Acessibilidade / Reportar erro

Lealdades, silêncios e conflitos: Ser um dos “grandes” num abrigo para famílias

Loyalties, silence and conflicts: Being one of the “grown ups” in a family care institution

Resumo:

Neste artigo entende-se a criança como um ator social produtor de cultura e atuante nas relações sociais das quais participa. Considerando que a emergência desta noção na antropologia coincide, historicamente, com o processo de reconhecimento da criança como um sujeito pleno de direitos, a análise insere-se num projeto amplo que visa interrogar seus posicionamentos quando diferentes figuras de autoridade ­− juízes, educadores, técnicos etc. − atuam visando assegurar a proteção de seus direitos frente a suas famílias de origem. A partir de dados etnográficos coletados ao longo de dois anos numa instituição do sistema francês de proteção à infância, destinada a famílias ditas monoparentais em dificuldade, analisa-se práticas cotidianas de crianças de sete a dez anos num contexto relacional complexo em que seus pais estão sob suspeita quanto à capacidade ou possibilidade de educá-las.

Palavras-chave:
antropologia da criança; proteção à infância; família; crianças

Abstract:

This article refers to the child as a social actor and producer of culture and acting in social relations in which it participates. Considering that the emergence of this concept in anthropology, coincides historically with the process of recognizing the child as a full individual of rights, the analysis is part of a broader project that aims to interrogate their various positions when different authority figures - judges, educators, technicians etc. – they act to ensure the protection of their rights against their families of origin. Based on ethnographic data collected over two years in an institution of the French system of infancy protection, for the so called monoparental families in difficulty, we analyze the daily practices of children aged from seven to eleven years old in a complex relational context in which their parents are under suspicion regarding the capability and the possibility to educating them.

Keywords:
anthropology of the child; infancy protection; family; children

“Infância é um antigamente que sempre volta.”

(Ondjaki, 2006ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006.)

Alain, Sara, Lisa, Christian e Teddy têm entre sete e dez anos e são os primogênitos de suas famílias. Eles são franceses e quando os conheci residiam, sob determinação judicial, numa instituição de proteção à infância localizada na ilha d’Yeu (França)1 1 A ilha d’Yeu é uma das 16 ilhas da fachada atlântica da França. Com 23 km², está localizada a 20 quilômetros do continente, sendo a segunda mais distante. Sua população permanente é de 5 000 habitantes, mas passa de 30 000 durante o verão. 70% da economia local dependem da pesca e o restante, sobretudo do turismo. . Esta instituição se define como um lugar de residência provisória destinado a famílias ditas monoparentais em dificuldade, designadas pelos serviços sociais como famílias de risco2 2 Para fins de classificação demográfica, são ditas famílias monoparentais aquelas cuja residência é constituída pela mãe ou o pai e os filhos de até 25 anos. Na França, este termo foi promovido nos anos 1970 por sociólogas feministas que visavam afirmar a legitimidade das famílias chefiadas por mulheres. Pesquisas sociológicas demonstram que, à revelia desta intenção, a categoria foi rapidamente assimilada a representações negativas do funcionamento familiar e de seus efeitos sobre o desenvolvimento e socialização das crianças. Ver Lefaucheur, 1991. . As crianças são admitidas neste serviço na condição de abrigadas sob a tutela da Ajuda Social à Infância e, diferente dos dispositivos tradicionais existentes na França (instituição ou família de acolhimento), este é um dos únicos do país que recebe grupos de irmãos de diferentes idades acompanhados da mãe ou do pai. Por um período que pode variar de alguns meses a vários anos, as famílias residentes são acompanhadas, cotidianamente, por uma equipe formada por cinco educadores, quatro assistentes maternais, uma psicóloga e jovens estagiários. A atuação profissional apresenta entre seus objetivos, prevenir a separação de urgência, acompanhar e avaliar o vivido das relações pais e filhos.

Outra característica que particulariza este dispositivo de abrigamento de famílias diz respeito à insularidade que caracteriza sua localização geográfica. Nos projetos de intervenção preconizados pela associação CAVAL, a ilha sempre foi tomada como um parceiro3 3 CAVAL é a sigla de Centro Autogerido de Vela e de Animação Local. O nome da associação está relacionado às atividades náuticas que marcaram sua fundação em 1976. . Originalmente, seus idealizadores pretendiam utilizar o mar e suas promessas de evasão como recurso pedagógico na relação com adolescentes residentes em instituições. Durante alguns anos, jovens foram recebidos pela associação para a realização de estágios de vela. A partir de 1983, no âmbito de uma reconfiguração de suas atividades, a ilha foi vista como um espaço privilegiado para o desenvolvimento de um projeto sociopedagógico de acolhimento de famílias em dificuldade. O espaço insular, nesta perspectiva, é significado como protetor e propício a tomadas de distância. Entre 1989 e 2002, ao menos 55 famílias (53 mães, dois pais e 98 crianças) residiram em CAVAL por em média 15 meses. O tempo de residência para as crianças a que faço diretamente referência neste artigo foi de no mínimo três anos.

Os dados etnográficos que serão apresentados a seguir foram obtidos mediante observação participante realizada durante dois anos (de fevereiro de 2000 a fevereiro de 2002) na ilha d’Yeu4 4 Esta pesquisa foi realizada para meu doutorado em Antropologia Social na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), sob orientação de Françoise Zonabend. Para a realização do curso contei com bolsa da CAPES para doutorado pleno no exterior. . Ao longo deste período, a cada dois meses, residi por quinze dias junto às famílias na casa coletiva – Maison Familiale Cap Horn – que marca a primeira etapa de suas estadias na instituição. Após viverem por em média cinco meses de vida em coletividade, cada família é transferida para uma casa ou apartamento também localizado na ilha e segue sendo acompanhada pela equipe educativa. Com Christian, Alain e Teddy convivi nas duas etapas da residência; Lisa e Sara já residiam em casa individual quando comecei a pesquisa. Além desta convivência cotidiana e prolongada, a instituição autorizou-me a pesquisa nos dossiês de todas as famílias que lá residiram entre 1989 e 2002.

