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Discutindo a objetividade na pesquisa em educação em ciências

Discussing objectivity in science education research

Resumos

Este trabalho apresenta e discute procedimentos teórico-metodológicos utilizados no desenvolvimento de uma pesquisa, que narrou a experiência vivenciada por um grupo de formadores, e os processos de significação acerca da expressão ensino por investigação no contexto de um curso de especialização. Apresentaremos as condições a partir das quais se deu o levantamento dos dados analisados e os cuidados metodológicos que fomos levados a adotar em função da duplicidade de papéis que assumimos ao atuarmos tanto como pesquisadores quanto como formadores e sujeitos da pesquisa. Apresentaremos algumas ideias-chave da teoria das enunciações de Bakhtin e seu círculo, que serviram de base para as análises dos dados produzidos. Caminhamos pelas enunciações dos sujeitos da pesquisa nos espaços coletivos do grupo, nas entrevistas que realizamos com eles e no conjunto dos textos escritos como suporte ao curso, procurando preservar a articulação entre o que se diz e o modo como se diz.

Teoria da enunciação; Pesquisa; Objetividade; Pensamento narrativo


This work presents the theoretical-methodological procedures used to develop a study to recount the shared experience of a group of teaching trainers and trainees and the processes of meaning related to this study in the context of a specialization program. We present the conditions from which the analyzed data and methodological approach were taken, as a function of the duplication of roles that we undertook as researchers as well as instructors and as subjects of research. We present some key ideas contained in Bakhtin's theory, which serve as a basis for the analysis of the data produced. We followed the enunciations of the members of the group in their collective and collaborative spaces, in interviews we conducted with them and in the set of writing teaching materials produced for the program, attempting to preserve the articulation between what was said and how it was said.

Theory of utterances; Research; Objectivity; Narrative thought


Introdução

Neste trabalho apresentamos e discutimos as opções teórico-metodológicas utilizadas para analisar os dados gerados a partir das enunciações de um grupo de formadores no contexto de um curso de especialização, conhecido como Especialização em Ensino de Ciências por Investigação (ENCI).

O ENCI é um curso a distância ofertado pelo Centro de Ensino de Ciências e Matemática de Minas Gerais (CECIMIG)4 4 O Cecimig é um órgão complementar da Faculdade de Educação da UFMG, com longa experiência na educação continuada de professores, seja por meio de oferta de cursos de especialização presencial e a distância, seja por meio dos vários projetos de extensão realizados ao longo de sua história. . Esse curso atende professores da área de ciências da natureza, das disciplinas Física, Química e Biologia de nível Médio e de Ciências de nível Fundamental, e apresenta um caráter interdisciplinar. A equipe responsável pela sua primeira edição constituiuse de: quatro professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entre eles atuantes no curso técnico e nos cursos de licenciatura; um pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico Nuclear (CDTN) e nove tutores, sendo: uma professora aposentada do Colégio Técnico da UFMG; além de professores da Rede pública de Belo Horizonte e alunos do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação e do Instituto de Ciências Biológicas (ICB/UFMG). A primeira autora deste artigo foi uma das tutoras dessa equipe que acompanhou uma das turmas e os outros dois autores fizeram parte da equipe de coordenadores, sendo, portanto, os três autores, pesquisadores e, também, sujeitos desta pesquisa.

Para fazer essa discussão, apresentaremos o contexto em que se desenvolveu a pesquisa e nossa reflexão acerca dos problemas e do referencial teórico que deram origem à proposta metodológica utilizada para estruturar as hipóteses que sustentaram nossas questões de pesquisa. Ao situarmos as condições a partir das quais se deu o levantamento dos dados analisados, apresentaremos os cuidados teórico-metodológicos que fomos levados a adotar em função da duplicidade de papéis que assumimos ao atuarmos tanto como pesquisadores quanto como formadores e sujeitos da pesquisa.

A pesquisa que desenvolvemos se enquadra na abordagem qualitativa e interpretativa, com foco no processo de formação do professor que, ao ensinar, pesquisa, reflete e reconstrói interpretações e práticas. Nela narramos o caminho percorrido pelo grupo de formadores que trabalhou na primeira edição do curso ENCI, e seu esforço de significar o que se chamou ensino por investigação: eixo norteador da formação de professores adotado e nosso objeto de aprendizagem. No interior desse curso, os sujeitos de pesquisa estabeleceram tensões e consensos, não apenas acerca dessa expressão como, também, de possibilidades e limites da educação em ciências. Essas tensões e consensos não se restringiram às dimensões teóricas do fazer e nem se estabeleceram como resposta às questões de pesquisa que foram apresentadas, mas surgiram e se desenvolveram a partir da própria necessidade de se conceber, realizar e avaliar o curso. Para a análise dos dados, adotamos, mais especificamente, as contribuições de Bakhtin e seu círculo no campo da linguagem, e de Bruner, no que se refere ao pensamento paradigmático e narrativo, bem como ao modo como o autor caracteriza as modalidades do pensamento humano.

Para compreender os sentidos atribuídos ao termo ensino por investigação, tomamos como ponto de partida o processo dialógico de interação entre os formadores (coordenadores e tutores) de um curso de pós-graduação em ensino de ciências. Para isso, caminhamos pelas enunciações desses sujeitos nos espaços coletivos do grupo, nas entrevistas que realizamos e no conjunto dos textos escritos como suporte ao curso, procurando preservar a articulação entre o que se disse e o modo como foi dito. A nossa atenção centrou-se no processo de desenvolvimento da pesquisa e no tipo de conhecimento que estava sendo gerado. Não tínhamos a preocupação de produzir conhecimentos generalizáveis e transmissíveis a outras situações, mas de compreender o processo mesmo de produção de sentidos.

Diante das condições de nosso envolvimento e do caminho que percorremos para analisar os dados, não consideramos os critérios clássicos de validade, confiabilidade, generalização, tal como são apontados pela literatura (BOGDAN; BIKLEN, 1994; GUBA; LINCOLIN, 1994; LESSARD-HEBERT; GOYETTE; BOUTIN, 1994). Em contraposição, procuramos nos valer: das múltiplas vozes em circulação, da explicitação das condições de produção dessas vozes; da problematização dos lugares que cada sujeito ocupa na hierarquia do grupo; do encontro dessas vozes como arena de sentidos em disputa. A validade dessa pesquisa remete, portanto, ao próprio processo de interação entre sujeitos e discursos, no movimento mesmo de dar a ver os sentidos em sua produção, pelo encontro de vozes. Para isso, recorremos à teoria da enunciação, que se vale da palavra viva como objeto carregado de significado e dos sujeitos falantes como autoridade legítima da significação.

A busca de coerência entre o problema de pesquisa, o referencial teórico e a metodologia adotada

Para analisar os dados selecionados para essa pesquisa com o propósito de compreender os sentidos atribuídos ao termo ensino por investigação, fizemos, inicialmente, um grande esforço para criar categorias e descrever de forma objetiva os conteúdos das entrevistas, na busca, então, de uma conceituação sobre o que é ensino por investigação. Contudo, essa tarefa foi se mostrando cada vez mais infrutífera e insustentável frente aos estudos da teoria da linguagem de Bakhtin (1997a), no que se refere à polifonia, seja porque o significado de uma enunciação remete aos incontáveis contextos em que ela já foi utilizada e às variadas histórias ou experiências de seus enunciadores, ou, ainda, porque adquirem outras configurações frente a diferentes audiências. Assim, esses estudos preliminares não só nos fizeram abandonar o caminho da análise de conteúdos dos discursos produzidos, como também nos conduziram à análise dos sentidos das enunciações dos sujeitos envolvidos no ENCI.

