Open-access Geometria variável e parcerias estratégicas: a diplomacia multidimensional do governo Lula (2003-2010)*

Variable geometry and strategic partnerships: the Lula administration's multidimensional diplomacy (2003-2010)

Resumos

Este artigo tem como objetivo verificar a consistência da pluralização de grupos de coalizão e das parcerias estratégicas na política externa do governo Lula (2003-2010). A hipótese central desta pesquisa é que a nova matriz da política externa é mais fluida e multidimensional, com arranjos políticos, alianças e parcerias estratégicas flexíveis, de acordo com os atores e interesses. Para testar a hipótese, essa pesquisa utilizou, como metodologia, a revisão bibliográfica dos conceitos de grupos de coalizão, geometria variável e parceria estratégica na análise da política externa brasileira recente, a partir de uma descrição conceitual e empírica. Em seguida, passou a cruzar os dados referentes aos grupos de geometria variável e coalizões com a lista das parcerias estratégicas do Brasil, para identificar pontos de convergência e divergência. Posteriormente, faz um rápido cruzamento das informações com as parcerias comerciais do Brasil, também para identificar continuidades e descontinuidades.

Política Externa Brasileira; Governo Lula; Diplomacia Multidimensional; Parcerias Estratégicas


This article aims to verify the consistency of the pluralization of coalition groups and strategic partnerships in the foreign policy of the Lula Government (2003-2010). The central hypothesis of this research is that the new matrix of foreign policy is more fluid and multidimensional, with political arrangements, strategic alliances and partnerships that are flexible, according to the actors and interests concerned. In order to test the hypothesis, this research used literature as methodology the review of the concepts of coalition groups, variable geometry and strategic partnership in the analysis of recent Brazilian foreign policy, from a conceptual and empirical description. Then went on to cross the data for the variable geometry groups and coalitions with list of strategic partnerships in Brazil, to identify points of convergence and divergence. Later, a crossing of information with Brazilian business partnerships is made, also in order to identify continuities and discontinuities.

Brazilian Foreign Policy; Lula Government; Multidimensional Diplomacy; Strategic Partnerships


Introdução

Durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), a política externa brasileira operou sobre uma nova matriz de inserção internacional, que constitui a superação do modelo de inserção internacional do país dos anos 1990. A nova matriz de política externa, em desenvolvimento na última década, tem como principais características o aprofundamento da integração regional, a retomada da tradição multilateral do Brasil, um novo perfil crítico das relações assimétricas entre os Estados, a busca de parcerias estratégicas com países similares em todos os continentes e uma reaproximação dos países subdesenvolvidos, bem como a manutenção de relações com os países desenvolvidos. Além disso, verifica-se a retomada de uma ofensiva diplomática através da construção de uma agenda de temas sociais.

Nesse sentido, o Itamaraty buscou, na última década, aumentar a densidade de relações em espaços pouco ocupados pela diplomacia brasileira nos anos 1990, com a aproximação dos países sul-americanos, especialmente os andinos, da África Austral, dos países árabes e da Índia, China e Rússia. Além disso, a cooperação e o aprofundamento de parcerias com esses países permitiram a construção de alianças de "geometria variável" tais como o G-3, o G-20 e os BRICS, ou seja, estas alianças potencializam as relações bilaterais do Brasil com países classificados, pelo governo brasileiro, como "parcerias estratégicas".

Neste contexto, observou-se, durante o governo Lula, um grande "ativismo diplomático", marcado pelo aumento do número de viagens, pela instalação de novas embaixadas e pela busca de maior protagonismo nos fóruns globais, o que gerou uma intensificação das relações multilaterais e regionais do país, bem como uma intensificação das relações bilaterais, muitas das quais adquiriram o status de "parceria estratégica" junto ao Brasil. Para além dos tradicionais cortes analíticos (relações Norte-Sul e Sul-Sul), a diplomacia brasileira percorreu novos caminhos, superando tradicionais dicotomias (como globalismo e americanismo/Norte-Sul) e investindo em parcerias que pudessem potencializar os interesses brasileiros no sistema internacional. Esta situação pode ser considerada nova na política externa brasileira, quando considerada a diversidade dos atores e dos grupos de coalizão abrangidos. Neste sentido, o problema central desta pesquisa consiste em identificar a racionalidade subjacente nesta estratégia e testar a coerência das parcerias elencadas, considerando os objetivos estratégicos da política externa brasileira. Em síntese, o questionamento central desta pesquisa consiste em verificar a consistência e coerência da pluralização de grupos de coalizão e das parcerias estratégicas brasileiras, respondendo à seguinte pergunta: pode-se afirmar que a diplomacia brasileira recente opera em eixos multidimensionais, flexíveis de acordo com os atores e interesses em jogo, operando a partir de convergências seletivas?

A hipótese central desta pesquisa é que, em contraste com a matriz desenvolvimentista dos anos 1970-1980 (na qual os eixos Norte e Sul de atuação eram mais claros), e com a matriz dos anos 1990 (na qual se buscava a autonomia pela participação e engajamento nos fóruns multilaterais), a nova matriz da política externa é mais fluida e multidimensional, com arranjos políticos, alianças e parcerias estratégicas mais flexíveis. A multidimensionalidade ocorre com a atuação em vários planos (bilateral, multilateral e regional) coexistindo por tema, de acordo com os atores e interesses em jogo. As parcerias estratégicas mantidas pelo Brasil são flexíveis tematicamente e, embora tenham uma nítida preponderância dos países em desenvolvimento, não descartam as relações com países desenvolvidos, como França e Estados Unidos.

Para testar a hipótese, essa pesquisa utilizou, como metodologia, a revisão bibliográfica dos conceitos de grupos de coalizão, geometria variável e parceria estratégica na análise da política externa brasileira recente, a partir de uma descrição conceitual e empírica. Em seguida, elencou os principais "grupos de geometria variável" e passou a cruzar os dados referentes aos grupos de geometria variável e coalizões com a lista das atuais parcerias estratégicas do Brasil, para identificar pontos de convergência e divergência. Posteriormente, fez-se um rápido cruzamento das informações com as parcerias comerciais do Brasil, também para identificar pontos de coincidência, continuidades e descontinuidades.