Idades, lugares e posições

Na França, de forma mais institucionalizada e naturalizada na linguagem corrente do que no Brasil, a infância é dividida em pequena infância5 5 No Brasil tem sido utilizada a categoria “primeira infância”. que vai do nascimento aos seis anos, quando a escolaridade torna-se obrigatória, e a infância propriamente dita que se encerra aos treze anos. Vários estudos mostram o longo processo de construção social desta noção através das leis, instituições e profissões que a partir dos anos 1950 participaram da emergência e definição desta fase na sociedade francesa. (Chamboredon, 1973CHAMBOREDON, Jean-Claude; PREVOT, J. Le métier d’enfant. Définition sociale de la prime enfance et fonctions différentielles de l’école maternelle. Revue Française de Sociologie, Paris, v. XIV, p. 295-335, 1973.; Rollet, 1990ROLLET, Catherine. La politique à l’égard de la petite enfance sous la IIIe République. Paris: INED, 1990.; Serre, 1998SERRE, Delphine. Le ‘bébé superbe’ – la construction de la déviance corporelle par les professionnel(le)s de la petite enfance. Sociétés Contemporaines, Paris, n. 31, p. 107-127, 1998.). Em relação à pequena infância, o sistema de proteção à infância preconiza os benefícios da manutenção do vínculo mãe-criança, sobretudo nos primeiros três anos de vida, e evita a separação precoce bastante corrente até meados dos anos 1980.

Mais de 70% das crianças que residiram em CAVAL desde 1989 encontra-se nesta fase. No cotidiano, elas são designadas como os pequenos, mas faz-se a diferença entre os pequeninhos (até dois anos) e os pequenos propriamente ditos. Estes, situados entre os pequeninhos e os grandes, apesar de bastante autônomos em relação ao domínio da linguagem e da marcha por exemplo, continuam pequenos. As mães sabem que eles podem cometer gafes ao falar, e não esperaram que compreendam as consequências de suas palavras ou comportamentos. Quanto aos grandes (a partir de seis anos), apesar de numericamente minoritários, são bastante visíveis no dia-a-dia da instituição, sobretudo em função de suas possibilidades de interlocução com os adultos. Em relação a eles, um atributo bastante valorizado, tanto por educadores como pelos pais, é a capacidade de raciocínio e de discernimento6 6 Em sua etnografia junto a crianças de comunidades periféricas de Recife, Silva (2006) observa algo semelhante. A definição de quem é mais criança passa pela capacidade de ter uma “atitude correta” perante um determinado fato: “A partir do momento em que se torna “entendido” – uma categoria nativa que define se a pessoa já tomou conhecimento de determinadas regras sociais, a pessoa têm que fazer uso deste conhecimento” (Silva, 2006, p. 24). .

Na modalidade de acolhimento realizada pela associação CAVAL os pequeninhos são os que ficam mais tempo junto da mãe. Pode-se afirmar que quando se desenvolvem bem, representam seus aliados perfeitos, pois legitimam as capacidades maternas ­− objeto de avaliação constante da equipe de profissionais. Na medida em que crescem estarão progressivamente em contato com outros adultos além da mãe: a partir de dois anos podem ser admitidos na escola maternal e, a partir de três anos e meio, frequentar o centro de lazer da ilha d’Yeu. Aos seis anos, a entrada na escola marca uma passagem socialmente reconhecida. A este propósito duas expressões idiomáticas bastante utilizadas no francês são significativas: para dizer que alguém foi infantilizado diz-se que voltou para o maternal, para dizer que alguém é profissional de uma área se diz que já brinca no pátio dos grandes.

As crianças focadas neste artigo já saíram do maternal e integram o prestigioso grupo dos grandes. No contexto de CAVAL como em outros, quanto mais crescem, mais suas palavras têm crédito e mais sua lealdade e cooperação será valorizada e mesmo exigida pelos pais. Espera-se que sejam razoáveis, se comportem bem, tomem cuidado com o que dizem e tenham um bom desempenho escolar. Nas relações cotidianas na instituição, os grandes são chamados a formar uma equipe com a mãe/pai, a serem aliados que lhes ajudem a manterem-se no lugar de mãe/pai, cúmplices com quem se fala de igual para igual. Um dia em que Teddy reclamava dizendo que o educador dava mais atenção a Alain do que a ele sua mãe, bastante contrariada perguntava:

Eu não entendo onde queres chegar Teddy! Queres que tenha sempre um educador com o nariz enfiado na nossa casa? Quanto menos eles precisarem tomar conta de ti, mais rápido poderemos partir. Mas se quiseres ficar mais dez anos aqui, te garanto que não será difícil!

O retorno de uma família ao continente, sem que as crianças sejam separadas dos pais, é um longo processo de interlocução entre os adultos residentes e os trabalhadores sociais. Para que estes recomendem ao juiz o fim da tutela da família, o equilíbrio das relações familiares cumpre um papel importante. Aí reside outro aspecto da exigência de colaboração dos pais em relação aos primogênitos. O objetivo deste artigo é analisar como os grandes se posicionam nesta situação complexa em que seus pais estão sob suspeita quanto à capacidade de educá-los. Partindo do princípio de que a criança, onde quer que esteja, “interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações” (Cohn, 2005COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., p. 28), cabe interrogar suas atuações em contextos nos quais outras figuras de autoridade ­− juiz, educadores, técnicos etc. − colocam em questão a possibilidade de que seu meio de origem assegure a proteção de seus direitos.

