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“2018, a batalha final”: Lava Jato e Bolsonaro em uma campanha anticorrupção e antissistema

“2018, the final battle”: Lava Jato and Bolsonaro in an anti-corruption and anti-system campaign

“2018, la batalla final”: Lava Jato y Bolsonaro en una campaña anticorrupción y antisistema

Resumo:

O presente texto analisa como a campanha de Jair Bolsonaro na TV, no segundo turno da eleição presidencial de 2018, mobilizou a luta anticorrupção como estratégia de adesão eleitoral. Investigamos a hipótese de que o tema assume centralidade na campanha, impulsionado pelo impacto da Operação Lava Jato no sistema político e da sua estratégia de conquista da opinião pública. Para tanto, apresentamos, de um lado, as principais linhas de atuação da operação e, de outro, como suas narrativas foram retratadas no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) do candidato eleito. Na análise dos operadores da Lava Jato, constatamos que a eleição de 2018 é vista como o próximo passo para a efetivação do seu projeto de renovação e limpeza da política. Argumentamos que houve a coordenação estratégica na luta anticorrupção, na busca de uma convergência entre as accountabilities horizontal, societal e vertical. No tratamento dos dados do HGPE, identificamos quatro eixos discursivos e a predominância do eixo Anticorrupção/Antissistema, com aproximadamente 57,2% das menções. Nossa análise aponta que Bolsonaro aproveitou as marcas discursivas que se alinhavam fortemente à Lava Jato: antipetismo e antissistema, apresentando-se como o representante genuíno da luta anticorrupção.

Palavras-chave:
Campanha eleitoral; Corrupção; Accountability; Operação Lava Jato; Bolsonaro

Abstract:

This text analyzes how Jair Bolsonaro's TV campaign, in the second round of the 2018 presidential election, mobilized the fight against corruption as a strategy for electoral adhesion. We investigated the hypothesis that the theme is central to the campaign, driven by the impact of the Lava Jato (Carwash operation) on the political system and its strategy of winning over public opinion. To do so, we present, on the one hand, the main lines of the Operation, and on the other, how their narratives were portrayed in the electoral programs broadcast by Bolsonaro's campaign in the second round. In the analysis of Lava Jato operators, we found that the 2018 election is seen as the next step for the realization of its project for renewing and cleaning up the political system. We argue that there was strategic coordination in the fight against corruption, in the search for a convergence between horizontal, societal and vertical accountabilities. In the treatment of HGPE data, we identified four discursive axes and the predominance of the Anticorruption / Anti-system axis, with approximately 57.2% of the mentions. Our analysis shows that Bolsonaro took advantage of the discursive brands that strongly aligned with Lava Jato: antipetism, anti-system and the candidate's association with the fight anti-corruption, presenting himself as his genuine representative.

Keywords:
Election campaign; Corruption; Accountability; Carwash operation; Bolsonaro

Resumen:

Este texto analiza cómo la campaña televisiva de Jair Bolsonaro, en la segunda vuelta de las elecciones presidenciales de 2018, movilizó la lucha anticorrupción como estrategia para la adhesión electoral. Investigamos la hipótesis de que el tema ocupa un lugar central en la campaña, impulsado por el impacto de la operación Lava Jato en el sistema político y su estrategia de conquistar la opinión pública. Para hacerlo, presentamos, por un lado, las principales líneas de acción de la Operación, y por otro, cómo se retrataron sus narraciones en el Tiempo Libre de Propaganda Electoral – HGPE, del candidato elegido. En el análisis de los operadores de Lava Jato, descubrimos que las elecciones de 2018 son vistas como el siguiente paso para la realización de su proyecto de renovación y limpieza de la política. Argumentamos que hubo una coordinación estratégica en la lucha contra la corrupción, en la búsqueda de una convergencia entre las responsabilidades horizontales, sociales y verticales. En el tratamiento de los datos de HGPE, identificamos cuatro ejes discursivos y el predominio del eje Anticorrupción/Anti-sistema, con aproximadamente 57.2% de las menciones. Nuestro análisis muestra que Bolsonaro aprovechó las marcas discursivas que estaban fuertemente alineadas con Lava Jato: antipetismo y antisistema, presentándose como el representante genuino de la lucha contra la corrupción.

Palabras clave:
Campaña electoral; Corrupción; Accountability; Operación Lava Jato; Bolsonaro

Introdução

A corrupção é tema candente no debate político brasileiro, ganhando relevo especial nos períodos eleitorais. Os sucessivos escândalos que marcaram o contexto pós-redemocratização aprofundaram a percepção de que ela é um problema central a ser enfrentado, especialmente, pela expectativa criada naquele momento de que a abertura democrática traria melhores mecanismos de transparência e de accountability.