O nosso propósito passou a ser, então, o de compreender os sentidos sobre investigação, atividade investigativa e ensino por investigação a partir do processo dialógico de interação entreos sujeitos de nossa pesquisa. É preciso lembrar que esses sujeitos eram, em última instância, responsáveis por fazer circular um discurso autorizado, junto aos alunos-professores do curso, sobre o que seria investigação. Para isso, optamos por caminhar pelas enunciações desses sujeitos formadores nos espaços coletivos do grupo, nas entrevistas realizadas e no conjunto dos textos escritos por eles que deram suporte ao curso, sem tentar classificá-los como anteriormente. Nesse percurso, procuramos promover um diálogo entre as diversas enunciações e os diversos enunciadores, preservando a articulação entre o que se diz e o modo como se diz, pois esses são aspectos correlacionados de qualquer enunciação. Assim, a tentativa inicial de enquadramento dos discursos que fizemos, foi abandonada. Decorre daí a apresentação de longos turnos de fala, transcritos das gravações e analisados no seu conjunto, quando eram confrontados discursos e práticas.

Para Bakhtin (1997a) e seu círculo, a especificidade das ciências humanas está no fato de que o objeto de sua atenção ou interesse é o texto, que pode também ser entendido como discurso. Textos ou discursos são enunciados produzidos por sujeitos que trazem diferentes histórias, lugares sociais e marcas culturais diversos. No caso desta pesquisa, os sujeitos investigados, embora fossem todos oriundos da área de ciências naturais, apresentam histórias diversas e lugares sociais diferentes no grupo. Alguns atuavam como coordenadores do curso de especialização, outros são autores dos textos didáticos utilizados, outros, ainda, atuaram como tutores, ocupando também o lugar de alunos-professores ou ex-alunos de pós-graduação. Daí, nossa opção de tomar a linguagem e, mais especificamente, as enunciações desses sujeitos, como base de nosso processo de produção e análise de dados.

Bakhtin (1997b) considera a linguagem como uma criação coletiva, integrante de um diálogo cumulativo entre o "eu" e o "outro", entre muitos "eus" e muitos "outros". A linguagem é compreendida a partir de sua natureza sócio-histórica, ou seja, "as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios" (BAKHTIN, 1997b, p. 41). O mesmo autor nos diz que:

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou que escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas e concernentes a vida. (BAKHTIN, 1997b, p. 195)

Nessa direção, acreditamos que os sentidos atribuídos aos termos investigação e ensino por investigação não estão somente nas palavras pronunciadas pelos autores de disciplina, coordenadores e tutores, mas na relação com o contexto em que essas enunciações foram sendo produzidas. As palavras ditas estão marcadas pelo lugar que esses sujeitos ocupam, pelas relações de poder estabelecidas entre eles, pelas expectativas produzidas entre esses interlocutores em virtude do que se espera que seja dito, do já dito, do não dito, assim como do que deveria ter sido dito, mas foi calado ou censurado (LIMA, 2005).

Os sentidos não são dados a priori, eles são construídos na dinâmica interlocutiva. De acordo com Bakhtin (1997b), a enunciação não pode ser compreendida sem se levar em consideração as condições dos sujeitos que falam. A enunciação é de natureza social, produto da interação entre indivíduos socialmente organizados. Uma enunciação completa é constituída de significação e sentido. Esses dois elementos integram-se para formar um todo.

A significação é a parte geral e abstrata da palavra. É o conceito que está no dicionário, sendo apenas, em parte, responsável pela compreensão estabelecida entre os falantes. Já o sentido é construído na compreensão ativa e responsiva, sendo aquilo que estabelece a ligação entre os interlocutores, entre seus modos de pensar. O sentido da enunciação não está radicado no indivíduo, nem na palavra e nem nos interlocutores. Ele está no efeito que a interação estabelece entre quem enuncia e quem escuta. A interação constitui, assim, o veículo principal da produção de sentidos. Por isso, para compreender uma enunciação é necessário entender que ela acontece sempre em uma interação discursiva, isto é, ela ocorre entre sujeitos marcados ideologicamente e constituídos de modo singular a partir das experiências que viveram e das crenças que foram colecionando, guardando, revendo, descartando.

Bakhtin (1997b) nos ajuda a compreender o papel da interação verbal entre sujeitos que atribuem sentidos diferentes a um mesmo termo na produção ou no deslocamento dos sentidos postos. Segundo Fontana (1996 p. 26):

O processo de produção do sentido faz-se num jogo de confrontação permanente: forças de estabilização e controle confrontam-se com forças de dispersão e ruptura, numa tensão irredutível. A dominância de um sentido sobre os outros é produzida nas condições da enunciação. Os lugares sociais ocupados por aqueles que tomam a palavra, e os "modos" como o fazem, da mesma maneira que os lugares sociais, a partir dos quais se apreendem e elaboram as palavras do outro, são constitutivos dos sentidos produzidos e da sua aceitabilidade ou não.

De acordo com Bakhtin (1997a), toda enunciação é sempre mediada por signos socialmente estabelecidos e, por isso, influenciada por diferentes ideologias, o que leva esse autor a concluir que todo signo é ideológico. Bakhtin (1997a) utiliza o termo signo no sentido convencional da palavra, concebendo-o como um objeto que nos remete a outros objetos. Nessa perspectiva, os signos são fragmentos da realidade e, ao mesmo tempo em que refletem um determinado modo de conceber e significar essa realidade, também refratam qualquer outra forma de entendê-la.

Um signo sempre aponta para outro, isto é, pertence a um sistema de signos e também depende do significado dos signos do mesmo sistema, quanto contribui para que novos signos sejam produzidos. No processo de compreensão - concebido como encontro entre projetos de dizer - ocorre uma reestruturação das relações entre os signos e os objetos aos quais eles se referem, a partir de pontos de vista manifestos pelos sujeitos em interação. Dessa forma, os signos agregam novos valores, provocando uma constante transformação dialética nos modos de ver os objetos e nos modos dos próprios sujeitos pensarem e se posicionarem frente aos mesmos.

Essa perspectiva nos permite pensar o termo ensino por investigação como um signo, desde que tal termo seja concebido como um elemento de um discurso cuja significação é essencialmente ideológica e esteja marcada pelas práticas de formação dos professores, tutores e coordenadores. Segundo as palavras de Bakhtin (1997b, p. 31), "tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é signo. Sem signos não existe ideologia".

Todo signo deve ser contextualizado para ganhar significado. O signo carregado de significação ideológica não só está sujeito a critérios de avaliação do meio ideológico, como pode ser entendido de acordo com necessidades contextuais dos interlocutores. Bakhtin (1997b, p. 33) ressalta:

Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer.

A expressão Ensino de Ciências por Investigação, no sentido bakhtiniano é um signo, pois nos remete: ao nome de um projeto de formação de professores no nível da especialização; à ideia de uma prática pedagógica informada pela pesquisa em educação; a uma estratégia de ensino; aos artefatos concebidos no seio dessa estratégia, e a outros tantos objetos. Além disso, essa expressão deu origem à logomarca Enci, outro signo, que se tornou um objeto com identidade visual, uma logomarca específica, utilizada para identificar apostilas e páginas da internet, além de uma coleção de livros e outros. A coisificação do ENCI deu-se entre a exterioridade do signo - aquilo que ele passa a ser para os outros - e a multiplicidade dos objetos que ele encerra em seu interior como logomarca, mas, também, como objeto de estudo e diálogo entre os sujeitos do grupo.

Do ponto de vista bakhtiniano, nenhum signo tem sentido fixo, é sempre instável frente às condições de enunciação, de maneira que, somente no interior delas, é que se definem e que se negociam os sentidos. Dessa forma, podemos dizer que, dentro do grupo, há uma grande variedade de sentidos que remetem ao signo ensino por investigação. Contudo, essas variações nos sentidos, entendidas a partir do conceito de polissemia, não decorrem de uma autêntica polifonia, assim como a define Bakhtin (1997a), ao discutir Problemas da poética de Dostoiévski. Essa distinção nos será útil para analisar e compreender as tensões e os conflitos no grupo.