Pesquisas sócio-antropológicas (Attias-Donfut, 2002ATTIAS-DONFUT, Claudine; LAPIERRE, Nicole; SEGALEN, Martine. Le nouvel esprit de famille. Paris: Éditions Odile Jacob, 2002.; Singly, 1991SINGLY, François de (org.). La famille: l’état des savoirs. Paris: La Découverte, 1991.) neste campo clássico das ciências sociais ­− parentesco e família ­– concluem que apesar de importantes transformações quanto a abertura de espaços para a expressão pessoal e autonomia de cada um de seus membros, “a individualização crescente das sociedades ocidentais se inscreve na família na forma de uma busca de uma sustentação identitária assegurada pelos próximos” (Peixoto et al., 2000PEIXOTO, Clarice Ehlers; SINGLY, François de; CICCHELLI, Vincenzo. Família e individualização, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000., p. 7). Diante disto, no que se refere às crianças designadas em risco, cabe à nova antropologia da criança interrogar o que se passa quando as identidades familiares são estigmatizadas, quando as coletividades de pertencimento são associadas a problema social. Num contexto de individualização ideológica das crianças, uma tarefa da antropologia da criança pode ser a de problematizar a noção de interesse da criança quando esta implica em pensar a criança como um ser isolado, definido, sobretudo como um ser psicológico, fora da trama das relações que forma com os outros (Fonseca, 2001FONSECA, Claudia. La circulation des enfants pauvres au Brésil. Une pratique locale dans un monde globalisé. Anthropologie et Société, Montréal, v. 24, n. 3, p. 24-43, 2001. (Nouvelles parentés en Occident)).

Os grandes e suas famílias de risco7 7 Abordando a noção de risco numa perspectiva antropológica não podemos perder de vista seu caráter imbricado a decisões de ordem política e a relações de poder (Douglas, Wildavsky, 1983). Enquanto uma noção socialmente construída, o risco opera como um sistema classificatório − “o poder social seleciona os riscos com os quais o público deve se preocupar.” (Silva, 1998, p. 3) − e pode tornar-se um recurso para manter as relações sociais existentes ou para contestá-las (Peretti-Watel, 2002).

A maioria das famílias acolhidas por CAVAL é oriunda da periferia de Paris. De modo geral a mudança para esta instituição da ilha d’Yeu contextualiza-se em situações de precariedade material das famílias, de solidão da mãe/pai frente às necessidades das crianças, de tensões, dificuldades emocionais ou conflitos entre os adultos (casais, mas também parentes) e suspeitas de maus tratos contra as crianças. Foram os trabalhadores sociais com os quais estavam em contato no continente que lhes propuseram esta alternativa de residência provisória na ilha d’Yeu, a fim de evitar que as crianças fossem colocadas ou continuassem vivendo em instituição ou em família de acolhimento. Mesmo se suas condições psicossociais (alcoolismo, moradia precária, desemprego) ou relacionais (conflitos no casal e com a família, suspeita de negligência ou de maus tratos contra as crianças) tenham sido designadas como de risco ou perigo, a separação da família não foi avaliada pelos trabalhadores sociais como uma medida apropriada. Do ponto de vista institucional, o deslocamento espacial proposto aos pais é descrito como uma ocasião de virar a página. Quando solicitados a falar desta decisão de residir na ilha, os adultos apontam como principal razão, a possibilidade de voltar a viver ou de continuar vivendo com as crianças: Eu escolhi vir, mas na verdade não tinha escolha. O que no projeto institucional é definido como ruptura, no discurso dos pais aparece como uma possibilidade de dar continuidade à vida em família.

A partir da leitura dos dossiês que reúnem diferentes documentos sobre a estadia do grupo familiar na instituição, pude observar que as palavras e os comportamentos das crianças são indícios importantes para os agentes que acompanham e avaliam as famílias. Anotações a este respeito constituem grande parte do conteúdo dos relatórios de situação, elaborados periodicamente a fim de informar as decisões de trabalhadores sociais e do juiz. No que segue, buscarei demonstrar como crianças cujos pais encontram-se numa posição liminar quanto ao exercício da parentalidade8 8 O termo parentalidade refere-se à função de pai e mãe tanto em seu aspecto jurídico quanto moral e educativo (Tillard, 2003). , posicionam-se cotidianamente nas relações das quais participam. A liminaridade na qual se encontram seus pais diz respeito ao fato de que a própria existência desta modalidade de acolhimento, ao mesmo tempo em que lhes assegura um lugar e, portanto, a valorização do vínculo original, deixa em suspenso o reconhecimento de suas capacidades ou possibilidades de assumi-lo plenamente9 9 A passagem por um dispositivo deste tipo, pensada a partir do modelo do rito de passagem teorizado por Van Gennep (1909), corresponderia a um período de vida à margem colocada entre a etapa de separação e de agregação. No caso do projeto da associação CAVAL estas etapas são reforçadas pela carga simbólica do deslocamento familiar para a ilha d’Yeu e seu retorno ao continente. . Antes disto, passemos a uma breve apresentação biográfica de Teddy, Sara, Lisa, Christian e Alain, considerando suas posições genealógicas (filiação e grupo de irmãos) e a situação familiar que justificou o abrigamento na instituição.

Junto com Teddy (8 anos)10 10 Idade no ano 2000, quando iniciei a pesquisa. residem na ilha sua mãe e dois de seus três irmãos. Ele não tem lembranças de sua irmã mais velha, filha do primeiro casamento de sua mãe. Desde a separação do casal, a menina reside com o pai e não convive nem com a mãe, nem com os irmãos nascidos do segundo casamento. A família foi admitida em CAVAL em função dos recorrentes conflitos do casal, do desemprego do pai e alcoolismo da mãe. O pai vem frequentemente à ilha d’Yeu visitar as crianças e parece ter uma relação de grande cumplicidade com Teddy.

Sara (10 anos) tem quatro irmãos: três residem na ilha e um já vivia em família de acolhimento quando Sara, sua mãe e seus irmãos foram admitidos na instituição. O contexto de admissão da família na ilha coloca Sara no centro dos acontecimentos. Depois de abandonar seu companheiro, quando descobriu que este abusava sexualmente de Sara, sua mãe procurou uma assistente social que a encaminhou para a associação CAVAL. Nesta ocasião ela estava grávida deste homem com quem já tinha um filho. Sara não convive com seu pai.

Lisa (8 anos) é filha única. Seus pais se separaram quando ela era bem pequena e sua mãe sofre de depressão. A admissão das duas em CAVAL tem a ver com a solidão relacional em que mãe e filha viviam. Os agentes de proteção à infância constatavam que as depressões da mãe colocavam Lisa em perigo. Na escola preocupavam-se com suas ausências e sua introspecção. Seu pai vem visitá-la de tempos em tempos, tem outra família e segue tratamento para drogadição.

