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Autoritarismo global – reflexões e questões

Global Authoritarianism – considerations and questions

Autoritarismo global – reflexiones y preguntas

Resumo:

Partindo de uma descrição a respeito da ascensão mais recente das direitas e suas práticas e ideias autoritárias, o ensaio procura entender como essas práticas são organizadas de maneira específica, tendo em vista os contextos particulares, e como elas estão entrelaçadas aos desafios impostos pelas mudanças da sociedade capitalista nas últimas décadas. Em particular, o autor ressalta a perplexidade das classes dominantes com a crise múltipla que temos vivenciado desde 2007.

Palavras-chave:
Autoritarismo; Crise; Burguesia; Capitalismo

Abstract:

Starting from a description of the most recent rise of right-wing groups and their authoritarian ideas and practices, the essay seeks to understand how these practices are organized in a specific way, considering the particular contexts, and how they are intertwined with the challenges imposed by the changes in the capitalist society in recent decades. In particular, the author highlights the perplexity of the ruling classes with the multiple crises that we have been experiencing since 2007.

Keywords:
Authoritarianism; Crisis; Bourgeoisie; Capitalism

Resumen:

Partiendo de una descripción del más reciente ascenso de los derechas y sus ideas y prácticas autoritarias, el ensayo busca comprender cómo estas prácticas se organizan de manera específica, considerando los contextos particulares, y cómo se entrelazan con los desafíos impuestos por los cambios en la sociedad capitalista en las últimas décadas. En particular, el autor destaca la perplejidad de las clases dominantes ante la crisis múltiple que vivimos desde 2007.

Palabras clave:
Autoritarismo; Crisis; Burguesía; Capitalismo

Para apreender e determinar os deslocamentos à direita e desenvolvimentos autoritários nas relações de classe globais é necessário se ocupar das especificidades dos atuais estados capitalistas e das relações entre as forças sociais.2 2 Publicação original: Demirović, Alex. 2020. Einleitung: Globaler Autoritarismus – Überlegungen und Fragen. In Autoritärer Populismus, organizado por Carina Book, Nikolai Huke, Norma Tiedemann e Olaf Tietje, 28-39. Münster: Westfälisches Dampfboot. Tradução de Vladimir Puzone (Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil) e revisão de Caio Vasconcelos (Universidade Federal do Triângulo Mineiro, UFTM, Uberlândia, MG, Brasil). Elas constituem o vínculo atual dos elementos nacionais e transnacionais da estatalidade. De acordo com minha compreensão, no entanto, seria preciso ponderar que as direitas não surgem de repente, mas elas existem e são politicamente ativas, em geral, em um período bastante grande enquanto uma das correntes sociais fundamentais, ou seja, elas dispõem de lideranças e de uma ideologia por meio de núcleos organizatórios, estão articuladas nacional e internacionalmente, e estão em busca de alianças. Na Alemanha, sugere-se frequentemente na literatura que existe uma direita porque talvez o nacional-socialismo não foi elaborado tão bem ou porque o antifascismo na Alemanha Oriental seria apenas de natureza formal (Frei et al. 2019Frei, Norbert, Cristina Morina, Franka Maubach e Malk Tändler. 2019. Zur Rechten Zeit: Wider die Rückkehr des Nationalismus. Berlin: Ullstein.). Isso sugere, na verdade, que, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a libertação do jugo dos nazistas e, assim, depois da reunificação, todos deveriam ser democráticos no sentido da Constituição de Bonn.3 3 Nota do tradutor: Em 1949, foi assinada, na cidade de Bonn, a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. De início provisória, ela acabou se tornando a Constituição alemã permanente e foi considerada um modelo para a transição de sociedades autoritárias para sociedades democráticas. Porém, tudo indica que ocorre precisamente o contrário. Desde os séculos 15 e 16, tendências autoritárias e restauradoras acompanham a prática burguesa de dar à vida em conjunto a forma de uma sociedade política, organizada pelo Estado. Essas tendências foram católicas e contrarreformadoras nos séculos 16 e 17, conservadoras e contrarrevolucionárias no século 18 (mobilizações da Igreja e dos reis); no século 19, o nacionalismo e o racismo conseguiram impor-se (constituição da forma das turbas, do colonialismo, do racismo, do antissemitismo); no início do século 20 formou-se o fascismo – com seus elementos do nacionalismo, antissemitismo, racismo, antimaterialismo, darwinismo social e do culto aos homens violentos e beligerantes (Sternhell 1999Sternhell, Zeev. 1999. Die Entstehung der faschistischen Ideologie: Von Sorel zu Mussolini. Hamburg: Hamburger Edition.). Esses elementos ideológicos se tornaram constitutivos da dominação burguesa e são reproduzidos de modo específico. A derrubada do nazismo, ou do fascismo, e a queda das ditaduras militares não eliminaram de modo algum as formas objetivas de pensamento e as formas políticas que são constitutivas da própria sociedade burguesa. Grupos políticos, redes informais de lideranças e relações com a sociedade civil persistem ou se constituem, eles reorganizam-se e se reagrupam. Os elementos ideológicos são rearticulados ou as ênfases se alteram.