Apesar do fortalecimento das instituições de controle, os sucessivos escândalos que vieram à luz ao longo do período de redemocratização contribuíram para “um sentimento de que esse tipo de crime aumentou no Brasil, e é difícil avaliar os avanços no combate à corrupção desde 1988” (Avritzer 2016Avritzer, Leonardo. 2016. Impasses da democracia no Brasil. 3ᵃ ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., 83). Por outro lado, a divulgação midiática “aumentou a percepção da gravidade da corrupção no Brasil […] [produzindo], portanto, uma significativa mudança de opinião na sociedade brasileira sobre a corrupção” (Avritzer 2016Avritzer, Leonardo. 2016. Impasses da democracia no Brasil. 3ᵃ ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., 84).

A atuação da operação Lava Jato, em âmbito jurídico e comunicacional, nos últimos cinco anos, tem impactado fortemente a percepção da sociedade brasileira sobre o tema. De acordo com o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), do Ranking da Transparência Internacional, em 2019, o Brasil caiu para a 106ᵃ posição, entre 180 países.4 4 Transparência Internacional. 2019. Índice de Percepção de Corrupção. Resultado por país. Brasil: pior nota pelo segundo ano. Acessado em 26 fev. 2020, https://ipc.transparenciainternacional.org.br/. A queda vem ocorrendo ao longo desses cinco anos.

A repercussão na opinião pública do escândalo político-midiático revelado pela Lava Jato foi expressiva nas eleições 2018. O combate à corrupção foi central nas candidaturas aos diversos cargos. Conforme o diretor da Transparência internacional, “a renovação ocorreu pela escolha de candidatos com fortes discursos anticorrupção”5 5 Idem. . Outra evidência foi o levantamento realizado pela rede social Twitter, que apontou o tema como o mais comentado em publicações da plataforma durante o período eleitoral.6 6 Agrela, Lucas. O tema mais comentado nas eleições 2018 no Twitter? Corrupção. Exame, 29 de out. 2018. Acessado em 26 fev. 2020, https://exame.abril.com.br/tecnologia/o-tema-mais-comentado-nas-eleicoes-2018-no-twitter-corrupcao/.

Neste trabalho, argumentamos que a eleição presidencial de 2018 foi delineada por um processo de convergência entre accountability horizontal-societal-vertical, em que a luta anticorrupção assumiu centralidade. Para tanto, recompomos, de um lado, as ações da Lava Jato que produziram efeitos diretos sobre o sistema político, contribuindo assim para uma narrativa sobre a luta anticorrupção no Brasil, e analisamos, por outro lado, combinando as perspectivas quantitativa e qualitativa, como os discursos da campanha de Jair Bolsonaro veiculados no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE), no 2.° turno da eleição, mobilizaram essa narrativa produzida pela operação.

O artigo está estruturado em 5 seções: esta introdução, uma revisão teórica sobre os processos de accountability, uma discussão sobre a Lava Jato e o seu papel na produção da narrativa da luta anticorrupção no Brasil, a análise do HGPE, e, por fim, as conclusões.

Accountability horizontal, societal e vertical

A accountability ganhou destaque no debate acadêmico. Alçada a um valor central da democracia, teve fortes impactos institucionais, estimulando a criação de novos mecanismos e agências de controle e fiscalização, principalmente, pensando na articulação e na coordenação entre atores diferentemente posicionados no sistema político.

Podemos entender accountability como um efeito resultante da atuação de diversos instrumentos institucionais, em distintas fases da agenda pública, na promoção de controles internos e externos para a responsabilização das ações dos governos. Seu tipo clássico é obtido através do voto oriundo de eleições periódicas, livres e competitivas, também chamada de accountability vertical. Entretanto, esse seria “um instrumento rude de controle dos governos” (Przeworski 1999Przeworski, Adam, Susan Stokes e Bernard Manin, orgs. 1999. Democracy, accountability and representation. New York: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9781139175104.
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, 342), porque não há a possibilidade de os eleitores acompanharem as muitas decisões de um estado administrativo.

Nessa perspectiva, o voto pode ser tanto uma avaliação de um montante de ações, que despreza desvios eventuais, ou uma avaliação impactada pelos retratos dos escândalos de corrupção, desvalorizando avaliações sobre a qualidade das políticas e das respostas dos governos aos problemas coletivos. Outra dificuldade é própria da disputa política que estimula o uso de mecanismos institucionais de fiscalização como estratégia de competição política. Ou seja, a qualidade do sistema de controle também depende da qualidade dessa disputa7 7 Word Bank. 1999. The World Bank annual report 1999. Acessado em 13 dez. 2019, http://documents.worldbank.org/curated/pt/282291468321230375/The-World-Bank-annual-report-1999. (Pô e Abrúcio 2006Pó, Marcos Vinicius, e Fernando Luiz Abrúcio. 2006. Desenho e funcionamento dos mecanismos de controle e accountability das agências reguladoras brasileiras: semelhanças e diferenças. Revista de Administração Pública 40 (4): 679-698. https://doi.org/10.1590/s0034-76122006000400009.
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; Abrucio e Loureiro 2005Abrucio, Fernando Luiz, e Maria Rita Loureiro. 2005. Finanças públicas, democracia e accountability. In Economia do setor público no Brasil, organizado por Ciro Biderman e Paulo Roberto Arvate. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier. Kindle.; Loureiro, Teixeira, e Prado 2008Loureiro, Maria Rita, Marco Antônio Carvalho Teixeira e Otávio Prado. 2008. Construção de instituições democráticas no Brasil contemporâneo: transparência das contas públicas. Organizações & Sociedade 15 (47): 107-119. https://doi.org/10.1590/s1984-92302008000400006.
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; Miguel 2005Miguel, Luís Felipe. 2005. Impasses da accountability: dilemas e alternativas da representação política. Revista de Sociologia e Política (25): 25-38. https://doi.org/10.1590/s0104-44782005000200004.
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; Lederman, Loayaza, e Soares 2005Lederman, Daniel, Norman Loayza e Rodrigo Reis Soares. 2005. Accountability and corruption: political institutions matter. Economics & Politics 17 (1): 1-35. https://doi.org/10.1111/j.1468-0343.2005.00145.x.
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).

