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Trabalho e família de trabalhadoras domésticas em tempos de pandemia: uma análise interseccional

Work and family of domestic workers in times of pandemic: an intersectional analysis

Trabajo y familia de las trabajadoras del hogar en tiempos de pandemia: un análisis interseccional

Resumo:

Este artigo discute a intersecção de raça, gênero e classe na produção das desigualdades vividas por trabalhadoras domésticas no Brasil e como essas desigualdades se acirram em contexto de crise pandêmica. Com base em uma análise de microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) e de entrevistas com trabalhadoras domésticas na região metropolitana de Goiânia, examinamos as desigualdades na relação trabalho e família, considerando aspectos relacionados às condições de trabalho, aos usos do tempo e aos arranjos domésticos. Os resultados indicam que a pandemia, precedida e intensificada por um duro contexto de recessão econômica e de ampliação de políticas de flexibilização dos direitos trabalhistas, acentuou desigualdades historicamente estruturantes da ocupação. Esses elementos incidem sobre o cotidiano das trabalhadoras domésticas, reorganizando os arranjos domésticos e suas vivências temporais.

Palavras-chave:
Trabalho doméstico; Interseccionalidade; Família; Pandemia

Abstract:

This article discusses the intersection of race, gender and class in the production of inequalities experienced by domestic workers in Brazil and how these inequalities are accentuated in the context of a pandemic crisis. Based on an analysis of the data issued by the Brazilian National Household Sample Survey (Pnad-Contínua) and on interviews with domestic workers in the metropolitan region of Goiânia, we examine the inequalities in the relationship between work and family, considering aspects related to working conditions, the use of time and domestic arrangements. The results indicate that the pandemic, preceded and intensified by a harsh context of economic recession and expansion of policies for the flexibilization of labor rights, has amplified historically structural inequalities in the occupation. These elements affect the everyday lives of domestic workers, reorganizing domestic arrangements and their temporal experiences.

Keywords:
Domestic work; Intersectionality; Family; Pandemic

Resumen:

Este artículo analiza la intersección de raza, género y clase en la producción de desigualdades que experimentan las trabajadoras del hogar en Brasil y cómo estas desigualdades se agudizan en el contexto de una crisis pandémica. A partir de un análisis de microdatos de la Encuesta Nacional por Muestra de Hogares (Pnad-Contínua) y de entrevistas con trabajadoras del hogar en la región metropolitana de Goiânia, examinamos las desigualdades en la relación entre trabajo y familia, considerando aspectos relacionados con las condiciones laborales, usos del tiempo y arreglos domésticos. Los resultados indican que la pandemia, precedida e intensificada por un duro contexto de recesión económica y expansión de políticas para flexibilizar los derechos laborales, acentuó las desigualdades históricamente estructurales en la ocupación. Estos elementos afectan la vida diaria de las trabajadoras del hogar, reorganizando los arreglos domésticos y sus experiencias temporales.

Palabras clave:
Trabajo doméstico; Interseccionalidad; Familia; Pandemia

Introdução

A crise pandêmica da Covid-19, doença causada pelo vírus Sars-Cov-2, evidenciou a importância do cuidado – e do cuidar – para a manutenção da vida, mas também escancarou e intensificou desigualdades e assimetrias nessas relações, sejam elas remuneradas ou não. Quem cuida são mulheres, mães, avós, profissionais da saúde, cuidadoras de idosos e de crianças, trabalhadoras domésticas, entre outras categorias; vulnerabilizadas(os), sofrem sobremaneira com os impactos da pandemia (Tokarski e Pinheiro 2021Tokarski, Carolina e Luana Pinheiro. 2021. Trabalho doméstico remunerado e Covid-19: aprofundamento das vulnerabilidades em uma ocupação precarizada. Boletim de Análise Político-Institucional (Ipea) 26: 55-64. http://dx.doi.org/10.38116/bapi26art6.
http://dx.doi.org/10.38116/bapi26art6...
; Pirtle e Wright 2021Pirtle, Whitney Laster N. e Tashelle Wright. 2021. Structural gendered racism revealed in pandemic times: intersectional approaches to understanding race and gender health inequities in Covid-19. Gender & Society 35 (2): 168-179. https://doi.org/10.1177/08912432211001302.
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). Não por acaso uma das primeiras vítimas da Covid-19 no Brasil foi uma trabalhadora doméstica.

Expostas ao vírus, centenas de milhares de mulheres se deslocam todos os dias das regiões periféricas em direção aos bairros nobres das cidades para exercício do trabalho doméstico e de cuidados remunerado. Essas mulheres, 93,4% dos ocupados no serviço doméstico, são negras (66%), 75% estão na informalidade e recebem em média R$ 862,00, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) referente ao último trimestre de 2020. A responsabilidade pelo orçamento doméstico recai sobre 52,4% delas. Pesa-lhes também a responsabilidade pela realização do trabalho doméstico e de cuidados em suas próprias casas (Ávila 2009Ávila, Maria Betânia. 2009. O tempo do trabalho das empregadas domésticas: tensões entre dominação/exploração e resistência. Tese em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil.). Exercem, portanto, o cuidado pago e não pago.

