Unidos, França, Venezuela, entre tantos outros, citados durante os diversos textos analisados.

Algo que nos chamou atenção, e pode ser visto nos exemplos, diz respeito à ideia defendida nas revistas de que essa troca e parcerias ocorrem, inclusive, com pesquisadores de áreas diferentes, promovendo uma ideia de união e relação entre as mais diversas áreas, indo de encontro com a visão arcaica de que a Ciência é feita 'em caixinhas separadas', individualizadas. A partir disso, ao contrário, a Ciência pode ser vista como uma teia complexa que possui inter-relações com diversas áreas que se complementam.

Gênero e posição

Esta categoria traz as representações sobre cientistas com base na questão de gênero e abrange também a forma pela qual cientistas estão sendo representados pela posição que ocupam e as atividades desenvolvidas no contexto da representação. De forma geral, foram encontrados em vários momentos a presença de cientistas mulheres nas revistas CHC analisadas. No exemplo a seguir, fica marcado o espaço das cientistas por meio da chamada pelo vocativo do gênero feminino, como uma forma de registrar e garantir um espaço que seja ocupado também por mulheres: "[...] Com seus conhecimentos voltados à solução de crimes, eles (ou elas, porque há mulheres peritas!) pertencem a uma área chamada Ciência forense." (LEIRAS, 2018LEIRAS, T. Quando eu crescer, vou ser perito criminal! Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 292, p. 25, 2018., p. 25, grifo nosso).

Um outro exemplo da demarcação das mulheres como cientistas ocorre por meio das representações imagéticas. Nos exemplos que podem ser observados na figura 1, trazemos algumas das capas que possuem mulheres à frente da investigação.

Figura 1
Imagens retiradas das capas das revistas

Rocha (2007)ROCHA, K. Q. J. S. A subjetividade nas chamadas de capa da Revista Veja. Iniciacom, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 64-72, 2007. Disponível em: https://revistas.intercom.org.br/index.php/iniciacom/article/view/375/367. Acesso em: 31 jan. 2023.
https://revistas.intercom.org.br/index.p...
afirma que a capa é um elemento essencial das revistas, sendo o primeiro contato que o leitor terá com o seu objeto de leitura. Sendo assim, esse elemento se torna crucial para o desenvolvimento da revista, já que ela pode causar o impacto, despertar interesse, gerar expectativa. Outro ponto a ser observado: as capas se tornam parte da identidade visual de uma revista, algo que convida alguém a ler os seus artigos e reportagens. Ter mulheres representadas em suas capas, mesmo quando dividindo espaço com outros personagens, torna-se essencial para que mais meninas e jovens possam se reconhecer e se tornar leitoras de materiais de DC.

Ao longo das revistas analisadas, também foram encontradas representações de mulheres participando ativamente de atividades ligadas ao fazer científico e dividindo espaço com os homens. Entretanto, ao compararmos as representações entre homens e mulheres, há uma diferença exorbitante em que se sobressai a quantidade de representações do gênero masculino sobre o feminino. É importante ressaltar que, se comparados os resultados encontrados nas revistas analisadas das edições impressas publicadas entre os anos de 2016 e 2017, e das revistas on-line publicadas entre os anos de 2018 e 2019, há mais representações de mulheres cientistas nas edições mais recentes.

Resultado parecido foi encontrado por Rosa e Silva (2015)ROSA, K.; SILVA, M. R. G. Feminismos e ensino de ciências: análise de imagens de livros didáticos de física. Revista Gênero, Niterói, v. 16, n. 1, p. 83-104, 2015., que, ao analisarem imagens de livros didáticos de Física, perceberam que há uma maior representação masculina. Acreditamos que esse resultado externa a realidade das grandes mídias de divulgação e deixa entre linhas a superioridade do gênero masculino sobre outros gêneros. Um exemplo pode ser visto na figura 2, que traz um trecho da revista CHC 286, que, ao relatar um pouco sobre a História das Ciência apresenta grandes pesquisadores e inventores a partir da ideia universal de homens brancos ocidentais, o que pode fortalecer uma visão estereotipada de uma Ciência androcêntrica (NUCCI, 2018NUCCI, M. F. Crítica feminista à ciência: das “feministas biólogas” ao caso das “neurofeministas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 1, 2018. Doi: https://doi.org/jwkq.
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).

