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A revista Ciência Hoje das Crianças e o encaminhamento para carreiras científicas: uma análise do cronotopo da seção “Eu li, eu leio”

The magazine Ciência Hoje das Crianças and the route to scientific careers: an analysis of the chronotope of the section “I have read, I read”

Resumo:

Neste artigo, analisamos a seção “Eu li, eu leio” da revista Ciência Hoje das Crianças valendo-nos dos conceitos de gênero discursivo e cronotopo de Bakhtin. Trata-se de uma seção comemorativa dos 30 anos da revista que publicou 22 histórias de leitores atuais e de ex-leitores ao longo de 2016. Consideramos o gênero discursivo de divulgação científica e sua variante para crianças como referências para identificar as variantes do gênero discursivo dessa seção, em particular, que mescla o formato de “Carta do Leitor” com a apresentação de trajetórias de sucesso profissional ou forte relação com a Ciência. A relação de interdependência tempo-espaço, analisada a partir do conceito de cronotopia, evidenciou as principais marcas da trajetória desses leitores, bem como os aspectos axiológicos implícitos da revista e o estereótipo do cientista e da relação com a Ciência.

Palavras-chave:
Divulgação científica; Gênero discursivo; Cronotopia; Ensino de Ciências

Abstract:

This study explores the section “I have read, I read” in Ciência Hoje das Crianças (Children’s Science Today) magazine through Bakhtin’s concepts of discursive genre and chronotope. It is a 30-year commemorative section that, throughout 2016, published 22 stories of current and former readers. We consider the discursive genre of science dissemination and its variant for children as references to identify the variants of the discourse genre of this section, in particular that which merges the “Reader’s Letter” format with the presentation of professional success or strong relation with science trajectories. The interdependence relationship of time-space, analyzed through the concept of chronotopy, showed the main marks of the trajectory of these readers, as well as the implicit axiological aspects of the magazine, and the stereotype of the scientist and the relationship with science.

Keywords:
Science dissemination; Discourse gender; Chronotope; Science teaching

A revista Ciência Hoje das Crianças (CHC) comemorou 30 anos de existência em 2016. Ela é uma revista de divulgação cientifica para crianças produzida pelo Instituto Ciência Hoje, uma organização sem fins lucrativos, vinculada à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A revista aborda em suas edições temas multidisciplinares relacionados às ciências humanas, exatas e biológicas. Até 2011, a CHC era distribuída gratuitamente para mais de 60 mil escolas públicas no Brasil (ALMEIDA; LIMA, 2016ALMEIDA, S. A.; LIMA, M. E. C. C. Cientistas em revista: Einstein, Darwin e Marie Curie na Ciência Hoje das Crianças. Ensaio, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p. 29-27, 2016. DOI: https:/doi.org/10.1590/1983-21172016180202.
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). No estado de São Paulo as revistas passaram a ser citadas no material dos alunos e do professor (SÃO PAULO, 2010SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Ler e escrever: guia de planejamento e orientação didática: professor - 4º ano (3ª série). 3. ed. São Paulo: FDE, 2010.) e seus textos estão presentes em avaliações como o SARESP. Essa inserção estimulou o uso dos conteúdos apresentados pela revista para trabalhar a linguagem ou conteúdos de Ciências.

Na área de pesquisa em Educação em Ciências, é possível encontrar estudos e relatos de experiências com a CHC que remontam às origens da revista. A tese de Sousa (2000)SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. analisou a produção da CHC entre 1986 e 1998 quanto ao trabalho editorial, mediante análises documentais e entrevistas, e quanto à leitura de seus textos por crianças assinantes. Destaca-se que a autora, Guaracira Gouvêa Sousa, foi editora da revista entre 1986 e 1994. A tese de Celinski (2014)CELINSKI, G. M. Revista Ciência Hoje das crianças: um estudo sobre potencialidades e fragilidades educativas da comunicação da ciência no âmbito escolar. 2014. 169 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014. avalia as potencialidades e fragilidades educativas da revista no contexto escolar, considerando as avaliações dos professores quanto à CHC. A tese de Almeida (2011)ALMEIDA, S. A. Interações e práticas de letramento mediadas pela revista Ciência Hoje das Crianças em sala de aula. 2011. 268 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., que também foi publicada na forma de artigos (ALMEIDA; GIORDAN, 2014ALMEIDA, S. A.; GIORDAN, M. A revista Ciência Hoje das Crianças no letramento escolar: a retextualização de artigos de divulgação científica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 4, p. 999-1014, 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/s1517-97022014041219.
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, 2016), analisa a revista CHC em comparação com outras publicações de Divulgação Científica (DC) para o público infantil e acompanha o desenvolvimento de uma sequência de aulas conduzidas por uma professora de Ensino Fundamental envolvendo o uso da revista pelos estudantes.

O artigo de Fraga e Rosa (2015)FRAGA, F. B. F. F.; ROSA, R. T. D. Microbiologia na revista Ciência Hoje das Crianças: análise de textos de divulgação científica. Ciência & Educação, Bauru, v. 21, n. 1, p. 199-218, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/1516-731320150010013.
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analisa 12 textos sobre micro-organismos publicados na CHC em diversas seções como “por que” e “você sabia” entre 2005 e 2014, com o intuito de comparar o discurso de DC voltado para os adultos com o destinado ao público infantil. O artigo de Silva, Pimentel e Terrazzan (2011)SILVA, L. L.; PIMENTEL, N. L.; TERRAZAN, E. As analogias na revista de divulgação científica Ciência Hoje das Crianças. Ciência & Educação, Bauru, v. 17, n. 1, p. 163-181, 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-73132011000100011.
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analisa a presença de analogias na revista visando avaliar a sua potencialidade para a representação de conceitos, imagens e ideias apresentados. O artigo de Rocha e Massarani (2016)ROCHA, M.; MASSARANI, L. Divulgação científica na internet: um estudo de caso de comentários feitos por leitores em textos da Ciência Hoje das Crianças online. Alexandria, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 207-233, 2016. analisa 351 comentários de crianças publicados em 14 textos de 2013 no site da revista CHC Online e identifica as visões positivas das crianças acerca da revista, a interatividade proporcionada pelos textos, o uso da revista pela escola e pelos professores, e as dificuldades de escrita do público infantil. Destacamos que Luisa Massarani foi editora da CHC entre 1987 e 1999 e, em 2016, recebeu o Prêmio José Reis de DC por seu trabalho como pesquisadora e escritora. Citamos, ainda, o relato da experiência de Andréa e Goldbach (2012)ANDRÉA, B. R.; GOLDBACH, T. Materiais de apoio para educação infantil e séries iniciais envolvendo a temática sobre o corpo humano: o caso da revista Ciência Hoje das Crianças. In: ENCONTRO NACIONAL DE ENSINO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE E DO AMBIENTE, 3., 2012, Niterói. Anais [...]. Niterói: Eneciências, 2012. que a concebem como um material de apoio para educação infantil e séries iniciais envolvendo o corpo humano como temática.

