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O Papel da Agricultura nas Relações Internacionais e a Construção do Conceito de Agronegócio* * Artigo recebido em 23 de setembro de 2014 e aprovado para publicação em 22 de julho de 2015.

The Role of Agriculture in International Relations and the Construction of the Agribusiness Concept

Resumo

O artigo analisa o papel da agricultura nas relações internacionais, particularmente a partir da disseminação mundial do modo de produção denominado agronegócio. O conceito de agronegócio está relacionado a um conjunto de medidas impulsionadas por governos e instituições privadas que intensificaram a industrialização e a padronização da agricultura em nível internacional. No período posterior à Segunda Guerra Mundial, verifica-se um processo de expansão do comércio agrícola impulsionado pelos Estados Unidos, que é acompanhado pela aceleração da industrialização da agricultura. O aumento da produtividade de grãos gera uma demanda crescente por investimentos para cobrir custos com mecanização, o que resulta na criação de diversas políticas governamentais de subsídios internos e também para exportação. A mecanização e o uso de insumos petroquímicos aumentam os custos da produção agrícola baseada em monocultivos e geram endividamento do setor. O apoio estatal para o agronegócio resultou no aumento da concentração de capitais, que se verifica através do papel que empresas multinacionais exercem, principalmente no mercado de insumos agrícolas e na comercialização internacional de commodities.

Mercado Internacional; Industrialização da Agricultura; Agronegócio; Commodities

Abstract

The article analyzes the role of agriculture in international relations, particularly since the worldwide dissemination of the production model called agribusiness. The concept of agribusiness is related to a series of measures implemented by governments and private institutions, which intensified the industrialization and standardization of agriculture internationally. After the Second World War, the United States expanded the agricultural markets, as well as the industrialization of agriculture. The increasing productivity of grains generated greater demands for investments to cover the costs of mechanization, which resulted in the need to create several governmental policies of internal subsidies, as well as for export. The mechanization and the use of petro-chemical inputs increased the cost of agricultural production based on mono-cropping, generating debt for the sector. State support for agribusiness resulted in higher capital concentration, which can be verified by the role of multinational corporations, especially in the market of agriculture inputs and in the international trade of commodities.

International Market; Industrialization of Agriculture; Agribusiness; Commodities

Introdução: A Criação do Conceito de Agronegócio

Tanto historicamente quanto na atualidade, a agricultura tem exercido papel central nas relações internacionais. Principalmente a partir do período posterior à Segunda Guerra Mundial, verifica-se um processo de expansão do comércio agrícola mundial impulsionado pelos Estados Unidos, que é acompanhado pela aceleração da industrialização da agricultura e pela disseminação internacional do sistema de produção denominado agronegócio.

O termo agronegócio (agribusiness) teve origem na School of Business Administration da Universidade de Harvard, com a publicação do livro A Concept of Agribusiness, de John Davis e Ray Goldberg em 1957DAVIS, John H.; GOLDBERG, Ray A. A Concept of Agribusiness. Boston: Harvard University Graduate School of Business Administration, 1957.. A publicação traz como premissa central a ideia de que o campo estaria passando por grandes transformações a partir de uma "revolução tecnológica", tendo como base o "progresso" científico utilizado na agricultura. Sob essa perspectiva, seria necessário formular políticas públicas de apoio à grande exploração agrícola diante do aumento dos custos de produção, transporte, processamento e distribuição de alimentos e fibras.

A influência de John Davis e Ray Goldberg ultrapassa o meio acadêmico e inclui a política governamental nos Estados Unidos e em outros países. Davis foi vice-ministro da Agricultura durante o governo de Eisenhower e presidiu a Commodity Credit Corporation, além de organizar uma série de delegações para incidir em conferências internacionais sobre o tema. Como professor de Harvard, seu objetivo era "lançar uma grande iniciativa para reestruturar a forma de se pensar a agricultura no país".1 1 . Essas informações fazem parte da biografia de Davis em seu livro Farmer in a Business Suit (DAVIS; HINSHAW, 1957).

Os autores argumentam que o conceito de agricultura como parte integrante da indústria já teria existido há 150 anos quando, além de alimentos, os camponeses produziam seus próprios equipamentos, insumos, combustível, moradia, roupas e utensílios domésticos. A principal mudança observada nas "fazendas modernas" é que deixaram de ser autossustentáveis e passaram a ter função comercial, com sua produção baseada em monocultivos. Atividades como armazenamento, processamento e distribuição foram transferidas para outras empresas, que também passaram a produzir produtos industriais utilizados neste modelo agrícola, como tratores, caminhões, combustível, fertilizantes, ração, pesticidas, entre outros. Surge então a proposta de se utilizar o termo "agronegócio", pois, segundo os autores, "nosso vocabulário não acompanhou o ritmo do progresso". Este "progresso", descrito no livro, significaria que "nossas fazendas não poderiam operar nem por uma semana se estes serviços fossem cortados" (DAVIS; GOLDBERG, 1957DAVIS, John Herbert; HINSHAW, Kenneth. Farmer in a Business Suit. Nova York: Simon and Schuster, 1957., p. 2).

O "ímpeto da mecanização agrícola" (DAVIS; GOLDBERG, 1957, p. 7) significava uma dependência crescente de produtos produzidos por segmentos da indústria, com destaque para máquinas, tratores e fertilizantes químicos, para compensar o esgotamento da fertilidade do solo. Este processo demandava grande quantidade de energia e estimulou a expansão da produção de petróleo. Ao mesmo tempo, a indústria genética e farmacêutica desenvolvia sementes transgênicas e métodos de inseminação artificial, o que aprofundava, por um lado, a segmentação da produção agropecuária e, por outro, a construção de grandes monopólios industriais que se apropriavam da renda da terra. Como parte do que formaria o chamado agronegócio, os autores incluem proprietários de terra e indústrias, associações de empresá rios, instituições de pesquisa, universidades, grupos de lobby, além do governo, que assumiria função de apoiar estudos e políticas de regulamentação e comércio.

