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A busca por direitos humanos: palavras e ações de uma igreja inclusiva na luta por reconhecimento social

The search for human rights: words and actions of an inclusive church on the struggle for social recognition

La búsqueda de los derechos humanos: palabras y acciones de una iglesia inclusiva en la lucha por el reconocimiento social

Resumo:

Devido à crescente influência religiosa no discurso político contra minorias sexuais e de identidade de gênero, este artigo busca apresentar alternativas religiosas de valorização dessas identidades, seus processos de formação e meios de ação no meio público. Para isso, é realizada a análise de dados obtidos em observação participante na Igreja da Comunidade Metropolitana a partir da perspectiva de Habermas e Honneth, contribuindo para o debate sobre a atualidade da Teoria Crítica como ferramenta de análise. Fica constatado que as ações da denominação no espaço público na luta por direitos LGBT está baseada num processo de luta por reconhecimento social, gerando uma disputa não somente discursiva, mas também em ações políticas no espaço público, visando a transformação da sociedade. Ao fazer isso, a denominação se torna um braço religioso no movimento LGBT mais amplo, dialogando tanto com outras denominações, quanto com a sociedade de modo mais amplo.

Palavras-chave:
Teoria Crítica; Direitos Humanos; Sexualidade; LGBT; Religião

Abstract:

Due to the growing religious influence in political discourse against sexual minorities and gender identity, this article aims to present religious alternatives for valuing these identities, their processes of formation and means of action in the public environment. To this goal, the analysis of data obtained in participant observation in the Church of the Metropolitan Community is performed from the perspective of Habermas and Honneth, contributing to the debate on the relevance of Critical Theory as a tool of analysis. It is noted that the actions of the denomination in the public space in the fight for LGBT rights is based on a process of struggle for social recognition, generating not only a discursive dispute, but also political actions in the public space, aiming at the transformation of society. In doing so, the denomination becomes a religious arm in the broader LGBT movement, dialoguing with both other denominations and society more broadly.

Keywords:
Critical theory; Human Rights; Sexuality; LGBT; Religion

Resumen:

Debido a la creciente influencia religiosa en el discurso político contra las minorías sexuales y la identidad de género, este artículo busca presentar alternativas religiosas para valorar estas identidades, sus procesos de formación y medios de acción en el entorno público. Para ello, el análisis de los datos obtenidos en la observación participante en la Iglesia de la Comunidad Metropolitana se realiza desde la perspectiva de Habermas y Honneth, contribuyendo al debate sobre la realidad de la Teoría Crítica como herramienta de análisis. Cabe señalar que las acciones de la denominación en el espacio público en la lucha por los derechos LGBT se basan en un proceso de lucha por el reconocimiento social, generando una disputa no sólo discursiva, sino también sobre acciones políticas en el espacio público, con el objetivo de la transformación de la sociedad. Al hacerlo, la denominación se convierte en un brazo religioso en el movimiento LGBT más amplio, dialogando con otras denominaciones y la sociedad en general.

Palabras clave:
Teoría Crítica; Derechos Humanos; Sexualidad; LGBT; Religión

Introdução

Uma luta discursiva se dá buscando reparar a exclusão de determinados modos de vida, partindo da contestação dos critérios de validade que sustentam a discriminação. A exclusão de LGBTQIA+’s e, portanto, das igrejas inclusivas,2 2 Igrejas inclusivas são igrejas que oferecem acolhimento à comunidade LGBTQIA+, assim como possibilitam a sua ordenação; conciliando identidades cristãs e LGBTs (Maranhão 2011). pode ser percebida nos discursos dos que vivem fora da heterocisnormatividade3 3 Ao se falar de heterocisnormatividade, se apresenta que a norma existente na sociedade leva à compulsão da heterossexualidade para a vivência da sexualidade, assim como da identidade cis, ou seja, da compatibilidade entre identidade de gênero e sexo biológico de nascimento; discriminando àqueles que não se adéquam a esse padrão, conforme Jesus (2012) e Simakawa (2015). ao relatar suas vivências. Um exemplo são os fragmentos da entrevista cedida pela pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM),4 4 A Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM) é uma Igreja Inclusiva fundada em Los Angeles, EUA, em 1968. A denominação se expandiu pelo mundo, formando a Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana (Fuicm), que em 2019 possuía mais de 300 igrejas em 22 países com, por volta de, 60 mil membros. Entre 2017 e 2019 foi realizada pesquisa de campo junto à unidade em São Paulo (ICM-SP), assim como pesquisa documental nos sites da Fuicm e nas unidades brasileiras, assim como reportagens de jornais sobre a denominação e seus membros. Os dados foram analisados através do programa Maxqda de forma quantitativa e qualitativa. Através de falas significativas, neste texto, se apresentam as conclusões sobre os dados obtidos frente à Teoria Crítica de Habermas e Honneth e sua aplicabilidade para análise de realidades contemporâneas. Alexya Salvador,5 5 Primeira pastora trans ordenada na América Latina e líder da ICM-SP. Alexya possui presença ativa nos debates públicos sobre questões LGBT, tendo sido candidata a deputada estadual pela cidade de São Paulo nas eleições de 2020. Carvalho, Jonas. 2017. Uma igreja que exclui não aprendeu com Jesus’, diz pastora trans. Catraca Livre, 04 abr. 2017. Acessado em 30 nov. 2021, https://catracalivre.com.br/cidadania/uma-igreja-que-exclui-nao-aprendeu-com-jesus-diz-pastora-trans. que serve como síntese das vivências da comunidade religiosa, e foi recomendada pelo Reverendo Cristiano, líder da ICM.