Para Bakhtin (1997a), a autêntica polifonia representa as várias vozes que podem ser percebidas no discurso de um enunciador, e envolve os conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade, não-acabamento e dialogismo. Ela se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço-tempo, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, que envolve uma relação de plena igualdade entre os sujeitos em meio a uma multiplicidade de vozes e consciências em um determinado universo, o que ele chama de vozes plenivalentes e consciências equipolentes. Segundo suas próprias palavras:

As vozes plenivalentes são vozes plenas de valor, que mantém com outras vozes do discurso, uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo [...].

Consciências equipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não objetificam, isto é, não perdem o seu SER enquanto vozes e consciências autônomas. (BAKHTIN, 1997a, p. 4)

De acordo com o conceito de polifonia, no fenômeno da linguagem, não há propriedade, isto é, tudo é compartilhado. As expressões de que um enunciador faz uso em um dado momento já foram "habitadas" pelas enunciações dos outros, de modo que, quando usamos qualquer expressão, trazemos também, na nossa própria voz, as vozes alheias. Trata-se da dependência de todo o enunciado da história de uso das expressões que o constituem. Nenhuma fala ou discurso é produzido somente pelo locutor: há vozes em sua fala, vozes quesão orquestradas polifonicamente no discurso que ele profere. É a partir desse fenômeno que Bakhtin vai cunhar um sentido mais técnico para a expressão polifonia, isto é, a presença de duas ou mais vozes numa mesma expressão, vozes que são equipolentes e independentes. Polifonia, portanto, é a presença de vozes no enunciado.

Do ponto de vista do que se passou no grupo do ENCI, não podemos considerar as vozes como plenivalentes e nem as consciências como equipotentes. Esta afirmativa é uma consequência das posições hierárquicas que os atores do ENCI ocupavam dentro do grupo. O fato de esses sujeitos ocuparem lugares definidos na hierarquia do grupo não significa, por outro lado, que aqueles que ocupavam lugares correspondentes na hierarquia tinham, necessariamente, posturas semelhantes entre si. Isso porque as histórias desses sujeitos são muito diferentes, ainda que todos tenham tido sua formação inicial nas ciências naturais.

No grupo do ENCI, as posições hierárquicas eram delimitadas pelas posições associadas às funções de coordenação e tutoria. Ainda assim, dentro do grupo de coordenadores, alguns indivíduos aparentemente se sentiam mais autorizados do que outros para falar sobre ensino por investigação. Em respeito aos ritos acadêmicos, estabeleceram-se distinções internas que contribuíram para a designação de dois coordenadores como autores de disciplinas mais especificamente voltadas para a apresentação de sentidos para o termo ensino por investigação. Um desses coordenadores havia sido coordenador de um projeto de pesquisa que envolvia a avaliação de atividades investigativas baseadas na utilização de experimentos com roteiros pouco estruturados e que utilizava uma tecnologia para coleta automática de dados por meio de sensores de movimento, de temperatura, dentre outros. Outra coordenadora teve a oportunidade de participar de um grupo de pesquisa que desenvolveu um programa de computador voltado para a formação de professores da Educação Básica, cujo foco recaía em uma abordagem de ensino por investigação.

Os demais coordenadores não tinham sua formação marcada pela tradição anglosaxônia, como os dois anteriormente citados. Isso, possivelmente, explica a multiplicidade de vozes e sentidos que circulou mesmo entre os coordenadores, em função das diferentes acentuações valorativas que estiveram, por sua vez, vinculadas a ideologias, tal como concebidas por Bakhtin (1997b). Com maior razão se explica a polifonia no grupo como um todo, uma vez que os tutores são autores de suas próprias enunciações, construídas a partir da experiência de sala de aula ou da participação em grupos de pesquisa. Eles se sentiam menos autorizados a dizer sobre esse assunto até porque foram, inicialmente, silenciados pela autoridade reclamada por alguns coordenadores. Em última instância, os tutores eram responsáveis por dizer aos alunos-professores do curso o que significava ensino por investigação, não a partir unicamente das próprias perspectivas, mas, também, como representantes do discurso dos coordenadores.

Esse conjunto de vozes com valorações diferentes, marcadas ideologicamente, podem ser associadas ao conceito de plurilinguismo, porque elas nada têm de equipolentes e, também, não podem ser entendidas como expressões de consciências equipotentes. O plurilinguismo está próximo da polissemia, mas, ao longo da obra de Bakhtin, os conceitos sempre adquirem novos matizes. O plurilinguismo inclui não só os diferentes sentidos atribuídos a um dado signo (polissemia) e às diferentes vozes que o enunciam (polifonia), mas, também, às diferentes acentuações valorativas que, por sua vez, vinculam-se às ideologias (plurilinguismo).

Existe uma perspectiva de pluralidade associada ao termo ensino por investigação que não pode ser completamente compreendida por meio das considerações anteriores derivadas da teoria das enunciações de Bakhtin e seu círculo. Em nossa revisão bibliográfica, pudemos constatar a ausência de definições operacionais e de sentidos suficientemente estabilizados, para o termo em questão, no contexto da literatura que tem tratado dessa abordagem de ensino de ciências. As melhores caracterizações de ensino por investigação encontradas na literatura decorrem da apresentação de exemplos de atividades e de situações nas quais tal abordagem ocorre ou poderia ocorrer. Esses exemplos correspondem ao que Pierce (1975) chama de réplicas de um signo, ao afirmar que o processo de significação de um signo de caráter geral ocorre a cada vez que o mesmo se manifesta em uma situação particular. Acreditamos, ainda, que a dependência da caracterização de ensino por investigação da apresentação de exemplos particulares decorra do fato de que esse conceito encontra-se, ao menos circunstancialmente, mais adaptado ao que Bruner (1997) chama de pensamento narrativo, em contraposição àquilo que ele identifica como sendo pensamento paradigmático.

Para este autor, esses dois tipos de pensamento correspondem a dois modos distintos de funcionamento cognitivo, que implicam diferentes maneiras de ordenamento da experiência. Eles têm princípios operativos próprios, seus próprios critérios de boa formação e de verificação. Assim, um bom argumento possui um estatuto que é completamente diferente daquele encontrado em uma boa história. O argumento baseia-se em princípios gerais e abstratos e precisa ser logicamente bem estruturado para poder convencer. Convence em função de sua veracidade, enquanto a história convencerá se for bem forjada, algo que se decide ao se avaliar se ela é semelhante à vida. O argumento depende do reconhecimento de que é legitimo se abstrair das particularidades de contextos determinados para se atingir algo cuja validade é geral. A diferença no modo como o critério de verdade se aplica a esses dois modos do pensamento humano nos lembra o diálogo entre dois personagens citados por Larrosa (1999, p. 149) no qual se coloca o problema do que é a verdade:

A verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou seu porqueiro.

Agamenon: De acordo

O porqueiro: Não me convence

(Antonio Machado / Juan de Mairena)

Bruner (1997) utiliza uma metáfora topológica para diferenciar essas duas formas de pensamento ao nos dizer que, no pensamento paradigmático, nos movemos de cima para baixo, do geral para o particular, concebendo cada contexto como mera réplica de algo geral. Isso é diferente do que ocorre no pensamento narrativo, quando nos movemos de baixo para cima, sem ignorar a existência de instâncias gerais, mas preocupados em compreender o particular, o circunstanciado.

O pensamento narrativo nos dota de certa desconfiança em relação a toda e qualquer generalização, e nos ensina a ter cuidados que nos ajudam a evitar as generalizações apressadas. O pensamento paradigmático nos orienta para promover aprendizagens que possam ser transferidas de um contexto para outros, permitindo nos anteciparmos ao movimento doreal e nos situarmos diante dele. É nesse sentido que podemos dizer que essas duas formas de pensamento são complementares, embora sejam também irredutíveis uma à outra.