Grupos de Coalizão, Geometria Variável e Multidimensionalidade

A formação de blocos institucionalizados e de grupos de coalizão com países em desenvolvimento é considerada um projeto inovador da política externa do governo Lula (SOARES DE LIMA, 2005). Entretanto, o processo de reaproximação com os países do Sul já se havia iniciado em parte ao fim do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando o país se uniu à Índia e à África do Sul no contencioso das patentes de medicamentos contra o HIV/AIDS (SILVA, 2009). No entanto, a busca pela diversificação das parcerias, procurando aliados nos diversos temas de interesse do Brasil, foi ampliada e aprofundada pela política externa do governo Lula (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007). A diversificação de parcerias e a formação de coalizões davam a oportunidade de o Brasil se posicionar como uma espécie de "ponte" entre os interesses dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, ampliando sua projeção internacional (BURGES, 2013). A partir de então, muitos dos interesses estratégicos brasileiros nos fóruns multilaterais, definidos pelo governo, serão articulados junto aos grupos de coalizão. Assim, cada interesse específico terá uma articulação específica. Para os propósitos deste artigo, elencamos seis desses grupos e o interesse brasileiro. O fortalecimento da cooperação Sul-Sul (IBAS), o debate da multipolaridade (BRICS), a defesa do principio de "reponsabilidades comuns, porém diferenciadas" nos fóruns ambientais (BASIC), a defe sa da abertura dos mercados agrícolas (G-20 Comercial), a ampliação do Conselho de Segurança da ONU (G-4) e um grupo que não representa uma proposta, mas um fórum para o debate sobre a crise e o sistema financeiro internacional (G-20 Financeiro), são os principais interesses brasileiros discutidos nos fóruns multilaterais.

Assim, o país promoveu, já em 2003, a criação de dois blocos, o IBAS, ou G-3, e o G-20 Comercial. O IBAS representa a institucionalização da parceria entre Brasil, Índia e África do Sul, tendo como objetivo promover a cooperação em "um amplo leque de temas, que vão do comércio até a questão de segurança internacional" (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 296). Na agenda destes países, além da cooperação técnica e das possibilidades de integração de articulação entre países de desenvolvimento similar, estão as questões políticas de reordenamento do sistema internacional pós-Guerra Fria e a reforma do Conselho de Segurança da ONU. O G-20, por sua vez, é composto por países em desenvolvimento que defendem a liberalização dos mercados agrícolas no âmbito da OMC, tendo grande atuação da Rodada Doha:

Como em outras alianças do Sul, a administração Lula da Silva parece acreditar que essa coalizão possui interesses que vão além da ampliação dos benefícios econômicos individuais, e que seus integrantes compartilhariam uma identidade comum, buscando uma ordem social e econômica mais "justa" e "igualitária" (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 298).

De fato, no contexto de transformações na política externa brasileira, o G-20 foi constituído em 20 de agosto de 2003, nas reuniões preparatórias para a V Conferência Ministerial da OMC, realizada em Cancún (México), entre 10 e 14 de setembro de 2003. O Grupo concentra sua atuação em agricultura, o tema central da Agenda de Desenvolvimento de Doha. De fato, desde a conferência ministerial anterior (Doha, em 2001), os países-membros da OMC tentavam, sem sucesso, chegar a algum acordo a respeito da agenda decidida na capital do Catar, cujo eixo era precisamente o desenvolvimento e a questão agrícola. É grande a importância dos membros do G-20 na produção e comércio agrícolas, representando quase 60% da população mundial e 70% da população rural em todo o mundo (OLIVEIRA, 2005). A articulação do Brasil o tornou um dos países líderes do grupo, juntamente com a Índia.

Já a articulação com os países conhecidos como BRIC (Brasil, Rús sia, Índia e China) foi institucionalizada em junho de 2009, na cidade russa de Ecaterimburgo, quando da I Reunião de Cúpula do Grupo BRIC. A segunda reunião ocorreu em 2010, no Brasil. A terceira, em abril de 2011, ocorreu na cidade chinesa de Sanya, e incorporou a África do Sul. A IV Cúpula ocorreu em 2012, em Nova Délhi; e a V Cúpula, em Durban, na África do Sul, em 2013. A inclusão da África do Sul neste bloco sinalizou para a orientação política a ser seguida. Além da defesa da multipolaridade e da necessidade de democratizar as instâncias decisórias da política mundial, a inclusão da África do Sul reformou uma agenda voltada para os temas do desenvolvimento e da cooperação Sul-Sul.

Há mais de uma década, intelectuais e diplomatas já falavam da necessidade de países como China, Brasil, Índia e Rússia se articularem (GUIMARÃES, 1999). Embora pertençam a tradições culturais e políticas distintas, possuem características em comum, como grande extensão territorial, grande população, potencial de crescimento e de desenvolvimento, bem como capacidade de segurança e defesa. Apenas o Brasil (e agora a África do Sul) não detêm armas nucleares. Assim, o conceito de BRIC, que havia sido cunhado no meio corpo rativo para designar os países que teriam grande crescimento nas próximas décadas (O'NEILL, 2001), foi aproveitado pelos países e transformado em mais um fórum de articulação política, que envolve os grandes países representativos de suas regiões.

O BASIC é um grupo articulado, em 2009, por Brasil, África do Sul, Índia e China para discutir as mudanças climáticas. Sua criação ocorreu durante a 15a Convenção das Partes (COP15) da Organização das Nações Unidas. O grupo surgiu da pressão que os países desenvolvidos começaram a fazer sobre a necessidade de os países em desenvolvimento também serem obrigados a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa. Nos encontros sobre meio ambiente, muitas clivagens e diferenças de posições podem ser observadas. Em primeiro lugar, há uma nítida diferença de posição entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento. Os países em desenvolvimento exigem apoio econômico para cumprir metas de redução de poluentes. Os países desenvolvidos recusam a se comprometer com uma cota maior para redução dos poluentes (HALLDING et al., 2011).

Neste contexto, o Grupo BASIC tem buscado fazer uma concertação para atuação conjunta (Brasil, África do Sul, Índia e China) e buscar influenciar o G-77 (grupo de países em desenvolvimento) para pres sionar os países desenvolvidos nas conferências sobre meio ambiente. Os principais objetivos do Grupo BASIC são defender o princípio de "responsabilidade comum, porém diferenciada" na agenda das conferências e articular as demandas ambientais com a necessidade de desenvolvimento dos países (HOCHSTETLER, 2012).

Já o G-20 Financeiro incorpora as principais economias mundiais, formado por África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Turquia e União Europeia (Comissão Europeia, Presidência e Banco Central Europeu), e criado para facilitar o diálogo entre ministros da Fazenda e presidentes dos Bancos Centrais, visando a ampliação do diálogo acerca dos principais temas de política econômico-financeira e a promoção de cooperação para consecução de crescimento econômico estável e sustentável. Entre 1999 e 2008, o G-20 Financeiro atuou como foro de ministros da Fazenda e presidentes de Bancos Centrais. Com a crise financeira de 2008/2009, o grau de representação do grupo foi elevado, por iniciativa do presidente Lula, a encontro em nível de chefes de Estado e governo (SOARES DE LIMA, 2010).