O agronegócio representaria entre 35% e 50% da economia estadunidense. Para chegar a esses números, o estudo compara o total que os consumidores americanos gastaram em 1954, US$ 236,5 bilhões, com o que foi gasto em alimentos, bebidas, tabaco, sapatos, roupas e acessórios, que somaria cerca de US$ 93 bilhões, ou 40% do total consumido naquele ano (DAVIS; GOLDBERG, 1957, p. 8). O detalhamento deste cálculo mostra os seguintes montantes em bilhões de dólares: alimentos industrializados (26,3), alimentos não processados (10,0), gastos em restaurantes (16,4), produtos têxteis (11,0), produtos de couro (3,0), bebidas alcoólicas (1,5), lã e papel (3,0), tabaco (2,8), vendas no atacado e exportação (15,0), outros (3,0).

O percentual de 35% a 40% coincide com as estimativas dos ideólogos do agronegócio brasileiro, que baseiam sua estatística nas chamadas cadeias produtivas ou no modelo de novo mundo rural, in cluindo o que é produzido dentro e fora da porteira.2 2 . Esta concepção é apresentada em Silva (1997). O conceito de agronegócio, como unidade de análise que inclui desde a produção de insumos químicos e industriais até empresas de comercialização e varejo, permite esta interpretação. Porém, essa fórmula acaba por superestimar o peso da agricultura na economia nacional ou no produto interno bruto (PIB). Além disso, os cálculos que levam a este percentual não consideram as diversas formas de subsídio público ou qualquer outro passivo econômico, social ou ambiental gerado pelo setor.

Davis e Goldberg citam fatores "negativos" e expressam preocupação com "desajustes e desequilíbrios" em um "progresso evolutivo" que traria "problemas complexos" na relação entre "fazendas comerciais e famílias camponesas pobres" (DAVIS; GOLDBERG, 1957, p. 6). Os autores analisam mudanças na estrutura econômica da agropecuária nos Estados Unidos de 1947 a 1954. Em relação à mão de obra empregada, o número de trabalhadores permaneceu estável, em cerca de 24 milhões, porém em relação ao total da força de trabalho empregada houve uma diminuição de 41% para 37%. Por outro lado, houve um aumento considerável nos custos de produção, sendo que, entre estes, 111% referem-se à depreciação de máquinas, 70% ao custo com operação de veículos, 57% com fertilizantes, 35% com sementes e 59% com mão de obra. O montante de vendas do setor, em termos absolutos, teve um crescimento de 56%, porém a margem de lucro diminuiu em 19%. O estudo cita dados sobre o "retorno realizado por hora de todo o trabalho e gerência das fazendas" (Realized Return per Hour to All Farm Labor and Management), ou seja, a taxa de mais-valia social no setor, que apresentou uma queda de 25,5% entre 1947 e 1954 (DAVIS; GOLDBERG, 1957, p. 11-15). Esses dados ilustram uma tendência de crise de superprodução no processo de industrialização da agricultura, que se caracteriza pelo aumento proporcional dos custos de produção em relação ao tempo de trabalho necessário.3 3 . O conceito de tempo de trabalho necessário é apresentado no primeiro capítulo de Princípios de economia política e tributação (RICARDO, 1966, p. 23-48). Portanto, tal desequilíbrio não significa aumento da oferta e diminuição da demanda, mas a desproporção entre elementos do capital fixo em relação à mão de obra empregada na agricultura.

A Industrialização da Agricultura nos Estados Unidos e a Expansão do Comércio Mundial de Grãos

Durante o século XIX, foram introduzidas tecnologias mecânicas para aumentar a produtividade do trabalho na agricultura. No século XX, as principais mudanças ocorreram em relação a técnicas biológicas e químicas, introduzidas na agricultura principalmente a partir de 1930. Este processo de mudança nos padrões de produção, com a utilização de insumos industriais na agricultura, é intensificado principalmente na década de 1950 com o fim da Segunda Guerra Mun dial, quando há um aumento da demanda por alimentos e fibras. Entre 1940 e 1946, houve um aumento de 138% no preço dos produtos agrícolas no mercado internacional. Este patamar se manteve no período pós-guerra através da intervenção estatal do governo estadunidense, que promoveu programas de garantia de preços aos agricultores para o mercado interno e gerou demanda externa adicional através de políticas de "ajuda alimentar" (COCHRANE, 1993COCHRANE, Willard W. The Development of American Agriculture: A Historical Analysis. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993., p. 124).

Entre 1933 e 1970, os agricultores nos Estados Unidos substituíram mais de 50% dos insumos produzidos nas próprias unidades agrícolas por insumos industriais. Houve um aumento de 212% no uso de máquinas e de 1.800% no uso de insumos químicos. No mesmo período, registra-se uma diminuição de mais de 70% na mão de obra agrícola. A produtividade das principais lavouras comerciais não cresceu na mesma proporção. Dados do Departamento de Agricultura (Department of Agriculture - USDA) mostram que, entre 1870 e 1940, a produção agrícola manteve-se em patamares semelhantes. A produtividade de trigo por acre passou de 12,7 em 1870 para 15,7 em 1950; a de milho passou de 26,1 em 1870 para 37,8 em 1950; e a de algodão aumentou de 174,2 em 1870 para 273,4 em 1950. Um novo aumento de produtividade é verificado após 1950, mas parece se estabilizar em um determinado patamar em 1970, quando esses números são: 31,8 para o trigo, 80,8 para o milho e 436,7 para o algodão. Entre 1950 e 1981, o comércio internacional agrícola teve uma expansão de 14%. Entretanto, as exportações agrícolas dos Estados Unidos tiveram um aumento de 22%, passando de US$ 6,7 bilhões em 1970 para US$ 44 bilhões em 1981. O volume exportado pelo país passou de 60 milhões de toneladas para 160 milhões de toneladas nesse período. O país tornou-se o maior exportador de grãos no mercado mundial, principalmente de trigo, milho e soja. O aumento das exportações ocorre principalmente devido à facilidade de acesso a crédito pelas empresas do agronegócio através da disponibilidade dos chamados "petrodólares" e ao crescimento da demanda por grãos na União Soviética (COCHRANE, 1993, p. 128-132).

Dados do Departamento de Agricultura, de 1976, revelam que o Japão era o maior país importador de produtos agrícolas dos Estados Unidos, com um montante de US$ 3,3 bilhões anuais. O segundo era a União Soviética, com importações que somavam US$ 1,86 bilhão anual. Outros grandes importadores eram Holanda (US$ 1,76 bilhão), Alemanha Ocidental (US$ 1,62 bilhão) e Canadá (US$ 1,4 bilhão). O Brasil era o décimo terceiro país importador de grãos dos Estados Unidos e seu principal mercado na América Latina, com o equivalente a US$ 430 milhões anuais em importações agrícolas (RAWLINS, 1980RAWLINS, N. Omri. Introduction to Agribusiness. Nova Jersey: Englewood Cliffs, 1980., p. 12).