O modo paradigmático nos leva a ignorar as histórias quando acreditamos que elas possam ser substituídas por relações causais. Aplicado indistintamente aos fenômenos educacionais, pode nos fazer menos sensíveis à dimensão do humano e dos sujeitos sócio-históricos que interagem em uma situação particular, que pode ser, justamente, aquela que desejamos compreender. No caso da pesquisa da educação, pode levar, inclusive, a empobrecermos os resultados de uma investigação por acreditarmos que eles não se adequam aos critérios de generalidade e objetividade, em alguma medida associados às práticas culturais das ciências naturais.

Algo essencialmente relacionado à tensão entre essas duas formas do pensamento humano é a celeuma entre a identificação da educação como ciência ou como arte. Isso nos leva a uma reflexão sobre se devemos reduzir a educação a princípios gerais para antecipar os problemas inerentes aos fenômenos educacionais ou se devemos entender que cada um desses fenômenos é particular e único, podendo se aproximar ou se afastar de outros apenas em função de suas características particulares e circunstanciais.

Uma metodologia de pesquisa sobre o que é investigação no processo de constituição de sujeitos formadores

As reuniões de preparação do curso, que aconteciam semanalmente, constituíram momentos riquíssimos de desenvolvimento profissional dos sujeitos envolvidos. Foi durante essas reuniões que começamos a perceber a natureza polissêmica do termo ensino por investigação: um signo e seus muitos referentes. O sentido que cada um atribuía a esse termo e aos objetos a ele relacionados nos pareceram diferentes entre si e, a partir daí, compreendemos que tínhamos um longo caminho a ser percorrido para estabelecer marcos de consenso acerca do significado desse signo, de modo a se concretizar um curso de formação docente.

Por esse motivo, decidimos, neste trabalho, narrar o caminho percorrido pelo grupo de tutores e coordenadores do ENCI no processo de significação do termo ensino por investigação. Dessa forma, o foco dessa pesquisa passou a recair sobre os sentidos do ensino de ciências por investigação que circularam no grupo. Nossa intenção inicial de pesquisa era examinar os sentidos atribuídos, pelos alunos-professores, ao ensino experimental, e possíveis modificações no modo de conceber essa estratégia de ensino ao longo do curso.

Do ensino experimental fomos levados a ampliar nossa compreensão sobre ensino por investigação, na medida em que tínhamos por obrigação dizer o que entendíamos a respeito desse tema pela nossa própria condição de tutora e de coordenadores do curso e do processo de formação dos formadores. Enquanto objeto de pesquisa, decidimos, ainda, abandonar a intenção de acompanhar os entendimentos forjados pelos alunos-professores, visto que, entre o grupo de formadores, não existiam consensos estabelecidos. Os entendimentos eram diversos, instáveis e instigantes como objetos de investigação. Eram muitas as inquietações e as questões que o tema ensino por investigação evocava na equipe de tutores, em sua dupla condição de professores formadores, responsáveis por desenvolver o curso junto aos alunos-professores, e de sujeitos em formação, que se formavam nas reuniões semanais de preparação do curso e na equipe de coordenadores. Assim, os sujeitos dessa pesquisa passaram a ser os tutores e os coordenadores no processo de preparação do curso.

Para analisarmos o caminho percorrido pela equipe de formadores no esforço de significar o que se chamou ensino por investigação, tivemos de pensar sobre algumas questões: 1) Que discursos e sentidos sobre atividades investigativas circularam entre os tutores e coordenadores do curso? 2) Que tensões e consensos acerca do termo investigação foram se estabelecendo entre esses sujeitos ao longo do curso? 3) Que sentidos podem ser atribuídos ao ensino de ciências por investigação no material didático do curso?

Para buscarmos respostas a essas três questões, de modo a sermos coerentes como nosso referencial teórico, utilizamos uma maior diversidade de fontes de dados e de situações de produção dos mesmos, quais sejam: 1 - materiais didáticos produzidos no curso e para o curso; 2 - dados gerados por meio de entrevistas realizadas com os autores das quatro disciplinas que apresentavam, como objetivo explícito, abordar a discussão de ensino por investigação; 3 - entrevistas realizadas com os tutores do curso; 4 - gravação em áudio de reuniões da equipe de tutores e coordenadores cujo tema foi o ensino por investigação; 5 - entrevistas feitas com alguns alunos-professores do curso; 6 - registros pessoais das reuniões realizadas com a coordenação, feitos a partir da perspectiva da duplicidade de papéis que vivenciamos como pesquisadores e como formadores da equipe do ENCI.

A literatura consultada que aborda o problema da validade e da confiabilidade das pesquisas qualitativas concentra seus esforços na indicação de cuidados metodológicos essenciais que permitiriam, em seu conjunto, atingir resultados e conclusões confiáveis (ERIKSON,1995; LUDKE; ANDRÉ, 1986). Em outro sentido, nossa pesquisa se legitima pela coerência entre o referencial teórico adotado, o modo de colocar o problema de pesquisa, a diversidade das fontes de dados, o modo de construir as categorias de análise a partir das interações discursivas, a explicitação dos sujeitos e seus lugares de pertença etc.

Uma das recomendações encontradas na literatura diz respeito à necessidade de se procurar maior familiaridade com o ambiente da pesquisa e com os processos em exame. No nosso caso, a objeção poderia ser outra, a de um excesso de envolvimento, uma vez que ocupamos, simultaneamente, a posição de pesquisadores e de sujeitos da pesquisa, estando comprometidos, portanto, com a história que foi narrada. Enfrentamos essa situação considerando-a legítima e importante de ser investigada de modo a produzir um curso que representasse nosso próprio esforço de compreensão e, portanto, como resposta à nossa condição de formadores que se formam também no processo de formação. Coerentes com isso, nossa questão de pesquisa passa a ser o processo de produção de sentidos no grupo e na ação de formadores.

Concebemos o objeto da pesquisa como sendo o movimento de produção de sentidos, forjado na explicitação da multiplicidade de vozes acerca do signo ensino por investigação, bem como o movimento de criação de tensões, deslocamentos e convergências produzidas pelo grupo do qual fazíamos parte. Apesar do terreno delicado que sabíamos estar percorrendo devido ao fato de sermos, ao mesmo tempo, pesquisadores e sujeitos da pesquisa, nós nos sentimos na condição de cumprir nosso objetivo de pesquisa, pois as interações discursivas produzidas, explicitadas e analisadas não nos colocam em condições de nos mostrarmos melhores ou piores do que os demais. Em outras palavras, os discursos que proferimos como sujeitos não têm maior valor do que outros disseram, na medida em que as contrapalavras são produzidas na circulação de vozes, na disputa de sentidos, como arena de luta. Não existe antídoto à parcialidade nesse sentido, nem isenção ou afastamento, pois, bakhtinianamente, somos singulares e ideologicamente marcados pelos lugares que ocupamos. Nessa condição, estivemos interessados em cada fala, em cada enunciação, em cada sujeito. Nosso envolvimento é sempre ativo e responsivo em qualquer situação de produção de sentidos. Bakhtin nos ensina que compreender sem julgar é impossível. Essas duas operações são inseparáveis, são simultâneas e constituem um ato total.

A pessoa aproxima-se da obra com uma visão de mundo já formada, a partir de um dado ponto de vista. Esta situação em certa medida determina o juízo sobre a obra, mas nem por isso permanece inalterada: ela é submetida à ação da obra que sempre introduz algo novo. Somente nos casos de inércia dogmática é que nada de novo é revelado pela obra (o dogmático atém-se ao que já conhecia, não pode enriquecer-se) compreender não deve excluir a possibilidade de uma modificação, ou até mesmo de uma renúncia, do ponto de vista pessoal. O ato de compreensão supõe um combate cujo móbil consiste numa modificação e num enriquecimento recíproco. É encontro e comunicação. (BAKHTIN, 1997a, p. 382)

Nós buscamos, na intersubjetividade, modos de estabilização dos sentidos que foram emergindo da análise dos dados. Foi a partir dessa estratégia que pudemos formar uma equipe que checava internamente as interpretações uns dos outros. Além desse procedimento para introduzir a perspectiva da alteridade nesta pesquisa, nós checamos nossas interpretações acerca do discurso de nossos sujeitos de pesquisa em seminários internos e em consultas a esses sujeitos.