Dessa forma, em 2008, em Washington, foi realizada a primeira Cúpula de Líderes do G-20 Financeiro, evidenciando a importância que o grupo conquistou. A sua legitimidade, materializada com a designação, em Pittsburgh, em 2009, do G-20 Financeiro como principal foro para debate de temas econômico-financeiros, teve sua origem nos resultados bem-sucedidos de suas medidas em meio à crise (BRASIL, 2010). O G-20 Financeiro incorpora duas questões pertinentes para a presente análise. Em primeiro lugar, pelo reconhecimento dos países ricos da importância crescente dos emergentes, como o IBAS e, principalmente, os BRICS. Em segundo lugar, cons titui uma coalizão com perfil diferenciado das demais de que o Brasil participa, por incorporar tanto países desenvolvidos como em desenvolvimento, característica também presente no G-4.

Já na questão da reforma do Conselho de Segurança da ONU, o Bra sil articulou-se com outros três países igualmente candidatos às pretendidas novas vagas permanentes. Em 2004, formou-se o G-4, com Brasil, Índia, Alemanha e Japão. Dois países altamente desenvolvidos (Alemanha e Japão) e dois grandes países em desenvolvimento selaram uma aliança formal em defesa de suas candidaturas, no contexto de pressão pela reforma das Nações Unidas. Entretanto, devido a uma série de pressões e a uma estratégia própria, o Japão anunciou a saída do G-4 em janeiro de 2006, mas retornou a dialogar com o grupo em julho de 2007, em uma reunião em Nova York (FUNAG, 2010).

Assim, pode-se notar que a proposta da política externa do governo Lula ultrapassa a formação de coalizões para defesa de interesses específicos, intencionando a formação de alianças que defendam, no plano político, um maior espaço dos países em desenvolvimento nos foros multilaterais:

Apesar das diferenças entre o Brasil e os outros grandes Estados periféricos, ao compartilharem características e interesses comuns e esta rem situados em regiões distantes, seus interesses não são diretamente competitivos e, assim, há condições para a construção de projetos po líticos comuns (VIGEVANI; CEPALUNI apud GUIMARÃES, 1999, p. 141).

Essa forma de atuação, que buscou firmar laços de interesses comuns também com parceiros não tradicionais, foi alvo de críticas internas no Brasil durante o governo Lula (ALMEIDA, 2010; RICUPERO, 2010). Acusou-se a falta de pragmatismo comercial brasileiro, ao não dar prioridade à relação com os EUA, principalmente no que se referia às negociações para a implementação da ALCA. Além disso, criticou-se a falta de foco na política externa, que se empenharia em investir em objetivos não promissores. No entanto, Vigevani e Cepaluni (2007) afirmam que essa nova tendência não estaria em desacordo com os acontecimentos no cenário internacional, ressaltando a as censão da Ásia como polo de poder.

Neste contexto, Cristina Pecequilo (2008) afirma que o Brasil passou a atuar em dois eixos no governo Lula, combinando uma posição de barganha no eixo vertical e de formação de alianças no eixo horizontal. Essa estratégia estaria ligada ao que a autora define como a tomada de um ponto de vista realista do ordenamento do sistema, transitando da uni à multipolaridade. Assim, a política externa brasileira teria necessidade de acompanhar a ascensão de novos polos de po der, por meio da firmação de novas alianças:

Ainda que detenham poder incontestável no campo militar, os EUA tendem a compartilhá-lo nas demais esferas devido à intensificação dos processos de interdependência e transnacionalização por eles mesmos capitaneados. A diversificação dos polos de poder, incluindo potências desenvolvidas e emergentes, caracteriza este momento: China, Índia, Rússia, União Europeia, Japão, Brasil e África do Sul são alguns destes agentes (PECEQUILO, 2008, p. 144).

Por outro lado, Pecequilo destaca que essa nova conformação não faz com que as relações com os EUA decaiam. Reconhece-se a importância daquele país como parceiro, mas assume-se uma posição de barganha durante as negociações, até porque os EUA privilegiam negociações com Estados fortes, como Índia e China. De acordo com a autora: "Este padrão de autorrespeito é comum em parceiros norte-americanos como China e Índia, e passou a ser adotado pelo Brasil pela ampliação de sua agenda e conciliação do bilateralismo com seu característico perfil de global trade replayer" (PECEQUILO, 2008, p. 144).

Assim, o eixo horizontal se definiria ao longo do governo Lula com as parcerias com as nações emergentes, pelas semelhanças de inte resses e problemas de grande Estados periféricos e países em desenvolvimento, como Índia, China, África do Sul e Rússia. Também fazem parte da agenda os países com menor grau de desenvolvimento da África, Ásia e Oriente Médio. A autora ressalta que os benefícios potenciais deste eixo se dariam nos planos econômico, estratégico e político (PECEQUILO, 2008).

A "equivalência" de objetivos seria o fator que firmaria, então, os laços entre os países do Sul. Na dimensão político-estratégica, a finalidade é a reforma dasorganizações governamentais internacionais, como o G8, o FMI, o Banco Mundial e, principalmente, o Conselho de Segurança da ONU. Na dimensão econômica, existe consonância no que diz respeito à defesa da liberalização dos mercados agrícolas. No entanto, algumas coalizões agregariam tanto o eixo vertical com o horizontal, ou ainda, haveria consonância em alguns temas com o país e discordância em outros, o que envolve grande complexidade na forma de atuação multidimensional da diplomacia brasileira.

Já Marcelo de Oliveira (2005) procura avaliar se as novas coalizões presentes na ação de política externa do governo Lula são suficientemente fortes para se manterem no futuro, ou se dependem apenas de problemas comuns, perdendo força com o eventual sucesso em defender os interesses. Assim, o autor analisa os grupos de alianças lançados pela política externa do governo Lula, nomeadamente o IBAS e o G-20, mostrando a estratégia de aproximação com os países do Sul e a importância dos foros de geometria variável na defesa dos interesses brasileiros na esfera internacional.