O cuidado tem estruturado e tensionado as vivências temporais de mulheres, mesmo quando possuem trabalho remunerado. Dados da Pnad (2019) indicam que mulheres dedicam em média 21,4 horas por semana aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, enquanto para os homens a média é de 11 horas. Além disso, o percentual de mulheres que realizam esses afazeres (92,1%) ainda é bem mais alto que o dos homens (78,6%). Por outro lado, entre o grupo de mulheres mais pobres (24,1 horas) e o grupo de mulheres mais ricas (18,2 horas), a diferença é de quase seis horas trabalhadas nas atividades domésticas.

Um dos efeitos já constatados em pesquisas sobre os impactos da pandemia na vida das mulheres (Delfini et al. 2020Delfini, Marcelo, Ana Drolas, Juan Montes Cato e Lucas Spinosa. 2020. Lidiando con el trabajo. Impacto del Covid-19 sobre el trabajo productivo y reproductivo. Trabajo y Sociedad 35: 67-82.; Barros e Oliveira 2020Barros, Valquíria da Silva e Rosane Cristina de Oliveira. 2020. Desigualdades de gênero e espaço doméstico: o isolamento social e seus impactos no cotidiano das mulheres em tempos de Covid-19. Almanaque Multidisciplinar de Pesquisa 2 (7): 123-142.) é a extensão e a intensificação do trabalho doméstico e de cuidados realizados para o seu próprio grupo familiar, uma vez que as pessoas passam a ficar mais tempo em casa, demandando mais tempo e trabalho de quem limpa, cozinha, cuida de crianças e idosos, orienta atividades escolares, organiza e gerencia a rotina e as demandas domésticas. O tempo para o descanso e os cuidados pessoais passou a ser cada vez mais escasso, sobretudo quando a mulher também trabalha remuneradamente, fora de casa ou em home office, provocando enorme sobrecarga física e emocional.

Além do gênero, raça e classe desenham as várias faces do cuidado e do cuidar, identificando nessa relação quem cuida e quem se beneficia desse cuidado (Hirata e Guimarães 2012Hirata, Helena e Nadya Araujo Guimarães. 2012. Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas S. A.). “Na medida em que existe uma divisão racial e sexual do trabalho, não é difícil concluir sobre o processo de tríplice discriminação sofrido pela mulher negra (enquanto raça, classe e sexo), assim como seu lugar na força de trabalho” (Gonzalez 1982Gonzalez, Lélia. 1982. A mulher negra na sociedade brasileira. In O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual, organizado por Anette Goldberg Velasco e Madel T. Luz, 87-106. Rio de Janeiro: Graal., 96). Esse lugar atribuído prioritariamente à mulher negra, do qual Gonzalez (1982)Gonzalez, Lélia. 1982. A mulher negra na sociedade brasileira. In O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual, organizado por Anette Goldberg Velasco e Madel T. Luz, 87-106. Rio de Janeiro: Graal. fala, é o serviço doméstico.

As trabalhadoras domésticas, que tornam possível a articulação trabalho e família em muitos lares brasileiros, foram historicamente estigmatizadas, suas reivindicações invisibilizadas e o seu trabalho não reconhecido socialmente. Com a pandemia e as necessárias medidas de distanciamento social para contenção do vírus, o trabalho doméstico foi colocado no centro do debate público, defendido por alguns segmentos e atores políticos como atividade essencial e que, portanto, não podia ser paralisada (Pizzinga 2021Pizzinga, Vivian Heringer. 2021. Vulnerabilidade e atividades essenciais no contexto da Covid-19: reflexões sobre a categoria de trabalhadoras domésticas. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional 46 (2): 1-9. https://doi.org/10.1590/2317-6369000025020.
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). Na medida em que esse debate se desenvolvia no sentido de não inclusão na lista de serviços essenciais, casos que denunciavam a extrema vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas vinham à tona. Poucas foram as trabalhadoras que puderam ficar em casa. Entre as formalizadas houve a recusa dos empregadores em oferecer isolamento remunerado; na informalidade, a grande maioria seguiu trabalhando. Com o agravamento da crise, mais de um milhão de trabalhadoras domésticas ficaram desempregadas. Segundo dados da Pnadc referente aos últimos trimestres de 2019 e 2020, o total de ocupados no setor caiu de 6,4 milhões para 4,9 milhões.

Atento a essas questões, o artigo discute como a intersecção das relações sociais de gênero, raça e classe colocam as trabalhadoras domésticas no nó das desigualdades (re)(co)produzidas em contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. Como essas desigualdades marcam os tempos e a vida de mulheres trabalhadoras domésticas, observando a relação entre trabalho e família? Para responder essa questão, partimos de uma abordagem interseccional em que se prioriza produções brasileiras sobre o trabalho doméstico e também aquelas que dialogam com a temática.