Figura 2
Charge em que aparecem apenas pesquisadores homens homenageados por seus feitos na Ciência

De acordo com Silva e Ribeiro (2011)SILVA, F. F.; RIBEIRO, P. R. C. Trajetórias de mulheres na ciência: “ser cientista” e “ser mulher”. Ciência & Educação, Bauru, v. 20, n. 2, p. 449-466, 2014. Doi: https://doi.org/gxsz.
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, a maior representatividade de homens nessa categoria pode ser justificada pelo fato de que até o início do século XX a Ciência foi declaradamente uma carreira considerada imprópria para as mulheres. Contudo, assim como Rosa e Silva (2015)ROSA, K.; SILVA, M. R. G. Feminismos e ensino de ciências: análise de imagens de livros didáticos de física. Revista Gênero, Niterói, v. 16, n. 1, p. 83-104, 2015. e Taufer (2009)TAUFER, I. C. B. Representações do livro didático de ciências nos anos iniciais do ensino fundamental. 2009. Trabalho de conclusão de curso (Especialização em Educação, Sexualidade e Relações de Gênero) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009., entre outras pesquisadoras, consideramos que é importante que possamos ponderar que muitas mulheres participaram da produção do conhecimento científico ao longo da história. Sendo assim, atribuir somente aos homens os méritos das descobertas científicas reverbera no modo como pensamos a sociedade dividida entre homens e mulheres, que influencia diretamente a escolha profissional na inclusão e, principalmente, na exclusão de mulheres no meio científico.

Mesmo com as várias conquistas a partir dos movimentos feministas2 2 Existe uma diversidade de ideias, correntes e origens que denotam uma pluralidade para os movimentos feministas. ao longo dos últimos séculos, a carreira da mulher na Ciência, especialmente nas Ciências Naturais e na Matemática, continua sendo apagada e, muitas vezes, silenciadas. Poucos são os exemplos de mulheres representadas na História das Ciências. Fernandez Tuesta et al. (2019)FERNANDEZ TUESTA, E.; DIGIAMPIETRI, L. A.; DELGADO, K. V.; MARTINS, N. F. A. Análise da participação das mulheres na ciência: um estudo de caso da área de ciências exatas e da terra no Brasil. Em Questão, Porto Alegre, v. 25, n. 1, p. 37-62, 2019. Doi: https://doi.org/fqcm.
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analisaram 40 mil doutoras e doutores brasileiros a fim de avaliar a participação de mulheres na área de Ciências Exatas e da Terra no Brasil e concluíram que o número de mulheres nessas áreas é expressivamente menor se comparado ao quantitativo de homens nas mesmas áreas, o que é majoritariamente resultante do silenciamento dessas mulheres históricas.

Na Matemática, área que historicamente afasta as mulheres e é apresentada como pouco diversa, temos Emmy Noether, por exemplo, uma matemática alemã que desenvolveu um teorema pioneiro dando suporte para o desenvolvimento de toda a Álgebra Moderna que conhecemos hoje (ANDRADE; OLIVEIRA, 2020ANDRADE, M. H.; OLIVEIRA, R. R. Amalie Emmy Noether: a presença matemática feminina na história da matemática. BOCEHM: boletim cearense de educação e história da matemática, Fortaleza, v. 7, n. 20, p. 105-116, 2020. Doi: https://doi.org/jwkk.
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; SOUZA; LOGUERCIO, 2021SOUZA, J. B.; LOGUERCIO, R. Q. Fome de quê? A [in] visibilidade de meninas e mulheres interditadas de atuarem na educação das áreas exatas. Ciência & Educação, Bauru, v. 27, p. 1-17, 2021. Doi: https://doi.org/jwkv.
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). Dentre outras mulheres que foram por muito tempo invisibilizadas, temos a física Katherine G. Johnson, a matemática Dorothy Vaughan e a engenheira Mary Jackson, que foram fundamentais para a NASA durante a corrida espacial (Mary Jackson teve o honroso título de primeira mulher engenheira negra da NASA). Não diferente, na Biologia, temos como exemplos Mary Treat, Lydia Becker e muitas outras que auxiliaram na composição da teoria da evolução, a qual muitas vezes só é creditada a Charles Darwin. Na Química, mais recentemente, tivemos o caso da Rosalind Franklin, que foi totalmente descreditada da construção do modelo das estruturas moleculares do DNA e RNA, em que somente James Watson e Francis Crick são apresentados como autores.