No contexto das direitas, é possível dizer que se encontram todos os elementos políticos, organizativos e ideológicos – embora em outra variação e também, parcialmente, de um modo desarticulado e não mais em um partido ou unificado pelo estado. Há organizações partidárias, associações informais e grupos que se organizam prontamente para a violência ou ligações com a sociedade civil: organizações de ajuda, editoras, jornais e revistas, institutos, clubes, práticas culturais de associações tradicionais e de trajes típicos e até encontros do tipo Blood and Honour4 4 Nota do tradutor: Rede para a promoção de música neonazista fundada no Reino Unido em 1987. com os grupos musicais e franquias correspondentes. Comparativamente, isso também vale para os elementos ideológicos. A direita empenha-se em acentuar ideologemas como: nação, povo, identidade própria (“nós”) contra o outro, racismo e antissemitismo, anticomunismo e recusa da esquerda, democracia direta, conspiração, cenários de decadência (“morte de um povo”, “substituição de populações”), a cristandade no lugar do islamismo, o masculino, belicosidade, heroísmo, segurança. Muitos desses elementos são afirmados em discursos de direita há décadas e de forma contínua. Isso não é surpreendente, uma vez que não se trata de uma forma de teoria – a qual é continuamente pensada mediante conceitos e assimila pesquisas –, mas sim de um objetivo político nacionalista, que é ajustado a cada constelação política.