Passando por aspectos macro e micro das relações de trabalho doméstico no Brasil, e em particular na região metropolitana de Goiânia, Goiás, o artigo compila análise quantitativa de dados da Pnad Contínua referente ao último trimestre de 2020, em âmbito nacional, e análise qualitativa de entrevistas semiestruturadas com trabalhadoras domésticas em Goiânia. Foram realizadas 23 entrevistas com trabalhadoras em vínculos mensal e diário, ao longo do ano de 2020 e três primeiros meses de 2021. As trabalhadoras entrevistadas acompanham o perfil encontrado na análise dos dados em esfera nacional. Constitui-se maioria negra, na faixa etária acima dos 40 anos, chefe de família, responsável pelo cuidado de crianças ou de outras pessoas dependentes em casa e, em maioria, migrante de cidades do interior do estado de Goiás e de outros estados do País, sobretudo das regiões Norte e Nordeste.

Em razão do cumprimento das medidas de distanciamento social adotadas para conter a propagação do novo coronavírus, o acesso às participantes da pesquisa aconteceu remotamente, via aplicativo de mensagens e ligações telefônicas. Considerando o contexto e a dificuldade em contatar essa categoria de trabalhadoras, uma vez que se encontram em atividades realizadas em domicílio particular, recorreremos à amostragem em bola de neve. As próprias trabalhadoras inicialmente contatadas indicaram, a partir de sua rede de contato pessoal, novas informantes e assim sucessivamente. O contato com as entrevistadas se manteve durante todo o período de realização da pesquisa, o que nos possibilitou acompanhá-las em diferentes vivências ao longo desse período: perda do emprego e sua recuperação, migrações entre diferentes vínculos de trabalho, isolamento, adoecimento, mudança de ocupação.

A intersecção de gênero, raça e classe na construção das desigualdades no trabalho doméstico

Historicamente, o trabalho doméstico e de cuidados foi estruturado no campo político, econômico e social a partir de relações de poder em que um grupo, o grupo dos homens, é beneficiado pela exploração do trabalho das mulheres. A denúncia do caráter generificado do trabalho doméstico e de cuidados encontra na teoria da divisão sexual do trabalho e seus desdobramentos importantes aportes. A divisão sexual do trabalho, instrumentalizada a partir da atribuição do trabalho reprodutivo à mulher e do trabalho produtivo aos homens, se sustenta nos princípios da separação e da hierarquização do trabalho de homens e de mulheres (Kergoat 2016Kergoat, Danièle. 2016. O cuidado e a imbricação das relações sociais. In Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais, organizado por Alice Abreu, Helena Hirata e Maria Rosa Lombardi, 17-26. São Paulo: Boitempo.).

As modalidades de trabalho mudam de acordo com a sociedade e o tempo, conforme observa-se atualmente a horizontalidade de ocupações exercidas por mulheres, mas os princípios permanecem o mesmo, adverte Kergoat (2016)Kergoat, Danièle. 2016. O cuidado e a imbricação das relações sociais. In Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais, organizado por Alice Abreu, Helena Hirata e Maria Rosa Lombardi, 17-26. São Paulo: Boitempo.. Permanecem porque a divisão sexual do trabalho é sustentada pelas relações sociais de sexo que por sua vez são consubstanciais às relações sociais de classe e de raça. Esse entrelaçamento constrói estruturas de desigualdades que se articulam de forma a (re)(co)produzirem-se. Portanto, não se trata de categorias isoladas, fixas, que em um dado momento se cruzam, são relações sociais construídas e sustentadas temporal e socialmente de forma mútua e que se expressam através de sua base material: o trabalho.

Observando também a base material sobre a qual as desigualdades se manifestam, Lélia Gonzalez (1982)Gonzalez, Lélia. 1982. A mulher negra na sociedade brasileira. In O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual, organizado por Anette Goldberg Velasco e Madel T. Luz, 87-106. Rio de Janeiro: Graal., com abordagem pioneira no Brasil, discute como o capitalismo no contexto brasileiro e latino-americano mobiliza raça, sexo e classe de modo a colocar as mulheres negras no nó das desigualdades que estruturam suas sociedades. Segundo a autora, o lugar da mulher negra na divisão racial, sexual e social do trabalho no Brasil tem se fixado, historicamente, nas atividades manuais relacionadas à reprodução, embora sempre estivessem também em outras ocupações, muitas vezes, tão precárias quanto o trabalho doméstico, mas menos estigmatizadas.

Na antessala do que o feminismo hegemônico viria chamar de dupla ou tripla jornada (com o acúmulo do trabalho remunerado e do trabalho doméstico não remunerado), as mulheres negras já se articulavam em torno desses dois lugares antagônicos dentro da lógica mercantil, racista e patriarcal que separa casa e trabalho: o lugar feminilizado do cuidar e o lugar do prover, atribuído aos homens. A sobrevivência pelo trabalho, sem alcance do Estado através de leis trabalhistas ou políticas públicas direcionadas à articulação trabalho e família, não permitia, e em certa medida ainda não permite, a permanência das mulheres negras em suas casas nem quando na maternidade (Giacomini 1988Giacomini, Sonia Maria. 1988. Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes.).

Fernandes (2020)Fernandes, Camila. 2020. A força da ausência. A falta dos homens e do ‘Estado’ na vida de mulheres moradoras de favela. Sexualidad, Salud y Sociedad 36 (09-12): 206-230. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2020.36.09.a.
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em estudo etnográfico em um complexo de favelas do Rio de Janeiro discute como a ausência de homens e de Estado no circuito de cuidados de mães pobres e periféricas, maioria negra, produz condições precárias de vida. Essas condições por sua vez são encobertas pela produção da figura da “mulher guerreira” e do discurso meritocrático.