A diversidade de fontes de coleta de dados se justificou nesta pesquisa como complementaridade de sentidos, de multiplicidade de vozes, de deslocamentos produzidos em diferentes momentos; como movimento mesmo de significação, de situações em que os sujeitosestão em intenso debate e disputa de ideias, entre outros. É importante destacar que essa variedade de fontes e coleta de dados não foi utilizada com o mesmo objetivo que é preconizado pelo procedimento de triangulação de dados encontrado na literatura (ERIKSON, 1995;LESSARD-HÉBERT; GOYETTE; BOUTIN, 1994; LUDKE; ANDRÉ, 1986).

Ao longo da primeira edição do ENCI, não se estabilizou um sentido para o termo ensino por investigação, mas vários. Embora, nessa variabilidade de sujeitos e sentidos, não se possa falar de um sentido particular, único e consensual, há, paradoxalmente, consensos formados pela multiplicidade de ideias em disputas e embates. Trata-se, desse modo, de um sentido multicomposicional relativamente estável. Embora essa não seja uma situação absolutamente confortável no campo da pesquisa em educação, é preciso reconhecer que, nos estudos orientados por perspectivas linguísticas, é relativamente difícil produzir generalizações e estabilizações de sentidos. Há autores que chegam a dizer da

[...] impossibilidade de atingir generalidade, já que eles (estudos observacionais) mostrariam o que é possível, mas não informariam se os mesmos padrões identificados em casos particulares são gerais. Trata-se mais uma vez da inquietação diante da possibilidade de diversidade, da crença cega na uniformidade da mente em desenvolvimento. (POSSENTI, 1996, p. 198)

A multiplicidade de sentidos sobre ensino por investigação detectada no grupo do ENCI repete, de certo modo, o que está posto em anos de história sobre a produção do conhecimento científico, bem como nos movimentos curriculares para o ensino dessas ciências na educação formal. Assim, embora a questão da objetividade e da confiabilidade na área de ciências humanas se coloque de modo diverso daquele encontrado nas práticas culturais das ciências naturais, e, dependendo do referencial teórico, essa questão nem chega a ser colocada pela sua improcedência.

O conjunto das entrevistas com os tutores aconteceu nos últimos meses da primeira edição do curso, com um intervalo de, aproximadamente, dois meses entre o primeiro entrevistado e o último. Para iniciar a entrevista, foi explicitado o que queríamos investigar - nosso objeto de pesquisa -, lembramos alguns momentos de planejamento do curso - os materiais didáticos e seus conteúdos -, e indagamos como eles haviam discutido, com seus alunosprofessores, no processo de tutoria, o termo investigação.

O modo como isso foi dito está explicitado na transcrição editada, da fala da pesquisadora, ao introduzir os tutores na entrevista:

Nós trabalhamos desde 2005 no ENCI. Quando fomos convidados para trabalhar no curso, os coordenadores já tinham mais ou menos uma coisa pensada, sobre a estrutura e os objetivos do curso. Mas, esse negócio de ensino por investigação não era consenso nem entre a gente, nem entre os proponentes do curso. A gente foi construindo isso ao longo do curso, tanto é que nossas últimas discussões foram riquíssimas e a gente conseguiu chegar mais ou menos em um consenso sobre o que seria o ensino por investigação. A minha intenção nesta entrevista é conhecer um pouco sobre como você chegou nesse curso, se você teve alguma aproximação antes com essa questão da investigação. Gostaria de saber qual era a sua concepção sobre ensino por investigação quando você foi convidada(o) para trabalhar no ENCI e se você observou alguma mudança na sua visão de ensino por investigação do início do curso até hoje. Como é que você discutiu as características do ensino por investigação com os alunos-professores? Como você percebe essa discussão nas disciplinas? Acho que seria legal se você começasse contando um pouquinho de sua trajetória profissional. Mas você começa por onde quiser, do jeito que se sentir mais confortável.

Durante as entrevistas, quando necessário, retomamos alguns pontos da solicitação feita inicialmente, enquanto isso os entrevistados folhearam as apostilas dos quatro módulos do curso para que eles pudessem checar dúvidas ou rememorar episódios, conceitos, atividades etc. Nosso interesse, nessa ocasião, era perscrutar os sentidos que os entrevistados atribuíam aos textos e às atividades inscritas no material didático de suporte das disciplinas. Isso foi feito para não comprometer os sentidos pessoais e devido ao esquecimento do que estava lá proposto.

Para a realização das entrevistas com os autores, o procedimento foi semelhante ao adotado com os tutores. Disponibilizamos, também, as apostilas do curso e solicitamos que explicitassem os propósitos subjacentes à concepção e produção daquele material, bem como as razões que os levaram a escolher o conjunto de atividades propostas, os textos selecionados, enfim, toda a organização do material. Cada entrevista foi realizada em um dia diferente em um período de duas semanas.

Para a gravação da reunião do grupo de tutores e coordenadores do curso, que teve como tema discutir o ensino por investigação, algumas questões foram anteriormente concebidas pelos pesquisadores e propostas no início da reunião, com o intuito de orientar as discussões. Tais questões foram abordadas livremente, como ocorre, em geral, em reuniões dessa natureza. As questões preliminares consistiam em: apresentar características capazes de tornar investigativa uma atividade qualquer de ensino-aprendizagem; destacar e justificar protótipos de atividade investigativa; identificar objetivos, potencialidades e limitações do desenvolvimento de atividades investigativas em sala de aula; elencar competências e habilidades que os professores precisam desenvolver para conduzir esse tipo de atividades em sala de aula; identificar, no conjunto de atividades desenvolvidas no curso, aquelas consideradas prototípicas; identificar limites ou dificuldades que os professores encontrariam ao realizar esse tipo de atividade em sala de aula; discutir em que medida o ensino por investigação responde às necessidades atuais da educação em ciências nas escolas públicas brasileiras, e, por último, avaliar a sintonia do ENCI frente ao quadro de demandas colocadas pelos alunos-professores do curso. Vale lembrar que apenas as três primeiras questões foram discutidas nessa reunião, embora as demais tenham sido, de algum modo, tangenciadas.

O modo como as perguntas foram formuladas já traz indícios das concepções dos autores desta pesquisa. Em outras palavras, as concepções pessoais que emergiram da revisão bibliográfica e das discussões que fizemos sobre o tema estiveram imiscuídas nas perguntas e orientaram, portanto, o modo de refletir do grupo. Esse fato não interfere na objetividade da pesquisa, pois, na formação docente, o que nos interessa são os processos formativos e os produtos forjados a partir das interações verbais. Nesse caso, interessa observar e participar do trabalho semiótico de produzir outros sentidos, de deslocar os sujeitos, de movimentar racionalidades.

Processos de formação em grupo e pela prática podem ser entendidos como trabalhos semióticos. O movimento permanente de mudanças e a instabilidade de sentidos em espaços sociais de intensa interação verbal é inerente ao desafio de se tomar como objeto de estudo algo diretamente afetado pela própria linguagem enquanto atividade dos sujeitos. Esse é um campo de indeterminações desde sua gênese. Portanto, a metodologia da pesquisa adotada precisa estar coerentemente construída de modo a não contradizer a natureza do objeto investigado.