Como a direita existe e é ativa, em princípio, é necessário compreender o aumento de sua importância. Este não se explica – e isso deve ser enfatizado – apenas por conta de suas próprias atividades; nesse caso também vale o fato de que as intenções programáticas não se transformam imediatamente em realidade. Eu proponho enxergar na grande crise uma razão fundamental para a ascensão das direitas. Os anos 2007/2008 foram marcados por uma crise financeira e econômica. Essa crise se inscreve em uma dinâmica de crises abrangente. Aqui se incluem os aspectos da crise na relação da sociedade com a natureza, ou seja, a mudança acelerada do clima e as crescentes turbulências do clima ligadas a ela, com consequências de longo alcance; desertificação e erosão dos solos; desaparecimento de espécies; diminuição das reservas de água potável; perda de florestas e, com isso, a redução do dióxido de carbono, de zonas úmidas e de criação de oxigênio; expansão urbana e impermeabilização dos solos. Além disso, também contam a erosão e a crise da democracia, da comunicação pública e da cultura, das relações de gênero, da educação e da ciência, da relação entre o urbano e o rural. Em suma, pode-se falar em uma crise múltipla ou variada, que representa um desafio para os dominantes, uma vez que eles mesmos estão desmoralizados e até hoje não sabem o que fazer exatamente. Nos anos após a irrupção da grande crise, mudaram as formas de ação por parte das forças críticas ao capitalismo e as práticas organizativas, tal como elas eram difundidas desde meados dos anos 1990: o movimento do Fórum Social Mundial, a Associação para a Taxação das Transações Financeiras e para a Ação Cidadã(Attac),5 5 Attac: Association pour la taxation des transactions financières et pour l’action citoyenne. protestos contra cúpulas e a constituição de organizações não governamentais. Desde os 2011 há um aumento interminável de críticas, resistência e protestos, e um grande número de movimentos espalhados por todo o globo: a primavera árabe a favor da democracia; as muitas iniciativas contra as políticas de austeridade que foram simbolizadas de maneira específica pelo Podemos, pelo Occupy Wall Street, pelos movimentos contra despejos, ou pelo governo grego liderado pelo Syriza. Também se incluem aqui os movimentos em Israel, na Turquia, na Argentina ou no Brasil, na Rússia ou na China, os protestos dos estudantes contra a implementação ou elevação das taxas de ensino, as mulheres contra a violência ou pelo direito ao aborto. Fortaleceu-se a impressão de que uma virada poderia começar após uma longa fase da globalização neoliberal – apoiada por partidos conservadores, socialdemocratas e verdes – e de destruição de sindicatos e do movimento operário, novas guerras, apropriação de matérias-primas e riqueza social, destruição de relações sociais e desperdício do tempo de vida e das competências educacionais dos indivíduos (nos campos de refugiados, nos engarrafamentos das metrópoles, na busca por moradia ou nos empregos de merda e sem sentido). A classe burguesa viu-se na defensiva e se mostrou perplexa diante da dimensão da crise. Como as crises anteriores, essa crise veio de forma inesperada e abrangente para a burguesia. Na medida em que se supôs, de modo geral, que a propensão às crises da economia capitalista estaria realmente superada, foi aceito, em particular, que a economia europeia e alemã estaria protegida das tendências especulativas mediante a administração dos riscos. A postura defensiva e desnorteada da burguesia na crise levou a uma indecisão em muitos aspectos (a favor ou contra o euro; política de redução dos juros; déficit zero6 6 Nota do tradutor: Schwarze Null, no original alemão. Desde 2014, sob a liderança do ministro das finanças Wolfgang Schäuble, o governo alemão não contrairia mais empréstimos, impossibilitando que os gastos públicos excedessem a receita. ou investimentos; transição energética; dissolução da União Europeia; política por meios militares). Em muitos estados se chegou a um impasse e, com ele, à dificuldade de se formar um governo, ou seja, uma vontade nacional (Bélgica, Espanha, Grã-Bretanha, Áustria, França, Itália, Estados Unidos, Alemanha).