Por fim, destacamos o livro de Zamboni (2001)ZAMBONI, L. M. S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Autores Associados, 2001., adotado como referencial teórico em várias pesquisas encontradas sobre a CHC, que analisa o discurso da DC caracterizando-o como um discurso próprio e compara o texto da Ciência Hoje com o da CHC para identificar as especificidades do discurso de DC voltado para crianças. Em linhas gerais, apesar da diversidade de metodologias de coleta e análise de dados, percebemos que a maioria dos trabalhos empíricos ou documentais que analisam a natureza do discurso científico presente em seus textos, tem como pressuposto o potencial da revista para uso em sala de aula e para o ensino de conteúdos específicos.

Neste trabalho, ao nos unirmos aos autores concentrados na análise da revista, focamos outra dimensão dos seus textos e adotamos um referencial teórico ausente nos estudos citados anteriormente. Em comemoração aos 30 anos da revista a seção “Eu li, eu leio” foi publicada ao longo de 2016 trazendo relatos de ex-leitores e leitores atuais sobre sua relação com a CHC e seu encaminhamento profissional. Assim, analisamos essa seção considerando a especificidade desse gênero discursivo e o papel do cronotopo nessas narrativas, partindo de fundamentos bakhtinianos.

A revista Ciência Hoje das Crianças e a seção “Eu li, eu leio”

Segundo Sousa (2000, p. 226)SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. , a CHC teve um primeiro esboço em 1984, mas só foi publicada em 1986, a partir de levantamentos sobre esse formato de revista e um trabalho de “convencimento do conselho [da SBPC] sobre a pertinência de se fazer uma revista para crianças”, quando a preocupação maior era com os adolescentes. A CHC surgiu como um encarte da revista Ciência Hoje e atingiu um sucesso maior do que o esperado pelo conselho editorial (SOUSA, 2000SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. ). Segundo a autora, nesse início a revista passou por várias avaliações pelos leitores e por professores que apontaram para a adequação e a pertinência do formato e dos temas da revista, o que indica sua boa receptividade. A consequência desse resultado foi a ampliação da publicação, de 8 para 24 páginas, e a criação da seção de cartas “com a finalidade de publicar a correspondência enviada pelas crianças, englobando opiniões, sugestões de temas para artigos, experiências, perguntas, jogos, histórias, adivinhas etc.” (SOUSA, 2000SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. , p. 228). A pesquisadora relata que o trabalho de uma comissão nomeada pela SBPC e de quatro seminários internos levou à criação de um conselho editorial próprio, em 1989, e a independência da revista em relação à Ciência Hoje, em 1990. Nesse contexto, Sousa (2000)SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. destaca que foi estabelecida a parceria com o Ministério da Educação para a compra de 50 mil exemplares da revista para o projeto Sala de Leitura. Para Sousa (2000)SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. , essa parceria possibilitou o desenvolvimento de pesquisas, entre 1994 e 1995, junto aos professores que enfatizaram a boa receptividade, a diversidade na forma de inserção da revista em sala de aula e o papel da revista como um elemento inovador e motivador do ensino. Em 1998, uma nova pesquisa com os leitores indicou que

[...] as crianças consideram a linguagem dos textos de fácil compreensão e que preferem matérias sobre bichos e jogos. [...] Os resultados das pesquisas realizadas confirmam a característica inicial da revista de não ser um material didático, embora se mantenha em constante diálogo com a escola. A revista vem mantendo atualmente o seu papel de apoio às pesquisas e aos estudos escolares, mas dirige-se ao seu público em casa, nas bibliotecas, guardando portanto autonomia com relação ao currículo escolar. (SOUSA, 2000SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. , p. 231)

Além disso, Sousa (2000, p. 238)SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. se apoia em outros autores para reforçar o perfil dos leitores previsto pela linha editorial: “crianças de 6 a 13 anos e professores [...] faixa etária dos 9 aos 13 anos, que enviam cartas principalmente do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.” A autora também destaca o apoio que a revista recebeu da SBPC ao longo dessa trajetória e descreve brevemente o processo de produção de seus textos, com destaque para a participação autoral de cientistas.

Os artigos científicos são enviados espontaneamente ou encomendados pela equipe. Durante a elaboração dos 35 primeiros números (8 anos), mesmo que a matéria fosse produzida a partir de uma entrevista ou de uma consulta a artigos, a matéria era assinada pelo pesquisador, fonte daquela informação. Nesse sentido, pode-se dizer que a produção da revista significou um desafio para os pesquisadores brasileiros que se incorporaram ao projeto. Depois, paulatinamente, algumas matérias passaram a ser produzidas e assinadas por jornalistas. A frequência atual é de uma ou duas matérias científicas assinadas por jornalistas por número. (SOUSA, 2000SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. , p. 75)

Ao longo dos anos, a CHC também publicou diversos subprodutos como livros, séries de TV e, principalmente, o site da revista. Em 1997, Sousa (2000)SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. cita um conjunto de objetivos pretendidos pela revista - mencionados no documento Ciência Hoje das Crianças - encartes especiais sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências, elaborado por Angela Maria Ramalho Vianna, como aproximar pesquisadores e cientistas das crianças, apresentar o processo histórico e permanente de construção da Ciência, enfatizar a importância da pesquisa na sociedade, despertar a curiosidade da criança, potencializar a interdisciplinaridade na escola, divulgar a produção científica e a cultura nacional. Segundo o site da CHC, identificamos que o objetivo atual é “despertar a curiosidade de meninos e meninas como você. Queremos mostrar que a ciência pode ser divertida e que está presente na vida de todos nós”3 3 Essas informações sobre a revista estão disponíveis em: http://chc.org.br/sobre-a-chc/. Acesso em: 10 out. 2019. . Além disso, o site destaca que a revista recebeu do CNPq o Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica. Segundo essa organização4 4 Disponível em: http://premios.cnpq.br/web/pjr/premiados. Acesso em: 10 out. 2019. , a revista foi premiada em 1991 com a seguinte justificativa: “Por se tratar de uma produção bem cuidada e destinada especificamente às crianças, entre as quais está obtendo grande aceitação”.