Mesmo com a chamada "crise do petróleo" nos anos 1970, a disponibilidade de combustível para o agronegócio nos Estados Unidos foi considerada prioridade. Em 1977, foram gastos US$ 85 bilhões em insumos petroquímicos no setor agrícola daquele país. Para efeito de comparação, estima-se que os gastos com salários de trabalhadores na agricultura somaram US$ 54 bilhões e com custos de empacotamento totalizaram US$ 15 bilhões (RAWLINS, 1980, p. 22-25). Os insumos industriais utilizados na produção agrícola exercem influência estratégica na pauta de exportações dos Estados Unidos. Algumas das principais commodities ligadas ao comércio interna cional do agronegócio são petróleo e fertilizantes. Outras empresas relacionadas incluem setores de processamento, de vendas em atacado e de transporte e carregamento. Por exemplo, em 1990 a pauta de exportações agrícolas dos Estados Unidos foi de US$ 39,3 bilhões, enquanto os insumos industriais utilizados para tal produção somaram US$ 62,8 bilhões em valor agregado (ROSSON, 1994ROSSON, C. Parr. International Marketing for Agribusiness: Concepts and Applications. GEMS, Global Entrepreneurship Management Support, 1994., p. 13). Esses dados demonstram que a pauta de exportação agrícola dos Estados Unidos favorece também setores de insumos industriais naquele país.

Historicamente, as indústrias automobilísticas, de máquinas e equipamentos estiveram estreitamente ligadas ao agronegócio. O início da mecanização da agricultura ocorre com a utilização de tratores de grande porte nos anos 1900 e se massifica com a produção de tratores menores que comportavam motores de automóveis, desenvolvidos por Henry Ford a partir de 1908. A produção de máquinas agrícolas manteve sua característica de monopólio até a atualidade, com apenas quatro empresas (Deere, International Harvester, Massey-Ferguson e Ford Motor Company) controlando 99% do mercado mundial. A concentração de capitais ocorre também na produção de insumos químicos. Segundo Rawlins (1980), esse setor teve uma expansão de 172% entre 1960 e 1976. As maiores empresas produtoras de pesticidas e fertilizantes têm ligação estreita com a indústria de petróleo e mineração. Entre os grupos que controlam a produção mundial de insumos químicos, estão Ciba-Geigy, Monsanto, Elanco, Allied Chemicals, Phillips Petroleum Company, International Mineral and Chemical (IMC), Dow Chemical e C.F. Industries.

A crescente industrialização agrícola demanda aumento do crédito para cobrir custos com insumos industriais. Tal processo foi estimulado nos Estados Unidos com a criação do Sistema de Crédito Agrícola (Farm Credit System), que contou com linhas especiais de empréstimos e subsídios estatais para produção e exportações agrícolas (RAWLINS, 1980, p. 61). O acesso a crédito para o agronegócio triplicou entre 1940 e 1962. Durante o mesmo período, o uso de fertilizantes químicos duplicou, assim como a prática de fumigação aérea. Houve aumento da padronização dos cultivos e da concentração fundiária, porém somente em termos relativos, já que as propriedades familiares continuaram a representar a maioria das fazendas (HAM PE et al., 1980HAMPE, Edward C.; WITTENBERG, Merle; EDDS, Lillian. The Food Industry: Lifeline of America. Ithaca: Cornell University, 1980., p. 61-66).

Na década de 1990, mais de um terço da produção de grãos do país era destinado à exportação. Em 1992, o volume de grãos exportados dos Estados Unidos para outros países chegou a US$ 42 bilhões. A comercialização no mercado externo de produtos industrializados do agronegócio, com maior valor agregado, também exerce um peso significativo na balança comercial. O volume dessas exportações passou de US$ 28 bilhões nos anos 1960 para US$ 240 bilhões na década de 1990. Por outro lado, o aumento das exportações de comida processada pelos Estados Unidos gerou maior demanda por importações de matérias-primas agrícolas, que passaram de US$ 5,6 bilhões em 1970 para US$ 22,6 bilhões em 1990. Este tipo de produto é considerado como importação "não competitiva", já que funciona para complementar aquilo que não é produzido no país (ROSSON, 1994, p. 6-7).

A expansão das exportações agrícolas nos Estados Unidos decorreu de medidas protecionistas que permitiram o fortalecimento do mercado interno, a garantia de preços para agricultores, além de políticas ambientais de conservação da fertilidade do solo e de recursos hídricos. Desde a década de 1930, o governo dos Estados Unidos estabeleceu medidas para garantir controle sobre o preço e o volume de sua produção agrícola através de incentivos econômicos para que os agricultores diminuíssem sua produção (através de leis como The Soil Conservation and Domestic Allotment Act of 1936), promovessem a conservação do solo e transformassem certas áreas em reservas florestais. Tais medidas incluíam ainda a compra governamental de produtos perecíveis, a prática de dumping da produção excedente no mercado externo e programas para estimular o mercado interno de alimentos.

A Padronização Internacional dos Alimentos

Além do mercado de grãos, que exercem papel central como commodities agrícolas, a padronização de alimentos industrializados foi fundamental para a expansão do modelo do agronegócio em nível internacional. A indústria de comida processada foi impulsionada nos Estados Unidos principalmente durante a Segunda Guerra Mundial e era conhecida como "comida de combate" porque servia para alimentar os soldados no exterior. Com o objetivo de apoiar pesquisas neste setor, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos criou uma divisão especial, denominada Natick Laboratory. Os primeiros produtos criados neste laboratório foram alimentos enlatados. Posteriormente, foram produzidos alimentos congelados, desidratados e pré -cozidos, bebidas solúveis e em pó (GOLDBERG et al., 1968GOLDBERG, Ray Allan. Introduction. In: WOOLVERTON, Michael (Org.). Agribusiness: An International Journal, Nova York, John Wiley & Sons, v. 1, n. 1, 1985., p. 26).