O desenvolvimento positivo dos movimentos de protesto que se formavam e de novos partidos foi obscurecido e atravessado por acontecimentos que marcaram contrapontos evidentes: a atividade da NSU desde o fim dos anos 1990; o massacre conduzido por Anders Breivik na Noruega em julho de 2011; a supressão dos protestos da Praça Taksim em julho de 2013; a vitória eleitoral da “Aurora Dourada”; a difusão do islamismo e a capacidade de mobilização do Estado Islâmico; o declínio do socialismo no século 21. Em 2010 e 2014 ocorreu a vitória eleitoral de Viktor Orbán na Hungria e os ataques ligados a ela à sociedade civil e à esquerda, o fortalecimento de políticas racistas (anticiganismo, antissemitismo, racismo anti-islâmico), um recuo revanchista a tradições húngaras, a restrição à liberdade científica, a remodelação dos tribunais, o controle da mídia. Essas tendências foram fortalecidas na Europa Central e no Leste Europeu com a vitória eleitoral do Partido Lei e Justiça (PiS), que desde novembro de 2015 assumiu o governo na Polônia e se dedica a uma reconstrução do sistema judiciário e do ambiente da mídia. Na Turquia, intensificou-se uma mudança constitucional sob Erdoğan, que lhe permitiu assumir a presidência de 2014 – e com consequências semelhantes à Hungria: intervenções profundas nas instituições educacionais e na liberdade científica, nas práticas jurídicas, na mídia, e, por fim, a perseguição arbitrária a ativistas pela paz, curdos, jornalistas ou cientistas desde a primavera de 2016. A eleição de Duterte em 2016 nas Filipinas apontou para uma nova e autoritária prática de violência do estado. Em 2016, Trump entrou na campanha para a presidência dos Estados Unidos, a qual ganhou em 2017. Nesse contexto, ficou claro, especialmente na pessoa do conselheiro Steve Bannon, que se constituiu um novo governo aberto a ideologemas e organizações fascistas e que recebeu apoio de partes da classe burguesa. Diante dessa conjuntura, as vitórias eleitorais de Sebastian Kurz na Áustria, alcançadas com métodos populistas, e a formação de um governo de coalizão com o FPÖ foram um outro alicerce para uma mudança autoritária na política europeia; de maneira semelhante, a formação de um governo do Movimento Cinque Stelle7 7 Movimento Cinco Estrelas, um partido populista e abertamente de direita na Itália. e da Lega8 8 Liga [em português] é um partido italiano alinhado à direita populista. em junho de 2018 na Itália ou a vitória do Vox9 9 Voz [em português] é um partido de direita na Espanha. nas eleições regionais na Andaluzia; e, por último, o sucesso da direita no Brasil, que, após um golpe legalista contra o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), foi bem-sucedida ao levar Jair Bolsonaro à presidência de um governo determinado essencialmente por militares e grandes proprietários de terra, que expressamente declara guerra a LGBTQIA+s e a “marxistas culturais”, ameaçando-os frequentemente de morte, assim como as sociedades do Amazonas. Além dos desenvolvimentos citados e que progridem furtivamente, devem ser também mencionados forças de direita e paridos que são eficazes há muito na França (Front National/Rassemblment National), Suíça (SVP),10 10 Partido Nacional Suíço. Holanda (Partido pela Liberdade), Dinamarca, Suécia, Finlândia ou Japão (PDL).11 11 Partido Liberal Democrata. A direita autoritária compõe-se de forma complexa em termos organizatórios e ideológicos. Ela pode, então, assumir formas muito diferentes e, de acordo com a posição estratégica, deslocar um ou outro aspecto ao primeiro plano. Contudo, na forma historicamente conhecida do fascismo (isto é, racismo aberto, forças de combate paramilitares e uniformizadas, turbas), é difícil ou quase impossível agir politicamente. Além disso, muitos direitistas estão convencidos que o fascismo histórico (isto é, Hitler e Mussolini) agiu com fôlego curto e, com isso, prejudicou seu próprio sucesso. Assim, a nova direita tira uma conclusão estratégica, uma estratégia metapolítica que almeja uma transformação a longo prazo com o convencimento da população e quer eliminar as ideias e práticas do esclarecimento moderno e da ciência, da democracia e da liberdade (o que inclui partes da igreja católica e dos evangélicos). Nesse sentido, a direita aprendeu a lidar com suas próprias posições de maneira tática. Isso a ajudou a se modernizar e alcançar aceitação oficial entre a burguesia, ou seja, a estar presente na esfera pública e poder ocupar cargos públicos. O meio estratégico para essa modernização foi o populismo, que permitiu que posições autoritárias se apresentassem como uma forma especial de democracia e efetivá-las. Essa estratégia não foi assumida por todas as direitas, já que ela demanda compromissos quando os autoritários se movimentam na esfera pública democrática da mídia e parlamentos. No entanto, de toda forma, ela inclui outros elementos: práticas de transformações constitucionais autoritárias, políticas sociais nacionais, violência cotidiana fascista, mobilização de turbas, encobrimento de assassinatos políticos.