Na escola eu apanhei muito porque era “diferente”, quando na verdade eu não era diferente, eu apenas não condizia com o sistema heteronormativo, mas também não sabia que existia um outro sistema de gênero, de uma outra construção. Foi muito difícil. Enquanto criança religiosa também. Só que quando a gente é criança, a gente ainda tem aquela pureza de alma e de espírito. Mas quando se chega à fase da puberdade, da adolescência, e a gente consegue raciocinar usando a razão, fica muito difícil porque eu tinha um conflito muito grande. [...] Com certeza. Quando chamei meus pais no quarto para conversar com eles, lembro que eu fiquei ali por quase uma hora, só chorava e a voz não saía. Quando crio forças e começo a falar para meus pais que não era igual aos meus primos, tios, que eu não era igual ao meu pai, lembro que ele me interrompeu, muito nervoso - porque ele demorou a entender o que estava querendo dizer - e foi bem categórico quando disse “não, se você for viado eu até aceito, mas se você se vestir de mulher eu te mato. Isso eu não vou aceitar”. [...] A população LGBT, por não estar na conformidade que eles acham que é normal, que é a heteronormativa, eles (a população) vão punir de forma muito dura e cruel as pessoas que não atendem a esse sistema. Principalmente quando falamos de sistema binário de gênero. A sociedade ainda acha que só existe o homem e a mulher. E hoje nós vamos entender que existe um leque de possibilidades: tem os binários, os não-binários, e por aí vai. Eu recebo muito no inbox pessoas me ofendendo, dizendo que eu mereço morrer de forma cruel, que eu deveria morrer de HIV, que eu deveria morrer em um acidente de carro, que Deus me abomina.

Por adotar abertamente esse discurso, a denominação se coloca no espaço público como uma transgressora da norma, por serem uma igreja que se entende como cristã, contudo, que subverte os valores normativos da sexualidade e gênero (Maranhão 2011Maranhão Filho, Eduardo M. de A. 2011. “Jesus me ama no dark room e quando faço programa”: narrativas de um reverendo e três irmãos evangélicos acerca da flexibilização do discurso religioso sobre sexualidade na ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana). Polis e Psique 1: 166-194. https://doi.org/10.22456/2238-152X.31537.
https://doi.org/https://doi.org/10.22456...
), como será demonstrado ao longo do texto.

Portanto, trava uma disputa contra a exclusão, ou ainda, por inclusão. Sendo esta entendida como “universalização dos direitos fundamentais, que são imprescindíveis à participação no discurso público e nas deliberações, por meio do que os diferentes grupos étnicos podem expressar sua identidade e conquistar o reconhecimento uns dos outros” (Poker 2014Poker, José G. A. B. 2014. Os conceitos de inclusão e reconhecimento na teoria de Habermas. In Reconhecimento, direito e discursividade em Habermas, organizado por Clelia Aparecida Martins e José Geraldo A. B. Poker, 337-365. São Paulo: FAP-Unifesp., 79).

Por isso, é no contexto das “lutas pelo reconhecimento, que são as lutas anticolonialistas, separatismos, nacionalismos, os movimentos sociais de gênero, de sexualidade, antirracistas e anti-etnocêntricos” (Poker 2014Poker, José G. A. B. 2014. Os conceitos de inclusão e reconhecimento na teoria de Habermas. In Reconhecimento, direito e discursividade em Habermas, organizado por Clelia Aparecida Martins e José Geraldo A. B. Poker, 337-365. São Paulo: FAP-Unifesp., 75) que podemos enxergar a ação da ICM. Nesse sentido, ela se mostra uma igreja militante por inclusão e participação política dos LGBTQIA+, pelos direitos fundamentais garantidos a todos os cidadãos. Por isso, é possível compreendê-la no contexto de um movimento social mais amplo que luta por igualdade de gênero e sexualidade, vistas como direitos fundamentais, buscando uma solidariedade coletiva e a horizontalização das relações (Alves, Poker e Ferreira 2015Alves, Beatriz S. F., José G. A. B. Poker e Vanessa C. Ferreira. 2015. Reconstrução racional de direitos humanos: uma proposta de conhecimento crítico das relações internacionais baseado em Habermas. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos (4): 145-170., 116).

O reconhecimento que a denominação busca é a aceitação da sexualidade não heterossexual por parte da sociedade mais ampla. Pois, como sugere Honneth (2003Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34., 1949Honneth, Axel. 1949. The Critique of Power: reflective stages in a critical social theory. Bakersfield: Massachusetts: MIT Pressed.), seguindo o pensamento habermasiano, “para que os atores sociais possam, portanto, desenvolver um autorrelacionamento (Selbstbeziehung) positivo e saudável, eles precisam ter a chance simétrica de desenvolver a sua concepção de vida boa sem desenvolverem as patologias oriundas das experiências de desrespeito (‘Mißachtung’)” (Rosenfield e Saavedra 2013Rosenfield, Cinara L. e Giovani A. Saavedra. 2013. Reconhecimento, teoria crítica e sociedade: sobre desenvolvimento da obra de Axel Honneth e os desafios da sua aplicação no Brasil. Sociologias 15 (33): 14-54. https://doi.org/10.1590/S1517-45222013000200002.
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, 22).

Nesse sentido, o reconhecimento seria a busca de um relacionamento ideal entre sexualidades heterossexuais e não heterossexuais, sem a existência de discriminação de uma sobre a outra; como evidente no trecho a seguir

Nós não somos uma igreja de identidades; nós somos uma igreja de direitos. Nossa luta não é por identidades; a nossa luta é pelo direito à vida, que cada pessoa tenha um direito dela ser quem ela é. [...] Não só pras pessoas transgêneras: todas as pessoas. A nossa luta não são só pelos LGBTIs; a nossa luta, enquanto Igreja da Comunidade Metropolitana, são por todas as pessoas. Os heterossexuais - todas as pessoas. (Pastora Alexya, pregação realizada em 28 jan. 2018).