Embora tenha passado por diversas mudanças na sua estrutura interna ao longo dos 30 anos de existência, atualmente a revista CHC é composta de diversas seções com características marcantes e caráter permanente ou temporário. A seção “Quando crescer, vou ser...”, por exemplo, apresenta diferentes profissões, usando sempre um especialista da área como referência, que além de fazer um breve relato de sua trajetória acadêmica apresenta os motivos que o levaram a escolher determinada área. Costuma ocupar duas páginas com texto, dividido em colunas, e ilustrações abordando a profissão discutida, representando uma criança atuando na carreira, no local do trabalho do cientista e com seu objeto de estudo. Outro exemplo é a seção “Experimentos”, que ocupa geralmente uma página, e aborda experimentos simples, de diferentes áreas como a Biologia, a Física e a Química, apresentando e interpretando fenômenos do cotidiano das crianças. O texto é organizado em colunas, apresentando inicialmente o contexto do experimento e sua aplicação na realidade, listando em seguida os materiais necessários para realizá-lo, o seu modo de preparo e a descrição do resultado final esperado. As duas seções exemplificadas estão presentes em várias edições da revista que consultamos, podendo ser consideradas seções permanentes.

Além dessas, a seção “Cartas”, criada em 1988 (SOUSA, 2000SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. ), também é permanente e representa um espaço para publicação de textos dos leitores para a revista. Os textos são curtos, indicam o interesse da criança por um dos temas publicados, e contêm indicação da edição e, eventualmente, desenhos enviados pelos leitores junto com suas cartas. Esse gênero discursivo, comum em várias publicações periódicas, é trabalhado com frequência no Ensino Fundamental. Em pesquisa sobre a presença da revista em salas de aula de Ciências de uma cidade do interior do Estado de São Paulo esse foi um dos gêneros mais citados pelos professores em trabalhos desenvolvidos a partir da revista (BIASON, MASSI, 2017BIASON, R.; MASSI, L. Inserção e uso da revista Ciência Hoje das Crianças nos anos iniciais: um levantamento nas escolas públicas do município de Araraquara. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISAS EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 11., 2017, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: Abrapec, 2017.), provavelmente em função da recomendação do currículo do Estado (SÃO PAULO, 2010SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. ).

A coordenação da EM4 [Escola Municipal 4] informou, ainda, que os alunos escreviam e enviavam cartas para a revista “sobre alguma coisa que tenham lido, alguma reportagem ou pedindo a publicação de alguma coisa do interesse deles”, por sugestão de um dos alunos o envio foi por e-mail e eles acompanhavam para ver se era publicado até que o envio foi descontinuado. (BIASON, MASSI, 2017BIASON, R.; MASSI, L. Inserção e uso da revista Ciência Hoje das Crianças nos anos iniciais: um levantamento nas escolas públicas do município de Araraquara. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISAS EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 11., 2017, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: Abrapec, 2017., p. 7).

Em comemoração aos 30 anos de existência da revista CHC foi criada a seção “Eu li, eu leio” apresentada ao lado da seção “Cartas”, substituindo temporariamente a seção “Como funciona”. Segundo o editorial da primeira edição de 2016, a comemoração dos 30 anos da revista seria feita ao longo de todo o ano, principalmente “remexendo nosso baú”, recuperando temas anteriores e por meio da seção “Eu li, eu leio” (A REDAÇÃO, 2016aA REDAÇÃO. Editorial. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, ano 29, n. 275, p. 1, jan./fev. 2016a.).

[...] em ritmo de comemoração, abrimos um espaço novo ao lado da seção de cartas para narrar experiências de ex e atuais leitores da revista. Você vai conhecer histórias pra lá de interessantes de quem teve a CHC como valiosa aliada na carreira escolhida e acompanhar as declarações de quem não desgruda da revista! Quer participar desta seção? Manda um e-mail pra gente com o título “Eu leio”. (A REDAÇÃO, 2016aA REDAÇÃO. Editorial. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, ano 29, n. 275, p. 1, jan./fev. 2016a., p. 1).

Essa nova seção traz relatos de ex-leitores, geralmente adultos, sobre sua experiência como leitores quando eram crianças e como a revista influenciou suas escolhas de profissão. Há também relatos de leitores crianças e sua relação atual com a revista. Esses textos são dispostos na última página da publicação. Além do texto, é feita uma breve apresentação do remetente, com o nome, profissão (no caso do ex-leitor), idade, cidade e uma foto.

O objetivo deste trabalho é caracterizar a seção “Eu li, eu leio” e analisar a relação dos leitores com a revista e suas trajetórias de encaminhamento para carreiras científicas. Esse objetivo parte do pressuposto de que, apesar de adotar algumas características da seção de cartas, entendemos que a seção “Eu li, eu leio” apresenta especificidades que definem uma variedade do gênero de cartas do leitor e de DC, marcado principalmente pelo cronotopo, e que essas marcas configuram o conteúdo da seção. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental, pautada nas 11 edições da seção “Eu li, eu leio”, contendo um total de 22 textos publicados ao longo do ano de 2016 na revista CHC. Esse corpus foi analisado de acordo com a perspectiva bakhtiniana quanto ao gênero discursivo, seus elementos constitutivos (conteúdo, estilo e forma) e o conceito de cronotopo. Temos como hipótese que essa seção busca influenciar a escolha das profissões (o que eu fui quando lia, o que eu sou quando leio, o que eu quero ser quando vou ler), na medida em que se observa a presença de determinadas vozes (ex-leitores adultos e atuais leitores crianças) em posição assimétrica. Além disso, conjecturamos uma tentativa de influenciar a formação de opinião como fruto da política editorial da revista.

O cronotopo e suas relações com o gênero discursivo

Bakhtin (2002)BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002. propôs a noção de cronotopo inspirado em Einstein e na definição do tempo como a quarta dimensão do espaço. Tarvi (2015, p. 194)TARVI, L. Cronotopo e metáfora como modos de combinação contextual espaço-temporal: o princípio da relatividade na literatura. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 193-208, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320664.
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analisa o cronotopo na Física e na Literatura, estabelecendo relações que partem da constatação de que a proposição do “princípio da relatividade” é fruto de um contexto de “transição de analística do átomo para o holismo”. Nesse mesmo sentido, Machado (2017, p. 89)MACHADO, I. Forma espacial da personagem como acontecimento estético cronotopicamente configurado. Bakhtiniana, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 79-105, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457331736.
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afirma que “Bakhtin abre o diálogo conceitual com questões filosófico-científicas que abrem o século 20” ao propor o conceito de cronotopo guiado pela seguinte questão: “como o espaço vivencia o tempo?”. Machado (2017)MACHADO, I. Forma espacial da personagem como acontecimento estético cronotopicamente configurado. Bakhtiniana, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 79-105, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457331736.
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reforça essa inspiração científica ao explicar que Bakhtin adotou o termo cronotopo após ouvir o pronunciamento de um diretor de um laboratório experimental de Leningrado sobre sua teoria da atividade nervosa integrada ao corpo, em uma conferência em 1925.