Esse duplo papel atribuído às mulheres negras: cuidar e prover, embora atualmente ganhe contornos um pouco diferentes, ainda é o principal elemento organizador de suas vivências cotidianas e suas identidades. A fala de Eva, trabalhadora doméstica mensalista, negra, 36 anos, expressa bem a forma como essas relações constroem identidades depreciadas pelos próprios sujeitos que encontram explicações conformativas para as condições vividas dentro e fora do trabalho doméstico, a partir da naturalização das desigualdades:

Qual o destino da mulher? Tanque e fogão… é o que acontece. E quando ela é preta e pobre não tem outra: vai ser doméstica. Não é o que eu queria, mas fazer o quê? Não estudei. A patroa é estudada. Pra mim só restou isso. […] Eu sempre ajudei em casa, desde criança, era arrumando casa, cuidando dos meus irmãos, depois trabalhando na casa dos outros e levando dinheiro pra ajudar a mamãe com as despesas (Eva, com. pess., 19 fev. 2020).

Para Davis (2016)Davis, Angela. 2016. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo., a ideologia da feminilidade, construída pela figura inferiorizada da mãe e dona de casa, interpretada por ela como um subproduto da industrialização capitalista, não orienta(va) os arranjos familiares de mulheres negras; ao contrário, foram retirados quaisquer traços com os quais pudessem assemelhar-se às mulheres brancas. O apagamento do sujeito social “mulher negra” passou assim pelo não reconhecimento e invisibilidade do trabalho que realizam dentro e fora de suas casas. Não sendo, portanto, reconhecidas na maternidade (e todo o seu arcabouço cultural) e nem no trabalho pago, permanecendo às margens das legislações que conferiam direitos aos trabalhadores.

O trabalho doméstico é um importante lócus de análise para a compreensão de como diferentes marcadores sociais são mobilizados na produção dos sujeitos sociais que em torno desse trabalho se relacionam. A partir do conceito de “reprodução estratificada” Colen (1995)Colen, Shellee. 1995. Like a mother to them: stratified reproduction and West Indian childcare workers and employers in New York. In Conceiving the new world order: the global politics at reproduction, organizado por Faye Ginsburg and Rayna Rapp, 78-102. Berkeley: University of California Press. argumenta que o trabalho reprodutivo é concebido e distribuído socialmente de formas diversas conforme a posição ocupada pelos sujeitos, em função de gênero, raça, etnia e classe. Enquanto a estratégia das mulheres brancas em contratar uma babá é vista como necessária para se dedicar à carreira profissional, as estratégias de articulação família e trabalho assumidas pelas babás, em maioria mulheres negras, são tratadas como forma de abdicação de suas responsabilidades com a casa e a família. A (re)produção desses diferentes valores, que exalta a dona de casa e condena a trabalhadora doméstica, atua de modo a assegurar a reprodução de um modelo de família que se apoia no trabalho doméstico e de cuidados realizados em nome do amor e do dever maternal, contribuindo também para a desvalorização do trabalho doméstico remunerado (Kofes 2001Kofes, Suely. 2001. Mulher mulheres: identidade, diferença e desigualdade na relação entre empregadas domésticas e patroas. Campinas: Editora Unicamp.).

É diante de tal espectro que Collins (2010) sustenta que a interseccionalidade não deve ser considerada apenas um enfoque de análise na produção de conhecimento, mas uma ferramenta política de defesa da justiça social. O movimento político de trabalhadoras domésticas no Brasil, argumenta Acciari (2021)Acciari, Louisa. 2021. Praticando a interseccionalidade: estratégias das trabalhadoras domésticas brasileiras para construir alianças e mobilizar identidade. Latin American Research Review 56 (1): 67-81. http://doi.org/10.25222/larr.594.
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, é um exemplo de como raça, gênero e classe podem ser mobilizados a favor da luta política de grupos historicamente marginalizados.

A importância do avanço de pautas interseccionais na produção da legislação trabalhista fica evidente no atual contexto de pandemia em que desigualdades de raça, classe e gênero se acirram (Vilasboas 2020Vilasboas, Jaqueline Pereira de Oliveira. 2020. Pandemia e a asfixia social das mulheres negras. In Diferenças, desigualdades e violências: olhares sociológicos, organizado por Luiz Mello e Eliane Gonçalves, 17-41. Goiânia: Cegraf UFG.). A conquista histórica de direitos reivindicados pelas trabalhadoras domésticas, através da aprovação da Lei complementar nº 150/15, em 2 de junho de 20152 2 Presidência da República. Casa Civil. 2015. Lei complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Acessado em 1 fev. 2021, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp150.htm. , que regulamentou a Emenda constitucional3 3 Presidência da República. Casa Civil. 2013. Emenda constitucional nº 72, 2 de abril de 2013. Acessado em 1 de fev. 2021, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc72.htm. nº 72 de 2013, assegura às trabalhadoras alcançadas pela legislação condições menos duras para atravessar este período de grave crise de saúde pública e de enorme instabilidade no mercado de trabalho.