Oliveira (2005) afirma que a criação desses blocos de cooperação seria fundamental para ampliar o escopo de atuação dos países em desenvolvimento nos foros multilaterais, defendendo seus interesses conjuntamente. Além disso, a defesa da liberalização dos mercados agrícolas no G-20, por exemplo, frutificaria externalidades positivas, como o apoio dos países menos desenvolvidos, entre os quais a grande maioria depende economicamente da exportação de commodities. Oliveira indica a Conferência de Cancún (2003) como o momento inaugural da proposta de promoção do adensamento das relações diplomáticas brasileiras com os países do Sul. Na conferência, a aproximação entre as potências emergentes, Brasil, Índia e China, possibilitou que se formasse uma liderança da nova coalizão, que se tornaria o G-20, bloco cuja atuação se daria no campo da agricultura, na busca pela liberalização dos mercados agrícolas (OLIVEIRA, 2005, p. 9).

O autor afirma que esta articulação Sul-Sul no âmbito da OMC representa uma mudança no formato das negociações, com a ampliação do poder de barganha dos países em desenvolvimento.

O amplo número de participantes do G-20 Comercial lhe conferiu maior grau de credibilidade, o qual se fortalece com a ausência de sinais de cisão entre os líderes, essencial para manter o apoio dos países menores. O autor identifica um novo significado na lógica das coalizões dos países em desenvolvimento. Oliveira indica que a combi nação de coalizão de bloco com coalizões temáticas promove a renovação das estratégias daqueles países. Haveria maiores efeitos práticos em um agrupamento que não se baseasse tão somente em fatores ideacionais, como ocorria no Movimento dos Não Alinhados, mas que tivesse uma temática em torno de questões instrumentais:

Isso proporcionou a oportunidade da emergência de coalizões de novo tipo, de terceira geração, as quais tendem a permitir que países em desenvolvimento recuperem a clivagem Norte/Sul na política internacional, atuem como coalizão de bloco, mas, ao mesmo tempo, estabeleçam coalizões temáticas, apropriando-se instrumentalmente com grande capacidade técnica da agenda pró-livre-comércio dos países desenvolvidos para abrir seus mercados agrícolas (OLIVEIRA, 2005, p. 10).

O autor interpreta como incerta a perenidade do G-20 nas próximas reuniões da OMC. A possibilidade de se atingir o objetivo de obter maior grau de liberalização agrícola e, assim, findar a motivação do bloco é uma ameaça de cisão. Além disso, há a mobilização dos paí ses desenvolvidos que buscam minar o bloco, ressaltando interesses divergentes entre seus membros:

A capacidade dos países desenvolvidos em desmobilizar coalizões de interesses divergentes amplia-se quando eles utilizam a estratégia de barganhas cruzadas no tabuleiro comercial de geometria variável, cooptando os países menores em troca de benefícios específicos e acenando aos maiores, tais como Índia, a possi bilidade de juntos ganharem em outros setores, como serviços (OLIVEIRA, 2005, p. 13).

Já o IBAS, bloco trilateral que envolve Brasil, Índia e África do Sul, tem como propósito o fortalecimento da capacidade de influenciar as negociações comerciais no âmbito da OMC frente aos países desenvolvidos, bem como a redução da pobreza e promoção do desenvolvimento. Além disso, luta pela reforma da ONU, defendendo a democracia na política internacional, com a incorporação de novos países como membros permanentes no Conselho de Segurança (como Índia, Brasil e África do Sul). Em questões práticas, o IBAS busca ampliar a cooperação técnica entre os três países nas áreas de trans porte, energia, comércio, entre outras (OLIVEIRA, 2005, p. 7).

Sendo assim, Oliveira (2005) destaca a emergência de uma nova configuração na cooperação Sul-Sul, com a formação de blocos de temática específica para a defesa de interesses comuns. Essa nova forma de articulação ampliaria o grau de influência dos países em de senvolvimento nos foros multilaterais, possibilitando a defesa de seus interesses. No entanto, ainda não é possível prever se essas novas alianças permanecerão ativas no futuro, dado que a motivação de sua criação passa pela existência de um interesse comum específico. Ainda assim, o autor considera o IBAS como importante player na política internacional, além da potencialidade de ser benéfico a longo prazo para a economia brasileira, embora reconheça que haja pouca complementaridade entre os países que compõem o IBAS.

Para Onuki e Oliveira (2013), o IBAS serve ao Brasil como um instrumento de alavanca do seu poder de barganha no jogo internacional de poder, servindo como um contrapeso às grandes potências no jogo multilateral. Apesar dos baixos índices de interdependência econô mica entre os três países, o IBAS é dotado de uma grande dimensão simbólica, por ser constituído de países grandes em desenvolvimen to (ONUKI; OLIVEIRA, 2013).

Maria Regina Soares de Lima (2005) aborda a cooperação Sul-Sul como o movimento da política externa brasileira em direção ao exer cício de um metapodernas questões multilaterais do comércio. A novidade dessa articulação com o mundo em desenvolvimento estaria no foco em um assunto, qual seja, a liberalização dos mercados agrícolas, o que representa a aparição de interesses concretos no bloco dos países do Sul. Assim, a autora conclui que a expressão utilizada pelo presidente Lula do surgimento de uma "nova geografia do poder" condensa os dois papéis internacionais reservados aos países intermediários: o de "system-affectingstate" e o de "grande mercado emergente" (SOARES DE LIMA, 2005). Tais papéis não entrariam em contradição na política externa do governo Lula uma vez que, ao lançar a estratégia de estreitar relações com os países em desenvolvimento, não há um distanciamento nas relações com os países do Norte: "da perspectiva do atual governo, a cooperação Sul-Sul não substitui o relacionamento com os EUA e a União Europeia, mas representa uma oportunidade de ampliar o comércio exterior brasileiro" (SOARES DE LIMA, 2005, p. 31).

A autora dá relevância à análise do IBAS no rol da estratégia do governo Lula de expandir a cooperação Sul-Sul. África do Sul, Brasil e Índia podem ser classificados como membros semiperiféricos do sistema econômico internacional, sendo grandes democracias com gra ves problemas de inclusão social. A motivação do bloco, para a política externa brasileira, não passa só pela cooperação no âmbito multi lateral nas temáticas de paz e segurança, e comércio e desenvolvimento. Há o intento de se construir vínculos políticos fortes entre os três países.