O Estado também foi o principal promotor da criação de equipamentos agrícolas, fertilizantes, inseticidas, métodos de transporte e armazenamento para distribuição em massa desses produtos, além de mecanismos de comunicação e crédito. As principais agências envolvidas nessas atividades eram os Departamentos da Agricultura, Defesa e Interior. A prioridade do Departamento da Agricultura era desenvolver pesquisas em industrialização de alimentos e fibras. O foco do Departamento de Defesa era voltado para métodos de congelamento e desidratação de alimentos, técnicas de irradiação, preservação, empacotamento e armazenamento, inicialmente utilizados para fins militares. A agência incluía também a fabricação de proteínas, sabores e aromas sintéticos, além de enzimas para detectar bactérias. Já o Departamento do Interior tinha como linha principal a manipulação de peixes e frutos do mar (GOLDBERG et al., 1968, p. 47-49).

O relatório de Goldberg et al. (1968) previa que a ampliação da indústria de comida processada levaria ao incentivo no consumo de refrigeradores, freezers e fornos de micro-ondas, além de outros equipamentos domésticos como abridores de latas, trituradores, liquidificadores e facas elétricas. Este processo incluiria ainda a automatização de serviços como restaurantes fast-food e drive-ins, máquinas de venda, entre outros. Em síntese, significaria mudanças estruturais na indústria de alimentos, com maior índice de mecanização; mais necessidade de capital investido em equipamentos e infraestrutura; maior concentração de capitais através de fusões e aquisições, inclusive de empresas de diferentes setores como alimentos, tabaco, distribuidoras, empresas de alumínio e de eletrônicos. Este processo demandaria um sistema de produção em massa que justificasse a promoção de marcas de grandes empresas com poder de acessar um volume significativo de capital através de subsídios, crédito e de sua atuação nos mercados financeiros (GOLDBERG et al., 1968, p. 42 -44). A internacionalização da indústria de alimentos impulsiona o modelo do agronegócio, que se baseia em cadeias produtivas, desde a produção de insumos industriais até a comercialização em grande escala. Para garantir a distribuição em massa desses produtos, são formadas cadeias internacionais de vendas em atacado e varejo, como os supermercados.

A internacionalização de empresas de alimentos processados teria como propósito "garantir uma economia de escala, poder de acesso a maiores linhas de crédito, aproveitamento de gerentes, facilidade de entrada em novos mercados, proteção através de mercados amplos geograficamente e maior efetividade na concorrência" (HAMPE et al., 1980, p. 8-11). Setores de distribuição e comercialização agrícola adquiriram uma característica cada vez mais monopolista. Entre 1950 e 1960, o número de supermercados dobrou e suas vendas quadriplicaram, representando 70% do mercado de varejo nos Estados Unidos. Este processo foi acompanhado pela padronização dos alimentos e pela influência exercida por agências de publicidade na opinião pública, com o papel de disseminar determinadas marcas de produtos processados (HAMPE et al., 1980, p. 328).

Contradições Econômicas e Geopolíticas na Expansão do Agronegócio

A industrialização da agricultura nos Estados Unidos e a internacionalização do agronegócio geram uma demanda crescente por políticas governamentais de crédito, subsídios internos e para exportação. A legislação conhecida como PL 480 (Public Law 480), aprovada em 1954, permitia que o montante equivalente à exportação de grãos fosse adquirido em moeda local pelos países importadores, através de crédito subsidiado pelo próprio governo estadunidense. Esta medida beneficiou principalmente empresas multinacionais do agronegócio que utilizaram a nova política para se instalar em diversos países, o que estimulou a desestruturação da produção local de alimentos, gerando dependência econômica e favorecendo interesses geopolíticos do governo estadunidense. Na Ásia, por exemplo, a prioridade foi financiar a compra de grãos pelos governos do Vietnã do Sul, da Coreia do Sul e do regime de Ferdinando Marcos nas Filipinas. No Oriente Médio, a "ajuda alimentar" foi fundamental para que os Estados Unidos pudessem conquistar o apoio do Egito contra a criação do Estado palestino. Na América Latina, tal política serviu para fortalecer o regime de Augusto Pinochet no Chile (BURBACH; FLYNN, 1980BURBACH, Roger; FLYNN, Patricia. Agribusiness in the Americas. Monthly Review Press, Nova York, 1980., p. 70-77).

A exportação agrícola constituiu-se como peça fundamental, tanto para a economia quanto para a política externa dos Estados Unidos. No período pós-guerra, o país passou a controlar metade de todo o volume das exportações mundiais de grãos. Além dos mercados europeu e japonês, prioritários durante o período de "reconstrução" pós-guerra, o acesso ao mercado soviético era fundamental. Em 1972, a União Soviética importou 18 milhões de toneladas de trigo dos Estados Unidos. Este montante representava um quarto da safra estadunidense de trigo naquele ano, o que gerou forte aumento do preço das commodities agrícolas, favorecendo o agronegócio e principalmente empresas como Cargill, Continental Grain, Dreyfus e Cook Industries, que se beneficiaram com a demanda soviética e com o aumento do preço dos grãos no mercado internacional (BUR BACH; FLYNN, 1980, p. 50-52).

Nos anos posteriores, os Estados Unidos estabeleceram um acordo que garantia no mínimo a exportação anual de 6 milhões de toneladas de grãos para a União Soviética. Em 1979, as exportações de milho e trigo dos Estados Unidos para o mercado soviético chegaram a 25 milhões de toneladas (BURBACH; FLYNN, 1980, p. 60). Tal conjuntura iria se modificar no final daquele ano, em consequência do acirramento do conflito entre os dois países no Afeganistão. Naquele período, o governo de Jimmy Carter suspendeu o acordo de exportação de grãos para a União Soviética e passou a comprar o excedente dos agricultores que dependiam do mercado soviético. A interrupção das exportações de grãos para a União Soviética teve grande impacto durante os anos 1980, que se caracterizaram pela diminuição da produção agrícola estadunidense. Outro fator determinante para a queda da produtividade foi o aumento do custo deste modo de produção, que se tornou dependente do uso intensivo de fertilizantes químicos e outros insumos à base de petróleo, o que gerou ainda a degradação dos melhores solos.