O cronotopo se refere à relação de interdependência entre tempo e espaço em uma obra literária (BAKHTIN, 2002BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002.). Assim, da mesma forma que só podemos afirmar que um objeto existe delimitando, além das suas dimensões (comprimento, volume, altura), seu tempo de acontecimento, o cronotopo destaca o papel do tempo como o fio condutor da Literatura na relação tempo-espaço. Se a combinação tempo-espaço foi revolucionária na Física, na Literatura o cronotopo se mantém em torno das “re-apresentações da realidade física”, desafiando “generalizações no nível das representações” (TARVI, 2015TARVI, L. Cronotopo e metáfora como modos de combinação contextual espaço-temporal: o princípio da relatividade na literatura. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 193-208, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320664.
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, p. 194, 195, grifo do autor). Ainda no que se refere a essa comparação entre Física e Literatura, Tarvi (2015, p. 195)TARVI, L. Cronotopo e metáfora como modos de combinação contextual espaço-temporal: o princípio da relatividade na literatura. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 193-208, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320664.
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afirma que o gesto de Bakhtin foi ousado, pois na Física existem 11 dimensões espaciais e uma temporal, enquanto na Literatura existem “marcadores espaciais tridimensionais” e “camadas de tempo” que nem sempre seguem um padrão cronológico.

Segundo Tarvi (2015)TARVI, L. Cronotopo e metáfora como modos de combinação contextual espaço-temporal: o princípio da relatividade na literatura. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 193-208, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320664.
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, ao introduzir o cronotopo no romance, localizando o herói em uma matriz organizacional de espaço, Bakhtin complexificou a tarefa de inter-relacionar as dimensões temporais e espaciais dos protagonistas. O termo científico original que inspirou Bakhtin fazia referência a um “sistema de sistemas” (MACHADO, 2017MACHADO, I. Forma espacial da personagem como acontecimento estético cronotopicamente configurado. Bakhtiniana, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 79-105, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457331736.
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, p. 90), o que pode explicar essa complexificação analítica. O papel dos cronotopos é central para o enredo, pois para Bakhtin (2002, p. 355)BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002. “[...] eles são os centros organizadores dos principais acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo que os nós do enredo são feitos e desfeitos. Pode-se dizer francamente que a eles pertence o significado principal gerador do enredo”.

Em outras palavras, “o cronotopo funciona como organizador narrativo dos lugares e tempos que os sujeitos ocupam em sua própria história, seja personagem ou pessoa real” (MACÊDO; VIEIRA, 2015MACÊDO, G. F. C.; VIEIRA, N. M. A experiência da unidade espaço-tempo na literatura e na psicologia. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 119-136, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320791.
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, p. 129).

Além de sua importância para o enredo, Bakhtin (2002, p. 212)BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002. considera que o cronotopo “tem significado fundamental para os gêneros na Literatura”, pois determina o gênero e as variedades do gênero. Tarvi (2015)TARVI, L. Cronotopo e metáfora como modos de combinação contextual espaço-temporal: o princípio da relatividade na literatura. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 193-208, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320664.
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destaca que Bakhtin adotou com sucesso essa noção para analisar gêneros literários como tipologicamente cronotopos estáveis. Além disso, ela ressalta a identificação de um cronotopo do escritor (e não apenas do gênero) empreendida por Bakhtin na análise de Flaubert e Dostoiévski. Lembramos então a clássica definição de gênero discursivo proposta por Bakhtin (2011, p. 262, grifo do autor)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.:

[...] cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica [em] um determinado campo.

No texto “Formas do tempo e cronotopo no romance”, Bakhtin (2002)BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002. desenvolve a análise do conceito de cronotopo em diferentes tipos de romances em função do seu cronotopo característico, como o romance de aventuras ou provações (romance grego) e seu cronotopo abstrato e estático; o romance de aventuras e de costumes com um cronotopo articulado aos modelos hagiográficos de metamorfose da vida de pecado em crise, redenção e santidade; os romances biográficos e autobiográficos com um cronotopo real (crítico-político) apresentado em praça pública. A análise da obra Dom Quixote exemplifica de modo mais claro o papel do cronotopo e destaca a possibilidade de cruzamentos de gêneros literários: “é característico o cruzamento paródico do cronotopo do ‘mundo estrangeiro maravilhoso’ dos romances de cavalaria com a ‘grande estrada do mundo familiar’ do romance picaresco” (BAKHTIN, 2002BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002., p. 280). Madeira (2010, p. 64)MADEIRA, W. M. Cronotopo: figuração da forma ficcional de Saramago. Bakhtiniana, São Paulo, n. 4, p. 63-75, 2010. ressalta, ainda, que o cronotopo “irradia juízos de valor numa obra literária”, acrescentando um elemento axiológico na análise. Por fim, para Bakhtin (2002, p. 349)BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002. o cronotopo determina a “unidade artística de uma obra literária no que diz respeito a sua realidade efetiva”, só podendo ser “isolado do conjunto do cronotopo literário”, portanto, numa análise abstrata, como a que ele realiza (BAKHTIN, 2002BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002., p. 349).

Pelo fato do cronotopo estar fortemente articulado ao gênero discursivo, passamos a discutir algumas características do gênero de DC. Cunha e Giordan (2015)CUNHA, M. B.; GIORDAN, G. A divulgação científica na sala de aula. In: CUNHA, M. B.; GIORDAN, G. (org.). Divulgação científica na sala de aula. Ijuí: Ed. Unijuí, 2015. p. 67-85. defendem que a DC se constitui em um gênero próprio de discurso de acordo com o conceito de Bakhtin. Para caracterizá-lo os autores destacam a relação entre o discurso científico e o discurso de DC sobre Ciência e Tecnologia, marcado por um apagamento do autor e pela presença do cientista que dá credibilidade aos fatos narrados. Considerando os elementos constitutivos do gênero, segundo Bakhtin (2014)BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., eles definem os seguintes aspectos que compõem esse gênero: quanto ao conteúdo temático discute sobre o tema único, concreto e histórico da Ciência e Tecnologia; quanto ao estilo empregam-se metáforas, analogias, comparações, exemplificações e outros recursos lexicais que caracterizam o estilo do texto de DC; quanto à forma composicional os textos de DC estabelecem relações dialógicas entre leitor e interlocutor por meio de procedimentos variados, como recuperação de conhecimentos tácitos, conclusão no início do texto, entre outros.