A direita ataca amplamente muitos aspectos de um modo de vida, tal como ele pode ser alcançado nas últimas décadas – e, com ele, uma contemplação, uma reflexividade e uma capacidade para a crítica de coisas que são assentadas como evidentes. Isso afeta as relações de gênero e a violência sexista até a autodeterminação sobre o próprio corpo e a orientação sexual (proteção contra a desambiguação cirúrgica do gênero, direito ao aborto, reconhecimento público de formas de vida lésbicas e gays); a ecologia e a mudança climática; o fetiche do crescimento econômico e da competição, com uma compreensão alterada do bem-estar; a nutrição; a mobilidade; o racismo; a migração e os refugiados; a ciência, a educação e a racionalidade. A direita alcança vitórias eleitorais porque muitas das forças de direita e atividades associam-se nos planos regional, national e internacional: intelectuais, partidos, associações, grupos musicais – e porque elas são apoiadas amplamente pelas autoridades, polícias, tribunais, grande mídia (imprensa diária nacional, cobertura da televisão, talkshows). Também é evidente que pessoas ricas e grupos mafiosos colocam mais dinheiro à disposição para tais associações nos últimos anos. Eles apoiam e financiam pessoas individuais, jornais, atividades de campanha eleitoral ou organizações de combate. A esses se juntam organizações da sociedade civil que – apoiadas pela igreja católica, entre outras – estão comprometidas com temas das direitas e que prestam apoio organizatório. Essas associações e redes regionais e globais deveriam se tornar um objeto próprio de pesquisa. Isso não quer dizer, entretanto, que o aumento da importância da política de direita nos últimos anos pode ser explicado por esse aspecto. Contudo, os processos nacionalistas integram-se nesse contexto e são fortalecidos com ele. Tudo indica que, com a expansão do modo de produção capitalista e os padrões de governo desde o século 19, existem também períodos de expansão das direitas e suas redes internacionais.

Diante dos desenvolvimentos não democráticos, autoritários, de direita e de crises, e que são múltiplos e plenamente heterogêneos, colocam-se muitas questões:

  1. A esquerda nos países do centro capitalista está simplesmente alarmada porque agora isso também afeta seus próprios países, enquanto muitos estados se encontram em crise e são, de fato, determinados há décadas por processos autoritários?

  2. A simultaneidade é casual ou os diferentes fenômenos podem ser compreendidos em um contexto teórico e conceitual?

  3. Além disso, coloca-se a questão de saber se conceitos como bonapartismo, fascismo, autoritarismo, (neo)nacionalismo, populismo e constitucionalismo autoritário são apropriados (Schaffar 2019Schaffar, Wolfram. 2019. Globalisierung des Autoritarismus: Aspekte der weltweiten Krise der Demokratie. Berlin: Rosa Luxemburg Stiftung.).

Do que foi dito anteriormente, seguem algumas teses minhas: (1) Sim, em muitos estados existem, há muito tempo e de forma contínua, práticas autoritárias, violentas e corruptas dos dominantes; muito frequentemente elas são apoiadas pelos dominantes dos centros capitalistas e, com isso, fortalecidas e multiplicadas, para impedir que os críticos e as esquerdas transformem radicalmente as relações. Mas nos centros do capitalismo foi e é possível criticar essas formas de governo autoritárias e pressionar os próprios governos a uma política que alcance uma resolução pacífica dos conflitos, a implementação de objetivos ecológicos, o respeito aos direitos humanos, o apoio a processos democráticos, a aceitação da crítica social e de formas de vida divergentes. Essa forma de solidariedade torna-se mais difícil com uma mudança nas relações de poder e a articulação da “cadeia imperialista” a favor das práticas autoritárias burguesas (Poulantzas 1977Poulantzas, Nicos. 1977. Die Krise der Diktaturen: Portugal, Griechenland, Spanien. Frankfurt am Main: Suhrkamp.); lutas pela emancipação deparam-se com uma resistência mais forte quando as forças do autoritarismo, da criminalidade e da corrupção ganham poder no campo dominante e, nesse sentido, quando também moldam o contexto internacional.