Fica, portanto, claro que a igreja em questão se entende como inclusiva no sentido de equiparar as diversas formas de sexualidade, identidade e religiosidade. Na visão da ICM, esse reconhecimento mútuo da equivalência de seu grupo com grupos héteros, cis6 6 Cis se refere a cisgênero, ou seja, uma pessoa que se identifica com o sexo com o qual nasceu (Jesus 2012). Nessa passagem, mostra-se que a luta por reconhecimento na Igreja da Comunidade Metropolitana abarca as questões de orientação sexual (igualdade entre heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais e assexuados), de gênero (igualdade entre cisgêneros, transgêneros, transexuais, travestis, crossdressers e não binários) de papeis de gênero (igualdade entre drag queens, drag kings e os que seguem os papeis de gênero heteronormativos) e de práticas sexuais. e que possuem comportamentos sexuais baseados na norma tradicional não ocorre. Existe, enfim, a necessidade de uma luta por reconhecimento, quer dizer: clarear as disputas de legitimidade e não legitimidade em torno da aceitação de homossexuais no meio religioso (Natividade 2010Natividade, Marcelo. 2010. Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal. Religião e Sociedade 30 (2): 90-121. https://doi.org/10.1590/S0100-85872010000200006.
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; Natividade e Oliveira 2009Natividade, Marcelo e Leandro Oliveira. 2009. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos ameaçadores. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana (2): 121-161.). Vemos, portanto, que é pela busca da alteração dos critérios normativos em uso que se inicia a luta por reconhecimento, e essa alteração é perseguida quando o grupo sente o desrespeito por parte de outros grupos, sejam eles do campo religioso ou da sociedade.

A luta discursiva por reconhecimento: ICM e a gramática habermasiana

Habermas (1984Habermas, Jurgen. 1984. The theory of communicative action. Reason and the rationalizalion of society. vol 1. Boston: Beacon Press., 1989Habermas, Jurgen. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., 2002Habermas, Jurgen. 2002. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola.) se utiliza de uma normatividade intersubjetivamente construída que realiza a negociação de sentidos a partir da contestação dos critérios de validade das proposições. Esse processo se dá no mundo da vida, possuindo os componentes da cultura, sociedade (normatividade) e personalidade - que se ligam com a ciência, a moral e a arte, respectivamente.

Cada uma dessas esferas atua dentro de um mundo específico da ação comunicativa, o mundo objetivo com a pretensão de verdade; o mundo social, com a pretensão de correção normativa e o mundo subjetivo, com a pretensão de sinceridade (Schumacher 2000Schumacher, Aluísio de A. 2000. Comunicação e democracia: fundamentos pragmático-formais e implicações jurídico-políticas da teoria da ação comunicativa. Tese em Ciência Política, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil.). Contudo, esses atos de fala não são absolutos, permitindo que as pretensões de validade sejam disputadas pelo ouvinte.

Ao articular as pretensões de validade, linguagem e relações contextuais se cria a ação orientada para intercompreensão, ou seja, ação comunicativa. Segundo Habermas (1984Habermas, Jurgen. 1984. The theory of communicative action. Reason and the rationalizalion of society. vol 1. Boston: Beacon Press., 1989Habermas, Jurgen. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.), o mundo da vida é regido pela ação comunicativa; assim pode-se admitir que surge das relações interpessoais na vida cotidiana, pelas quais as pessoas buscam a justificação de suas ações, justificação essa que acontece pelo consenso do melhor argumento, baseado na racionalidade comunicativa, com o intuito de emancipação.

A pretensão de verdade está ligada ao mundo objetivo; de que o enunciado é verdadeiro dadas as condições materiais e objetivas de vida, leva-se, portanto, em conta as asserções referentes a condições objetivamente mensuráveis, independendo, portanto, da subjetividade do sujeito. Fala-se aqui do modo cognitivo, onde os atos de fala podem ser constatados.

Ao dizer na entrevista ao Catraca Livre, em 4 de abril de 2017, apresentada anteriormente que “A sociedade ainda acha que só existe o homem e a mulher. E hoje nós vamos entender que existe um leque de possibilidades: tem os binários, os não binários, e por aí vai”, Alexya disputa em torno de critérios objetivos, pois ela recorre sobre a objetividade do caráter binário de gênero. Nesse sentido, nega-se que o gênero acompanhe o sexo, ou seja, que necessariamente a pessoa que nasce com o sexo masculino pertença ao gênero masculino - homem - e que a pessoa que nasce com o sexo feminino pertença ao gênero feminino - mulher.

Essa disputa ocorre no campo do mundo objetivo, inclusive, com a utilização da técnica científica, não somente baseada em discursos apoiados em teoria de gênero, mas na psicologia, genética etc. Nesse sentido, o que está em disputa é a validade objetiva do gênero. E por assim ser, essa disputa ocorre dentro dos moldes do mundo objetivo, quer dizer, através dos especialistas do mundo objetivo, ou seja, os cientistas.

Cabe ressaltar aqui que essa disputa se mostra também na sociedade mais aberta, uma vez que a questão de gênero, normalmente, é discutida a partir de critérios científicos, um exemplo que pode ser dado é o pronunciamento de diversas entidades sobre o tema, como o vídeo lançado pelo Conselho Federal de Psicologia pela despatologização das transexualidades, no qual aprofunda o debate sobrepsicologia e a despatologização das identidades trans.7 7 Conselho Federal de Psicologia. 2016. A despatologização das transexualidades e travestilidades pelo olhar da Psicologia. Conselho Federal de Psicologia, 19 fev. 2016. Acessado em 18 maio 2021. https://site.cfp.org.br/video-aprofunda-debate-sobre-psicologia-e-a-despatologizacao-das-identidades-trans.

Ou a nota de repúdio feita pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) após comentário público feito por um promotor público sobre a questão que tratava de gênero e que frisava, entre outras coisas, o conceito de gênero conforme construído pelos técnicos, pois, segundo a OAB, no decorrer da nota, caberia informar o promotor sobre os termos objetivos.8 8 Bellini, Jomar. 2015. Promotor causa polêmica ao dizer que mulher nasce ‘baranga francesa’. G1, 30 out 2015. Acessado em 18 maio 2021 .http://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/noticia/2015/10/promotor-causa-polemica-ao-dizer-que-mulher-nasce-baranga-francesa.html.