O olhar decolonial, ao questionar o projeto moderno, eurocêntrico e ocidentalizante de Ciência, tem se colocado como lente capaz de denunciar e questionar de modo complexo a sofisticação discriminatória das bases epistêmicas na Ciência de forma geral e, também, pode lançar uma atenção aos alicerces discriminatórios nas disputas teóricas feministas que acabam por construir não somente hegemonias, mas silenciamentos, apagamentos. (SANTOS, 2018SANTOS, V. M. Notas desobedientes: decolonialidade e a contribuição para a crítica feminista à ciência. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 30, e200112, p. 1-11, 2018. Doi: https://doi.org/jwkt.
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, p. 2).

Acreditamos que, ao trazer representações de mulheres em materiais de DC, pode-se ratificar a compreensão de que existem mulheres cientistas que contribuem diretamente à produção do conhecimento científico, e esse aumento se mostra bastante válido. Porém concordamos com Rosa e Silva (2015)ROSA, K.; SILVA, M. R. G. Feminismos e ensino de ciências: análise de imagens de livros didáticos de física. Revista Gênero, Niterói, v. 16, n. 1, p. 83-104, 2015. quando elas defendem que uma das reivindicações mais básicas é que mulheres e homens possam ser ilustrados proporcional e igualitariamente em materiais.

Para além do desejo da equidade das representações entre homens e mulheres, é necessário reavaliarmos a forma como as representações estão sendo dispostas nas revistas, uma vez que elas são, sim, de suma importância, mas por si só, não são suficientes. Dessa forma, analisar essas representações se torna fundamental para compreendermos se estas podem contribuir com a desnaturalização do paradigma de gênero como uma construção social.

Partindo desse ponto, esse resultado chama atenção. Já em alguns casos, quando se tem cientistas mulheres representadas por meio de imagens e desenhos, constatou-se algumas características ditas socialmente como femininas, tais como o uso de batom e salto, ou seja, há representações de mulheres a partir de um certo padrão de feminilidade. Esse resultado se mostra peculiar, haja vista que se opõe a uma representação antiquada de um ser cientista, geralmente apresentada como uma caricatura alheia à sociedade. As autoras Silva e Ribeiro (2014)SILVA, F. F.; RIBEIRO, P. R. C. Trajetórias de mulheres na ciência: “ser cientista” e “ser mulher”. Ciência & Educação, Bauru, v. 20, n. 2, p. 449-466, 2014. Doi: https://doi.org/gxsz.
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, ao buscarem analisar a trajetória acadêmica e profissional de mulheres na ciência, perceberam que muitas mulheres, para conseguirem espaço na Ciência e serem consideradas bem-sucedidas na profissão, foram interpeladas pelo modelo masculino.

Mas, em contrapartida, há uma supervalorização do que é socialmente aceito como feminino, às vezes de maneira exagerada e que pode causar um estranhamento na cena retratada por parecer que as pesquisadoras envolvidas não fazem parte do ambiente científico como é possível ser visto na imagem acima (figura 3). Cabe destacar que é controverso que representações de mulheres cientistas ainda tragam, nos dias atuais, essa carga de uma suposta aparência dogmática entranhada em nossa sociedade. Além disso, que essa representação ocorra de modo extremo ou de uma maneira caricata, ou, ainda, a partir de uma feminilidade exacerbada que não compõe a cena. A nossa intenção não é impor uma maneira certa de realizar a representação de mulheres na Ciência, mas buscar uma reflexão do porquê dessa representação ocorrer majoritariamente entre extremos, como um ser alheio a esse universo científico.