(2) A questão a respeito da simultaneidade casual ou de uma conexão interna não deve ser colocada de maneira unilateral como “ou uma coisa ou outra”. As correntes e forças autoritárias pertencem de forma inerente à articulação complexa do modo de produção capitalista, ou seja, elas existem. Mas elas podem absorver autoritarismos tradicionais, articular-se novamente, apoiar-se e fortalecer umas às outras, ou seja, aproveitar a conjuntura e, com isso, expandir suas próprias posições às custas das esquerdas, da democracia e das perspectivas socialistas. Minha suposição é de que uma parte da burguesia tende a essa solução autoritária diante da perplexidade de todo o campo burguês. Os problemas econômicos, ecológicos e políticos são urgentes. Eles devem ser tratados com grande determinação. Mas não há perspectivas de ação no interior das formas capitalistas de apropriação da natureza, de produção e de política – ou, dito de maneira mais cautelosa, não se traçou nenhuma perspectiva nos últimos trinta anos, apesar de amplos processos de busca, como mostram o destino e o curto período de decaimento de conceitos como sustentabilidade, suficiência, grande transformação, decrescimento, pós-crescimento, Green New Deal ou geoengenharia. Muitos aspectos desses conceitos e das estratégias a eles ligadas não são inúteis, mas requerem novas formas de convívio em sociedade e constelações de força para poderem se desenvolver (incluindo a reconstrução do Estado). Para isso, são necessários esforços consideráveis. Eles questionariam os interesses elementares e as formas de vida dos vencedores das atuais condições de vida, formadas pelo capitalismo. Por conta disso, uma parte da classe burguesa e suas frações encontra-se perplexa, uma vez que ela enxerga ou pressente a necessidade de mudança e é repetidamente lembrada por seu próprio jornalismo, pesquisas científicas, comitês internacionais e ONGs. Uma outra parte é colocada em um estado sombrio e de pânico. Ela procura negar a realidade, ou relativizá-la, e continuar a agir como antes: utilizando energias fósseis, de modo sexista, tecnocrático, avesso à razão e à ciência. Imagens de inimigos são construídas de modo racista, nacionalista, fundamentalista em termos religiosos e projetivo: a invasão de migrantes e refugiados; a troca de populações; o conflito entre religiões, minorias sexuais e aqueles que dizem a verdade e que são desacreditados como pseudointelectuais ou politicamente corretos, que ameaçam e enfraquecem a masculinidade ou a capacidade de guerras e violência. Os perseguidores veem a si próprios como perseguidos: eles advogam uma identidade racista, nacional e masculina e deploram as políticas de identidade das feministas e das esquerdas; insistem em suas visões irredutíveis e criticam o politicamente correto. Dispositivos políticos, policialescos e militares são fortalecidos, arranjados, planejados, equipados, ensaiados, e autorizam a possibilidade de controle e prevenção abrangentes até nas menores expressões de vida da população. Em conformidade com isso, a população é mobilizada e uma parte dela é transformada em uma turba, uma aliança de forças vinda de cima, das camadas medianas e inferiores, e que por isso pode fazer crer que ela encarna todo o povo (Arendt 1976Arendt, Hannah. 1976. Die verborgene Tradition. Frankfurt am Main: Suhrkamp., 17). Ambas as partes da classe burguesa se encontram em um equilíbrio irresoluto em relação às estratégias a serem perseguidas. Evidentemente, as expectativas que, diante desse pano fundo, admitem reflexões estratégicas não são claras o suficiente para alcançar decisões e alternativas claras.

A economia está estagnada, a situação ecológica é ameaçadora, muitos estados estão desestabilizados, partes consideráveis da população migram ou são desalojadas – ou saem do papel passivo enquanto consumidores e eleitores e são arrastadas para protestos. A globalização criou uma nova situação geopolítica. Se a divisão do planeta nos anos 1990 em três grandes zonas de influência parecia clara, os vínculos se deslocaram por conta do enorme peso econômico e do crescente peso político da China. Ela não é mais uma extensa reserva de trabalho para os centros, mas representa um poderoso centro da economia capitalista, na qual se realiza a reprodução do capital; exerce influência sob muitas empresas ocidentais; investe em numerosas regiões da Terra e cria dependência a dívidas; assegura, especialmente por meio de contratos, o acesso a matérias-primas e terras agrícolas que as empresas de alta tecnologia que produzem na China precisam – de tal modo que elas não podem se retirar sem mais. Dessa forma, estão programados conflitos com a União Europeia e os Estados Unidos. Isso se intensificará com os esforços para explorar novas regiões como o Ártico, a Groenlândia, a Antártida e os solos oceânicos ou, finalmente, efetivar a mineração espacial e fazer valer as respectivas reivindicações nacionais pela Lua e por Marte e assegurar para isso a necessária infraestrutura de comunicações e de satélites e, assim, levar a novas formas de guerra (guerra cibernética, guerra nas estrelas).