Para os países do IBAS, existe o objetivo comum de se tornarem membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, baseando-se no princípio da representatividade geográfica, assim "a inicia tiva IBSA tem na questão da reforma do Conselho um de seus pontos programáticos" (SOARES DE LIMA, 2005, p. 17). O grande desafio do bloco seria, segundo Maria Regina Soares de Lima, o desempenho da função dos países do IBAS como intermediários entre as grandes potências e os países menores, defendendo os foros multila terais como arena de tomada de decisões. O sistema multilateral é buscado pelas potências emergentes como meio de tentar alcançar uma posição de influência na tomada de decisões a nível internacional. Entretanto, articular os países menores é o grande desafio, pois esses são influenciados pelas grandes potências, que, por sua vez, dependem menos do multilateralismo para defender seus interesses nas questões de comércio e segurança, sem provocar o enfraquecimento dos regimes multilaterais de comércio e segurança coletiva (SOARES DE LIMA, 2005, p. 21).

Em relação ao G-20, formado em 2003, a autora afirma que ele repre senta um renascimento da coalizão terceiro-mundista, mas agora com um foco nos interesses agrícolas dos países em desenvolvimento. Assim como o IBAS, o G-20 seria outro grupo de cooperação pelo qual o Brasil visa desempenhar a função de "intermediário indispensável" entre os "fracos" e os "fortes": "a formação do G-20 e a nova situação de demandeur na área agrícola representam o retorno brasileiro aos dois tabuleiros de atuação diplomática: o da cooperação Sul-Sul e o da negociação de concessões comerciais com os principais parceiros do Norte" (SOARES DE LIMA, 2005, p. 20-21). Assim, é uma coalizão pragmática, na qual os grandes países em desenvolvimento procuram aumentar seu grau de influência nas decisões em relação ao comércio internacional.

De acordo com Amrita Narlikar e Diana Tussie (2004, p. 57), dentre as coalizões da Reunião Ministerial de Cancún de 2003, o G-20 se mostrou como principal exemplo de coesão, conseguindo contornar os principais problemas enfrentados por coalizões formadas por países em desenvolvimento. Os principais desafios a coalizões formadas por países em desenvolvimento estão ligados ao seu peso externo e à possibilidade de fragmentação. O G-20 reunia vários desses problemas, com exceção do problema de peso econômico, logo havia grande possibilidade de fragmentação. A sua sobrevivência pode ser explicada, em grande parte, pela aprendizagem com as experiências anteriores de formação de coalizões.

Os principais desafios a coalizões formadas por países em desenvol vimento estão ligados ao seu peso externo e à possibilidade de fragmentação. O primeiro problema pode ser superado através da inclusão de economias maiores ao grupo ou de um aumento no número de membros, o que colabora para "um aumento do tamanho do mercado conjunto da coalizão e também da legitimidade de sua agenda" (NARLIKAR; TUSSIE, 2004, p. 54). Além disso, mesmo que a coalizão compreenda países frágeis, estes ainda podem exercer influência nas negociações se realizarem uma pesquisa minuciosa em relação ao assunto das negociações e mantiverem um intercâmbio de informações (NARLIKAR; TUSSIE, 2004, p. 54-56).

As coalizões dos últimos vinte anos podem ser divididas entre coalizões de bloco e coalizões temáticas. As do primeiro tipo se dão em um cenário de fatores ideológicos, reunindo países de ideias semelhantes e agindo coletivamente sobre vários temas. Já as do segundo tipo são construídas por questões instrumentais e agem em relação a um tema ou a uma ameaça específica, dissipando-se após a consideração de seu tema. A primeira esteve presente na diplomacia terceiro-mundista até o início da década de 1980; já a segunda teve maior uso durante a Rodada Uruguai (NARLIKAR; TUSSIE, 2004, p. 57).

Aprendendo com os sucessos e fracassos das coalizões de bloco e das temáticas, as coalizões de Doha e Cancún, embora declarassem girar em torno de um problema comum e não de uma ideologia, também incorporavam características das coalizões de bloco. Essas coalizões de terceira geração englobam características tanto das coalizões te máticas quanto das coalizões de bloco: elas duram mesmo após a consideração de seu tema central, pois também abrangem muitos dos problemas conjuntos dos países em desenvolvimento, enquanto também promovem a pesquisa e a troca de informações. Essas coalizões se tornam, assim, mais evoluídas que as anteriores, sendo o G-20 o exemplo que resume esse novo tipo de coalizão (NARLIKAR; TUSSIE, 2004, p. 58-59).

Algumas características do G-20 também explicam o sucesso na ma nutenção de um alto grau de coesão apesar dos desafios já citados. A coalizão tinha importante peso nas discussões, uma vez que "abrangia mais de dois terços da população mundial e 60% dos agricultores de todo o mundo" (NARLIKAR; TUSSIE, 2004, p. 60). Além disso, sua liderança era composta por poderosas potências emergentes (Argentina, Brasil, China, Índia e África do Sul) que mantiveram um alto grau de coesão. O grupo também foi capaz de anular as possíveis rivalidades internas, mantendo um equilíbrio entre interesses liberalizantes e protecionistas, o que tornou possível identificar as potenciais diferenças existentes entre os membros (NARLIKAR; TUSSIE, 2004, p. 60-62).

Pode-se afirmar também como motivo para a sobrevivência do G-20 que, com o foco sendo dado aos temas de Cingapura no último dia de conferência - e não aos temas de agricultura -, a "hora da verdade jamais ocorreu em Cancún", ou também que a União Europeia e os EUA não tenham dado a devida atenção à rodada, devido à sua falta de interesse na liberalização do comércio. O G-20 teria, também, falhado em estabelecer a sua ameaça perante os EUA e a União Europeia. Contudo, a sua existência estabeleceu um precedente em relação à futura interação dos Estados Unidos e da União Europeia com coalizões de países em desenvolvimento, além de ter apresentado um impressionante grau de unidade e coesão em relação às coalizões anteriores (NARLIKAR; TUSSIE, 2004, p. 62-63). Entretanto, o G-20 Comercial apresentou dificuldades em conseguir um acordo com os EUA e a União Europeia, quando foram representados por Brasil e Índia nas negociações do chamado Acordo de Julho (2008). Mesmo assim, o G-20 conferiu legitimidade para as posições do Brasil, que, ao agir como uma ponte entre os países em desenvolvimento e desensvolvidos, tem uma maior vantagem para acelerar ou retardar as pro postas negociadas, de acordo com seus interesses (BURGES, 2013, p. 585-586).

Em síntese, a política externa brasileira do governo Lula elegeu a formação de grupos de coalizão como uma estratégia para o fortaleci mento de suas demandas nos fóruns multilaterais, aumentando sua capacidade de negociação e articulação. Além disso, procurou utilizar a aproximação nos grupos de coalizão para ampliar e intensificar a agenda bilateral com países selecionados, reforçando mutuamente as duas estratégias (bilateral e multilateral).