Christian (7 anos) tem dois irmãos. O deslocamento da mãe – grávida de seis meses – e dos meninos para a ilha situa-se num momento de grande precariedade material, ameaça de despejo e conflitos do casal. O mais grave, no entanto, era o fato do companheiro da mãe, pai de seu terceiro filho, ter sido acusado de maus tratos contra o irmão de Christian, então com dois anos. Antes de serem admitidos com a mãe em CAVAL os dois viveram cinco meses em instituição tradicional. Neste caso, vir residir na instituição representou a reunião mãe-filhos. O pai de Christian reaproximou-se dos meninos durante a residência da família na ilha. Com a intermediação dos trabalhadores sociais passou a telefonar-lhes e visitá-los.

Alain (8 anos) tem uma irmã. Diferente da grande maioria das crianças que já residiram em CAVAL, eles chegaram acompanhados do pai. As duas crianças já tinham vivido numa instituição antes do pai obter a guarda dos dois. Também já passaram períodos na casa da avó paterna em função das dificuldades do pai que, frequentemente, envolve-se em conflitos e tem uma capacidade de trabalho bastante limitada em função de acidentes sofridos e do alcoolismo. Eventualmente recebem uma carta da mãe com quem não convivem há bastante tempo.

Circuitos cotidianos

Como já observei anteriormente, a primeira etapa da residência em CAVAL se passa em coletividade na casa Cap Horn. Na sua aparência esta casa não difere da maioria das casas da ilha: sua fachada é branca com as janelas azul marinho e, assim como muitas outras, tem seu nome escrito em ferro e colocado em diagonal entre duas das três janelas que compõem a fachada. Sua capacidade total de alojamento é de 25 pessoas e a entrada nos espaços da casa se faz pela lateral através de um portão de madeira. Este portão – cuja abertura só não está ao alcance dos bem pequenos – dá sobre um pátio interno cercado pelas portas convergentes dos oitos quartos, da cozinha, da sala coletiva, de um escritório e da lavanderia. Na sala coletiva as famílias residentes fazem as refeições conjuntamente e um grande armário embutido guarda jogos e brinquedos utilizados pelas crianças. Alguns objetos como pufes na forma de bichinho, mesas e cadeiras pequenas, tapetes coloridos demarcam o lugar apropriado para as brincadeiras.

O apartamento que cada família ocupa em Cap Horn é composto de quartos, banheiro e sala. Em alguns deles o espaço é maximizado por um mezzanino onde, em geral as crianças gostam de brincar. O período de residência nesta casa é o de convivência mais intensa entre as crianças que se misturam no pátio, participam de atividades propostas pelos educadores e dividem os brinquedos disponíveis. Além destes, cada criança também traz os seus brinquedos, triciclos ou bicicletas que em geral ficam no quarto ou no pátio. A casa Cap Horn situa-se bem no meio da ilha e a menos de dez minutos de carro chega-se a sede náutica da associação CAVAL onde as crianças vão frequentemente por razões diversas: sessões de reforço escolar, atividades de lazer, festas de aniversário etc.

Na ilha d’Yeu as crianças de CAVAL circulam por vários espaços. Pegando carona com alguém da equipe, é raro que não encontremos uma delas. Seja no carro que as leva à escola, de bicicleta ou a pé elas circulam, deslocam-se, passando da responsabilidade de um adulto a outro, pais ou equipe educativa. Elas também frequentam regularmente a casa das assistentes maternais: quatro residentes da ilha contratadas por CAVAL para a guarda das crianças. Na casa das assistentes maternais as crianças podem permanecer por algumas horas do dia ou por longos períodos. Assim, num mesmo dia acontecia-me de almoçar com uma criança e sua mãe na casa Cap Horn, de vê-la à tarde na sede náutica da associação participando de uma atividade animada por um educador e de cruzar-lhe no final de tarde passeando no porto com a assistente maternal e seu marido.

Nos horários intermediários – entre a chegada da escola e o jantar, entre o jantar e a hora de ir dormir – ou nos finais de semana, educadores ou estagiários lhes propõem atividades das quais participam com muito interesse: jogos, fabricação de um objeto, passeio para ver as cabras ou os pôneis, colheita de frutas e preparação de um doce ou bolo, pintura, leitura etc... Ao longo do ano a equipe educativa organiza com elas, além de suas festas de aniversário, as festas de Páscoa, Halloween11 11 A festa de Halloween, ou festa das bruxas, ocorre na noite de 31 de outubro a 1° de novembro. Conforme a tradição, as crianças, fantasiadas de fantasma, bruxa, vampiro, monstro etc, batem nas portas pedindo balas, frutas ou dinheiro. Comemorada principalmente em países anglo-saxões esta festa teve um sucesso importante mas passageiro na França, no início dos anos 2000. e Natal.

Fora da instituição, as crianças de CAVAL circulam por espaços comuns aos das crianças da população local: o centro de lazer, a escola, a creche... Além das atividades marítimas propostas por CAVAL – o clube de kayak e a escola de vela – se desejarem (o que é frequentemente o caso, sobretudo para os grandes), podem inscrever-se em outras atividades destinadas às crianças da ilha: futebol, centro equestre, dança... Ao contrário dos adultos residentes, as crianças circulam numa rede ampla que ultrapassa a instituição. Podemos dizer que elas fazem a ligação entre os adultos que delas se ocupam, mas também entre suas famílias e a população local. Passeando num sábado à tarde com Christian pude verificar o que sua mãe afirmava: “Eu te garanto que ele conhece mais gente do que eu na ilha d’Yeu”. Comentário repetido pela mãe de Teddy e pelo pai de Alain. Durante nosso passeio pude confirmar a popularidade de Christian: num curto período de tempo ele cumprimentou certo número de pessoas na rua e me explicava de quem se tratava: o pai de um colega, o professor de futebol...

Suas atividades cotidianas fazem com que rapidamente se orientem na ilha. Alain, por exemplo, numa ocasião em que nos deslocávamos no carro de CAVAL, me mostrava os diferentes lugares que ele conhecia e se vangloriava: “Eu conheço toda essa ilha!”