(3) O novo autoritarismo é híbrido: ele unifica muitos elementos do estado regular e normativo assim como do estado de exceção. Ele atravessa os aparelhos de Estado, reorganiza as polícias e, em muitos casos, cria novas formações de violência e de vigilância (digitalizada); por sua vez, as polícias e os militares fortalecem a tendência a políticas autoritárias (Harcourt 2019Harcourt, Bernard. 2019. Gegenrevolution: Der Kampf der Regierungen gegen die eigene Bevölkerung. Frankfurt am Main: Fischer.). Constantemente, formas de estado de exceção orientadas de modo flexível a grupos específicos (incluindo violência militar considerável) são postas em prática de maneira regional e temporária. Com isso, o estado também assume – segundo as reflexões de Nicos Poulantzas (1997) – determinadas propriedades de um estado de exceção fascista, no qual as polícias são o coordenador essencial das frações do bloco no poder. Mas o autoritarismo também se apoia profundamente nos militares, no complexo industrial-militar, no armamento e na capacidade de guerra (Estados Unidos, Rússia, China, Israel, Índia, Egito, Brasil) e pode assumir traços de uma ditadura militar. O bonapartismo pode ser considerado historicamente como uma terceira forma do estado de exceção – ao lado do fascismo e da ditadura militar. A ele se aplica o fato de que em muitos estados pareça dominar um tipo de equilíbrio, não tanto entre o bloco no poder e as classes populares, mas, sobretudo no interior do próprio bloco no poder e suas frações, com suas alianças particulares. Por conta disso, elas buscam alianças com as classes populares (isto é, com a pequena burguesia e com trabalhadores) como um instrumento de sua política. Elas também são bem-sucedidas mediante ideologemas racistas e nacionalistas; nesse caso, a submissão ideológica não exige concordância dos dominados, mas ocorre às custas daqueles que estão às margens das classes inferiores ou das formas de vida que poderiam ameaçar a disposição generalizada à obediência. Por fim, o autoritarismo também se apoia em reformas constitucionais formais, que alteram os gastos do estado (déficit zero), os procedimentos eleitorais, a mídia e a jurisprudência, mas também possui impactos consideráveis sobre o desempenho dos aparelhos de estado e sobre o pessoal de estado (promoção da sociedade civil, pressão sobre estudantes e cientistas). Segundo as distinções feitas por Poulantzas, isso sugere que não se trata de um estado de exceção, no qual o bloco no poder se organiza particularmente nos aparatos estatais de violência (polícias ou militares), mas que ainda se trata de um estado burguês normal. Nos anos 1970, este foi caracterizado por Poulantzas como autoritário e estatista, uma vez que a administração estatal se transformou no canal relevante no processo de tomada de decisão do bloco no poder e os partidos políticos eram subordinados a ela pelas cúpulas partidárias. Numerosas formas de normalismo autoritário, nas quais formações de direita adquirem um importante significado organizativo e mobilizador, podem ser constatadas após as experiências de reconstrução dos aparelhos de estado desde os anos 1990 (nas quais a administração foi consideravelmente enfraquecida mediante novos instrumentos de controle, a restrição dos recursos financeiros e a vigilância permanente sobre seu desempenho por parte de atores privados) e as novas tendências ao controle das comunicações, transações, fluxos ou recursos globais por meio do Big Data, da formação de regimes de fronteira transnacional e do fortalecimento do controle preditivo dos estilos de vida. O dispositivo de violência antidemocrática e racista se transformou em um momento constitutivo da terceira fase da dominação estatal neoliberal.