Aqui se evidencia a luta normativa no mundo objetivo pela verdade da formatação binária de gênero. Isso feito pelas vias dos instrumentos científicos, típicos do mundo objetivo.

A segunda pretensão, de correção normativa, se dá em dois âmbitos; em um primeiro momento pode-se pretender que aquilo que está sendo dito corresponda às normas do contexto social e, em um segundo plano, que o próprio contexto normativo seja válido, quando sua legitimidade é questionada. Nesse caso se trata do mundo social, das normas vigentes e que, idealmente, são aceitas ou discutidas pelos sujeitos.

Pretensão disputada na ICM, e caracterizada pela fala da pastora Alexya que tomou repercussão no meio religioso, principalmente evangélico, ao dizer que

Jesus Cristo foi o primeiro homem trans [...] Nós aprendemos desde o Gênesis que existe a Santa Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Deus, portanto, mandou seu filho para a terra. Jesus, o filho, tinha o gênero divino, correto? Então, quando ele desceu para a terra ele passou a ter o gênero humano. Então, se Jesus pode se transicionar, por que eu não posso?9 9 Declercq, Marie. 2017. “Jesus Cristo foi o primeiro trans”, diz a 1ª pastora transgênera da América Latina. Vice, 26 jun. 2017. Acessado em 18 maio 2021. https://www.vice.com/pt_br/article/8xa943/jesus-cristo-foi-o-primeiro-trans-diz-a-1a-pastora-transgenera-da-america-latina.

Na fala é possível ver sendo retirado do próprio universo social no qual ela se insere o contexto do qual se disputará a validade normativa. Isso, pois a pastora busca na mitologia cristã os meios para deslegitimar o sentido negativo dado àqueles que não se adéquam às normas sociais de gênero, e essa busca por elementos cristãos se dá por se tratar de um campo de disputa religioso. Assim, Alexya utiliza da transmutação de Cristo, de um gênero ao outro, para desarticular a ideia de transgeneridade da ideia de pecado. Pois, uma vez que o próprio Jesus seria um transgênero, e nele não há pecado, a transgeneridade não poderia ser considerada algo ruim.

A validade normativa é então disputada tanto no mundo objetivo quanto no mundo social, sendo que no mundo social a disputa se dá do universo simbólico do qual o indivíduo participa na busca reconhecimento. Assim, como descrito por Habermas (1984Habermas, Jurgen. 1984. The theory of communicative action. Reason and the rationalizalion of society. vol 1. Boston: Beacon Press., 1989Habermas, Jurgen. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.), é do mundo social que surgem as ferramentas utilizadas pelo indivíduo para modificar o próprio mundo social, sendo ele não somente fonte de reprodução de um dado universo simbólico, mas também fonte de mudança.

A terceira pretensão é a de sinceridade, ou seja, de que o sujeito que emite a fala acredita no que diz e está sendo sincero no modo como diz; pretensão clara na busca de se poder ser quem é, da população LGBTQIA+, presente na ICM.

A luta pela ampliação da igualdade de direitos, pela liberdade de viver seu modo de vida, acontece na disputa discursiva pela validade normativa, com argumentos vinculados à luta política. Nesse sentido, a luta por reconhecimento possui um aspecto discursivo. Pelo discurso, quer dizer, pela disputa sobre a verdade e correção normativa o indivíduo na ICM busca reverter o valor negativo dado à sua sexualidade ou gênero, inclusive, na visão religiosa, buscando assim diminuir - ou, de preferência, neutralizar - a desigualdade.

Essa luta particular na Igreja da Comunidade Metropolitana gera, a princípio na esfera religiosa, um foco de disseminação da luta por reconhecimento do grupo LGBTQIA+ mais amplo, dada a participação da denominação em espaços públicos como a marcha do orgulho LGBT, em entrevistas acessíveis a um grande número de pessoas,10 10 Refere-se aqui a entrevistas dadas a portais de destaque e canais no Youtube assim como os listados a seguir: Carvalho, Jonas 2017. ‘Uma igreja que exclui não aprendeu com Jesus’, diz pastora trans. Catraca Livre, 4 maio 2020. Acessado em 18 maio 2021. https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/uma-igreja-que-exclui-nao-aprendeu-com-jesus-diz-pastora-trans. Site com estimativa de 7,97 milhões de acessos, segundo o site de similarweb.com que mensura tráfego digital, por exemplo: número de visitas e origens de tráfego. Acessado em 30 nov. 2021, Acessado em 18 maio 2021. https://www.similarweb.com. Bertho, Helena. 2017. Sou mulher transgênera, pastora e mãe de duas crianças. Universa UOL, 31 mar. 2017.https://estilo.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2017/03/31/sou-mulher-trans-pastora-e-mae-de-duas-criancas.amp.htm. Site com estimativa de 530,28 milhões de acessos, conforme site similarweb.com. Acessado em 30 nov. de 2021. https://www.similarweb.com. Põe na roda. 2017. Igreja de Jesus com gay, drag e trans. Põe na roda, 31 mar. 2017. Canal no Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=f6K9twnHImM. Vídeo com 608.956 visualizações em 30 nov. de 2021. e pela própria disseminação individual dessa forma de pensamento. Então, a partir de uma gramática moral específica, a qual se utiliza de recursos do mundo objetivo e do mundo social, a ICM busca modificar a normatividade dada.

E é no mundo da vida que os critérios de validade e reconhecimento são negociados. Seja pela negociação da diversidade de orientações sexuais ou de identidades de gênero; seja pela negociação no mundo social da igualdade de todos os seres humanos pela lógica do direito, conforme aponta Habermas (199a7Habermas, Jurgen. 1997a. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., 1997bHabermas, Jurgen. 1997b. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.); ou mesmo pela sinceridade de buscar ser o que se é - a dor e a delícia de ser, como relatado por Cristiano Valério, revendo e liderança da ICM-SP.

Essa negociação é buscada pela ação comunicativa entre os membros da própria comunidade, assim como pelo diálogo na sociedade. Ocorre na participação pública em atividades políticas, em entrevistas concedidas, em festas abertas realizadas na denominação e mesmo a partir da transmissão aberta do culto pela página do Facebook da denominação.