Além de exercer um papel central na política externa, o modelo de agricultura extensiva determinou a legislação migratória dos Estados Unidos desde o início do século XX. Em 1917, o governo adotou medidas para facilitar a contratação de imigrantes mexicanos, principalmente na Califórnia. Estima-se que em 1920 o número de trabalhadores mexicanos nas lavouras do estado era de 70 mil e, em 1940, chegou a 400 mil. Durante a Segunda Guerra Mundial, outro acordo entre os governos do México e Estados Unidos criou o programa bracero, que estimulou uma nova onda de migração de trabalhadores rurais. Em 1965, o número de braceros em todo o país chegou a 450 mil e representava a maioria da força de trabalho no campo. Esses trabalhadores eram contratados somente durante o período de safra, diretamente pelo governo e não pelas empresas. Enfrentavam condições degradantes e viviam em habitações improvisadas. Durante os 25 anos de duração do programa - que teve início em 1942 e conti nuou durante toda a chamada golden age (era de ouro), caracterizada pela modernização do agronegócio estadunidense -, o salário dos braceros aumentou de US$ 0,75 para apenas US$ 1,25 por hora. Sua função, portanto, era garantir que a remuneração dos assalariados rurais permanecesse em um patamar mínimo (WALKER, 2004WALKER, Richard A. The Conquest of Bread: 150 Years of Agribusiness in California. Nova York: The New Press, 2004., p. 71-72).

Na década de 1970, outra estratégia do governo estadunidense se expressa através das negociações do acordo de livre comércio conhecido como GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), que tinha o objetivo de garantir maiores vantagens para suas exportações agrícolas. Um dos pontos centrais das negociações era a necessidade de manter controle sobre os estoques mundiais de grãos. Desta forma, o país poderia especular com estas commodities, fomentando o aumento das exportações em períodos de alta dos preços no mercado internacional e promovendo dumping em outros países quando o cenário era de queda dos preços. A partir de 1980, apesar da disseminação do discurso neoliberal, o apoio estatal para a agricultura estadunidense atingiu seu maior nível em décadas. Em meados dos anos 1980, a recessão mundial causou a diminuição das exportações agrícolas do país, que não passaram de US$ 26 bilhões em 1986. A resposta do governo foi adotar um novo conjunto de leis, conhecido como Food Security Act, com o propósito de expandir subsídios. Além dessa medida, o governo estadunidense manteve uma política cambial favorável às suas exportações (ROSSON, 1994, p. 3-5). Na década de 1980, a conjuntura de recessão econômica mundial revela a dependência do agronegócio em relação a subsídios estatais:

Em 1984, o custo dos juros por acre produzido com milho nos Estados Unidos era quase equivalente ao custo com fertilizante por acre, e, dependendo das condições de mercado dentro do sistema do agronegócio, muitos produtores comerciais foram pegos nessa relação custo -pre ço, com suas operações quase não se pagando. As políticas de preço do governo tornaram-se mais necessárias, já que os produtores comerciais e empresas de insumos, assim co mo os processadores e distribuidores de produtos subsidiados com valor agregado, viram seus lucros e sua própria sobrevivência em risco. Entre todos os fatores, o câmbio do dólar parece ser o mais importante, influindo na competitividade dos Estados Unidos em um mercado global de commodities com preços flutuantes (GOLDBERG, 1985, p. 17).

A mecanização e o uso de insumos petroquímicos na agricultura aumentam os custos da produção agrícola baseada em monocultivos. Esta prática contribui para diminuir a fertilidade natural dos solos e os níveis de produtividade, o que exige maiores gastos com insumos químicos e gera endividamento do setor. Por sua vez, a necessidade de apoio estatal vai determinar o aumento da concentração de capi tais na agricultura: "Esses enormes complexos industriais se expandem não porque são mais produtivos (eles são, de fato, muito menos produtivos), mas porque são sistematicamente apoiados por políticas governamentais" (HODGE et al., 2002HODGE, Helena Norberg; MERRIFIELD, Todd; GORELICK, Steven. Bringing the Food Economy Home: Local Alternatives to Global Agribusiness. Londres: Zed Books, 2002., p. 8). A característica de priorizar subsídios para setores ligados ao agronegócio, em detrimento da pequena agricultura, faz parte da política estatal tanto nos Estados Unidos como em outros países. Dados de 2002 mostram que, nos Estados Unidos, 10% dos agricultores recebem dois terços dos subsídios. Na Inglaterra, 80% dos subsídios são concedidos a 20% das maiores empresas agrícolas (HODGE et al., 2002, p. 5-7).

A Internacionalização do Agronegócio

A internacionalização do agronegócio foi impulsionada inicialmente no México, em 1945, através do Centro Internacional de Melhoramento de Trigo e Milho (CIMMYT), que passa a monopolizar pesquisas com sementes. A padronização das sementes seria crucial para o sucesso do novo "pacote tecnológico", já que as espécies nativas não necessitavam do uso intensivo de insumos químicos. Ao longo dos anos 1960, foram criadas outras instituições com a mesma finalidade como Instituto Internacional de Pesquisa do Arroz (International Rice Research Institute) nas Filipinas, o Centro Internacional de Agricultura Tropical (CIAT) na Colômbia e o Instituto Interna cional de Agricultura Tropical (IITA) na Nigéria. Em 1971, esses institutos se articularam para formar o Grupo Consultivo Internacional de Pesquisa Agrícola (Consultative Group on International Agricultural Research - CGIAR) sob a coordenação do presidente do Banco Mundial na época, Robert McNamara. Posteriormente, outros institutos de pesquisa foram incorporados a esta articulação, incluindo o Centro Internacional da Batata (CIP) no Peru, a West African Rice Development Association (WARDA) na Libéria, o Laboratório Internacional de Pesquisa em Doenças Animais (ILRAD) no Quênia, o International Board for Plant Genetic Resources na Itália, o International Livestock Center for Africa na Etiópia, o International Food Policy Research Institute nos Estados Unidos, o Internatio nal Center for Agricultural Research in the Dry Areas na Síria e o International Service for National Agriculture Research na Holanda. O Brasil fazia parte do grupo, que passou a receber recursos de governos, agências das Nações Unidas e empresas como Bayer, Chevron, Dow Chemical, Esso Engineering, Hoechst, Monsanto, Shell, entre outras (SHIVA, 1991SHIVA, Vandana. The Violence of the Green Revolution. Goa: The Other India Press, 1991., p. 43).