Figura 3
Imagens retiradas da revista CHC

Um outro resultado encontrado em nossas análises diz respeito à diferença na posição em que homens e mulheres foram representados ao longo das revistas. Nesses casos, era dada uma maior visibilidade aos cientistas homens que ocupavam um espaço de destaque nas publicações. Nas imagens, isso pôde ser constatado quando as mulheres eram colocadas como pano de fundo ou eram incluídas no espaço inferior da página, como pode ser visto no exemplo a seguir.

Na figura 4, é possível perceber a discrepância referente ao tamanho e localização das representações entre os gêneros. Para a mulher, isso ocorre de maneira quase despercebida no canto menor da folha, enquanto que para o homem a representação toma conta de uma lauda inteira. Se os dois são primatólogos, por que não poderiam estar juntos ou interagindo? Notamos também que nas representações há uma diferença, já que quando o homem é apresentado realizando seus estudos, isso ocorre de maneira descontraída, e é projetado um ar aventureiro em seus instrumentos de trabalho e vestimenta. No entanto, isso não ocorre na representação feminina, que, ao invés disso, pode emitir um semblante de cuidadora.

Figura 4
Imagens retiradas da revista CHC

As autoras Almeida e Lima (2016)ALMEIDA, S. A.; LIMA, M E. C. C. Cientistas em revista: Einstein, Darwin e Marie Curie na Ciência Hoje das Crianças. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p. 29-47, 2016. Doi: https://doi.org/jwkp.
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, ao analisarem as representações dos(as) cientistas Einstein, Darwin e Marie Curie na revista CHC, destacaram que, enquanto os dois pesquisadores tinham edições especiais que discorriam amplamente sobre sua vida, infância e conquistas acadêmicas, Marie Curie não ganhou tanta visibilidade. Mesmo tendo uma edição exclusiva para si, ela ainda era tratada como pano de fundo. Os textos continham enfoque diferente, nos quais se valorizava a imagem da mulher e mãe que cuida de suas filhas, transbordando para o estereótipo da cientista do bem. Um detalhe importante: seu marido aparece constantemente como colaborador em suas pesquisas. Para essas autoras, a revista CHC “[...] evoca a presença da mulher na Ciência, mas sem destaque” (ALMEIDA; LIMA, 2016ALMEIDA, S. A.; LIMA, M E. C. C. Cientistas em revista: Einstein, Darwin e Marie Curie na Ciência Hoje das Crianças. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p. 29-47, 2016. Doi: https://doi.org/jwkp.
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, p. 42).

Como já apontado, quando cientistas homens e cientistas mulheres são representadas de forma equivocada e trazendo diferenças tão discrepantes, tal representação pode gerar um desconforto perceptível aos olhos das meninas e mulheres leitoras das revistas, dando a entender que aquele não é um campo convidativo, podendo afastá-las cada vez mais (ANDRADE; OLIVEIRA, 2020ANDRADE, M. H.; OLIVEIRA, R. R. Amalie Emmy Noether: a presença matemática feminina na história da matemática. BOCEHM: boletim cearense de educação e história da matemática, Fortaleza, v. 7, n. 20, p. 105-116, 2020. Doi: https://doi.org/jwkk.
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; FERNANDEZ TUESTA et al., 2019FERNANDEZ TUESTA, E.; DIGIAMPIETRI, L. A.; DELGADO, K. V.; MARTINS, N. F. A. Análise da participação das mulheres na ciência: um estudo de caso da área de ciências exatas e da terra no Brasil. Em Questão, Porto Alegre, v. 25, n. 1, p. 37-62, 2019. Doi: https://doi.org/fqcm.
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). Por essa razão, representações que sejam mais equitativas podem agir como forma de combater as desigualdades de gênero tão presentes em nossa sociedade, e que ainda hoje têm seus traços marcados nas Ciências.