Do discurso à prática da igreja da comunidade metropolitana: a transição entre Habermas e Honneth

O conteúdo discursivo se apresenta na luta diária por reconhecimento, também entendida dentro da Teoria do Reconhecimento Social do autor Axel Honneth ao observar as ações públicas da denominação, sendo possível perceber uma luta por reconhecimento (Honneth 2003Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34.). Ou seja, é no espaço público, nas relações entre diferentes indivíduos, que se constrói a luta por direitos - e aqui se veem as tensões e os processos transformadores colocados em prática.

Ao olhar de forma ainda mais específica a questão da luta por reconhecimento social, podemos considerar as três esferas do reconhecimento a partir da concepção de Honneth: do amor, do direito e da solidariedade. Sendo que o desrespeito a essas esferas, resultam em violação, privação e exclusão, respectivamente; e geram motivação para a luta por reconhecimento e inclusão social (Rosenfield e Saavedra 2013Rosenfield, Cinara L. e Giovani A. Saavedra. 2013. Reconhecimento, teoria crítica e sociedade: sobre desenvolvimento da obra de Axel Honneth e os desafios da sua aplicação no Brasil. Sociologias 15 (33): 14-54. https://doi.org/10.1590/S1517-45222013000200002.
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, 31-32).

A experiência anterior citada pela pastora Alexya sobre agressões, tanto no ambiente escolar como no familiar e religioso é um relato comum nas histórias dos participantes da ICM, que encontram na congregação um ambiente seguro e de reforço de suas identidades desacreditadas na sociedade.

Outro exemplo que demonstra a violação é que, rotineiramente, nos cultos da ICM ocorrem pedidos de oração por famílias de membros ou conhecidos que sofreram agressões ou foram mortos em crimes de ódio. Nesse sentido pode-se constatar que o critério normativo que está em jogo permite, inclusive, violação física por parte daqueles que se julgam defensores da norma. O critério da privação já se coloca quando a normatividade se estende ao sistema, ou seja, para as relações de poder que se estabelecem, em última instância, no estado.

Assim, a disputa pelo significado da norma se traduz, em última instância, no mecanismo de regulação do estado democrático de direito (Habermas 1997aHabermas, Jurgen. 1997a. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., 1997bHabermas, Jurgen. 1997b. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.), pela busca, nesse sentido, de ações regulatórias positivas que garantam o reconhecimento.

Além disso, as relações de exclusão se materializam no medo de expulsão e isolamento por parte de familiares, amigos e outros membros da sociedade devido à quebra da normatividade vigente. Quer dizer, na vivência observada na ICM é possível perceber as formas de desrespeito apresentadas por Honneth (2003Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34.), e creditar a elas, pelo menos em parte, os motivos pelos quais ocorre a luta por reconhecimento.

Pode-se, ademais, dizer que ao se contextualizar o conceito de excluído ao campo religioso, a própria ideia de uma proibição de participação no poder eclesiástico em uma congregação tradicional pode gerar a tensão que leva à desvinculação desta congregação e à criação de uma nova, mais inclusiva.

Nesse sentido, pode-se falar de um processo de transformação da comunidade religiosa com motivos próprios e processos de legitimação e justificação que transpuseram a dominação tradicional. Esse processo, entendido de forma ampla, pode esclarecer a mudança social, no contexto da teoria de Honneth (2003Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34.), pois as relações de reconhecimento possuem pretensões normativas, levando à novas estruturas dentro do processo de desenvolvimento histórico moral (Rosenfield e Saavedra 2013Rosenfield, Cinara L. e Giovani A. Saavedra. 2013. Reconhecimento, teoria crítica e sociedade: sobre desenvolvimento da obra de Axel Honneth e os desafios da sua aplicação no Brasil. Sociologias 15 (33): 14-54. https://doi.org/10.1590/S1517-45222013000200002.
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, 16-17).

Quando se retorna às declarações já apresentadas anteriormente, também pode-se perceber a busca de ampliação de direitos, de modo que podemos ver a disputa por igualdade no caráter binário de gênero. Ao fazer isso, a pastora Alexya busca igualar as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

Esse discurso visa ampliar os critérios de igualdade, saindo da dignidade dada aos dois gêneros pressupostos naturais e corretos pela sociedade (gênero masculino e feminino, homem e mulher) para expandir o critério de dignidade a todas identidades de gênero.

Aqui se evidencia o diálogo com a luta por ampliação do reconhecimento da dignidade da pessoa trans na sociedade mais ampla; existindo nos mundos objetivo e social elementos que favoreçam a luta por reconhecimento.

É possível retornar também à visão de comunidade apresentada pela denominação, que busca não somente criar um meio de reconhecimento na esfera da solidariedade assim como do amor, ao postular a comunidade como a família do indivíduo.

Com isso, é possível concluir que a denominação trava uma luta por reconhecimento de seu modo de vida, em face da exclusão ou melhor da inclusão perversa da população LGBTQIA+ na sociedade. As formas de violação apresentadas por Honneth (2003Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34.) são encontradas nas histórias e discursos da denominação, sendo que a luta então busca ir contra essas formas de exclusão a partir de um discurso que baseia esse combate em questionamentos sobre os critérios de validade no mundo objetivo, social e subjetivo, como apresentado por Habermas, levando às práticas específicas.

Práticas da ICM

Entre as práticas da ICM podem ser mencionadas tanto movimentos em favorecimento de direitos, como pelo fortalecimento da identidade LGBTQIA+. Isso se dá através de diversas iniciativas e merece uma atenção considerando o papel que possui na construção e fortalecimento da identidade do grupo.

Primeiramente pode-se destacar a presença da ICM-SP na marcha do Orgulho LGBT na cidade de São Paulo. Os membros anualmente comparecem à passeata, marcando para se encontrarem. Vestem camisetas organizadas pela igreja, normalmente com a mensagem pregada pela ICM, de que os seres humanos são igualmente amados e celebrados por Deus. Também levam faixas e bandeiras da denominação, marcando presença não somente como indivíduos, mas como instituição.