Um dos principais financiadores privados dessas instituições foi o grupo Rockefeller, que exerceu forte influência na política agrícola brasileira, como demonstra uma carta de Alysson Paulinelli, ministro da Agricultura durante o regime de Ernesto Geisel entre 1974 e 1979, e que também foi presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). Na carta, endereçada a Rodman C. Rockefeller, o então ministro Paulinelli agradece o recebimento de cópia de uma palestra proferida por Rockefeller durante uma reunião do Agribusiness Council em 1975:

Reitero meus agradecimentos, tanto pela gentileza de prontamente enviá-la, como por suas palavras de grande incentivo aos investidores para que tragam ao Brasil o benefício de sua tecnologia e do seu capital, proporcionando um maior desenvolvimento à agricultura brasileira.4 4 . Alysson Paulinelli (ministro da Agricultura, 1974-1979) para Rodman C. Rockefeller, 8 de março de 1976, pasta 98, caixa 7, Série "Projects and Proposals", Coleção "International Basic Economy Corporation" Rockefeller Foundation Archives, Rockefeller Archive Center, Sleepy Hollow, Nova York. Agradeço a Clifford Andrew Welch por me passar cópia deste documento.

Para justificar a difusão de novas tecnologias na agricultura, seria necessário gerar dependência de insumos industriais e, ao mesmo tempo, disseminar o medo da escassez de alimentos na opinião pública. Shiva (1991) explica que, no período anterior à adoção deste modelo, a produção agrícola na Índia era mais abundante e diversificada. A escassez de alimentos se agrava na medida em que prevalecem os monocultivos e a dependência de insumos industriais produzidos por empresas estrangeiras, causando redução da fertilidade do solo e da diversidade genética. A partir da criação de uma demanda entre agricultores em diversos países, instituições como USAID e Banco Mundial abriram linhas especiais de financiamento para a compra de insumos químicos, incluindo fertilizantes, pesticidas e sementes, que passaram a ser importados. Ao mesmo tempo, essas agências promoviam políticas de liberalização comercial (SHIVA, 1991, p. 30).

Na década de 1970, a indústria de fertilizantes estava entre as quatro maiores do mundo, atrás somente dos setores de petróleo, aço e cimento. Segundo declaração do economista-chefe da Agência do Departamento de Estado dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, John W. Mellor, "no geral, a Revolução Verde é principalmente um esquema de fertilizantes" (PERELMAN, 1979PERELMAN, Michael. Farming for Profit in a Hungry World. Montclair: Allanheld, Osmun Publishers, 1979., p. 169-171). Dados do Banco Mundial na época mostram que pelo menos metade da exportação de fertilizantes dos Estados Unidos era subsidiada pelo governo. Tal política se tornou essencial para a manutenção do controle sobre o mercado mundial de grãos e para garantir a dependência de outros países através de programas de "ajuda alimentar".

Assim como em outros setores do agronegócio, as empresas produtoras de sementes passaram por processos de fusões e aquisições nos anos 1970, quando o mercado mundial veio a ser controlado principalmente por transnacionais petroquímicas e farmacêuticas como Monsanto, Pfizer, Shell e ARCO. Desta forma, as sementes adquirem um duplo papel, como meios de produção e como mercadorias, já que podem ser comparadas ao "mito da Fênix" porque reaparecem das cinzas no processo produtivo em que são consumidas. Por essa razão, a produção de sementes híbridas, que não possuem a característica de reprodução natural, constitui-se como fator determinante no sentido de "abrir novas fronteiras para a acumulação do capital", inclusive através de mecanismos jurídicos de propriedade intelectual (KLOPPENBURG, 1988KLOPPENBURG, Jack R. First the Seed: The Political Economy of Plant Biotechnology. Cambridge: Cambridge University Press, 1988., p. 10-11).

O Conceito de Agronegócio no Brasil

No Brasil, o termo agronegócio é utilizado para justificar a criação das chamadas cadeias produtivas, com o objetivo de agregar atividades agroquímicas, industriais e comerciais aos cálculos econômicos da agricultura. As características de monopólio da terra e de uma política agrícola voltada preferencialmente para o mercado externo obviamente não são novas. Caio Prado Jr. observa este ponto quando concebe o papel do Brasil colonial como país-empresa, fornecedor de produtos agrícolas e minerais para a Europa:

Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamante; depois algodão e, em seguida, café para o comércio europeu. (...) Este início, cujo caráter manter-se-á dominante através dos séculos da formação brasileira, gravar-se-á profunda e totalmente nas feições e na vida do país. Particularmente na sua estrutura econômica. E prolongar-se-á até nossos dias (PRADO JR., 1970PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasi liense, 1970., p. 23).

Desde o período colonial até a atualidade, a política agrícola brasileira prioriza incentivos para a exportação de commodities agrícolas e minerais. O conceito de agronegócio no Brasil está baseado em uma perspectiva que adota a ideia de desenvolvimento como sinônimo de progresso tecnológico, que ocorreria em etapas. Tal visão está presente, por exemplo, na definição do que seriam as chamadas cadeias produtivas. A Embrapa incorporou esta perspectiva a partir dos anos 1990 para incluir como "clientes" setores denominados "de fora da porteira da fazenda", mais especificamente empresas de insumos químicos, industriais, de infraestrutura e de comercialização agrícolas. Esta estratégia foi adotada com base no pensamento de Davis e Goldberg (1957) e passou a ser utilizada no Brasil inicialmente através da concepção de complexo agroindustrial, de negócio agrícola e, mais recentemente, de agronegócio (CASTRO et al., 2002CASTRO, Antônio Maria Gomes; LIMA, Suzana Maria Valle; CRISTO, Carlos Manuel Pedroso Neves . Cadeia produtiva: marco conceitual para apoiar a prospecção tecnológica. 2002. Disponível em: <http://www.pee.mdic.gov.br/ portalmdic/arquivos/dwnlã1197031881.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2011.
http://www.pee.mdic.gov.br/ portalmdic/a...
, p. 6).