Acompanhamos e gravamos, ainda: algumas aulas presenciais dos tutores das turmas de ensino de Física, uma aula de avaliação final do curso que ocorreu em uma das turmas de ensino de Química, e a aula de avaliação final feita em conjunto com as turmas de ensino de Física, Química e Biologia. Convidamos, abertamente, todos os professores, de todas as turmas, para contribuírem com a pesquisa. Sete deles se prontificaram a dar entrevistas. Realizamos as entrevistas, adotando o mesmo procedimento usado com os tutores. Solicitamos que contassem um pouco da trajetória acadêmica e profissional, os motivos que os levaram a fazer o ENCI, as dificuldades vivenciadas no curso, bem como as contribuições do curso para a prática docente, e o entendimento deles acerca das atividades investigativas.

Como se pode perceber, muitas das questões propostas na reunião do grupo, bem como os acompanhamentos das aulas e as entrevistas realizadas com os alunos-professores do curso, ultrapassaram o problema e as questões recortadas na pesquisa. Trata-se, portanto, de dados coletados, mas que não foram analisados. O "desperdício" de dados é algo inerente às pesquisas de cunho qualitativo, uma vez que é muito difícil antecipar, de antemão, como os dados coletados serão efetivamente usados e analisados. Além disso, cada enunciação evoca em nós muitas considerações, grande interdiscursividade, o que nos impõe circunscrever nossas análises a universos mais restritos e verticalizados. Isso sim qualifica as pesquisas e suas possíveis contribuições. Nossa exploração dos dados prosseguiu até que sentíssemos que tínhamos certa familiaridade com os modos de pensar e com os dilemas dos formadores para discorrer sobre as questões de pesquisa com maior propriedade.

Parte do material empírico da pesquisa foi composto por três entrevistas feitas com os autores das disciplinas, com duração de, aproximadamente, trinta minutos cada; seis entrevistas com os tutores, com duração de, mais ou menos, quarenta minutos, e a gravação de uma reunião da equipe pedagógica, com duração de, aproximadamente, duas horas. Dois tutores não se dispuseram a participar devido às experiências anteriores com outros pesquisadores com os quais se sentiram objetificados. Cuidado que tivemos com todos os sujeitos da pesquisa ao apresentarmos e discutirmos o conteúdo da fala imbricado no modo de dizer e no contexto em que tal enunciação emergiu.

De posse do material empírico gerado, deu-se início à produção dos dados. Os dados, em nossa concepção, não são dados, mas construídos ao serem selecionados, categorizados e analisados. As gravações ouvidas foram transcritas e lidas várias vezes, individualmente ou em conjunto, pelos pesquisadores.

Antes de iniciarmos a coleta de dados por meio de entrevista, submetemos e tivemosnosso projeto aprovado pelo Comitê de Ética na Pesquisa da UFMG. Atendendo aos preceitos da ética na pesquisa com seres humanos, redigimos um termo de consentimento livre e esclarecido que foi devidamente apresentado e autorizado por aqueles que participaram das gravações.

Encerradas as transcrições das entrevistas, o texto transcrito de cada entrevista foi encaminhado para seu respectivo entrevistado, para que pudessem fazer correções, complementações ou censuras às passagens que eles não gostariam de tornar públicas. O procedimento de retornar as transcrições aos entrevistados foi orientado por quatro motivos básicos: um deles expressa nossa compreensão de que as situações de entrevistas, sobretudo quando gravadas ou filmadas, deixam os sujeitos desconfortáveis quanto àquilo que eles dizem e ao modo como dizem, podendo, ainda, afetar os enunciados produzidos em virtude daquilo que, circunstancialmente, os sujeitos entrevistados acreditam que o pesquisador gostaria de ouvir. No decorrer de uma entrevista, muitas coisas são esquecidas, outras são lembradas, mas não ditas pressupondo o entendimento do outro devido ao compartilhamento do contexto da pesquisa que era o de formação do grupo. O discurso oral tem peculiaridades que o distinguem do discurso escrito. Tais peculiaridades chegam, em alguns casos, até mesmo a comprometer e distorcer o que se pretendia dizer.

Um dos modos de melhorar os sentidos e dar fluxo à leitura é a edição de falas, mas quando fazemos isso sem consultar os sujeitos que participaram do discurso, numa situação sócio-histórica determinada, corremos o risco de alterar o conteúdo de seus enunciados ao preenchermos lacunas inerentes a qualquer discurso à revelia do que seus autores pretendiam dizer. Isso nos remete ao segundo motivo que justifica o procedimento adotado, de caráter ético, uma vez que o modo como se recorta um dado implica descontextualizar algo que simplesmente não pode ser descontextualizado, contribuindo não só para descaracterizar os enunciados, como para modificar o sentido daquilo que se pretendia dizer.

O terceiro motivo nasce da consideração de que os sujeitos da pesquisa são pessoas para as quais o discurso oral é inexoravelmente imbricado pelo discurso escrito. Por isso, a proposta de dar a eles a oportunidade de modalizar a enunciação oral, produzida num contexto determinado, por uma avaliação posterior, mediada pela escrita, aumenta as chances de que esses mesmos sujeitos se reconheçam no discurso. Por fim, é adequado sinalizar que nós não estávamos interessados em apreender aquilo que eles poderiam dizer espontaneamente em uma situação isolada sobre os signos investigação e ensino por investigação, mas em registrar as concepções mais elaboradas que eles pudessem conceber naquele estágio de seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Assim, mesmo que o retorno dos dados aos entrevistados não garanta de todo a ética na pesquisa, pode evitar exposições que o pesquisador não vê de antemão como sendo comprometedoras das subjetividades envolvidas. Além desses cuidados, adotamos outro procedimento, que foi o de atribuir outros nomes aos sujeitos envolvidos, visando garantir o sigilo necessário para assegurar a privacidade dos mesmos. Fizemos, ainda, algumas correções de concordância e exclusão de repetições de marcas do discurso oral, tais como: "ta", "então", "né" e "aí", que são marcas do discurso oral, mas não costumam fazer parte do discurso escrito mediado pela norma padrão do português brasileiro.

Tensões e consensos vivenciados no grupo

Para apresentar as tensões e consensos vivenciados pelo grupo de tutores e coordenadores ao longo do curso ENCI, vamos assumir nosso pensamento narrativo, sem ignorar teorias e paradigmas. De certa forma, as considerações que apresentaremos foram tecidas no seio da tensão entre o modo paradigmático de fazer ciências e o modo narrativo de formar sujeitos, no confronto com as experiências docentes.

O nosso primeiro movimento de análise foi o de procurar conhecer um pouco das trajetórias profissionais e acadêmicas de cada tutor, o que nos auxiliou na análise do modo como eles concebiam, inicialmente, o ensino por investigação.

Nessa análise, encontramos aspectos de distanciamento e aproximação nas trajetórias dos tutores. Como aspectos que nos distanciavam, identificamos o fato de alguns serem bacharéis, outros licenciados, uns possuírem experiência docente em curso técnico e outros em cursos de nível Fundamental e Médio, outros, ainda, com o ensino regular em escolas municipais, estaduais e privadas. Como aspectos que nos aproximam, destacamos o fato de estarmos inseridos na prática docente, a grande maioria ter tido o CECIMIG como lócus de formação, em algum momento de suas vidas, e o fato de sermos todos da área de ciências naturais.

Constatamos que, inicialmente, todos os tutores traziam algum significado para os termos investigação e ensino por investigação, e que esse último termo estava associado a algum tipo de atividade que eles já desenvolviam em sua prática docente. Os sentidos do ensino por investigação remeteram aos sentidos atribuídos à investigação entendida como um conjunto de práticas de referência para as quais se orienta essa abordagem de ensino. Remeteram, ainda, às atividades investigativas, por meio das quais tal abordagem se realiza.

Os tutores tinham uma concepção inicial do que era ensino por investigação e esperavam encontrar um sentido bem consolidado que confirmasse, ou não, suas expectativas, o que não se concretizou. De acordo com Bakhtin (1997b), os sentidos não são dados a priori, eles são construídos na dinâmica interlocutiva entre sujeitos marcados ideologicamente e constituídos de modo singular a partir das experiências que viveram e das crenças que foram colecionando, guardando, revendo, descartando.