Origem dos(as) cientistas

Esta categoria diz respeito à representação das origens dos(as) cientistas na revista CHC. Essa categoria se mostra de grande relevância quando levamos em consideração que a Ciência, historicamente, teve sua origem reconhecida no continente Europeu, tendo sido negados todos os saberes produzidos por povos ancestrais não europeus e anteriores às civilizações europeias, tais como povos asiáticos, ameríndios e africanos, mas que foram fundamentais para a estruturação do conhecimento como o conhecemos hoje (PINHEIRO, 2019PINHEIRO, B. C. S. Educação em ciências na escola democrática e as relações étnico-raciais. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 19, p. 329-344, 2019. Doi: https://doi.org/gqck.
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; PINHEIRO; OLIVEIRA, 2019PINHEIRO, B. C. S.; OLIVEIRA, R. D. V. L. Divulgação... de qual ciência? Diálogos com epistemologias emergentes. In: ROCHA, M. B.; OLIVEIRA, R. D. V. L. Divulgação científica: textos e contextos. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2019. p. 1-11.).

Predominantemente, a revista CHC evidencia os(as) cientistas que possuem descendências grega e romana, e revalida os velhos estereótipos sobre a epistemologia das Ciências ao supervalorizar cientistas advindos unicamente do continente europeu.

Por cerca de 200 anos, a biblioteca Alexandria foi a maior referência de cultura do mundo. Lá estavam as obras dos matemáticos gregosos mesmo que deram origem à disciplina que estudamos até hoje – com seus teoremas e cálculos. Foi lá também que Eratóstenes, importante cientista da história, que era geógrafo e matemático, foi capaz de calcular o diâmetro” [...] Por tudo isso, a Biblioteca de Alexandria foi, segundo um dos maiores historiadores do mundo, o grego Heródoto: ‘Mais uma dádiva do Nilo preciosa e inigualável’! (FUNARI, 2017FUNARI, R. S. A maior biblioteca do mundo. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 286, p. 4-5, 2017., p. 4-5, grifo nosso).

Nos exemplos citados acima, podemos perceber que há uma valorização dos(as) cientistas que possuem origem na Grécia, sempre destacados pela sua importância e magnitude. Essa atitude traz à tona todas as marcas deixadas durante o processo de colonização e que estão até hoje presentes e impostas na cultura ocidental. Nos exemplos, Alexandria é citada como sendo o maior espaço de produção de conhecimento do mundo, contudo, sua própria localização não é levada em consideração, o que só serve de palco para que pesquisadores gregos recebam certa glorificação em detrimento dos saberes de outros que já estavam sendo sistematizados muito tempo antes pelas civilizações mais antigas.

A respeito disso, os autores Pinheiro e Oliveira (2019)PINHEIRO, B. C. S.; OLIVEIRA, R. D. V. L. Divulgação... de qual ciência? Diálogos com epistemologias emergentes. In: ROCHA, M. B.; OLIVEIRA, R. D. V. L. Divulgação científica: textos e contextos. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2019. p. 1-11. problematizam sobre qual Ciência estamos divulgando, uma vez que uma das vertentes da DC é a democratização dos saberes. Esses autores abrem os questionamentos:

Há democracia em uma Ciência que não dialoga com saberes oriundos de povos tradicionais? [...] Há democracia quando europeus usurpam saberes do continente africano e voltam para o 'berço do mundo': publicando esses conhecimentos como se fossem seus e sem referenciá-los? (PINHEIRO; OLIVEIRA, 2019PINHEIRO, B. C. S.; OLIVEIRA, R. D. V. L. Divulgação... de qual ciência? Diálogos com epistemologias emergentes. In: ROCHA, M. B.; OLIVEIRA, R. D. V. L. Divulgação científica: textos e contextos. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2019. p. 1-11., p. 3).