Na marcha ambas as posturas são relevantes. Por um lado, temos a denominação se posicionando em favorecimento de uma igualdade de direitos e celebração da diferença, na busca por reconhecimento na esfera do direito, e marcando um papel teológico que se distingue da relação tradicional entre religião e sexualidade.

Por outro lado, a participação também possui caráter individual, onde os membros dançam, cantam, se divertem, ou seja, vivem suas identidades, fortalecendo o reconhecimento na esfera da solidariedade. Isso reforça suas identidades não somente dentro do grupo, mas na sociedade mais ampla, ganhando ainda mais magnitude quando se considera o fato de que a Marcha do Orgulho LGBT de São Paulo é uma das maiores do mundo.

A participação se constitui em ato político de reafirmação da identidade e luta por direitos. Ao fazer isso, a ICM se coloca no interior do movimento mais amplo de luta, como parte integrante de um movimento social maior do que a instituição. Ou seja, as disputas discursivas no mundo objetivo, social e subjetivo já demonstradas, se tornam lutas nas esferas do direito e solidariedade, com a busca da igualdade jurídica e da valorização e reconhecimento dos modos de vida.

Juntamente com isso, pode ser citada a participação da ICM-SP na organização da Semana da Parada LGBT de Piracicaba com palestra na Câmara de Vereadores no ano de 2009. A Participação da ICM na Parada LGBT de Campinas e na 2ª Feira da Diversidade Cultural no Parque Central em Santo André, em 2007.

Outro evento importante é o I Seminário de Estudos em Teologia Inclusiva que aconteceu em São Paulo, dias 21 e 22 de abril de 2007, com a participação dos grupos nascentes da ICM no Brasil e presença das lideranças de outras comunidades. Esse evento possui relevância no sentido de fortalecer as identidades LGBTQIA+ e reconciliá-las ao cristianismo, retirando o estigma da homossexualidade e das identidades de gênero através de uma determinada leitura bíblica.

Com isso, se reforça a ideia de que a homossexualidade não deve ser vista como um pecado, mas sim como algo a ser celebrado e vivido como uma dádiva divina. A teologia inclusiva, então, se torna o eixo que permite no âmbito do grupo um diálogo com a teologia tradicional, retirando do mundo da vida os conceitos de disputa no mundo social, e os utilizando para a luta por reconhecimento na esfera da solidariedade.

Nesse sentido, não somente a identidade é valorizada, mas também é possível construir um meio de diálogo entre teologias e experiências distintas, criando uma forma de acesso do indivíduo ao cristianismo institucionalizado. Em outras palavras, o acesso ao sagrado se torna um ponto em comum onde é possível o diálogo entre o cristianismo tradicional e o inclusivo. Cabe mencionar também o III Seminário de Estudos em Teologia Inclusiva realizado no Palácio da Justiça do Estado de São Paulo e organizado em parceria pela ICM e Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo. Também é possível apontar as celebrações coletivas de casamento homoafetivo em 2007, 2009 e 2011 com a presença de autoridades públicas. Isso demonstra a influência e o reconhecimento das ações da ICM na esfera pública.

Outras participações em eventos importantes na esfera pública são as Conferências LGBT municipal, estadual e a nacional de 2008, sendo que o Reverendo Cristiano, líder da ICM-SP, foi convidado pelo então secretário especial de Direitos Humanos do governo federal, Paulo de Tarso Vannuchi, pela “relevância da atuação de Vossa Reverência para a promoção e defesa dos direitos humanos”.11 11 Vanuchi, Paulo de Tarso. 2008. Oficio-circular nº 17/2008. Convite Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. 21 de maio de 2008. Essas conferências são importantes pois discutem as demandas do movimento LGBTQIA+ e pensam respostas à essas demandas na esfera do Estado Democrático de Direito.

Nessas conferências participam líderes de movimentos, políticos, empresários e outros membros da sociedade e, com isso, é possível não somente buscar a luta no espaço público, mas colocar novas ideias e criar um diálogo com a sociedade mais ampla. Como na participação da ICM como organizadora da II Conferência Municipal LGBT em São Paulo, também realizando a sua abertura; e mesmo a entrega oficial da “Reinvindicações da Sociedade Civil” na II Conferência Estadual LGBT ao governador Geraldo Alkmin no Palácio dos Bandeirantes.

Ainda nesses movimentos de cunho político temos a posse do Conselho de Atenção a Diversidade Sexual do Município de São Paulo em 2010, tendo a primeira turma do Conselho com dois representantes da ICM eleitos por voto direto da comunidade LGBT, o Diácono Dário Neto e o Reverendo Cristiano Valério. Também se pode citar a participação da ICM no lançamento da frente parlamentar em defesa da comunidade GLBT de São Paulo na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), em junho de 2007.

Seja pela história de construção da teologia inclusiva, que acompanha o movimento por luta de diretos LGBTQIA+, seja pela construção da própria ICM, com lideranças ligadas ao mesmo movimento, é impossível desvencilhar o movimento LGBTQIA+ e a luta por direitos humanos da denominação.12 12 A denominação e suas lideranças estão presentes, protagonizando, em diversos momentos de reivindicação por igualdade de direitos para a população LGBT, como exemplos é possível citar: a marcha nacional pelos direitos LGBT de Washington de 1987; a primeira cerimônia pública de casamento nos Estados Unidos em 1968; o primeiro casamento de pessoas LGBT destinado a ser legalmente aceito em 1969; a primeira benção em massa para casais homossexuais no Rio de Janeiro em 1994; o primeiro casamento legal de pessoas do mesmo sexo em Toronto, em 2001; o primeiro casamento religioso LGBT na África do Sul etc. Os casamentos coletivos em São Paulo em 2007, 2009 e 2011, ministrados por uma liderança da ICM-SP, após luta liderada pela denominação e com presença de autoridades políticas.