Teddy, pouco a pouco desde sua chegada, retomou o hábito de andar de bicicleta. Um ano depois de terem se mudado para a ilha, Teddy ganhou uma nova bicicleta e deslocava-se sozinho de um lugar a outro. Na última vez que o encontrei, os educadores se perguntavam se ele não estaria muito solto, ao passo que sua mãe não via problema nesta progressiva autonomia.

Cumplicidade e oposição

As relações dos grandes com as mães/pai são marcadas pela ambiguidade entre cumplicidade e conflito, cooperação e oposição. Com exceção de Christian, o mais jovem das crianças aqui referidas, eles mostram-se reticentes quanto ao que está em jogo na passagem da família pela instituição. A saber, o julgamento social sobre o risco representado pelo modo e condições de vida dos pais. Colocando os grandes numa escala do menor ao maior veremos que, com a idade, aumenta a tendência de oposição e rivalidade com os pais. Christian, apesar de ser considerado agitado pelos educadores é também o que menos se opõe a sua mãe, lhe satisfazendo no seu desejo de poder contar com ele. Num dia em que ela não podia levá-los para passear, ele concluía resignado: “Eu sei, eu sei, tu vais dizer que tens mais o que fazer; que eu sou grande e tenho que entender”. Diariamente Christian ajuda sua mãe realizando pequenas tarefas, fazendo compras na padaria ou na tabacaria ou tentando fazer seu irmão dormir.

Sara, a mais velha dos grandes, é também a que com maior freqüência vive situações de conflito com sua mãe. Sara tem fama de ser mandona tanto com as outras crianças como com sua mãe, mas sobre determinados assuntos as duas conversam de igual para igual. Assim como Christian, que afirma não achar nada bonito as brigas de sua mãe com o companheiro, Sara também dá conselhos a sua em relação à vida amorosa: “tu tens que encontrar alguém mamãe, tens que viver!” No início de um novo namoro, ela pergunta: “Ele te ama mesmo? Tu encontras alguém e dois meses depois ele vai embora...” Por causa dos desentendimentos e agressividade em casa, no final de minha pesquisa, Sara passava a maior parte do tempo na casa da assistente maternal. Quando volta, nos finais de semana, ela briga com a mãe e irmãos, diz palavrão, debocha. Ela refere-se a sua mãe como “ela” e faz que não a vê quando se encontram na saída da escola, por exemplo. Assim como Alain e seu pai, Sara e sua mãe se agridem, insultam e desafiam verbalmente. No caso de Alain, pude também presenciar desfechos muito carinhosos para as discussões e manifestações de admiração recíproca. O menino escuta encantado e atento às histórias que seu pai conta a respeito de acampamentos da juventude, viagens de caminhão, brigas etc. As narrativas do pai são ricas em detalhes - características dos lugares, roupas usadas, sequências de gestos e frases... Alain, este amante das séries televisivas, sonha... O queixo entre as mãos e os cotovelos apoiados na mesa. Quando a cena muda em relação ao que ele já conhece, Alain interrompe seu pai, corrige a história e os dois discutem sobre a verdadeira versão.

As relações de Teddy e sua mãe nem sempre são das mais amigáveis. Na maioria do tempo ele é sério e tem uma maneira insolente de olhar para ela. Numa ocasião em que aceitou a proposta dos educadores de passar alguns dias numa fazenda aprendendo a cuidar de cavalos, sua mãe concordou dizendo: “eu e Teddy precisamos de férias um do outro!”

A partir de pesquisas etnográficas realizadas junto a famílias de imigrantes residentes na periferia de Paris durante os anos 1970, Petonnet (1985)PETONNET, Colette. On est tous dans le brouillard. Paris: Ed. Galilée, 1985. nos apresenta descrições das relações pais e filhos que muito se parecem com o que encontrei na ilha d’Yeu: do ponto de vista dos adultos o mesmo medo de que as crianças reproduzam a desaprovação social que pesa sobre seus modos de vida, a mesma expectativa de que os mais velhos aliem-se aos pais, a mesma disposição de falar-lhes de igual para igual. Do ponto de vista das crianças a mesma estreita associação à vida dos adultos, a mesma tendência de manifestar a vergonha que sentem de seus pais, a mesma rivalidade que pode predominar em suas interações cotidianas. Lembro-me de Alain que ao discutir com seu pai o acusa aos berros de lhe envergonhar.

Em comum com os grandes de CAVAL, as crianças conhecidas por Petonnet vivenciam o fato da estigmatização ou inferiorização social dos pais. No entanto, o contexto não é o mesmo. O que para aquelas famílias era uma ameaça – a tutela por parte dos serviços sociais – para as que residem em CAVAL é uma realidade. Outra diferença importante diz respeito ao momento histórico. A linguagem dos direitos e a consequente individualização da criança contribuem para uma maior legitimidade das posições por elas tomadas, assim como uma maior atenção dos adultos ao que elas têm a dizer. Neste sentido, podemos pensar que um desdobramento desta linguagem é o empoderamento das crianças diante de seus pais. A partir das que encontrei na ilha d’Yeu este poder se exerce, sobretudo através da palavra e revela-se marcado pela ambiguidade entre solidariedade e conflito.

Partilhando uma designação estigmatizante

Os grandes se encontram em diferentes circunstâncias, tanto no interior quanto fora da instituição. Entre eles circulam fofocas de namoricos, bilhetes com corações e os nomes de Sara e Alain, por exemplo. Eles sabem que são reconhecidos na ilha como fazendo parte das crianças de CAVAL. Teddy, por exemplo, observa que na escola todo mundo conhece CAVAL. Este pertencimento pode ser vivido como um estigma. Sara atribui a isto, o fato de nem sempre ser convidada para os aniversários de seus colegas. Pela mesma razão, Teddy foi avisado pelo educador de que talvez nem todos os convidados compareçam a seu aniversário. Efetivamente, conforme relatos que obtive ao longo da pesquisa, algumas famílias da ilha se negam a matricular seus filhos numa turma em que tenha uma criança de CAVAL. Isto porque a elas é associada uma origem da qual nem todos querem se aproximar: são crianças que vêm da periferia de Paris, lá onde se concentra a maioria dos imigrantes a quem os discursos mais conservadores atribuem a causa dos problemas sociais neste país.