Ao analisar a revista CHC em comparação com a Ciência Hoje, destinada a adultos, Zamboni (2001, p. 125)ZAMBONI, L. M. S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Autores Associados, 2001. destacou que “a popularização para crianças conta uma estória, em boxes coloridos e fartamente ilustrados”. Além disso, ela observou recursos estilísticos adotados na revista como o suspense na apresentação das estórias, o uso de conjunções subordinativas e partículas de ligação sintática que aproximam da linguagem cotidiana, além de maior didatismo quando comparada à DC voltada para adultos. Almeida (2011)ALMEIDA, S. A. Interações e práticas de letramento mediadas pela revista Ciência Hoje das Crianças em sala de aula. 2011. 268 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. também analisou a CHC em comparação com outras revistas de DC para o público infantil destacando os seguintes pontos: a utilização de temas científicos em todas as edições; artigos produzidos por pesquisadores com as fontes citadas ao longo do texto; utilização de desenhos que contribuem com a informação científica do texto, além da presença de fotografias científicas; imagem do cientista associada à curiosidade infantil; experimentos; dentre outros aspectos. Diante das análises de Zamboni (2001) e Almeida (2011), entendemos que a DC para crianças constitui uma variação do gênero do Discurso de Divulgação Científica (DDC).

Não encontramos estudos que investiguem diretamente a relação entre o cronotopo, como um caracterizador do gênero discursivo, e o DDC, pois, recuperando as características apresentadas, fica claro que os textos de DC não costumam estar ancorados nesses marcadores espaciais e temporais, ao contrário dos romances analisados por Bakhtin. Apesar disso, como será discutido posteriormente neste artigo, na seção “Eu li, eu leio” o papel dos crono-marcadores, que evidenciam a dimensão temporal da narrativa, e dos topo-marcadores, que evidenciam a dimensão espacial da narrativa, foi fundamental para que pudéssemos captar a especificidade dessa seção que se revelou uma variação do gênero da DC. As noções de crono-detalhes e de topo-detalhes complementam a discussão do cronotopo, materializando suas marcas nos textos acerca dos detalhes das informações sobre o tempo e o espaço. Ou seja, se os crono-marcadores e os topo-marcadores remetem a uma referência mais genérica sobre as dimensões temporais e espaciais do texto, os crono-detalhes e os topo-detalhes, além de materializar, particularizam e especificam essas dimensões. Além deles, a noção de estereótipo também ajuda a caracterizar o cronotopo pois revela uma forma do autor-cronotopo que se apresenta implícita e indireta na narrativa, mas que organiza a relação tempo-espaço em torno uma certa unidade e de um sentido comum do texto. Esse conjunto de elementos, que serão discutidos com mais profundidade nas seções seguintes, de modo articulado aos dados analisados neste artigo, nos ajudaram a identificar as marcas do cronotopo da seção “Eu li, eu leio” que contribuem para a própria caracterização dessa variante do gênero do DDC.

A seção “Eu li, eu leio” como uma variante do gênero discursivo de divulgação científica para crianças

Para sistematizar a análise dos 11 textos publicados na seção “Eu li, eu leio” organizamos, inicialmente, uma análise geral dos elementos constitutivos dessa variante do gênero de DC dos artigos visando apresentar seu conteúdo de forma concisa. Nesse sentido, apresentamos dois exemplos da seção “Eu li, eu leio” em que destacamos a estrutura geral do texto.

Como podemos observar na comparação dos dois textos e na análise do conjunto dos artigos publicados na seção, a estrutura geral oferece os seguintes conteúdos: apresentação do leitor, explicação sobre como ele teve contato com a revista, relato sobre o interesse por Ciências e pela revista e, em outras edições, uma projeção de futuro dos leitores. O estilo dos textos repete padrões gerais da DC para crianças, como a linguagem próxima do público infantil, a colocação de questões e a comunicação com o leitor presumido da revista e com o leitor do “Eu li, eu leio”. A forma composicional revela uma mescla entre a seção Cartas, com falas dos leitores que escreveram para a revista e inserções e edições da redação para contar uma história com estrutura e conteúdo padronizados. Essa mescla se compõe por discursos diretos e indiretos, que estabelecem diálogos entre os leitores e deles com a revista. Além disso, a autoria da redação se mostra no texto pela indicação de seções específicas às quais os leitores se referem. Essa forma nos parece um elemento importante de análise, pois a proximidade estilística e composicional com a seção “Cartas” e os discursos diretos produzem um efeito de apagamento da redação. Ressaltamos que essas variações do gênero, de divulgação científica e divulgação científica para crianças, são coerentes com a perspectiva bakhtiniana, pois “o gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da Literatura e em cada obra individual em um dado gênero” (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013., p. 121).

Especificamente, nesses dois exemplos da Figura 1, destacamos as relações com a família e a escola envolvendo a revista, ressaltando que é por meio dos pais que elas conhecem a revista que passa a ajudar as leitoras em trabalhos escolares. Além disso, a curiosidade é um valor marcante nas duas histórias, acompanhada de uma adoração ou paixão por temas específicos ou pela descoberta de novidades: Helena tinha curiosidade pelas profissões enfocadas pela revista e, em função da revista, escolheu uma profissão que a permitisse satisfazer sua paixão por descobrir novidades; Nina é apresentada como curiosa desde a primeira frase do texto e se sente atraída por temas da revista que despertam seu interesse e adoração.

Figura 1
Textos da seção “Eu li, eu leio” publicados na edição 279

Além desses pontos comuns destacamos que o leitor da seção “Eu li” sempre tem mais idade do que o da seção “Eu leio”, portanto seus textos são mais longos revelando uma relação mais prolongada com a revista, além de apresentarem no final um conselho ou uma recomendação para os leitores atuais, de modo direto ou indireto, como no caso de Helena. Eventualmente também encontramos nos textos mensagens da redação direcionadas aos leitores apresentados na seção ou ao leitor presumido do texto. No caso desse exemplo, a redação da revista afirma que “Torcemos por você, Helena!” referindo-se aos seus projetos de futuro. Como comentamos, as projeções de futuro, outra marca frequente da seção “Eu li”, também são apresentadas de diversas formas ao longo do ano de 2016.