Esses eventos representam a união, como já indicado, entre a teologia e os direitos humanos, a relação entre militância por expansão de direitos e religiosidade. Criando um diálogo religioso e político, visto que tais eventos foram noticiados pela imprensa, chegando a atrair inclusive representantes governamentais.

A construção da igualdade se dá, portanto, pela desconstrução dos critérios de desigualdade, disputando as normas que separam o feminino do masculino, o cisgênero do transgênero, sempre tomando do mundo social a ideia de que o projeto de Deus é de igualdade entre todas as pessoas, motivando a luta por reconhecimento social.

Conclusão

Aqui foi proposto compreender o discurso da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo e sua transformação em ações no espaço público. Esse processo se apresenta como o descrito por Habermas (1984Habermas, Jurgen. 1984. The theory of communicative action. Reason and the rationalizalion of society. vol 1. Boston: Beacon Press., 1989Habermas, Jurgen. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., 2002Habermas, Jurgen. 2002. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola.) e continuado por Honneth (1949Honneth, Axel. 1949. The Critique of Power: reflective stages in a critical social theory. Bakersfield: Massachusetts: MIT Pressed., 2003Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34., 2015Honneth, Axel. 2015. O direito da liberdade. Martins Fontes: São Paulo.), no qual os direitos humanos, ou seja, a valorização do indivíduo por si só, se tornam a base para todos os outros direitos através da ação comunicativa e da luta por reconhecimento.

Na ação comunicativa descrita por Habermas (1984Habermas, Jurgen. 1984. The theory of communicative action. Reason and the rationalizalion of society. vol 1. Boston: Beacon Press., 1989Habermas, Jurgen. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.), no mundo objetivo, a ICM questiona a objetividade da existência da condição binária da identidade de gênero, compreendendo-se a condição de transexualidade, não binários e gêneros fluidos como naturais, ou seja, como biologicamente orientados. Da mesma forma, a heteronormatividade como um dado biológico é questionada, sendo enfatizada a pluralidade de orientações sexuais.

Ainda, no mundo objetivo, utiliza-se das ciências humanas e sociais para a demonstração científica do caráter social dos papeis de gênero, criando assim um embasamento para a não normatividade quanto a papeis dados como naturais e, que com o apoio das ciências humanas, se demonstraram que não são.

Já no mundo social, extrai-se dos textos bíblicos interpretações que favoreçam o apoio à diversidade, como a utilização dos critérios de igualdade e justiça, já aceitos pela sociedade e, agora, aplicados ao público LGBTQIA+, com isso, as normas do mundo social são expandidas para abarcar também essa parte da população.

Essa luta discursiva, não cria novos conceitos, mas reutiliza os já existentes, assim, o que está sendo colocado à prova no mundo social não é a existência da norma, pois o grupo a aceita, o que está sendo colocado à prova é a limitação dada à norma ao aplicá-la somente a uma parte da sociedade. Nesse caso, a ICM questiona essa limitação, pedindo pela sua real e ampla efetivação.

Por último, no mundo subjetivo, se advoga a sinceridade de se ser quem é, a “dor e a delícia de ser” ou mesmo o “direito sagrado de ser”, como declarado diversas vezes por Cristiano Valério, reverendo da ICM-SP Aqui, se questiona, então, a não aceitação por parte da sociedade de um modo de vida sincero. Pede-se a aceitação desse modo de vida, que busca ser vivido sinceramente, e que validaria, junto aos meios de validação dos outros mundos, o modo de vida dos membros da denominação.

Esse discurso é realizado na esfera pública, como apontado na Teoria do Reconhecimento Social de Honneth (2003Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34.), na participação de eventos de caráter político e teológico, como a Marcha do Orgulho LGBT ou seminários teológicos. Buscando validação nas esferas em que seu reconhecimento social se viu negado.

Na esfera do amor, a construção de novas famílias a partir da defesa do casamento religioso entre pessoas do mesmo sexo, e a realização de casamentos públicos, se mostram uma forma de reafirmação do reconhecimento social.

Ainda, esse mesmo ato aponta para o critério de solidariedade social, uma vez que reconhece como legítima as identidades ali estabelecidas como dignas de se unirem frente à divindade, fortificando a estima da identidade LGBT. O mesmo ocorre nos seminários de teológicos, uma vez que se estabelece teologicamente a dignidade de pessoas LGBTQIA+.

Já a participação em eventos políticos, como a Marcha do Orgulho LGBT ou o lançamento da Frente Parlamentar LGBT apresenta a luta por reconhecimento social no âmbito político e jurídico, buscando a inserção da população LGBT no grupo de direitos já concedidos a heterossexuais.

Fica então evidente o processo de ação comunicativa descrito por Habermas (1984Habermas, Jurgen. 1984. The theory of communicative action. Reason and the rationalizalion of society. vol 1. Boston: Beacon Press., 1989Habermas, Jurgen. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., 2002Habermas, Jurgen. 2002. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola.) e continuado por Honneth (2003Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34., 2015Honneth, Axel. 2015. O direito da liberdade. Martins Fontes: São Paulo.) na luta por reconhecimento, essas baseadas na valorização do indivíduo e sua igualdade em frente a todos os outros, se expressa nas ações da denominação estudadas.