Uma forma de expressão do incômodo dos grandes com o estigma que os distingue é a recorrência com que acusam ou debocham da mãe ou do pai um do outro. Em algumas ocasiões eles contribuem para acirrar ou provocar conflitos entre os adultos. Durante uma refeição na casa coletiva Christian anuncia: “Mamãe eu tenho uma coisa pra te contar.” Conta: “Sara disse na escola que tu és uma sem-vergonha. Eu respondi que a mãe dela é que é...”. Christian é orientado pela mãe a contar o ocorrido para a professora e para um educador de CAVAL. Nem sempre, no entanto, esta é a solução adotada pelas mulheres. Sara já tinha feito o mesmo em relação à mãe de Lisa que ao tomar conhecimento do que a menina andava dizendo na escola foi tirar satisfação de sua mãe. As duas teriam se agredido física e verbalmente na saída da escola na frente de professores e demais crianças. Alain teria dito na escola que a mãe de Teddy bebe. Apesar das constantes intervenções dos educadores que proíbem que uns falem mal dos pais dos outros, este tema está recorrentemente presente nas relações entre os dois meninos. Este último se diverte fazendo com o polegar o gesto de beber, acompanhado de glu, glu, glu... O poder de ferir a imagem pública da mãe ou do pai de alguém é particularmente importante na escola, onde a reputação das famílias de CAVAL é conhecida, mas somente as crianças residentes na instituição e que convivem com elas, podem ter algo a dizer.

Falar mal da mãe ou do pai do outro, é um recurso de distinção que se aproxima a um dos usos da fofoca identificados por Fonseca nos seus estudos sobre grupos populares urbanos. Ou seja, aquele que serve para informar sobre a reputação dos moradores de um local, consolidando ou prejudicando sua imagem pública.” (Fonseca, 2000FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000., p. 42) Na vila, segundo a antropóloga:

a reputação consta como elemento importante nas investigações realizadas por policiais e assistentes sociais – para decidir o destino de uma criança pega por vagabundagem, de um adolescente detido por seu primeiro delito ou do bebê de uma mulher presa por atividades suspeitas (Fonseca, 2000FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000., p. 42).

No contexto de CAVAL, atingindo a imagem pública da mãe ou do pai de outra criança também residente na instituição, os grandes atuam demonstrando que conhecem a reputação que pesa sobre suas famílias, mas o fazem apontando o problema para a mãe/o pai do outro.

Internamente à instituição, outra maneira de atingir a mãe ou o pai do outro é negar-se a comer algo que prepararam. As mães/pai residentes preparam as refeições com a ajuda dos educadores, num sistema de rodízio de tarefas. Os grandes frequentemente desqualificam o que não foi obra do seu pai ou mãe, sobretudo quando os adultos estão em conflito. Teddy dizia que a comida feita pelo pai de Alain era nojenta e se negava a comer. Este, num dia em que a mãe de Teddy preparava um bolo, aproveitou um momento de ausência dos adultos para acrescentar ketchup à receita!

Além de uma maneira de posicionar-se nos conflitos entre os adultos, deixando claro o apoio à sua mãe/pai, este comportamento também atinge os adultos deslegitimando suas capacidades parentais. Schwartz, a partir de pesquisas realizadas no norte da França junto a famílias de operários desempregados, vivendo em condições precárias, observa: com exceção dos casos de completa demissão materna, nutrir as crianças constitui para a quase totalidade dos atores, a principal preocupação e o ponto de honra por excelência” (Schwartz, 1990SCHWARTZ, Olivier. Le monde privé des ouvriers. Paris: PUF, 1990., p. 144). Negando-se a comer o que lhes é oferecido os grandes atingem os adultos naquilo que é sua função primordial enquanto mãe e pai.

Apoio e silêncio

Raramente os grandes se queixam claramente de seus pais aos educadores e tendem a tomar duas principais posições: o apoio aos pais ou o silêncio. Um dia em que sua mãe se desentendeu com a educadora, Christian assumiu sua defesa acusando a profissional: “Você é má, fez a minha mãe chorar, agora ela tá triste!” A educadora desculpou-se dizendo não ter tido esta intenção. Christian, no entanto não se conforma e diz que sua mãe deveria ter batido nela! Numa outra ocasião, ele apoiou Lisa na sua postura de silêncio num conflito que envolveu a mãe da menina e a equipe educativa. Retomemos esta situação.

Desde que presenciou uma briga de sua mãe com uma pessoa da ilha, Lisa, por determinação do diretor, fica a maior parte do tempo na casa da assistente maternal. Diariamente, ela é trazida para casa pelo diretor e permanece com a mãe das 17 às 20 horas e durante todo dia nos finais de semana. A mãe de Lisa está inconformada com a separação e não aceita que a equipe educativa tenha interpretado o fato de a menina ter presenciado o conflito, como uma situação de perigo a qual teria sido exposta. A briga se passou na frente da casa de Christian. A mãe deste abriu a porta para que Lisa entrasse e tentou apaziguar os ânimos. Alguns dias depois, as duas mulheres divergiam quanto à versão dos fatos e a mãe de Christian critica a mãe de Lisa: “Francamente, tu não deverias estar na rua com a tua filha naquela hora da noite!” Christian e Lisa – os únicos a terem presenciado a briga – assistem a conversa, mas não dizem nada. O silêncio de Lisa incomoda sua mãe: “Eles estão todos contra mim e tu não me defende?” A menina responde: “Eu não sei de nada. Se é para nos afundar cada vez mais na merda eu não vi nada, não digo nada”. Christian vibra: “Bravo Lisa é isso aí!”