Diante desse resultado mais amplo, destacamos alguns temas e mensagens veiculados pela revista. Os principais temas da seção são as projeções de futuro que articulam o passado e o presente dos leitores, muitas vezes ditadas pela relação com a revista. A maioria dos leitores da “Eu li” são cientistas e alguns residem no exterior e a segunda profissão mais recorrente é a de jornalista, área que também se articula diretamente à revista. Nesses projetos de futuro parece que a redação privilegia carreiras promissoras e profissões consagradas, ao destacar os cientistas que atuam no exterior, a importância de seus trabalhos e a atuação dos jornalistas. Assim, a seção deixa subentendido algumas mensagens como a de que a revista ajuda a formular e concretizar projetos de futuro, sendo sua leitura fundamental para crianças que desejam futuro promissor, pois ler a revista contribui para alcançar esse futuro. Nesses aspectos centrais do gênero da seção destacamos o papel do cronotopo, evidenciado pela projeção de futuro e pelo deslocamento do espaço que marcam as histórias dos ex-leitores e estimulam os leitores atuais. Essa discussão será aprofundada na próxima seção do texto.

Outro conjunto de temas e mensagens se refere à relação da revista com a família e a escola, pois há destaque para a influência dos pais, da escola e dos professores no acesso à revista, uma vez que sua leitura ajuda nos trabalhos escolares. De modo mais amplo, observa-se grande valorização da leitura e da curiosidade. Para as crianças, destaca-se o fato de essa leitura ser sempre prazerosa, divertida, descontraída, mas também formativa. Por fim, é dado destaque para o leitor assinante, que tem o privilégio de não perder a matéria e ler com frequência, e para o leitor cativo, que mantém sua relação com a revista na infância, na adolescência e na vida adulta. Novamente aqui as relações entre o tempo de leitura da revista e o espaço familiar se revelam como fundamentais para sua caracterização.

O cronotopo da seção “Eu li, eu leio”

Visando aprofundar nossa análise adotamos o conceito de cronotopo por analogia (VILLANI et al., 1997VILLANI, A.; BAROLLI, E.; CABRAL, T. C. B.; FAGUNDES, M. B.; YAMAZAKI, S. C. Filosofia da ciência, história da ciência e psicanálise: analogias para o ensino de ciências. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 37-55, 1997.) para analisar a seção “Eu li, eu leio” da CHC. Referimo-nos à analogia, pois o conceito foi pensado para obras literárias, portanto estabeleceremos algumas comparações com a definição de Bakhtin para compreender melhor a estrutura, o enredo e o significado temático dessa seção. Justificamos essa extrapolação, pelo fato de que, mesmo na Literatura, não há homogeneidade no cronotopo, que varia em função do gênero literário e do autor, como explicitado anteriormente. Ele demanda uma análise que considere fatores intra e extratextuais, pois pode variar em função da experiência tempo-espaço no texto, dos marcadores históricos e sociais em cada contexto, da língua, do tempo e de seu gênero literário (MACÊDO, VIEIRA, 2015MACÊDO, G. F. C.; VIEIRA, N. M. A experiência da unidade espaço-tempo na literatura e na psicologia. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 119-136, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320791.
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). A adoção desse conceito se deu por entendermos que essa seção apresenta uma variedade específica do gênero do DDC para crianças, discutido anteriormente.

Como destacamos na estrutura geral da seção, todos os textos são escritos a partir de uma relação passado-presente-futuro com a revista, evidenciada a partir de crono-marcadores, como a duração do tempo e a idade dos leitores, que se dão em espaços familiares, escolares ou profissionais, entendidos como topo-marcadores. Assim, percebemos que o enredo dessa seção, sobre a relação de leitores com a revista, é marcado por uma interdependência tempo-espaço. Toda a história se constrói a partir do tempo dos acontecimentos em que diferentes relações com a revista se estabelecem seja no espaço familiar, no escolar ou no profissional. Não fica evidente a concepção de tempo da revista, embora mereça destaque as marcações temporais cronológicas, o tempo padrão dos 30 anos de existência da publicação que delimitam o intervalo das narrativas, e o crono-marcador das edições da revista, cuja numeração progressiva (quase atingindo 300 números publicados) orienta o leitor como um crono-detalhe próprio dessa variação de gênero discursivo. Os topo-marcadores são as bibliotecas das escolas, as casas das crianças, os trabalhos dos pais, os países onde os adultos moram em função das carreiras científicas escolhidas, um fã clube, entre outros.

Essa estrutura padrão sofre variações, no nível do crono-detalhe e do topo-detalhe, na forma de apresentação do tempo e do espaço, mas repete o cronotopo padrão dessa variante do gênero do DDC em todos os artigos analisados. É importante destacar que esses crono-marcadores e topo-marcadores nem sempre estão indicados diretamente no texto, podendo funcionar como metáforas (MACHADO, 2017MACHADO, I. Forma espacial da personagem como acontecimento estético cronotopicamente configurado. Bakhtiniana, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 79-105, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457331736.
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; TARVI, 2015TARVI, L. Cronotopo e metáfora como modos de combinação contextual espaço-temporal: o princípio da relatividade na literatura. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 193-208, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320664.
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).

Nessa abordagem, tempo e espaço são vistos não apenas como dimensões metonímicas (baseados na contiguidade) e metafóricas (baseados na analogia), mas essas dimensões propriamente ditas são vistas como metonímica e metaforicamente interconectadas. [...] Bakhtin, ao descrever o ‘cronotopo da estrada’, por vezes usa indistintamente o termo ‘metáfora da estrada’ [...] Portanto, a noção exata de cronotopo como cronoi e topoi inter-relacionadas pode ser expressa via uma metáfora conceitual totalmente reversível - Tempo é Espaço/Espaço é Tempo. (TARVI, 2015TARVI, L. Cronotopo e metáfora como modos de combinação contextual espaço-temporal: o princípio da relatividade na literatura. Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 193-208, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2176-457320664.
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, p. 196-197).