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  • 2
    Igrejas inclusivas são igrejas que oferecem acolhimento à comunidade LGBTQIA+, assim como possibilitam a sua ordenação; conciliando identidades cristãs e LGBTs (Maranhão 2011Maranhão Filho, Eduardo M. de A. 2011. “Jesus me ama no dark room e quando faço programa”: narrativas de um reverendo e três irmãos evangélicos acerca da flexibilização do discurso religioso sobre sexualidade na ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana). Polis e Psique 1: 166-194. https://doi.org/10.22456/2238-152X.31537.
    https://doi.org/https://doi.org/10.22456...
    ).
  • 3
    Ao se falar de heterocisnormatividade, se apresenta que a norma existente na sociedade leva à compulsão da heterossexualidade para a vivência da sexualidade, assim como da identidade cis, ou seja, da compatibilidade entre identidade de gênero e sexo biológico de nascimento; discriminando àqueles que não se adéquam a esse padrão, conforme Jesus (2012Jesus, Jaqueline G. de. 2012. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Goiânia: Ser-Tão.) e Simakawa (2015Simakawa, Viviane V. 2015. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia (Ufba), Salvador, BA, Brasil.).
  • 4
    A Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM) é uma Igreja Inclusiva fundada em Los Angeles, EUA, em 1968. A denominação se expandiu pelo mundo, formando a Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana (Fuicm), que em 2019 possuía mais de 300 igrejas em 22 países com, por volta de, 60 mil membros. Entre 2017 e 2019 foi realizada pesquisa de campo junto à unidade em São Paulo (ICM-SP), assim como pesquisa documental nos sites da Fuicm e nas unidades brasileiras, assim como reportagens de jornais sobre a denominação e seus membros. Os dados foram analisados através do programa Maxqda de forma quantitativa e qualitativa. Através de falas significativas, neste texto, se apresentam as conclusões sobre os dados obtidos frente à Teoria Crítica de Habermas e Honneth e sua aplicabilidade para análise de realidades contemporâneas.
  • 5
    Primeira pastora trans ordenada na América Latina e líder da ICM-SP. Alexya possui presença ativa nos debates públicos sobre questões LGBT, tendo sido candidata a deputada estadual pela cidade de São Paulo nas eleições de 2020. Carvalho, Jonas. 2017. Uma igreja que exclui não aprendeu com Jesus’, diz pastora trans. Catraca Livre, 04 abr. 2017. Acessado em 30 nov. 2021, https://catracalivre.com.br/cidadania/uma-igreja-que-exclui-nao-aprendeu-com-jesus-diz-pastora-trans.
  • 6
    Cis se refere a cisgênero, ou seja, uma pessoa que se identifica com o sexo com o qual nasceu (Jesus 2012Jesus, Jaqueline G. de. 2012. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Goiânia: Ser-Tão.). Nessa passagem, mostra-se que a luta por reconhecimento na Igreja da Comunidade Metropolitana abarca as questões de orientação sexual (igualdade entre heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais e assexuados), de gênero (igualdade entre cisgêneros, transgêneros, transexuais, travestis, crossdressers e não binários) de papeis de gênero (igualdade entre drag queens, drag kings e os que seguem os papeis de gênero heteronormativos) e de práticas sexuais.
  • 7
    Conselho Federal de Psicologia. 2016. A despatologização das transexualidades e travestilidades pelo olhar da Psicologia. Conselho Federal de Psicologia, 19 fev. 2016. Acessado em 18 maio 2021. https://site.cfp.org.br/video-aprofunda-debate-sobre-psicologia-e-a-despatologizacao-das-identidades-trans.
  • 8
    Bellini, Jomar. 2015. Promotor causa polêmica ao dizer que mulher nasce ‘baranga francesa’. G1, 30 out 2015. Acessado em 18 maio 2021 .http://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/noticia/2015/10/promotor-causa-polemica-ao-dizer-que-mulher-nasce-baranga-francesa.html.
  • 9
    Declercq, Marie. 2017. “Jesus Cristo foi o primeiro trans”, diz a 1ª pastora transgênera da América Latina. Vice, 26 jun. 2017. Acessado em 18 maio 2021. https://www.vice.com/pt_br/article/8xa943/jesus-cristo-foi-o-primeiro-trans-diz-a-1a-pastora-transgenera-da-america-latina.
  • 10
    Refere-se aqui a entrevistas dadas a portais de destaque e canais no Youtube assim como os listados a seguir: Carvalho, Jonas 2017. ‘Uma igreja que exclui não aprendeu com Jesus’, diz pastora trans. Catraca Livre, 4 maio 2020. Acessado em 18 maio 2021. https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/uma-igreja-que-exclui-nao-aprendeu-com-jesus-diz-pastora-trans. Site com estimativa de 7,97 milhões de acessos, segundo o site de similarweb.com que mensura tráfego digital, por exemplo: número de visitas e origens de tráfego. Acessado em 30 nov. 2021, Acessado em 18 maio 2021. https://www.similarweb.com. Bertho, Helena. 2017. Sou mulher transgênera, pastora e mãe de duas crianças. Universa UOL, 31 mar. 2017.https://estilo.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2017/03/31/sou-mulher-trans-pastora-e-mae-de-duas-criancas.amp.htm. Site com estimativa de 530,28 milhões de acessos, conforme site similarweb.com. Acessado em 30 nov. de 2021. https://www.similarweb.com. Põe na roda. 2017. Igreja de Jesus com gay, drag e trans. Põe na roda, 31 mar. 2017. Canal no Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=f6K9twnHImM. Vídeo com 608.956 visualizações em 30 nov. de 2021.
  • 11
    Vanuchi, Paulo de Tarso. 2008. Oficio-circular nº 17/2008. Convite Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. 21 de maio de 2008.
  • 12
    A denominação e suas lideranças estão presentes, protagonizando, em diversos momentos de reivindicação por igualdade de direitos para a população LGBT, como exemplos é possível citar: a marcha nacional pelos direitos LGBT de Washington de 1987; a primeira cerimônia pública de casamento nos Estados Unidos em 1968; o primeiro casamento de pessoas LGBT destinado a ser legalmente aceito em 1969; a primeira benção em massa para casais homossexuais no Rio de Janeiro em 1994; o primeiro casamento legal de pessoas do mesmo sexo em Toronto, em 2001; o primeiro casamento religioso LGBT na África do Sul etc. Os casamentos coletivos em São Paulo em 2007, 2009 e 2011, ministrados por uma liderança da ICM-SP, após luta liderada pela denominação e com presença de autoridades políticas.
  • 13
    Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do autor antes da publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2021
  • Aceito
    21 Nov 2021
  • Publicado
    22 Abr 2022
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