Dados da Pnad Contínua de 2020 indicam que as trabalhadoras domésticas mais atingidas pelos impactos da pandemia são as que se encontram na informalidade. Descobertas pela legislação, não têm segurança e acesso a direitos caso sejam dispensadas do trabalho ou adoeçam. De acordo com a ONU Mulheres,4 4 Salvador, Soledad e Patricia Cossani. 2020. Trabalhadoras domésticas remuneradas na América Latina e no Caribe frente à crise da Covid-19. Brief v. 1.1 ONU – Mulheres – OIT – Cepal. Acessado em 15 jan. 2020, http://hdl.handle.net/11362/45724. sete em cada dez trabalhadoras domésticas na América Latina ficaram desempregadas ou perderam horas de trabalho. No Brasil, a categoria hoje estimada em 4,9 milhões de pessoas, foi a segunda com maior redução em comparação a 2019, com perda de 1,5 milhão de postos de trabalho (Pnad contínua 2020).

Os impactos gerados pela pandemia no trabalho doméstico foram potencializados por processos precarizantes que já vinham em curso (Lima e Prates 2019), resultantes de um cenário de crise econômica e avanço de políticas neoliberais, a exemplo da Reforma Trabalhista, que retira e flexibiliza direitos das trabalhadoras e trabalhadores das mais diversas categorias (Krein 2018Krein, José Dari. 2018. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Social 30 (1): 77-104. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.138082.
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). Conforme observamos no gráfico, a partir de 2016 há uma quebra do movimento positivo gerado pela nova legislação do trabalho doméstico, com queda drástica da taxa de trabalhadoras com carteira de trabalho assinada e o aumento do trabalho em vínculo diário.

Gráfico 1
Trabalhadoras domésticas diaristas e trabalhadoras domésticas com carteira de trabalho assinada – Brasil – 2003-2020 (%)

Segundo dados da Pnad contínua de 2020, 91,6% das diaristas estão na informalidade e entre as trabalhadoras domésticas mensalistas esse percentual é de 63,6%. Na informalidade estão, sobretudo, mulheres (95,3%), negras (68,8%) e aquelas com menor rendimento. O rendimento médio mensal desse grupo que não tem carteira de trabalho assinada é R$ 704,00, abaixo do rendimento médio da categoria, estimado em R$ 862,00.

Se antes da pandemia o trabalho em vínculo diário, mesmo desprotegido pela legislação, era atrativo para trabalhadoras em razão da possibilidade de mais autonomia em relação ao tempo de trabalho e o aumento de renda (Fraga 2010Fraga, Alexandre. 2010. De empregada a diarista: as novas configurações do trabalho doméstico remunerado. Dissertação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.), no atual contexto muitas buscam segurança e estabilidade. Quase metade das diaristas (43,6%) estão com horas insuficientes de trabalho, até 14 horas semanais (Pnad contínua 2020). Esse é o caso de Rose (trabalhadora doméstica negra, 37 anos), que era mensalista antes da pandemia, hoje faz semanalmente duas diárias e detalha as dificuldades enfrentadas com a redução de horas trabalhadas e a tensão de acumular a responsabilidade pelo sustento e o cuidado da família.

[…] eu tô só com duas diárias fixa, tá difícil. Se eu soubesse que ia ser assim tinha ficado lá [no trabalho em que tinha vínculo mensal]. Agora com menino em casa o dia inteiro, o trabalho triplicou, é tarefa pra ensinar, é casa pra arrumar, toda hora tem comida pra fazer. Bom que eu tô tendo mais tempo. Só que tem uma coisa, mais tempo em casa é menos dinheiro entrando. Preciso muito arrumar ao menos mais duas diárias, porque meu marido tá desempregado e só os bicos que ele faz não tá dando (Rose, com. pess., 26 out. 2020).

A lógica temporal monetária se coloca de forma incompatível à lógica temporal do cuidado, pois o tempo do trabalho remunerado é construído com base na imposição do tempo do trabalho reprodutivo à mulher (Torns 2001Torns, Teresa. 2001. El tiempo de trabajo de las mujeres: entre la invisibilidad y la necessidad. In Tiempos, trabajos y género, organizado por Cristina Carrasco, 133-150 Barcelona: Publicacions de la Universitat de Barcelona.). Assim, o tempo como medida de valor do trabalho remunerado, ao ser fracionado e limitado às mulheres, também limita a sua remuneração (Medeiros e Pinheiro 2018Medeiros Marcelo e Luana Simões Pinheiro. 2018. Desigualdades de gênero em tempo de trabalho pago e não pago no Brasil, 2013. Sociedade e Estado 33 (1): 161-187. https://doi.org/10.1590/s0102-699220183301007.
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). A divisão sexual e racial do trabalho age, nesse contexto, sobretudo a partir dos diferenciais de tempo, sendo o tempo do trabalho reprodutivo crucial para atuação e manutenção das desigualdades.