Uma das características desse sistema seria abranger, "ao mesmo tempo, a concentração do poder e a descentralização das tarefas produtivas e dos serviços". Essa descentralização é caracterizada através da implantação das chamadas "parcerias produtivas", nas quais "os diferentes atores se organizam de forma hierárquica", que "se traduzem em relações de dominação/subordinação". Para Favero, essa subordinação seria positiva, já que ocorreria em consequência da necessidade de garantir qualidade dos produtos e de massificar a produção, no sentido de "aumentar a capacidade de competição de determinados atores em um mercado cada vez mais exigente e globalizado". De acordo com tal perspectiva, esse tipo de subordinação teria o papel de garantir "regularidade" nos mercados mundiais e, por essa razão, este modelo teria "um disciplinamento rigoroso das relações entre as indústrias e os agricultores" (FAVERO, 1996FAVERO, Celso Antonio. O Mercosul e a reestruturação da agricultura: as "filières" de cereais e a exclusão social. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 13, n. 3, p. 279-302, 1996., p. 281-282).

A substituição de uma base essencialmente orgânica por técnicas dependentes de insumos industriais ocorre no Brasil a partir da transformação dos complexos rurais, voltados para o mercado externo e caracterizados principalmente pelos ciclos da cana e do café, que passaram a ser caracterizados como complexos agroindustriais. Os produtos industriais na agricultura representavam 10% do custo de produção em 1949, passaram a 25% no final da década de 1960 e chegaram a 40% em 1980. O maior índice de elevação ocorre em 1965, quando houve aumento de 7% em relação ao ano anterior. O uso de fertilizantes apresentou uma alta anual de 13% entre 1950 e 1985, sendo que, de 1867 a 1980, a elevação chegou a 17% ao ano (KA GEYAMA et al., 1987KAGEYAMA, Angela et al. O novo padrão agrícola brasileiro: do complexo rural aos complexos agroindustriais. In: DELGADO, G. Agricultura e políticas públicas. Campinas: Unicamp, 1987. p. 113-223., p. 120-128).

Em relação à utilização de máquinas agrícolas, até 1920 o único setor que adotava algum tipo de mecanização no Brasil era a produção canavieira. A partir de 1940, a mecanização foi parcialmente adotada na produção de café em São Paulo e de trigo e arroz no Rio Grande do Sul. A mecanização em grande escala ocorre principalmente a partir de 1960, nas plantações de soja, estimulada por créditos subsidiados. Empresas estadunidenses e europeias exerciam controle do setor, mesmo quando a fabricação desses insumos era feita no Brasil, com a implantação de fábricas subsidiárias. O monopólio na produção de tratores era exercido por três empresas, Massey Ferguson, Ford e Valmet; e a produção de colheitadeiras era controlada principalmente pela Massey, Schneider Logemann (SLC) e New Holland, que foi incorporada posteriormente pela Ford (KAGEYAMA et al., 1987, p. 149-150).

Como parte desse pacote tecnológico, os chamados "defensivos" agrícolas foram disseminados mundialmente a partir do período pós-guerra. No Brasil, esses produtos passam a ser utilizados mais intensamente a partir de 1961, quando o Ministério da Agricultura elimina barreiras à importação de insumos químicos. Entre 1974 e 1981, o crédito subsidiado para esses insumos cresceu em 213%, o que representou uma alta proporcionalmente maior do que o crédito para custeio geral da agricultura, que teve um aumento de 92% no mesmo período. A alta no preço do petróleo refletiu de forma significativa nesse custo. Na década de 1980, o Brasil ocupava o quarto lugar em consumo mundial de herbicidas, fungicidas e inseticidas, sendo o maior consumidor de agrotóxicos na América Latina (KA GEYAMA et al., 1987, p. 139-140).

Até a década de 1970, o comércio mundial de fertilizantes era controlado por empresas transacionais com sede principalmente nos Estados Unidos e Europa. A partir dos anos 1980, verifica-se o aprofundamento da formação de monopólios de diferentes setores através de fusões ou joint ventures. Tal mudança se concretiza com base no acesso dessas empresas a políticas governamentais de crédito, o que propicia o aumento da concentração de capitais agrícolas, industriais e bancários. Durante o período marcado pela implantação de políticas neoliberais, difunde-se uma perspectiva sobre a situação do campo brasileiro, segundo a qual tanto o latifúndio quanto o campesinato tenderiam a se modernizar. Tal pensamento prevaleceu durante a década de 1990, quando o Estado implantou um programa agrário denominado novo mundo rural, que tinha como alicerce uma política fundiária voltada para a privatização do mercado de terras, em detrimento de um programa de reforma agrária. Tal concepção foi fomentada pelo Banco Mundial através da criação dos programas Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário. Apesar de essa política se basear na ideologia neoliberal de Estado mínimo, o Banco Mun dial exigia uma contrapartida dos governos para seus projetos, o que comprometia o orçamento do Estado para a reforma agrária.

O discurso sobre a suposta vocação agrícola brasileira, no sentido da defesa do modelo econômico baseado no monocultivo para exportação, é utilizado para manter o caráter extensivo do agronegócio através de sua aliança com a oligarquia latifundista. Delgado (2012)DELGADO, Guilherme C. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012. (Mimeo do autor). explica que as chamadas vantagens naturais da economia brasileira se referem à apropriação da renda da terra, a partir da manutenção de um contexto, segundo o qual:

Nas condições atuais, as razões do sucesso conjuntural dos vários "setores" que crescem à frente dos demais - agricultura, mineração, hidroeletricidade e exploração de petróleo - decorrem de um conjunto de condições econômicas externas que ressaltam as vantagens comparativas naturais e a apropriação da renda fundiária como principais motores de acumulação de capital no sistema econômico brasileiro (DEL GADO, 2012, p. 2-4).

Apesar da predominância do modelo agroexportador, até os anos 1970 se percebe que o Estado brasileiro exercia um papel significativo sobre estoques de alimentos, estabelecendo cotas para exportação, além de políticas comerciais de controle de importações agrícolas. Durante aquele período, a política de apoio estatal para a produção de alimentos buscava atender, em certa medida, o mercado interno como forma de subsidiar a reprodução da força de trabalho para a indústria, com o propósito de manter salários em um patamar mais baixo. O fim da ditadura militar no Brasil coincide com a difusão de um discurso em defesa de políticas de austeridade fiscal e livre comércio. As reformas neoliberais eram apresentadas como solução para a crise da dívida externa. Os anos 1990 foram marcados por políticas de privatização de empresas estatais, inclusive com a desregulamentação dos estoques de alimentos. As demandas sociais por reforma agrária não se concretizam e, portanto, aumenta o processo de êxodo rural e o agravamento da chamada metropolização da pobreza. Nessa nova ordem econômica, a elevação da concentração de capitais privados é caracterizada pelas chamadas parcerias produtivas ou joint ventures, que intensificam a formação de monopólios em diferentes setores da economia, inclusive no agronegócio.