Figura 1
O Brasil e os Principais Grupos de Coalizão

A Diversificação das Parcerias Estratégicas do Brasil

Durante o período pós-Guerra Fria até o 11 de setembro de 2001, ocorreram alterações no comportamento dos atores centrais das relações internacionais, assim como uma valorização do multilateralismo, tanto econômico, quanto político, o estabelecimento de projetos de regionalização e o surgimento de novos assuntos na agenda internacional. Esse processo foi de influência fundamental na determinação das estratégias dos países a fim de se inserirem no cenário internacional, como no caso do Brasil. Essas novas tendências deram origem a um novo padrão de interação de política externa por volta dos anos 2000, no qual há forte ação nos espaços multilaterais, o que conferiu um novo impulso à reconstrução do universalismo, que, então, passou a adquirir novas prioridades. A revisão das parcerias estratégicas do Brasil faz parte desse novo padrão (LESSA, 2010, p. 115-116).

Tabela 1
Relação Países/Presença nos Grupos Estratégicos

Os acontecimentos pós-11 de setembro e seus impactos nas agendas de segurança, economia e meio ambiente criaram novas oportunidades para o Brasil. Desde então, principalmente após 2003, três principais objetivos guiaram as relações bilaterais do Brasil durante a Era Lula: a busca de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a restauração de relações econômicas tradicionais (Europa, EUA, Japão) junto com uma maior atenção para fortalecimento de relações econômicas com regiões que eram anteriormente desvalorizadas (África, Mundo Árabe, Índia e China) e uma abertura de espaços para os grandes conglomerados brasileiros. As alterações necessárias na agenda de cooperação do país em busca desses objetivos levaram a uma reavaliação do conceito de parcerias estratégicas no país (LESSA, 2010, p. 116-118).

Entre as décadas de 1970 e 1980, a diplomacia brasileira buscou valorizar as relações com a Europa Ocidental a fim de contornar os efei tos das relações com os EUA. Essa primeira experiência das relações estratégicas com os países europeus serviu para afirmar o conceito de parcerias estratégicas no pensamento diplomático brasileiro, garantir uma maior incorporação ao sistema internacional e diversificar seus laços econômicos. Essas relações teriam estabelecido um modelo inicial das futuras relações estratégicas (LESSA, 2010, p. 116-118).

O conceito, então, consolidou-se com um significado definitivo na diplomacia brasileira. No entanto, uma vulgarização da expressão a partir dos anos 2000 levou a um uso inconsequente do termo no discurso diplomático, o que acaba por trazer dúvidas em relação a quais tipos de relações devem ser chamadas de estratégicas. Durante a era Lula, a vulgarização do termo parece ter sido útil enquanto o país procurava um papel de protagonismo no cenário internacional. O problema, no entanto, é a perda de sentido e de importância que surge com essa vulgarização. Logo, uma parceria estratégica passa a se tornar mais um título do que uma designação de relações bilaterais definidas pela cooperação e convergência entre as políticas e a economia de dois países. Nesse caso, testes mais empíricos em relação a fluxos comerciais, densidade do diálogo político, convergência de agendas, potencial da cooperação científico-tecnológica, canais de diálogo e envolvimento em projetos de desenvolvimento conjuntos entre dois países poderiam avaliar mais apropriadamente o conceito de parceria estratégica nas práticas internacionais brasileiras (LESSA, 2010, p. 119-120). Essa é uma das linhas de análise deste artigo, ao procurar verificar as conexões entre coalizões, parcerias estratégicas e fluxos de comércio, e buscar, através do cruzamento destas três abordagens, linhas de continuidade e descontinuidade.

De acordo com Lessa (2010), a relação com os Estados Unidos, por exemplo, pode ser chamada de parceria fundamental ou estrutural uma vez que essa relação influencia todo o sistema brasileiro de relações internacionais, principalmente entre 1945 e 1990. A relação com a Argentina pode ser facilmente colocada como estratégica; no entanto, alguns fatores fazem com que essa relação tenha um caráter único, condicionando a política brasileira para com a América do Sul. Logo, também podendo ser classificada como relação estrutural (LESSA, 2010, p. 120-122).

Recentemente, o Brasil vem rotulando algumas parcerias como estratégicas, a exemplo de suas relações com as potências asiáticas, com os principais países da Europa, além da parceria estratégica com a Rússia e a parceria estratégica trilateral com a África do Sulea Índia. Contudo, as relações com alguns países como Coreia do Sul, Venezuela, Paraguai, Ucrânia, Finlândia, Suécia, Dinamarca e Noruega também foram classificadas como estratégicas. Em relação ao crescente número de relações consideradas estratégicas, a expressão vem se tornando imprecisa e perde o sentido histórico de importância e relevância. Outra relação que pode ser considerada verdadeiramente estratégica é a relação do Brasil com a China, devido ao grande potencial de cooperação políticaeaparceria comercial. OIBAS também se classifica como uma parceria estratégica bilateral devido aos seus mecanismos de cooperação e nas experiências e desafios em comum dos três países (LESSA, 2010, p. 122-128).

De acordo com Pecequilo (2008), o Brasil procuraria atuar com diversas coalizões, combinando o eixo vertical e horizontal, na busca por maior representatividade do país nos diversos temas de interesse. No âmbito político-estratégico, existe o plano de ampliação do G-8, com a associação de Brasil, Índia, África do Sul e China na defesa da inclusão dos países emergentes. No que concerne à ampliação do número de membros permanentes no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil integraria o G-4, composto também por Índia, Japão e Alemanha. No plano econômico, Pecequilo ressalta o potencial dos países emergentes para a formação de uma frente unida nas organizações internacionais (com força quantitativa pelo número e qualitativa pelo status), "que levou ao aumento de seu poder de barganha no comércio, empréstimos, dívida externa, transferência de tecnologias, ajuda direta e investimentos" (PECEQUILO, 2008, p. 146).

Nesse ínterim, cita-se o estabelecimento do IBAS (G-3), que agrega Brasil, Índia e África do Sul, um fórum de diálogo de cooperação científica, tecnológica e política. Em relação à China e à Rússia, integrantes dos BRICS, citam-se a cooperação técnica e científica com a primeira e o crescimento no eixo comercial e político com a segunda. Completando a atuação no eixo horizontal, estaria o processo de integração regional.