O nó das desigualdades de sexo, raça e classe se torna evidente na análise dos dados sobre o trabalho doméstico sobretudo quando se cruza diferentes variáveis relacionadas ao perfil sociodemográfico das trabalhadoras domésticas a variáveis relacionadas às condições de trabalho dentro e fora da categoria. No que se refere ao rendimento, observa-se que se manteve praticamente estagnado no período entre 2013 e 2019, não acompanhando os reajustes do salário-mínimo a partir de 2016, e apresentando queda em 2020.

Gráfico 2
Rendimento médio mensal de trabalhadoras domésticas e salário-mínimo vigente no país – Brasil – 2013-2020

O rendimento observado a partir do cruzamento das variáveis sexo e cor evidencia outras facetas da desigualdade, em que mulheres negras se encontram na ponta mais precária e vulnerável, com rendimento médio mensal estimado para o último trimestre de 2020 em R$ 841,00. Trabalhadoras domésticas negras sem carteira de trabalho assinada são as que recebem menos, R$ 703,00. Esse valor é quase 80% menor que o rendimento médio mensal de homens brancos (R$ 3.425,00).

Se a vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas e a precariedade de suas relações de trabalho se faz visível sobretudo pelo alto índice de informalidade e baixos rendimentos obtidos, quando essas variáveis são observadas por um viés de intersecção dos marcadores sociais da diferença, fica evidente o caráter histórico e estrutural desse lugar subalternizado em que são mantidas. Ser mulher negra, mãe, responsável pelo provimento e cuidado da família é revelador sobre o lugar que ocupará na estrutura social e no interior do trabalho doméstico (Gonzalez 1982Gonzalez, Lélia. 1982. A mulher negra na sociedade brasileira. In O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual, organizado por Anette Goldberg Velasco e Madel T. Luz, 87-106. Rio de Janeiro: Graal.).

Impactos da pandemia nos arranjos familiares de trabalhadoras domésticas

A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) lançou em março de 2020 a campanha “Cuida de quem te cuida”, buscando conscientizar a sociedade e orientar os empregadores para que liberem as trabalhadoras de seus serviços, enquanto durar a pandemia, mantendo seus salários. Embora a campanha tenha sido amplamente divulgada e bem recebida, poucas foram as trabalhadoras que puderam ficar em quarentena remunerada.

Desamparadas pelo governo e sem medidas legais específicas para tratar as múltiplas vulnerabilidades que lhes acometem: risco de contágio, desemprego, queda de renda, aumento do percentual de trabalhadoras na extrema pobreza e evasão escolar (Tokarski e Pinheiro 2021Tokarski, Carolina e Luana Pinheiro. 2021. Trabalho doméstico remunerado e Covid-19: aprofundamento das vulnerabilidades em uma ocupação precarizada. Boletim de Análise Político-Institucional (Ipea) 26: 55-64. http://dx.doi.org/10.38116/bapi26art6.
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), as trabalhadoras domésticas tiveram acesso a duas medidas: uma que cobria as trabalhadoras domésticas empregadas formalmente (25% da categoria) e outra exclusiva para trabalhadores(as) informais e desempregados(as).

A primeira medida, inscrita na Lei nº 14.020, permitia a redução da jornada de trabalho e de salário ou a suspensão temporária do contrato de trabalho5 5 Presidência da República. Secretaria-Geral. Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020. Acessado em 23 nov. 2020, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14020.htm. . Neste caso, a trabalhadora receberia parte do salário ou o salário integral através do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda. As trabalhadoras informais, por sua vez, contaram com o auxílio emergencial, inscrito na Lei nº 13.982/2020. Pago ao longo do ano de 20206 6 Presidência da República. Secretaria-Geral. Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Acessado em 23 nov. 2020, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm. e 2021 com períodos de interrupção, reavaliação de critérios e de diminuição do alcance populacional e dos valores pagos, variando conforme composição familiar.

Apesar dos inúmeros problemas enfrentados para pagamento do auxílio, deixando um contingente importante de trabalhadoras(es) sem acesso ao benefício, a medida foi crucial para a manutenção mínima do orçamento doméstico das famílias das trabalhadoras, que em sua maioria arcam sozinhas ou com a maior parte das despesas. Entre os meses em que ficaram sem o recebimento do auxílio e diante da dificuldade de encontrar diárias, muitas trabalhadoras domésticas, sobretudo as diaristas, se viram praticamente sem renda. Esse é o caso de Fátima, diarista, negra, 25 anos, mãe solo de quatro crianças que contava como renda fixa apenas R$145,00 que recebe do programa Bolsa Família. Entre uma ajuda e outra de moradores vizinhos e de membros da igreja que frequenta, ela e as crianças enfrentavam todos os dias o perigo da exposição nas ruas da cidade, por onde transitava buscando emprego e pedindo ajuda em dinheiro e alimentos para casa. Em uma saída, Fátima e seu filho mais velho se contaminaram; ela ficou 5 dias internada com sintomas graves.

Na encruzilhada entre manter o emprego e o medo de se contaminar, muitas trabalhadoras passaram a dormir no local de trabalho, só retornando para suas casas aos finais de semana. Esse é o caso de Dália, de 35 anos, branca. Doméstica mensalista, cruzava a cidade todos os dias em ônibus do transporte público. Com o agravamento da pandemia, passou a dormir no local de trabalho, de segunda a sexta, a pedido dos patrões, que temem a contaminação da família, mas não desistem de ter alguém para realizar a limpeza da casa, o preparo dos alimentos e o cuidado com as crianças.