Assim, os sentidos atribuídos ao termo ensino por investigação pelos tutores podem ser organizados em dois blocos. Um deles nos remete imediatamente a pensar em ensino por investigação como estratégia ou método de ensino. Outro diz respeito aos sujeitos que se envolvem nessas atividades em sala de aula. No primeiro bloco, destacamos um conjunto de regras básicas para desenvolver uma atividade investigativa, tais como: a proposição de um problema, o levantamento de hipóteses, a identificação das variáveis envolvidas, o planejamento das ações, a coleta de dados, a conclusão e a comunicação dos resultados. Para o segundo bloco, destacamos um conjunto de características orientadas para uma ação dos alunos no enfrentamento de questões cujas respostas eles não conhecem e que, também, não se resumem a um dado conjunto de informações. Nesse caso, não é tanto o veículo utilizado na produção das respostas que importa, isto é, não são as estratégias efetivamente usadas o que marca a experiência como atividade investigativa. O que importa, efetivamente, é que os sujeitos estejam suficientemente engajados na busca por respostas e que elas impliquem o estabelecimento de novas relações e a produção de novos conhecimentos para esses sujeitos.

Enquadra-se, também, nesse segundo bloco de sentidos atribuídos, a ideia de que o ensino por investigação é particularmente interessante quando se pretende contribuir para o desenvolvimento da autonomia que se dá mediante o engajamento dos estudantes em atividades de interesse próprio. Destacou-se, também, a postura do professor perante o desenvolvimento das atividades e sua atenta observação das demandas que os estudantes trazem para a sala de aula e da necessidade de permitir que eles errem sem efetuar julgamentos de valor, sem dar respostas prontas para toda e qualquer dúvida que se manifeste, sem tratar o conhecimento como uma coisa ou uma mercadoria.

Os sentidos que foram forjados ao longo do curso dialogaram, direta ou indiretamente, com orientações curriculares dos EUA e Inglaterra e, também, com características de atividades investigativas propostas tanto por tutores quanto por coordenadores, a partir das quais se concebiam ações a serem realizadas por estudantes quando envolvidos em tais atividades.

Outra questão importante diz respeito aos tipos de atividades desenvolvidas no curso. Apresentamos esses resultados em dois grupos. No primeiro grupo, incluímos: as atividades de resolução de problemas em aberto, atividades experimentais, e atividades de controle de variáveis que são tratadas em uma literatura específica, não necessariamente vinculada ao tema do ensino por investigação. No segundo grupo, incluímos: as atividades com banco de dados, atividades de simulação no computador, e atividades de avaliação de evidências que têm sido concebidas, nos EUA e na Inglaterra, a partir de uma articulação mais próxima com o tema do ensino por investigação.

O ensino por investigação como signo ideológico é uma construção humana que traz a marca da história de todos os sujeitos que tiveram implicados nessa construção. Portanto, os discursos proferidos pelo grupo sobre o objeto dessa pesquisa foram se configurando muito antes do curso ENCI: no convívio com pesquisadores nos institutos de pesquisa, nos laboratórios de física, química e biologia, no encontro com os diferentes autores do campo da filosofia, da sociologia, no curso de especialização, de mestrado e de doutorado e com a própria docência. Como as histórias são muitas, também foram muitas as significações que cada um deu a esse termo e as tensões vivenciadas no grupo.

Outro resultado de nossas análises diz respeito às tensões que surgiram no grupo ao longo do curso. As tensões identificadas foram: 1) O mito do método científico e o papel do método dentro da investigação; 2) A influência do grau de estruturação do roteiro de uma atividade na definição de seu caráter investigativo; 3) A vinculação entre atividade investigativa e atividade experimental; 4) O número de fases ou aspectos da investigação que teriam de ser contempladas para que uma dada atividade pudesse ser considerada investigativa; 5) A participação dos estudantes na formulação do problema de uma investigação; 6) A aproximação da ciência escolar com a ciência dos cientistas.

Sob certo ponto de vista, essas tensões também podem ser analisadas a partir de duas categorias. Uma delas refere-se a pensar a investigação como método ou como um jeito de fazer ciências ou de ensinar ciências, que carecia de algumas definições capazes de circunscrever um conjunto de práticas, a saber: existe um método que é, por natureza, investigativo? Que método é esse? Como tais atividades devem ser estruturadas? Quem deve propor o problema a ser investigado ou, em outras palavras, o investigador tem de ser o autor do problema? A atividade precisa ser experimentável? Ela precisa seguir todas as partes ou etapas que compõem uma investigação?

A outra categoria está relacionada ao conjunto de questões que se orientam a examinar os propósitos ou as finalidades de se ensinar ciências e ensinar ciências por meio de atividades investigativas. O que é ciências? Por que ensinar ciências por investigação? Em que medida o ensino de ciências deve favorecer a aproximação da ciência escolar com a ciência dos cientistas?

Nossa pesquisa também identificou certo número de consensos construídos no grupo sobre o tema. Para o grupo, no final da primeira edição do curso, a atividade investigativa é uma estratégia de ensino, entre outras, que o professor pode utilizar para diversificar sua prática no cotidiano escolar. Essa estratégia pode englobar quaisquer atividades (experimentais ou não), desde que elas sejam centradas no aluno, propiciando o desenvolvimento de sua autonomia e de sua capacidade de tomar decisões, avaliar e resolver problemas, ao se apropriar de conceitos e teorias das ciências da natureza. Contudo, concluímos que não existe um roteiro que contenha todos os traços importantes de uma atividade investigativa. Não existe "o exemplo" por excelência. Um roteiro pode explorar vários dos elementos que compõem uma investigação, ou apenas um desses elementos. Assim, para o grupo de tutores e coordenadores, o que parece fazer mais sentido para designar o ensino investigativo é o ambiente em que ele ocorre, e não a estruturação das atividades propriamente ditas.

Bakhtinianamente falando, em cada gesto, em cada fala, em cada argumento, há uma intenção do sujeito de responder a outro sujeito, ou a outro texto, com o propósito de compreender e se posicionar diante do mundo. Para construir consensos, os diversos modos de pensar são explicitados, conferidos, confrontados, negociados, ou até mesmo negados. Desse modo, sempre que abordamos uma tensão, imediatamente nos ocorre falar dos consensos que dela emergiram. Apesar de não existir "o exemplo" que dê conta de satisfazer todas as dimensões pertinentes a uma investigação, existem características que podem nos ajudar a definir uma atividade investigativa, que possa ser realizada em ambiente escolar. As características apontadas pelo grupo ecoam com aquelas encontradas na literatura e dizem respeito a um dado conjunto de processos, tais como: construir um problema, aplicar e avaliar teorias científicas, propiciar a obtenção e a avaliação de evidências, valorizar o debate e argumentação, permitir múltiplas interpretações.

Mesmo considerando que o grupo tenha chegado a muitos consensos e tenha produzido a estabilização de alguns sentidos, não chegamos a elaborar uma definição acerca do termo ensino por investigação. Não se pretendeu aplicar as normas rígidas das definições clássicas em nenhum dos momentos do curso. Isso nem sequer era desejável, do ponto de vista de nosso projeto de formação docente. Essa indefinição encontra eco nos pesquisadores da área de educação em ciência que fizeram parte de nossa revisão bibliográfica. Lembremos que, para Anderson (2002), toda tentativa de generalização resulta no empobrecimento da compreensão do que consiste uma atividade complexa como é a investigação no ambiente escolar.