Nos últimos anos, esses desdobramentos não permaneceram desprovidos de contradições. O autoritarismo global desenvolveu-se em oposição direta com a crítica ao capitalismo reorganizado de forma neoliberal. Ao lado dos protestos de cúpula nos encontros do G20 ou do G7, ou contra os acordos de livre comércio, que deram continuidade às práticas e temas do movimento crítico à globalização dos anos 1990 e 2000, há uma ampla recusa da corrupção, do nacionalismo, do racismo, do sexismo, da violência policial ou das ameaças à ciência e à mídia. Em muitos países, as pessoas se engajam em grande número por seus direitos democráticos e o desenvolvimento de sua vida comunitária. A eles se juntam o movimento internacional #MeToo; os milhões que entraram em uma greve de mulheres, que protestaram contra a violência sexista ou se juntaram pelo direito ao aborto; o Black Lives Matter; os protestos contra corrupção na Bulgária, na Romênia ou na Tchéquia; as manifestações Fridays for Future; na Alemanha, os movimentos #unteilbar, 12 12 Nota do tradutor: Movimento que começou em 2018, na cidade de Berlin, e congrega manifestantes contra o racismo, a xenofobia e a ascensão da extrema-direita. Seebrücke13 13 Nota do tradutor: Movimento alemão que luta por uma política de migração solidária e humanitária. e pelo direito à cidade; protestos de inquilinos; protestos contra o uso de linhito; ou ainda, o movimento #noPAG (Protestos contra as obrigações policiais).14 14 Nota do tradutor: Movimento da Baviera que luta contra uma lei estadual que aumentou a repressão e a vigilância contra manifestantes, grevistas, jornalistas, refugiados e migrantes.

  • 2
    Publicação original: Demirović, Alex. 2020. Einleitung: Globaler Autoritarismus – Überlegungen und Fragen. In Autoritärer Populismus, organizado por Carina Book, Nikolai Huke, Norma Tiedemann e Olaf Tietje, 28-39. Münster: Westfälisches Dampfboot. Tradução de Vladimir Puzone (Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil) e revisão de Caio Vasconcelos (Universidade Federal do Triângulo Mineiro, UFTM, Uberlândia, MG, Brasil).
  • 3
    Nota do tradutor: Em 1949, foi assinada, na cidade de Bonn, a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. De início provisória, ela acabou se tornando a Constituição alemã permanente e foi considerada um modelo para a transição de sociedades autoritárias para sociedades democráticas.
  • 4
    Nota do tradutor: Rede para a promoção de música neonazista fundada no Reino Unido em 1987.
  • 5
    Attac: Association pour la taxation des transactions financières et pour l’action citoyenne.
  • 6
    Nota do tradutor: Schwarze Null, no original alemão. Desde 2014, sob a liderança do ministro das finanças Wolfgang Schäuble, o governo alemão não contrairia mais empréstimos, impossibilitando que os gastos públicos excedessem a receita.
  • 7
    Movimento Cinco Estrelas, um partido populista e abertamente de direita na Itália.
  • 8
    Liga [em português] é um partido italiano alinhado à direita populista.
  • 9
    Voz [em português] é um partido de direita na Espanha.
  • 10
    Partido Nacional Suíço.
  • 11
    Partido Liberal Democrata.
  • 12
    Nota do tradutor: Movimento que começou em 2018, na cidade de Berlin, e congrega manifestantes contra o racismo, a xenofobia e a ascensão da extrema-direita.
  • 13
    Nota do tradutor: Movimento alemão que luta por uma política de migração solidária e humanitária.
  • 14
    Nota do tradutor: Movimento da Baviera que luta contra uma lei estadual que aumentou a repressão e a vigilância contra manifestantes, grevistas, jornalistas, refugiados e migrantes.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do tradutor antes da publicação.

Referências

  • Arendt, Hannah. 1976. Die verborgene Tradition Frankfurt am Main: Suhrkamp.
  • Frei, Norbert, Cristina Morina, Franka Maubach e Malk Tändler. 2019. Zur Rechten Zeit: Wider die Rückkehr des Nationalismus Berlin: Ullstein.
  • Harcourt, Bernard. 2019. Gegenrevolution: Der Kampf der Regierungen gegen die eigene Bevölkerung Frankfurt am Main: Fischer.
  • Poulantzas, Nicos. 1977. Die Krise der Diktaturen: Portugal, Griechenland, Spanien Frankfurt am Main: Suhrkamp.
  • Schaffar, Wolfram. 2019. Globalisierung des Autoritarismus: Aspekte der weltweiten Krise der Demokratie Berlin: Rosa Luxemburg Stiftung.
  • Sternhell, Zeev. 1999. Die Entstehung der faschistischen Ideologie: Von Sorel zu Mussolini Hamburg: Hamburger Edition.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2021
  • Aceito
    28 Dez 2021
  • Publicado
    16 Ago 2022
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