Para que haja uma DC mais justa e que dê conta de representar os(as) Cientistas de modo mais real, é sumário que suas origens e as origens do conhecimento produzido também sejam representadas de uma maneira mais justa e que contraponha um modelo atual de esterilidades de saberes que são advindos de outros lugares que não somente a Europa.

Muitos países do território africano tiveram uma grande contribuição para que as áreas da Física, Química, Medicina, Matemática etc. fossem compreendidas como são hoje, isso pelo menos mil anos antes da civilização grega. Ou seja, muito tempo antes de até mesmo existir a Grécia, já se tinha naquele território uma produção intelectual e filosófica muito bem sistematizada e sólida, mas que sofreu um processo de apagamento de suas histórias (DANTAS; SILVA, 2016DANTAS, L. T. F.; SILVA, R. J. O estatuto ontológico e epistemológico africano em Towa e Obenga. Revista da ABPN, Goiânia, v. 8, n. 20, p. 39-56, 2016.; PINHEIRO, 2019PINHEIRO, B. C. S. Educação em ciências na escola democrática e as relações étnico-raciais. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 19, p. 329-344, 2019. Doi: https://doi.org/gqck.
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; VERRANGIA, 2013VERRANGIA, D. A formação de professores de ciências e biologia e os conhecimentos tradicionais de matriz africana e afro-brasileira. Magis: revista internacional de investigación en educación, Bogotá, v. 6, n. 12, p. 105-117, 2013.).

Em nossas análises, percebemos que há uma tentativa da revista, mesmo que tímida, de colocar em voga os saberes advindos de cientistas de outros lugares, algo que ocorre, principalmente, na revista online, e que são levados em consideração e ressaltados como igualmente importantes para a construção da Ciência.

Foi um dos maiores cientistas brasileiros do século 18 e é considerado um dos nossos primeiros químicos (KRAUSE, 2019KRAUSE, P. Gente da nossa história: Vicente! Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 300, 2019., p. 19, grifo nosso).

Como os conhecimentos científicos dos africanos ajudaram na mineração? [...] Pouca gente sabe que muitos homens e mulheres trazidos da África para serem escravizados no Brasil também foram aproveitados em atividades em que eram aplicados seus diferentes conhecimentos tecnológicos. Um exemplo disso é o conhecimento da extração e transformação do cobre e do ferro. Na África, os grupos que dominavam essas técnicas faziam parte de uma cultura de especialistas. (CAMPOS, 2019CAMPOS, G. Quero saber... como os conhecimentos científicos dos africanos ajudaram na mineração? Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, n. 300, 2019., p. 26).

Trazer exemplos de cientistas brasileiros é importante para um primeiro passo de valorização da carreira acadêmica no Brasil, que apresenta grandes dificuldades, mas também coloca o local de origem como sendo possível para produção de saberes científicos feitos por nós, que também merecem respeito e podem ser vistos como resistência no nosso país. Nos exemplos, são citados conhecimentos científicos produzidos por negros e negras escravizados, e isto se mostra bastante simbólico, uma vez que, durante séculos no Brasil, o processo de escravidão foi tratado com menor importância; os negros escravizados forçados ao trabalho tinham suas identidades, trajetórias e histórias retiradas, e eles(as) eram consagrados(as) somente o título de escravo dado a partir do ponto de visto do colonizador (SANTOS JUNIOR, 2010SANTOS JUNIOR, R. N. Afrocentricidade e educação: os princípios gerais para um currículo afrocentrado. Revista África e Africanidades, Brasil, v. 3, n. 11, p. 1-16, 2010.; VERRANGIA, 2013VERRANGIA, D. A formação de professores de ciências e biologia e os conhecimentos tradicionais de matriz africana e afro-brasileira. Magis: revista internacional de investigación en educación, Bogotá, v. 6, n. 12, p. 105-117, 2013.). Trazer exemplos como esses na revista significa começar um movimento de mudança de reconhecimento não só das crueldades cometidas naquela época e que são perpetuadas até os dias atuais, mas também de retomada identitária e diaspórica, além de ser um pontapé inicial para que outras epistemologias ganhem mais visibilidade.