Além desses níveis de análise, adotamos o conceito de estereótipo, visando identificar a percepção do leitor-cientista que está implícita na revista. Para Madeira (2010, p. 66)MADEIRA, W. M. Cronotopo: figuração da forma ficcional de Saramago. Bakhtiniana, São Paulo, n. 4, p. 63-75, 2010. o estereótipo é uma espécie de autor-cronotopo, pois ele “configura o que é fixo, o sentido comum, a descrição típica e convencional do nível do pensamento ou no da expressão”. Ele ainda afirma que a autoria do estereótipo é “quase sempre anônima, um saber de tudo e de todos em que a cronotopia é intrinsecamente condição discursiva” (MADEIRA, 2010MADEIRA, W. M. Cronotopo: figuração da forma ficcional de Saramago. Bakhtiniana, São Paulo, n. 4, p. 63-75, 2010., p. 67). Assim, buscamos identificar no texto qual seria o estereótipo do cientista, uma vez que a revista retrata implicitamente essas trajetórias de encaminhamento ou uma forte relação com a Ciência. Reconhecendo os resultados da vasta literatura da área sobre o tema (FINSON, 2002FINSON, K. D. Drawing a scientist: what we do and do not know after fifty years of drawings. School Science and Mathematics, Hoboken, v. 102, n. 7, p. 335-345, 2002. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1949-8594.2002.tb18217.x.
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), consideramos flagrante o conjunto de características atribuídas aos leitores que parecem coincidir com um perfil esperado ou o senso comum do que seria o cientista: analisamos todos os valores e traços da personalidade dos leitores e ex-leitores da revista e, considerando os 22 textos publicados em 2016, contabilizamos um total de 14 referências à curiosidade, 13 ao gosto pelo estudo (leitura, Ciência, conhecimento em geral) e 5 menções ao amor pela natureza e pelos animais. Entendemos que a projeção de um futuro promissor, transpassada pela revista e pela Ciência/conhecimento, também participa desse estereótipo.

Passamos a discutir então a análise de dois textos da edição de agosto de 2016 (Figura 2) e outros dois textos (Figuras 3 e 4), de julho e março de 2016, que ilustram os crono-marcadores, topo-marcadores e estereótipo dessa seção.

Figura 2
Seção “Eu li, eu leio” da edição 281
Figura 3
Seção “Eu li, eu leio”, parte “Eu li”, da edição 280
Figura 4
Seção “Eu li, eu leio”, parte “Eu leio”, da edição 276

Escolhemos esse exemplo da subseção “Eu li” para ilustrar o papel do cronotopo nessa seção, por apresentar quantidade significativa de marcações temporais. Destacamos que a vida de Mariana é marcada pela revista em diferentes momentos que, independentemente do tempo transcorrido, permanecem em sua memória. Como a maioria dos leitores, ela conheceu a revista no espaço escolar, em função de um trabalho solicitado pelo professor de Ciências. Ao relatar esse primeiro contato, ocorrido há 20 anos, ela se lembra de detalhes do conteúdo e das imagens da reportagem consultada para o trabalho. A escolha de sua profissão também foi marcada pela revista, pois ela trabalha como jornalista. Todo o texto é contado a partir de marcações temporais, ou crono-marcadores, como “há mais de 20 anos”, “seu tempo de leitora”, “ainda hoje”, “hoje com 36 anos”. Ao final uma referência ao presente e ao futuro dos “novos leitores” é indicada por meio de um “recado”.

Assim como destacado na análise anterior encontramos na subseção “Eu leio” os crono-marcadores temporais e cronológicos do tempo de relação com a revista e a idade da leitora. A vida de Camila parece marcada pela relação com a revista, já que a partir de sua curiosidade e iniciativa ela pediu aos pais que fizessem a assinatura da CHC e se manteve como leitora mesmo depois do fim da infância - supostamente uma audiência presumida da revista. Destacamos que Camila é uma das leitoras mais velhas apresentadas na subseção. Os crono-marcadores presentes são: “há sete anos”, “quando ela tinha apenas nove anos” e “Hoje, aos 16 anos”. Quanto aos topo-marcadores, percebemos que Camila repete a relação com a revista construída no espaço familiar e no escolar e se refere ao “mundo que chamamos de casa” para justificar seu gosto pelo conhecimento. A seção também destaca a cidade de origem da leitora, como forma de topo-marcador. Além disso, o texto é finalizado com um recado para as crianças, o que costuma se observar apenas na parte “Eu li” dessa seção. A revista aponta, por meio do discurso direto, para o auge do que poderia ser considerado um futuro promissor para seu leitor, ao imaginar que ele poderia ser presidente do Brasil. Fica implícito que Camila tem características e preocupações que poderiam levá-la à presidência ou que seria possível que alguém ocupando o cargo de presidente seja um ex-leitor da CHC ou, ainda, que a revista seria capaz de contribuir para que uma criança possa alcançar essa posição. Além dessas interpretações, no nível do texto destacamos a informação de que Camila pretendia seguir carreira militar e que isso poderia ser alcançado por meio de “muito estudo”, o que coincide com sua recomendação aos leitores de CHC para se tornarem presidente do Brasil. Assim, a carreira militar e a presidência seriam alcançadas pelo mesmo caminho: a dedicação ao estudo.

Outro exemplo de futuro promissor e bastante recorrente nos exemplos de ex-leitores da revista, representado por um topo-marcador, pode ser ilustrado com a história de Esperança de Lacerda Peixoto, publicada em julho de 2016.

Esperança tem uma história de sucesso, marcada desde sua foto que remete a uma beca de formatura, até a indicação de que ela mora no exterior, onde foi estudar Ciências da Educação. O topo-marcador Coimbra, Portugal, representa o despontar de um futuro de sucesso que parece ter sido alcançado também graças ao interesse pela revista, apresentado por meio de crono-marcadores, desde a publicação de seu “número zero”, que esteve presente sua “infância inteirinha” e permanece até hoje. Além de Coimbra, Esperança morou no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, outros topo-marcadores de sua história, marcada por várias viagens. Merece destaque a relação próxima que ela mantém com a revista, por ter sido assinante desde o primeiro número e ter sido entrevistada anteriormente pela revista, no aniversário dos 20 anos. Ao participar da comemoração dos 30 anos, Esperança indica que estará presente na celebração dos 40 anos, apontando para um crono-marcador futuro, diretamente relacionado à longevidade da revista. Além desses marcadores, fica implícito o estereótipo do cientista que é curioso, busca sempre aprender mais e tem valores humanitários.

Depreendemos da análise que o leitor típico da seção “Eu leio” é uma criança, com idade média de 10 anos, que ainda frequenta a escola e têm essa relação marcada pela revista ou que sofre influência e incentivo de sua família para estreitar a relação com a CHC. Um exemplo é a história de Mariana Oliveira Elias, apresentada em março de 2016.