Na relação com os educadores, os grandes tendem a discrição quando se trata de situações de transgressão às regras por parte de seus pais. Sobretudo no que se refere à interdição de beber e de hospedar alguém sem o consentimento do diretor. Tanto o pai de Alain, quanto a mãe de Teddy infringem sistematicamente a proibição de beber. É através das acusações mútuas que os dois meninos falam do assunto sem que isto se torne uma delação. Um dia em que seu pai tinha bebido e passado mal, Alain se limitou a dizer à assistente maternal que seu pai estava um pouco doente. As mães de Teddy e Christian frequentemente hospedam seus companheiros em suas casas a revelia das regras da instituição. Teddy cuja relação com o pai, segundo sua mãe é de grande cumplicidade, jamais faz qualquer referência ao fato. Assim como Christian que xingou seu irmão de quatro anos por ele ter dito a uma educadora que o companheiro de sua mãe dorme na casa deles: “por tua causa a gente podia ter voltado pro abrigo”. Em contraposição à palavra, o silêncio é outro recurso utilizado pelos grandes nas suas relações com os adultos: mantendo-se discretos em relação às transgressões da mãe/pai, asseguram-lhes lealdade; optando pelo silêncio em situações nas quais a transgressão é de conhecimento dos educadores, os grandes evitam ser confundidos com eles.

Ampliando a rede de relações

Entre a população da ilha predomina a dúvida em relação aos motivos que levam estas famílias para lá. Não distante do imaginário que associa a presença das “classes perigosas” nas ilhas com alguma forma de desvio, sobretudo as mães residentes têm uma reputação duvidosa. No entanto, em relação às crianças pude ouvir manifestações de pesar em relação ao meio em que nasceram e a condição em que vivem. No dia do meu passeio com Christian, ele propôs que passássemos na tabacaria para comprar bala e tomar um refresco. A dona da tabacaria já o conhecia e em função de seu comportamento exemplar lhe ofereceu o refresco me dizendo baixinho: “estas crianças têm tantos problemas, é normal que a gente as ajude!”

Além de suas andanças pela ilha, os vínculos que os grandes estabelecem com as assistentes maternais, chamadas tata (tia), são um modo de ampliação de suas redes de relações e que poderá significar uma alternativa de suporte no futuro. Alain e Teddy têm tatas diferentes, mas assim como Christian e Lisa que freqüentam a casa da mesma assistente maternal, mantém com elas ótimas relações. A assistente maternal de Alain surpreende a todos contando que na sua casa o menino é comportado e gentil: ajuda a tirar a mesa, não come com as mãos, vai dormir cedo sem insistir para ver televisão e se comporta muito bem quando saem para visitar amigos ou familiares. Teddy gosta tanto da assistente maternal e de seu marido que sua mãe diz que gostaria convidá-los um dia para jantar12 12 Em alguns casos esta proximidade pode ser fonte de ciúme e conflito entre a mãe/pai e a assistente maternal. . Sara, na medida em que a oposição à mãe se agravava, foi ficando períodos cada vez mais longos na casa da assistente maternal.

Acontece das crianças continuarem em contato com elas após a partida da família da ilha d’Yeu. Foi o caso de Lisa. Depois de residir durante quatro anos na ilha d’Yeu, a menina continua a lhe escrever. A propósito desta troca de correspondência sua tata observa:

Quando ela tiver 16, 17 anos e por acaso fizer alguma bobagem ela pode voltar pra cá, é preciso que ela saiba disto, que não esqueça e guarde bem isto na cabeça e no coração: ela pode voltar aqui quando quiser sempre que tiver um problema. A vida é feita de encontros e contatos, quando temos um que é bom temos que guardá-lo para reencontrá-lo mesmo que seja anos mais tarde.

Mantendo boas relações com outros adultos que seus pais, conquistando a afeição das famílias das assistentes maternais, os grandes atuam criando vínculos que, como no caso Lisa, poderão ser recuperados no futuro. Considerando que o isolamento relacional e a falta de uma parentela com que contar são dificuldades de suas famílias, estes vínculos poderão ser valiosos em termos de suporte material e afetivo.

Ao concluir este artigo no qual introduzi algumas pistas para a análise de práticas de crianças cujas relações familiares são designadas de risco, cabe destacar a relativa distância que os grandes estabelecem em relação a suas famílias estigmatizadas. A partir do que foi descrito podemos afirmar que se servem da palavra ou do silêncio para agenciar suas biografias assegurando lealdade aos pais em algumas circunstâncias, sem, contudo incorporar incondicionalmente a identidade parental. Estabelecendo vínculos com outros adultos, agem construindo possibilidades de apoio para além de suas famílias.