Considerações finais

A revista CHC apresenta uma importância didático-pedagógica para o ensino de Ciências, e como artefato midiático cultural contribui diretamente para a construção do imaginário sobre cientistas para quem a lê. A partir de nossas análises, percebemos que, em relação à representação dos(as) cientistas, a revista CHC aponta uma dualidade, já que ainda traz exemplos elitistas e individualistas, que podem contribuir para uma visão da Ciência feita, exclusivamente, por homens brancos dotados de um saber inato que os tornam geniais. Porém, em outros momentos, apresenta a Ciência essencialmente como uma atividade coletiva que proporciona pontes entre os saberes que são construídos.

Sobre a representação de mulheres cientistas, esse resultado se mostra importante quando levamos em consideração as lutas travadas por mais equidade de gênero no espaço científico e na academia. Foi possível inferir que a revista começa a caminhar para um ganho importante na luta da causa, ao trazer maior representatividade feminina, contudo, esclarecemos que há um caminho longo a ser percorrido, visto que muitas das representações nas revistas analisadas ainda são de homens. Ademais, em muitos exemplos analisados, há a apresentação de mulheres como pano de fundo ou em uma posição inferior à do homem.

Ainda sobre as representações de cientistas, a CHC trouxe, predominantemente, exemplos de cientistas que tiveram sua origem na Europa ou que de lá descenderam, o que pode acarretar em uma revalidação de estereótipos sobre a epistemologia das Ciências, esterilizando outros conhecimentos científicos e silenciando pesquisadores que tiveram suas origens diversas. Essas características presentes nas revistas podem levar ao leitor que consome esse produto uma falsa ideia de quem produz Ciência a partir de uma imagem estigmatizada. Também cabe apontarmos que essas contradições estão mais evidenciadas em exemplos das revistas impressas do que nas edições mais atuais da revista em seu formato online, algo que pode indicar uma leve mudança na postura sobre temas emergentes.

Por fim, é importante destacar que as análises aqui apresentadas são um recorte temporal e não equivalem à totalidade da revista CHC. Além disso, não houve a intencionalidade de hierarquizar as representações sobre cientistas baseados em um papel dicotômico entre mais e menos importante, mas sim a sua pluralidade de sentidos que emerge da diversidade de significados e imagens vigentes, na qual a sociedade está inserida e, assim, apontar novos caminhos possíveis para que se tenha cada vez mais representações em materiais midiáticos que possam concatenar com a realidade presente no dia a dia.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão de bolsa do mestrado para a primeira autora e pelo apoio financeiro – código de financiamento 1. À Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) pelo financiamento do projeto de pesquisa.

  • 1
    Doravante, faremos uso da sigla DC sempre que estivermos falando de Divulgação Científica.
  • 2
    Existe uma diversidade de ideias, correntes e origens que denotam uma pluralidade para os movimentos feministas.

Referências

  • ALMEIDA, S. A.; LIMA, M E. C. C. Cientistas em revista: Einstein, Darwin e Marie Curie na Ciência Hoje das Crianças. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p. 29-47, 2016. Doi: https://doi.org/jwkp
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  • ALMEIDA, S. A.; GIORDAN, M. A revista Ciência Hoje das Crianças no letramento escolar: a retextualização de artigos de divulgação científica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 4, p. 999-1014, 2014. Doi: https://doi.org/jwkn
    » https://doi.org/jwkn
  • ANDRADE, M. H.; OLIVEIRA, R. R. Amalie Emmy Noether: a presença matemática feminina na história da matemática. BOCEHM: boletim cearense de educação e história da matemática, Fortaleza, v. 7, n. 20, p. 105-116, 2020. Doi: https://doi.org/jwkk
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2022
  • Aceito
    08 Ago 2022
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