Uma tentativa de conceituação de parcerias estratégicas é feita por Diego Rodrigues, que busca realizar uma distinção entre parceria cooperativa e parceria estratégica. Para o autor, parceria cooperativa consiste em uma relação harmoniosa com menor grau de envolvimento em relação à parceria estratégica. Embora as relações entre os países sejam produtivas em vários aspectos, há uma cooperação limitada em relação a questões de estratégia e segurança (RODRI GUES, 2010, p. 58). Já para uma relação ser definida como parceria estratégica, é necessário que haja um diálogo amistoso e institucionalizado entre as autoridades políticas dos países; relações dinâmicas nos âmbitos econômico e sociocultural, de maneira a contribuir com os projetos nacionais dos países envolvidos; uma cooperação ativa no campo estratégico e securitário, inclusive militar; e, por fim, visões semelhantes em relação à organização do sistema internacio nal (RODRIGUES, 2010, p. 58).

Já as parcerias estratégicas mais avançadas envolvem países com in teresses estratégicos e sistemas políticos semelhantes, além de rela ções militares próximas, sustentadas por sistemas de informações in-terligados. As relações entre aliados, no entanto, é ainda mais íntima e duradoura, caracterizando-se uma cooperação entre países que possuem semelhanças em seus sistemas políticos ou econômicos e que abrange objetivos de segurança, estabilidade e influência. Essa última relação pode acabar se transformando em um eixo de poder no cenário internacional, articulando-se coordenadamente em relação a importantes questões internacionais (RODRIGUES, 2010, p. 58).

Por outro lado, Danielly Becard considera que, mesmo diante da excessiva porosidade e permeabilidade, o conceito de parcerias estratégicas pode ser operacional, desde que se observem o contexto utilizado, as identidades produzidas, as relações bilaterais e o perfil dos parceiros, bem como o grau de compromisso que estão dispostos a assumir. Para a autora, as parcerias estratégicas são ferramentas de adaptação às transformações sistêmicas em curso, com a emergência da multipolaridade, a expansão da interdependência, bem como o aumento dos fluxos de informação e negociação nos fóruns multilaterais (BECARD, 2013).

Em síntese, a análise das parcerias estratégicas do Brasil precisa estar atenta ao diferentes níveis e graus de profundidade das relações bila terais, bem como reconhecer certa vulgarização do conceito ocorrida na última década. Assim, é possível delimitar mais claramente o peso e a importância das parcerias estratégicas na política externa brasilei ra contemporânea. Ainda assim, é importante ressaltar que pratica mente todos os acordos de parceria estratégica estabelecidos pelo Brasil incorporam elementos semelhantes, como cooperação tecno lógica, científica, comercial e entendimento diplomático em vários campos da política internacional.

O cruzamento de informações sobre a presença de países nas principais coalizões e grupos de geometria variável, desenvolvidos no governo Lula, indica que os países que compõem o IBAS (Índia e África do Sul) são os que possuem maior grau de convergência nos principais temas de inserção internacional do Brasil. Ampliando um pouco mais, pode-se observar que China e Rússia estariam em terceiro e quarto lugares. Assim, é perceptível que os países que compõem os BRICS (Brasil, Índia, Rússia, China e África do Sul) possuem alto grau de coincidência na presença dos grupos e coalizões considera dos essenciais para a inserção do Brasil durante o governo Lula.

Por outro lado, em relação ao comércio exterior, verifica-se que, das listas dos quinze principais compradores e dos quinze principais fornecedores do Brasil (totalizando um conjunto de dezenove países), apenas quatro países não constam na lista de parcerias estratégicas do Brasil, elencada em pesquisa realizada no site do Ministério das Re lações Exteriores brasileiro. Dos quinze principais países compradores, apenas Holanda e México não constam como parceria estratégica. Dos quinze principais fornecedores, não há acordo de parceria estratégica com a Nigéria e com Taiwan (ressaltando que o Brasil não possui relações diplomáticas com Taiwan). Dessa forma, há uma grande correlação entre as parcerias estratégicas do Brasil em relação aos seus principais parceiros econômicos. Entretanto, embora com Índia e África do Sul (quem compõem o IBAS com o Brasil) exista a maior coincidência de participação em grupos estratégicos de geometria variável, observa-se uma pequena relação comercial, pois nem a Índia, nem a África do Sul figuram entre os principais destinos das exportações brasileiras. Em relação às importações do Brasil, a Índia aparece apenas na décima posição, enquanto a África do Sul não está listada entre os quinze principais compradores.

Os países da América do Sul constituem um caso especial em nossa análise. Embora tenham uma grande participação no comércio exterior do Brasil, e seis dos nove países vizinhos constem na lista de parcerias estratégicas, eles não figuram na lista dos Grupos de Geometria variável, além da participação no G-20 Comercial (apenas a Argentina figura em mais de um Grupo, constando no G-20 Comer cial e Financeiro). Assim, os países da América do Sul não estão integrados nos principais fóruns de articulação multilateral do Brasil, embora constem como parcerias estratégicas e tenham um relativo peso (principalmente o Mercosul) no comércio exterior e a região seja considerada estratégica para a inserção internacional do Brasil. Esta condição é característica da diplomacia multidimensional do Brasil na última década, no qual a dimensão regional adquire dinâmica própria. Entretanto, este pode ser um fenômeno correlato que alguns autores identificam como uma divergência na política global e regional do Brasil (MALAMUD, 2011) e uma possível dificuldade para a inserção global do Brasil, se não tiver apoio regional (NOLTE, 2010).

Neste sentido, o cruzamento dessas três linhas de interpretação (grupos de coalizão, parceria estratégica e parceria comercial) aponta para a necessidade de conferir maior consistência às parcerias estratégicas ao: a) buscar maior complementaridade econômica com o IBAS; b) transformar a Nigéria em parceira estratégica, de modo a reforçar politicamente a complementaridade econômica e; c) envolver os países da América do Sul, em especial o Mercosul, nas alianças e coalizões multilaterais.


Tabela 2

Tabela 3

As informações do Quadro 2 devem ser analisadas levando em consideração o crescimento do fluxo comercial brasileiro de modo geral no período entre 2002 e 2010, o que gera crescimentos no fluxo de importações e exportações do Brasil com os países analisados. As exportações totais do Brasil cresceram de 60,4 bilhões de dólares em 2002 para 201,9 bilhões de dólares em 2010. Enquanto isso, o fluxo geral de importações do país passou de 47,2 bilhões de dólares em 2002 a 181,6 bilhões de dólares em 2010.