Eu vim porque ela conversou comigo e achou melhor eu ficar aqui. E como eu não tenho filho… tem meu namorado, mas aí eu só vejo ele no final de semana. Eu tô assim desde o começo da epidemia, já 7 meses. Mas, ai, é ruim demais. Não é fácil. A gente é acostumado com a casinha da gente. […] É isso que é o chato. Você não tem liberdade. Na sua casa você pode fazer o que bem entender. Mas por serviço, o que a gente não faz, né? Ainda mais nessa epidemia, a gente não pode largar serviço com a crise que tá. Eu fico imaginando aquelas pessoas que têm filho. Porque pra mim tá mais tranquilo porque eu não tenho filho. 

[…] Meu horário é das 7 às 4 da tarde, mas ficando no serviço é mais complicado, você vê uma coisinha aqui outra ali e quando vê já tá de noite. Nunca vai até o horário (Dália, com. pess., 22 set. 2020).

Dália reclama da falta de privacidade e da extrapolação do tempo de trabalho, frisando que não teve escolhas, era isso ou perderia o emprego. Esse tipo de arranjo, por outro lado, não é viável para as trabalhadoras casadas ou que têm filhos. Essas foram demitidas ou perderam diárias. Segundo dados da Pnad Contínua (2020) mais da metade das trabalhadoras domésticas no Brasil são economicamente responsáveis pelo domicílio (52,4%), esses domicílios são compostos por três pessoas em média, muitas delas dependentes também dos cuidados dessas trabalhadoras.

Vi minha vida revirada, até março eu tinha a garantia de que não ia faltar nada em casa, fazia 5 faxinas por semana, tinha pouca grana, mas tinha. Hoje eu sobrevivo com o auxílio e com o dinheiro de uma faxina, a única que ficou. As pessoas têm medo, porque eu tenho filhos, pego ônibus pra ir trabalhar e tal. Eu também tenho medo, várias colegas pegou essa doença. Mas não posso deixar de trabalhar, só o auxílio é muito pouco pra quem tem criança em casa. Ah, uma patroa até pediu pra eu dormir na casa dela de segunda a sexta, aí ela ia me pagar o salário, mas como que eu faço com os meus filhos? É só eu e eles (Margarida, diarista, branca, 41 anos, com. pess., 24 jul. 2020).

A falta de creches e escolas, o aumento dos afazeres domésticos e a perda de rendimentos provocaram diferentes movimentos em torno dos arranjos domiciliares das trabalhadoras, que se acomodam conforme seus marcadores sociais, composição familiar e vínculo de trabalho. Esses movimentos, identificados a partir dos relatos das trabalhadoras entrevistadas, aparecem em suas falas como necessários e provisórios, constituindo-se em uma espécie de arranjo temporário, até a volta da “normalidade”, para que possam atravessar esse período de forma menos dura e se restabelecerem em um emprego.

Com a perda de diárias ou de vínculo formal, algumas trabalhadoras começaram a realizar outras atividades remuneradas relacionadas ao preparo e/ou venda de alimentos em feiras, semáforos, transporte público ou nas próprias ruas da cidade. Atividades consideradas pelas entrevistadas como “bico” para complementarem a renda, embora em alguns casos constitua a única fonte de renda da família. O retorno para a casa dos pais no interior de Goiás e no estado do Maranhão, foi a saída encontrada por duas entrevistadas que, desempregadas, se viram sem renda e rede de apoio para se manter em Goiânia. Com a pandemia, Flora (diarista, branca, 51 anos) que antes trabalhava todos os dias da semana, obtendo renda superior ao salário-mínimo por mês, ficou com apenas uma diária a cada 15 dias. Sem condições de pagar aluguel, foi morar em um quarto nos fundos da casa de uma tia. Insatisfeita, planeja migrar para Londres, onde a filha mora e trabalha, exercendo também o trabalho doméstico.

O aumento das demandas por cuidado na casa das trabalhadoras domésticas acompanhado da não dispensa remunerada elevou as tensões entre os tempos de casa e trabalho, levando-as à adoção de diferentes formas de conciliação. Além de novos arranjos familiares, algumas recorrem ao apoio da rede de vizinhança e à contratação de outras mulheres, em geral, mais jovens e em condições ainda mais precárias, para realização do cuidado pago. Essa foi a estratégia encontrada por três trabalhadoras entrevistadas. Tatiana (diarista, negra, 36 anos) paga 30 reais para uma vizinha de 14 anos cuidar de seus filhos.

A reorganização do cuidado e a mobilização de outras forças de trabalho disponíveis em casa, como filhos(as) e esposos, também têm se configurado estratégias de articulação trabalho e família durante a pandemia. Entretanto, observa-se que quando há presença de filhas ou de outras mulheres em casa o cenário tradicional das relações de gênero prevalece: nesse caso, essas tarefas lhes são atribuídas, poupando os outros filhos e o esposo.