A relação de Mariana com a revista é evidenciada, principalmente, pelo topo-marcador “sua casa”. Ela conta que a revista “enche a casa de alegria” quando chega e, no nível do topo-detalhe, afirma que “na sala de TV da sua casa há muitas revistas espalhadas para escolher”. A história de Mariana também conta com os crono-marcadores “tem 7 anos”, “é leitora da revista há um ano” e “quando crescer”. Ela se refere à edição 269, sete números anteriores à publicação de seu texto, publicada, portanto, há mais de um ano, pelo fato de ter trazido orquídeas na capa. A foto destaca o interesse da criança pela revista e sua coleção, mostrando mais de um exemplar. Mariana também afirma ter um projeto de futuro, que podemos considerar como promissor e relativamente próximo dos temas científicos, ao manifestar seu desejo de se tornar médica.

Entendemos que essa marcação explícita do cronotopo nos textos dessa seção representam seu significado figurativo, como descrito por Bakhtin (2002)BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002.. Para ele, o cronotopo serve para “relatar, informar o fato” ou “dar informações precisas sobre o lugar e tempo de sua realização”, uma vez que ele condensa e concretiza espacialmente os índices do tempo (de vida humana, histórico) em regiões definidas do espaço (BAKHTIN, 2002BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002.). O autor chega a afirmar que os significados se constroem a partir do cronotopo e que “qualquer intervenção na esfera dos significados só se realiza por meio da porta dos cronotopos” (BAKHTIN, 2002BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec : Annablume, 2002., p. 362). Assim, entendemos que os significados construídos na seção “Eu li, eu leio” sobre os vínculos as relações dos leitores com a revista se pautam nessas relações de interdependência tempo-espaço apresentadas como possíveis pela redação da revista ao estruturar os textos no padrão descrito nesta análise. Além disso, destacamos que o cronotopo dessa seção cumpre um papel axiológico fundamental ao explicitar os valores da Ciência e de trajetórias consideradas de sucesso, fundamentalmente marcados pela curiosidade e pelo gosto pela leitura, pelos animais e pela natureza.

Implicações da análise da seção “Eu li, eu leio”

Desde a sua criação a revista CHC tem como objetivo contribuir para o interesse e aprendizagem das Ciências de forma complementar à escola. Ao longo de seus 30 anos, a revista publicou material de boa qualidade científica e despertou interesse de muitas crianças e professores, sendo destacada pelas pesquisas da área como um material detentor de diversas qualidades almejadas para o ensino de Ciências. Na comemoração dos 30 anos, em 2016, criou-se uma seção para trazer histórias de leitores e ex-leitores, chamada “Eu li, eu leio”, que foi objeto de análise deste artigo.

Nessa seção, além das características do gênero discursivo de DC para o público infantil, o seu cronotopo específico constrói uma história de relações com a revista e a Ciência marcada pela interdependência tempo-espaço, representando uma variação desse gênero discursivo. Os crono-marcadores e topo-marcadores se repetem em espaços familiares, escolares e profissionais e tempos de vida, de contato com a revista, de suas publicações e tempos futuros. Essas projeções de futuro são evidenciadas nos textos que apontam para um caminho promissor do leitor da revista, implicitamente decorrente da leitura da CHC. Além disso, identificamos um estereótipo do cientista marcado pela curiosidade, pelo gosto pelo estudo/conhecimento e pelo gosto pela natureza/animais.

Por intermédio deste trabalho foi possível perceber a fertilidade do conceito de cronotopo para análise de materiais de DC, pois ele nos permitiu identificar os principais elementos axiológicos e caracterizar uma variante específica desse gênero discursivo. Além disso, pudemos caracterizar o discurso de divulgação científica na revista e os desdobramentos da Ciência na sociedade em geral, em uma perspectiva salvacionista ou humanitarista. Esses resultados concordam com o trabalho de Almeida e Lima (2016)ALMEIDA, S. A.; LIMA, M. E. C. C. Cientistas em revista: Einstein, Darwin e Marie Curie na Ciência Hoje das Crianças. Ensaio, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p. 29-27, 2016. DOI: https:/doi.org/10.1590/1983-21172016180202.
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que denunciou a chancela editorial que veicula uma imagem de cientista como curioso e aventureiro e uma visão estereotipada do cientista como alguém que, desde a infância, já se anunciava cientista. Considerando a abrangência e a visibilidade da publicação objeto desta pesquisa, entendemos que haveria necessidade de revisão desses aspectos, retomando os objetivos da revista apresentados em 1997, que envolviam uma preocupação maior com a visão de Ciência veiculada (SOUSA, 2000SOUSA, G. G. A divulgação científica para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. 2000. 305 f. Tese (Doutorado em Química Biológica) - Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. ). Esse destaque se refere principalmente à leitura que a criança faz da revista sem a intervenção escolar. Quanto à sua inserção na escola, assim como outros autores já destacaram (ALMEIDA, GIORDAN, 2016ALMEIDA, S. A.; GIORDAN, M. Appropriation of the gender of science communication by children: fragments of a journey. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 16, n. 3, p. 799-823, 2016.; BIASON, MASSI, 2017BIASON, R.; MASSI, L. Inserção e uso da revista Ciência Hoje das Crianças nos anos iniciais: um levantamento nas escolas públicas do município de Araraquara. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISAS EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 11., 2017, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: Abrapec, 2017.; SILVA; PIMENTEL, TERRAZAN, 2011SILVA, L. L.; PIMENTEL, N. L.; TERRAZAN, E. As analogias na revista de divulgação científica Ciência Hoje das Crianças. Ciência & Educação, Bauru, v. 17, n. 1, p. 163-181, 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-73132011000100011.
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), nossos resultados reforçam a importância de uma formação crítica do professor para analisar e trabalhar com esse tipo de recurso nas suas aulas de Ciências. De modo mais amplo, entendemos que esse resultado endossa o coro de diversos autores que têm investigado o uso de materiais alternativos e, principalmente, da DC, no ensino de Ciências e alertam para o cuidado epistemológico e pedagógico que deve acompanhar as ações de ensino e de pesquisa na área de Educação em Ciências com qualquer material didático, evitando tratá-lo como uma panaceia.

Agradecimentos

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo fomento aos projetos financiados (Processos 302834/2015-0 e 426177/2018-5) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelo fomento ao Projeto de Auxílio à Pesquisa Regular (2016/09700-3).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2018
  • Aceito
    17 Abr 2019
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