Conclusões

A análise da política externa brasileira na última década permitiu identificar uma nova postura na estratégia brasileira. Em contraste com a matriz desenvolvimentista dos anos 1970-1980, a nova matriz da política externa é mais fluida e multidimensional, com arranjos políticos, alianças e parcerias estratégicas flexíveis, de acordo com os atores e interesses. A multidimensionalidade ocorre com a atuação temática em vários planos (bilateral, multilateral e regional). O conceito de diplomacia multidimensional, desta forma, supera os cortes usuais (Norte-Sul; vertical-horizontal como opções excludentes) para identificar as estratégias da política externa brasileira, pois tanto a participação em coalizões como as parcerias estratégicas são flexíveis tematicamente. Diante da complexidade das discussões multilaterais, regionais e bilaterais, não é possível identificar uma estratégia única e rígida desde o governo Lula. A diplomacia multidimensional incorpora, no caso do Brasil, a combinação e superposição de várias estratégias.

Em primeiro lugar, ocorreu uma nova linha de atuação, baseada em uma nova concepção multilateral, assentada em uma interpretação da difusão de poder no sistema internacional, com tendências multi polares. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), houve a defesa do multilateralismo, mas com menor articulação e formação de coalizões, embora se observe um embrião do IBAS na questão da quebra das patentes de medicamentos para tratamento da AIDS. Já o governo Lula identificou as tendências internacionais multipolares e a erosão do poder norte-americano, em bora não tenha subestimado a capacidade militar e econômica dos Estados Unidos e, neste contexto, investiu nos fóruns multilaterais, utilizando intensamente os grupos de coalizão de geometria variável, como estratégia de contrabalançar o poder hegemônico.

Em segundo lugar, ocorreu a formação dos grupos de coalizão de geometria variável. As novas coalizões significaram a ampliação do poder dos países participantes, não apenas pela capacidade de veto ampliada (obstrução coletiva) aos regimes desenhados pelos países mais poderosos, mas pela capacidade propositiva e proativa, oferecendo soluções para impasses. Para cada conjunto de problemas, ou para cada estratégia, formou-se um grupo de coalizão, com variação nos países participantes. A estratégia de formação de coalizões de geometria variável decorre da multidimensionalidade nas alianças, refletindo mudanças sistêmicas internacionais. Em outras palavras, a difusão das alianças reflete precisamente a difusão do poder no sistema internacional pós-Guerra Fria e a complexidade dos temas e alianças, buscando realizar uma sintonia fina em relação ao acompanhamento desta difusão e adaptá-la aos interesses nacionais brasileiros. Neste sentido, a aparente falta de foco na política externa brasileira na realidade possui uma sofisticada racionalidade. Como reconhece Pecequilo (2008), algumas coalizões agregam tanto o eixo vertical como o horizontal, o que envolve consonância em alguns temas e discordância em outros. A imagem brasileira como uma potência média e uma liderança regional e global em construção confere ao Brasil o papel de mediador entre os países mais fortes e mais fracos.

Em terceiro lugar, ocorreu a ampliação e diversificação das parcerias estratégicas. A potencialização do bilateralismo nos grupos de coalizão de geometria variável provocou a formação de parcerias estratégicas diversificadas, envolvendo países desenvolvidos (França, Ale manha), em desenvolvimento (Argentina) e diferentes regiões (Chi na, África do Sul e Índia). Entretanto, é necessária uma qualificação destas parcerias estratégicas, pois envolvem países com níveis muito variados de importância e intensidade de relação com o Brasil. Por outro lado, a articulação do multilateralismo com desenvolvimento é a chave para a compreensão das alianças com os países intermediários no sistema internacional. Tanto Cristina Pecequilo (2008) quanto Vigevani e Cepaluni (2007) afirmam expressamente que a política externa de Lula não tem caráter terceiro-mundista e, de fato, observa-se que houve uma intensificação da cooperação Sul-Sul, mas não foram abandonadas as relações tradicionais. Assim, verifica-se uma atuação multidimensional e combinada entre os eixos (horizontal e vertical).

Entre os principais riscos desta estratégia, pode-se elencar: a) dispersão de energia diplomática, com real perda de foco e dificuldade em articular países com interesses contraditórios; b) perda de aliados tradicionais, na medida em que tiverem um espaço limitado na agenda estratégica do Brasil; c) desconfiança dos parceiros estratégicos, em especial na América do Sul, com baixa participação nos grupos de coalizão. Futuramente, será interessante observar, também, o com portamento de outros países importantes nas sub-regiões na disputa - ou negociação - com os países líderes. Assim, não é um tema menor observar os possíveis entraves colocados pelo Paquistão (em relação à Índia), pela Nigéria e o Egito (em relação à África do Sul) e pela Argentina e México (em relação ao Brasil), nas pretensões destes países ocuparem uma vaga permanente no Conselho de Segurança. Nesse sentido, a aliança estratégica do G-3 deve ser observada não apenas como um reforço "contra os países ricos", mas também como um reforço mútuo, extracontinental, das pretensões da Índia, Brasil e África do Sul de manterem ou reforçarem suas respectivas lideranças nos seus subcontinentes. Além disso, o próprio G-20 Comercial so fre restrições de países mais pobres, e sua atuação tem enfrentado resistências do bloco africano nas negociações de liberalização agrícola da OMC. Para alcançar seus objetivos, a diplomacia brasileira deverá ampliar sua capacidade política para articular as "geometrias variáveis" com as contradições e demandas norte-sul. Deverá, também, incorporar mais claramente seus vizinhos da América do Sul em seu projeto de inserção global. Por fim, a diplomacia brasileira deverá trabalhar conjuntamente com as outras potências emergentes, países intermediários e polos regionais, para minimizar as crises reais e potenciais da transição hegemônica para uma nova ordem internacional mais multipolar.

Um dos grandes objetivos da política externa do governo Lula foi aumentar o poder de barganha em relação aos países centrais, bem como desestimular as tendências unilateralistas dos EUA. De certa forma, o objetivo foi alcançado, pois se verifica que não se efetivou completamente a capacidade das grandes potências (sobretudo EUA) em desmontar as coalizões que eram contra seus interesses através das barganhas cruzadas e da cooptação de países menores. Enfim, ao reforçar suas alianças com países em desenvolvimento, o Brasil desvencilhou-se gradualmente da influência das potências tradicionais, proporcionando uma maior autonomia. Apesar do risco da dispersão e da paralisia por conflito de interesses, a diplomacia multidimensional manteve o equilíbrio entre flexibilidade e coesão, e se mostrou como estratégia adequada às transformações internacionais da última década e aos objetivos da política externa brasileira.

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    Artigo recebido em 14 de agosto de 2013 e aprovado para publicação em 28 de agosto de 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2013
  • Aceito
    28 Ago 2014
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