O abandono escolar é uma realidade presente em algumas famílias das trabalhadoras domésticas entrevistadas. Filhos e filhas passam a ter que trabalhar para contribuir com as despesas, ou em outros casos, falta acesso aos meios digitais para assistirem às aulas. No caso das trabalhadoras que estudam, o abandono se dá, também, pela falta de tempo diante da intensificação dos afazeres domésticos e de cuidados com crianças em casa. Com a pandemia, a filha de Aparecida, de 15 anos, abandonou os estudos e começou a fazer diárias para contribuir com a família: “Eu te falo isso [que os filhos não estão estudando] com o coração na mão. Sempre sonhei com um futuro melhor pra ela” (Aparecida, diarista, negra, 44 anos, com. pess., 11 fev. 2021).

O movimento em torno dos arranjos domésticos pode aqui ser interpretado como estratégia de resistência das trabalhadoras domésticas diante da falta do Estado no provimento de condições básicas de vida e de trabalho dignos. Esses arranjos, no entanto, construídos sobre bases muito precárias, acabam por reproduzir, na maioria das vezes, o ciclo de desigualdades que as envolve (Valeriano, Tosta e Nunes 2021Valeriano, Marta Maria, Tania Ludmila Dias Tosta e Jordão Horta Nunes. 2021. Casa e trabalho: tensões e arranjos no cotidiano de trabalhadoras domésticas. Descentrada 5 (1): 1-18. https://doi.org/10.24215/25457284e133.
https://doi.org/10.24215/25457284e133...
).

Ao longo das últimas duas décadas, o registro de envelhecimento da categoria profissional e a menor entrada de jovens na ocupação indicava o rompimento do ciclo de reprodução da ocupação entre mães e filhas. O aumento da escolarização e da renda das trabalhadoras domésticas, associado a um período de crescimento econômico do país, possibilitou a movimentação dessa base que sustentava as desigualdades vividas pelas trabalhadoras e seus núcleos familiares.7 7 Brites, Jurema e Felícia Picanço. 2013. O emprego doméstico em números, tensões e contradições: alguns achados de pesquisas. Comunicação apresentada em 37ᵃ Reunião da Anpocs, Águas de Lindóia, SP, Brasil. Acessado em 17 jan. 2021, http://www.anpocs.org/index.php/papers-37-encontro/st/st34/8638-o-emprego-domestico-em-numeros-tensoes-e-contradicoes-alguns-achados-de-pesquisas/file. No atual contexto de grave crise, com aumento do desemprego e dos índices de evasão escolar, além de queda na renda das trabalhadoras domésticas, os impactos a médio e longo prazo devem ser também motivo de preocupação.

Considerações finais

Buscou-se situar a ocupação no cenário mais amplo de mudanças na sociedade brasileira, observando também suas características e marcadores sociais para pensarmos a forma como se entrelaçam na produção das desigualdades nesse período de pandemia. De criadas a trabalhadoras e de trabalhadoras sem direitos para trabalhadoras com direitos importantes mudanças ocorreram. Após décadas de luta dos sindicatos de trabalhadoras domésticas, finalmente a categoria havia conquistado o alargamento dos direitos trabalhistas em 2013. A expectativa era de uma maior formalização e de melhoria de suas condições de trabalho. Entretanto, a análise dos dados evidencia o marco negativo pós-2016, com queda dos índices de formalização, aumento do trabalho em vínculo diário e queda do rendimento médio mensal das trabalhadoras.

O governo de Bolsonaro amplia ainda mais essa agenda de flexibilização das relações trabalhistas e retirada de direitos. Nesse sentido, o que se observa no contexto de pandemia é a acentuação desses processos precarizantes já em curso. Sem um projeto de enfrentamento à pandemia e de medidas eficazes que visem a redução de seus impactos, observa-se um grave cenário de desemprego, informalidade e queda na renda das trabalhadoras.

Essas desigualdades atingem sobretudo trabalhadoras negras, pois se encontram majoritariamente entre as informais e com menos rendimentos. Imbricando-se a desigualdades históricas da ocupação, os impactos da pandemia na vida das trabalhadoras domésticas extrapolam o âmbito ocupacional e se associam às condições de vulnerabilidade social das trabalhadoras. Se, por um lado, novos arranjos na relação trabalho e família são construídos pelas trabalhadoras em uma tentativa de amenizar os impactos da pandemia, por outro, esses mesmos arranjos aliados a antigas desigualdades colocam-nas em condições de vida extremamente precárias.

Ressalta-se a importância de políticas públicas direcionadas às trabalhadoras domésticas, a exemplo da Argentina que instituiu a obrigatoriedade da licença remunerada para as trabalhadoras domésticas durante o isolamento social, além da efetivação da legislação trabalhista para a categoria. Por fim, destaca-se a necessidade de promoção de políticas que visem a socialização e a desgenerificação dos custos do cuidado, ou seja, que as atividades do cuidado, nunca tão requeridas quanto agora, possam ser compreendidas não como uma habilidade ou obrigação das mulheres, mas como uma atividade vital e direito de todas(os).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    09 Ago 2021
  • Publicado
    08 Nov 2021
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