A constituição de monopólios privados no controle da produção e comercialização agrícolas ocorre simultaneamente a um processo de crescente predominância do capital financeiro na agricultura, com o fortalecimento dos mercados de futuro e de outros mecanismos financeiros utilizados pelo agronegócio. Os créditos subsidiados e as constantes rolagens de dívidas do agronegócio são articulados com políticas de livre comércio, que visam consolidar vantagens para o setor baseado no monocultivo para exportação. Um exemplo foi a aprovação da chamada Lei Kandir, que a partir de 1996 possibilitou novas formas de incentivos fiscais para a exportação agrícola. Apesar de contar com esse tipo de medida, a situação de endividamento permaneceu para o agronegócio. Em 1999, o governo concedeu perdão a uma dívida de US$ 18 bilhões ao setor, quando o superávit comercial anunciado era de US$ 10 bilhões. Nesse sentido, o "produto" do agronegócio seria a própria dívida, que se expressa na busca por valorização de capitais financeiros e industriais a partir da renda da terra.

O discurso dos porta-vozes do agronegócio na atualidade permanece focado no lobby em favor de políticas para a expansão de monocultivos, inclusive com pressões políticas que resultaram no desmonte do Código Florestal. As mudanças na legislação ambiental tiveram como objetivo permitir maior avanço da fronteira agrícola no Brasil, principalmente em áreas com acesso a infraestrutura, vastas bacias hidrográficas e biodiversidade. O resultado é a geração de uma bolha especulativa, que tem causado forte aumento no preço da terra, além de estimular fusões entre a oligarquia latifundista e grandes empresas nacionais e multinacionais.

Considerações Finais

O conceito de agronegócio está relacionado a um conjunto de medidas impulsionadas por governos e instituições privadas que intensificaram a industrialização e a padronização da agricultura em nível internacional. Alguns dos elementos centrais deste modo de produção são a uniformidade e extensão dos cultivos, o uso de máquinas e insumos químicos, além da intensificação do uso de água e energia no processo produtivo. Ao mesmo tempo, verifica-se a crescente demanda por subsídios e sistemas estatais de crédito para cobrir o aumento dos custos da produção agrícola. Os dados analisados neste artigo demonstram que a expansão do comércio mundial de grãos e a internacionalização do agronegócio exigiram maiores investimentos em capital fixo, o que resultou em um processo de concentração e monopólio, principalmente de empresas de insumos industriais e de comercialização.

É possível identificar as origens deste modo de produção a partir do período de Depressão Econômica, na década de 1930, quando o governo dos Estados Unidos adotou medidas para restringir a importação de alimentos e proteger a agricultura local. Esta política incluía subsídios, tanto para a produção de alimentos quanto para a garantia de preços, o que gerou produtos excedentes, principalmente grãos. Com isso, o governo passou a financiar a exportação e a utilizar o discurso de "ajuda alimentar" para inundar o mercado mundial de grãos com políticas de dumping. Assim, os Estados Unidos mantiveram seu predomínio sobre as exportações mundiais de alimentos.

Principalmente a partir da década de 1970, empresas do agronegócio estadunidense intensificaram a implantação de subsidiárias em diversos países. Tal processo foi facilitado pelo aumento da desregulamentação financeira, que gerou maior mobilidade de capitais em âmbito internacional. A crescente especialização da produção agrícola resultou na migração de trabalhadores e camponeses, causando uma mudança significativa na estrutura fundiária e na forma de uso da terra em vários países. A dependência de maquinários e insumos químicos gerou erosão genética, deterioração dos solos e especulação com o preço da terra. Dados sobre a perda na fertilidade do solo geralmente são omitidos das estatísticas oficiais. Porém, a crescente dependência de fertilizantes à base de nitrogênio evidencia o desgaste causado aos nutrientes naturais, o que diminui a porosidade dos solos e a disponibilidade de oxigênio. Este modo de produção demanda grande quantidade de energia fóssil, o que gera vulnerabilidade econômica em uma conjuntura de disputas geopolíticas por petróleo e gás natural, além da instabilidade causada pelo papel que estas commodi ties exercem no movimento especulativo do mercado financeiro. Para avaliar de forma mais precisa os custos deste modelo agrícola, seria necessário ainda considerar seus impactos poluentes em fontes de água e na qualidade do ar.

O contexto atual de crise econômica e ambiental em âmbito internacional tem gerado novos debates sobre a necessidade de mudanças nos sistemas agrícolas, que incluem o fortalecimento dos mercados locais e da agroecologia. No campo das relações internacionais, este debate traz o desafio de atualização de conceitos como soberania alimentar e vantagens comparativas nos mercados de commodities, além do clássico dilema entre políticas protecionistas e expansão do comércio mundial. O resgate histórico sistematizado neste artigo aponta para a necessidade da retomada da investigação sobre esses temas na atualidade.

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  • WALKER, Richard A. The Conquest of Bread: 150 Years of Agribusiness in California. Nova York: The New Press, 2004.
  • 1
    . Essas informações fazem parte da biografia de Davis em seu livro Farmer in a Business Suit (DAVIS; HINSHAW, 1957).
  • 2
    . Esta concepção é apresentada em Silva (1997)SILVA, José Graziano. O novo rural brasileiro. Revista Nova Economia, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 43-81, mai. 1997..
  • 3
    . O conceito de tempo de trabalho necessário é apresentado no primeiro capítulo de Princípios de economia política e tributação (RICARDO, 1966, p. 23-48).
  • 4
    . Alysson Paulinelli (ministro da Agricultura, 1974-1979) para Rodman C. Rockefeller, 8 de março de 1976, pasta 98, caixa 7, Série "Projects and Proposals", Coleção "International Basic Economy Corporation" Rockefeller Foundation Archives, Rockefeller Archive Center, Sleepy Hollow, Nova York. Agradeço a Clifford Andrew Welch por me passar cópia deste documento.
  • *
    Artigo recebido em 23 de setembro de 2014 e aprovado para publicação em 22 de julho de 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2014
  • Aceito
    22 Jul 2015
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