  • 1
    A ilha d’Yeu é uma das 16 ilhas da fachada atlântica da França. Com 23 km², está localizada a 20 quilômetros do continente, sendo a segunda mais distante. Sua população permanente é de 5 000 habitantes, mas passa de 30 000 durante o verão. 70% da economia local dependem da pesca e o restante, sobretudo do turismo.
  • 2
    Para fins de classificação demográfica, são ditas famílias monoparentais aquelas cuja residência é constituída pela mãe ou o pai e os filhos de até 25 anos. Na França, este termo foi promovido nos anos 1970 por sociólogas feministas que visavam afirmar a legitimidade das famílias chefiadas por mulheres. Pesquisas sociológicas demonstram que, à revelia desta intenção, a categoria foi rapidamente assimilada a representações negativas do funcionamento familiar e de seus efeitos sobre o desenvolvimento e socialização das crianças. Ver Lefaucheur, 1991LEFAUCHEUR, Nadine. Les familles dites monoparentales. In: SINGLY, François; COMMAILLE, Jacques (orgs.). La famille – l’état des savoirs. Paris: La Découverte, 1991..
  • 3
    CAVAL é a sigla de Centro Autogerido de Vela e de Animação Local. O nome da associação está relacionado às atividades náuticas que marcaram sua fundação em 1976.
  • 4
    Esta pesquisa foi realizada para meu doutorado em Antropologia Social na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), sob orientação de Françoise Zonabend. Para a realização do curso contei com bolsa da CAPES para doutorado pleno no exterior.
  • 5
    No Brasil tem sido utilizada a categoria “primeira infância”.
  • 6
    Em sua etnografia junto a crianças de comunidades periféricas de Recife, Silva (2006)SILVA, Rita de Cácia Oenning da. A criança no ser: (des)encontros entre corpo, idade, experiência e responsabilidade em Comunidades periféricas de Recife. Trabalho apresentado no GT “Por uma Antropologia da Infância”, 26ª Reunião Anual da ABA, Goiânia, 2006. observa algo semelhante. A definição de quem é mais criança passa pela capacidade de ter uma “atitude correta” perante um determinado fato: “A partir do momento em que se torna “entendido” – uma categoria nativa que define se a pessoa já tomou conhecimento de determinadas regras sociais, a pessoa têm que fazer uso deste conhecimento” (Silva, 2006SILVA, Rita de Cácia Oenning da. A criança no ser: (des)encontros entre corpo, idade, experiência e responsabilidade em Comunidades periféricas de Recife. Trabalho apresentado no GT “Por uma Antropologia da Infância”, 26ª Reunião Anual da ABA, Goiânia, 2006., p. 24).
  • 7
    Abordando a noção de risco numa perspectiva antropológica não podemos perder de vista seu caráter imbricado a decisões de ordem política e a relações de poder (Douglas, Wildavsky, 1983DOUGLAS, Mar; WILDAVSKY, Aaron. Risk and culture: an essay on the selection of technological and environmental dangers. Berkeley: University of California Press, 1983.). Enquanto uma noção socialmente construída, o risco opera como um sistema classificatório − “o poder social seleciona os riscos com os quais o público deve se preocupar.” (Silva, 1998SILVA, Telma Camargo da. Corpos em perigo: uma análise sobre percepção de risco em caso de desastre radiológico. Trabalho apresentado na XXII Reunião Anual da ANPOCS, Caxambu, 1998., p. 3) − e pode tornar-se um recurso para manter as relações sociais existentes ou para contestá-las (Peretti-Watel, 2002PERETTI-WATEL, Patrick. Peur, danger, menace... Le poids des représentations. Sciences Humaines, Auxerre, n. 124, p. 34-35, février 2002. (Dossier: Société du risque – Fantasmes et réalité)).
  • 8
    O termo parentalidade refere-se à função de pai e mãe tanto em seu aspecto jurídico quanto moral e educativo (Tillard, 2003TILLARD, Bernadette. Parenté et Parentalité, réflexions sur les termes et les champs Disciplinaires. In: Groupes de parents. Paris: L’Harmattan, 2003.).
  • 9
    A passagem por um dispositivo deste tipo, pensada a partir do modelo do rito de passagem teorizado por Van Gennep (1909)VAN GENNEP, A. Les rites de passage. Paris: Nourry, 1909., corresponderia a um período de vida à margem colocada entre a etapa de separação e de agregação. No caso do projeto da associação CAVAL estas etapas são reforçadas pela carga simbólica do deslocamento familiar para a ilha d’Yeu e seu retorno ao continente.
  • 10
    Idade no ano 2000, quando iniciei a pesquisa.
  • 11
    A festa de Halloween, ou festa das bruxas, ocorre na noite de 31 de outubro a 1° de novembro. Conforme a tradição, as crianças, fantasiadas de fantasma, bruxa, vampiro, monstro etc, batem nas portas pedindo balas, frutas ou dinheiro. Comemorada principalmente em países anglo-saxões esta festa teve um sucesso importante mas passageiro na França, no início dos anos 2000.
  • 12
    Em alguns casos esta proximidade pode ser fonte de ciúme e conflito entre a mãe/pai e a assistente maternal.

Referências

  • ATTIAS-DONFUT, Claudine; LAPIERRE, Nicole; SEGALEN, Martine. Le nouvel esprit de famille. Paris: Éditions Odile Jacob, 2002.
  • CHAMBOREDON, Jean-Claude; PREVOT, J. Le métier d’enfant. Définition sociale de la prime enfance et fonctions différentielles de l’école maternelle. Revue Française de Sociologie, Paris, v. XIV, p. 295-335, 1973.
  • COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
  • DOUGLAS, Mar; WILDAVSKY, Aaron. Risk and culture: an essay on the selection of technological and environmental dangers. Berkeley: University of California Press, 1983.
  • FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000.
  • FONSECA, Claudia. La circulation des enfants pauvres au Brésil. Une pratique locale dans un monde globalisé. Anthropologie et Société, Montréal, v. 24, n. 3, p. 24-43, 2001. (Nouvelles parentés en Occident)
  • LEFAUCHEUR, Nadine. Les familles dites monoparentales. In: SINGLY, François; COMMAILLE, Jacques (orgs.). La famille – l’état des savoirs. Paris: La Découverte, 1991.
  • ONDJAKI. Bom dia camaradas Rio de Janeiro: Agir, 2006.
  • PEIXOTO, Clarice Ehlers; SINGLY, François de; CICCHELLI, Vincenzo. Família e individualização, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000.
  • PERETTI-WATEL, Patrick. Peur, danger, menace... Le poids des représentations. Sciences Humaines, Auxerre, n. 124, p. 34-35, février 2002. (Dossier: Société du risque – Fantasmes et réalité)
  • PETONNET, Colette. On est tous dans le brouillard. Paris: Ed. Galilée, 1985.
  • ROLLET, Catherine. La politique à l’égard de la petite enfance sous la IIIe République. Paris: INED, 1990.
  • SCHWARTZ, Olivier. Le monde privé des ouvriers. Paris: PUF, 1990.
  • SERRE, Delphine. Le ‘bébé superbe’ – la construction de la déviance corporelle par les professionnel(le)s de la petite enfance. Sociétés Contemporaines, Paris, n. 31, p. 107-127, 1998.
  • SILVA, Rita de Cácia Oenning da. A criança no ser: (des)encontros entre corpo, idade, experiência e responsabilidade em Comunidades periféricas de Recife. Trabalho apresentado no GT “Por uma Antropologia da Infância”, 26ª Reunião Anual da ABA, Goiânia, 2006.
  • SILVA, Telma Camargo da. Corpos em perigo: uma análise sobre percepção de risco em caso de desastre radiológico. Trabalho apresentado na XXII Reunião Anual da ANPOCS, Caxambu, 1998.
  • SINGLY, François de (org.). La famille: l’état des savoirs. Paris: La Découverte, 1991.
  • TILLARD, Bernadette. Parenté et Parentalité, réflexions sur les termes et les champs Disciplinaires. In: Groupes de parents Paris: L’Harmattan, 2003.
  • VAN GENNEP, A. Les rites de passage. Paris: Nourry, 1909.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2011
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Cep: 90619-900, Tel: +55 51 3320 3681 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: civitas@pucrs.br