Assim, no caso desta pesquisa, concluir sobre o que é investigação e ensino por investigação seria extremamente problemático e incoerente com a perspectiva teórica adotada. Isso não significa dizer que nada pode ser concluído. A síntese sobre o processo de formação que o grupo vivenciou trouxe lugar de conforto ou de definição ao nível dos sujeitos, mas não gerou definição ou acabamento de um objeto, no caso a investigação no ambiente escolar e o ensino orientado pela investigação. A aproximação com sentidos estáveis, amplos e mais coletivamente consolidados só pôde ocorrer por extensão aos diferentes exemplos, modos eleitos pelos autores para abordar tal objeto. Cada exemplo trazido, como capítulo de uma grande narrativa, permitiu, aos tutores, coordenadores e autores, ampliarem sua compreensão sobre a investigação no ensino de ciências. Os exemplos foram sendo buscados em diferentes fontes: na prática docente dos tutores, nos materiais produzidos pelos autores, nas orientações curriculares de diferentes países, em textos didáticos e em projetos encontrados na internet.

De acordo com Bruner (1997), os modos paradigmático e narrativo são igualmente legítimos para se produzir conhecimento, embora sejam genuinamente diferentes e irredutíveis um ao outro. Enquanto o modo paradigmático diz respeito às proposições lógico-científicas, o modo narrativo é da ordem das experiências dos sujeitos, no nosso caso, da docência mesma, enquanto experiência profissional. De acordo com Lara (2004), definição por extensão é dada mediante exemplos. Foi exatamente isso que se deu no ENCI. Por meio de exemplos típicos de situações de sala de aula apresentados nas disciplinas, foi se configurando uma resolução para os sujeitos do que era ensino por investigação. Isso pode ser mais bem compreendido pela fala de um dos tutores, ao revelar que, a partir de um determinado momento, "todo mundo estava mais feliz e aliviado". Mas, ele explica que "antes foi muita coisa nova, muita informação de uma forma dispersa, sem nenhuma definição e foi muito cansativo e angustiante para os tutores". Se não foi fornecida uma definição antes, essa surge como consequências das inúmeras situações vividas no grupo. Esse grupo, por sua vez, não estava interessado na investigação científica em si, mas em uma proposta de ensino que viabilizasse o ambiente investigativo no ensinar e aprender ciências. A discussão do que era investigação era, portanto, subordinada à busca de sentido para o ensino por investigação.

Na vivência do grupo, o termo ensino por investigação não encontrou definição na perspectiva do pensamento paradigmático, pois, ao fazê-lo, perderíamos a riqueza e a diversidade de perspectivas e correríamos o risco de caricaturá-lo. Contudo ele pode ser estabilizado por meio do pensamento narrativo, isso é, por intermédio de uma coleção de casos ou exemplos que encontram conexão com as práticas sociais.

Desta forma, com essa pesquisa, não se fecharão sentidos para o que foi entendido por ensino por investigação, mesmo porque, de acordo com Bakhtin (1997a), a dialogicidade da vida e dos discursos entre sujeitos singulares, por princípio, instaura um eterno vir a ser de sentidos instáveis e inacabados. De consensos e dissensos provisórios. "Vivemos sob o signo da incompletude e do inacabamento como síntese de muitas vozes, vivido no seu caráter dialógico - de abertura e inacabamento" (LIMA, 2005, p. 212). Assim, usando as palavras de Bakhtin (1997a, p. 413):

Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que nasceram do diálogo com os séculos passados, nunca estão estabilizados (encerrados de uma vez por todas). Sempre se modificarão (renovando-se) no desenrolar do diálogo subsequente, futuro. Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola existe uma multiplicidade inumerável, ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor de sua evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo). Não há nada de morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu nascimento. O problema da grande temporalidade.

Considerações finais

Neste trabalho, nos propusemos apresentar e discutir as opções teórico-metodológicas utilizadas para gerar e analisar os dados a partir das enunciações de um grupo de formadores, no qual atuamos tanto como pesquisadores, formadores e sujeitos da pesquisa.

Ao contrário do que foi vivenciado nessa pesquisa, muitos autores, preocupados com a questão da objetividade e confiabilidade na pesquisa em educação, apresentam recomendações quanto à necessidade de se buscar uma imersão do pesquisador na cultura dos sujeitos pesquisados e, ao mesmo tempo, construir mecanismos de credibilidade nas pesquisas qualitativas. Nosso desafio foi em ambos os sentidos, quais sejam: de nos distanciar do objeto, uma vez que assumimos vários papéis, e de explicitar as condições de produção dos dados e sentidos atribuídos às enunciações, de modo que outros pesquisadores possam compreender esta pesquisa e dialogar com ela. Até mesmo de atribuir outros sentidos aos dados.

O fato de não utilizar mecanismos clássicos de objetividade na pesquisa em educação, não significou negligenciar os cuidados fundamentais. Os dados foram coletados em situações concretas de enunciação dos sujeitos, no próprio processo de formação no grupo. Esses dados, portanto, não nos foram dados, mas produzidos não só a partir das intencionalidades demarcadas por essa pesquisa, como, também, pelas necessidades do grupo em dar continuidade a um processo de formação já iniciado que tinha por tema a investigação. Analisar o que foi dito no contexto do modo como os sujeitos enunciaram permite, ao leitor, acompanhar o movimento de análise do investigador e concordar ou não com a análise feita daquele dado explicitado. O que não seria possível se tivéssemos optado pelas análises de conteúdos, e não pela análise das enunciações. Na análise de conteúdo não interessa quem diz, nem como se diz, nem em que contexto o dizer se apresenta, mas tão somente os enunciados. Nesse sentido

[...] o dado é o que acontece, não o que deveria acontecer, nem o que ficou faltando [...]. O dado por si só não fala, do mesmo modo que permite interpretações e teorizações, regula, constrange e limita nossos delírios. Qualquer que seja sua natureza e origem ele existe independentemente da pesquisadora e apesar das coincidências entre esta e a questão pesquisada. (LIMA, 2005, p. 41)

O modo como nossos dados foram coletados também conspira a nosso favor nesta pesquisa porque eles se deram em situações reais de formação do grupo de formadores e produção do curso, e não como artificio de coleta de dados. O que nos interessou como pesquisadores não foi a validação de grupos externos sobre os sentidos produzidos e o ensino por investigação, mas a compreensão que foi gerada pelo grupo e que se reverteu em benefício do próprio grupo na condição de formadores.

Os sentidos estabilizados possibilitaram para o grupo uma ampliação: da compreensão da natureza da ciência, da experimentação, de atividades investigativas, simulação, coleta automática de dados, entre outros. Esses sentidos são coincidentes com aqueles encontrados em outras pesquisas. Além disso, proporcionaram a construção de uma síntese sobre ensino por investigação, importante para a educação em ciências, na medida em que tal síntese foi construída a partir de um grupo heterogêneo em relação à formação básica, à condição docente e aos propósitos em relação à formação e à pesquisa.

As diferentes fontes e métodos de coleta de dados foram importantes no sentido da complementaridade, do confronto de perspectivas e dos consensos construídos. Por consequência, esse procedimento de coleta de dados levou à configuração de um quadro mais completo de um termo altamente polissêmico e pouco consensuado entre os pesquisadores da área.

É preciso lembrar, ainda, da nossa condição de pesquisadores, sujeitos da pesquisa e formadores. Nessa condição, talvez o mais importante seja manter o caráter ético da pesquisa com os sujeitos envolvidos. Isso significou vigilância diante do compromisso de responder adequadamente às dificuldades e demandas do grupo, e de considerar cada um como autor e autoridade para dizer sobre o que estava sendo investigado.

Em nossa pesquisa, enfatizamos a identificação da educação como ciência ou como arte. Isso nos leva a uma reflexão sobre se devemos reduzir a educação a princípios gerais para antecipar os problemas inerentes aos fenômenos educacionais ou se devemos entender que cada um desses fenômenos é particular e único, podendo se aproximar ou se afastar de outros apenas em função de suas características particulares e circunstanciais.

  • 4
    O Cecimig é um órgão complementar da Faculdade de Educação da UFMG, com longa experiência na educação continuada de professores, seja por meio de oferta de cursos de especialização presencial e a distância, seja por meio dos vários projetos de extensão realizados ao longo de sua história.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2013
  • Aceito
    06 Dez 2013
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