Ao longo das últimas décadas, organismos internacionais, comunidade acadêmica e grupos políticos vêm buscando aperfeiçoar o modelo de accountability, introduzindo novas e encadeadas formas de supervisionar os governos, chamada por Stark e Bruszt (1998)Stark, David, e Laszlo Bruszt. 1998. Enabling constraints: fontes institucionais de coerência nas políticas públicas no pós-socialismo. Revista Brasileira de Ciências Sociais 13 (36). https://doi.org/10.1590/s0102-69091998000100002.
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de extended accountability. O impacto da corrupção na qualidade dos serviços públicos, na garantia de uma competição partidária livre e justa e na legitimidade do sistema democrático foi também um tema que fomentou esse debate sobre o aprofundamento da atuação do sistema de accountability.

A ampliação do controle para além do momento eleitoral prescinde de uma interação entre distintos atores, instituições, momentos e forças. Já se fala, por exemplo, em um terceiro tipo, a societal: da atuação de grupos e de movimentos sociais, da divulgação da imprensa e dos debates públicos de opinião. Mainwaring (2003)Mainwaring, Scott. 2003. Introduction: democratic accountability in Latin America. In Democratic accountability in Latin America, organizado por Scott Mainwaring e Christopher Welna, 3-33. New York: Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/0199256373.003.0001.
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considera apenas a vertical e a horizontal, devido à ausência de marcos formais no tipo societal. Já Smulovitz e Peruzzotti (2003)Smulovitz, Catalina, e Enrique Peruzzotti. 2003. Societal and horizontal controls: two cases of a fruitful relationship. In Democratic accountability in Latin America, organizado por Scott Mainwaring e Christopher Welna, 309-322. New York: Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/0199256373.003.0010.
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a consideram fundamental, como estimuladora e impulsionadora da atuação das instituições.

O'Donnell (1998)O'Donnell, Guilhermo. 1998. Accountability horizontal e as novas poliarquias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política (44): 27-54. https://doi.org/10.1590/s0102-64451998000200003.
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destacou a deficiência na democracia brasileira, especialmente do que chamou de accountability horizontal, considerada fraca ou intermitente para o combate à corrupção e para a correção dos governos. Para o autor, a accountability horizontal satisfatória seria formada pela atuação coordenada de agências e de atores estatais independentes e atuantes,

[…] que têm o direito e o poder legal e que estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações, que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment contra ações ou omissões de outros agentes ou agências do Estado […]. (O'Donnell 1998O'Donnell, Guilhermo. 1998. Accountability horizontal e as novas poliarquias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política (44): 27-54. https://doi.org/10.1590/s0102-64451998000200003.
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, 40)

O'Donnell faz ainda uma lista de sugestões para o incremento da accountability, dentre as quais destacamos: uma oposição atuante e responsável que se direcione às agências de fiscalização; qualidade da informação e imprensa independente; qualidade das lideranças dispostas a enfrentar a corrupção sistêmica; profissionalização e autonomia econômica e organizativa das agências de fiscalização e ainda:

[…] seria de muita ajuda a existência de um Judiciário que fosse altamente profissionalizado, bem dotado de um orçamento que seja tão independente quanto possível do Executivo e do Congresso, e totalmente autônomo em suas decisões relativas a estes. Mas tal “autonomia” é arriscada: pode facilitar o controle do Judiciário por um partido político ou uma facção ou coalizão de interesses duvidosos, ou pode promover uma auto-definição privilegiada e arcaica da corporação judicial e de sua missão, sem qualquer accountability própria em relação a outros poderes do Estado e da sociedade. (O'Donnell 1998O'Donnell, Guilhermo. 1998. Accountability horizontal e as novas poliarquias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política (44): 27-54. https://doi.org/10.1590/s0102-64451998000200003.
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, 49)

A opinião pública ao se revoltar com os escândalos, mas sem a devida resposta das instituições, acaba por dar à mídia o papel de tribunal. Um sistema eficaz exigiria uma atuação coordenada de esferas públicas, enfatizando o papel do judiciário para o fechamento do ciclo de fiscalização e controle (O'Donnell 1998O'Donnell, Guilhermo. 1998. Accountability horizontal e as novas poliarquias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política (44): 27-54. https://doi.org/10.1590/s0102-64451998000200003.
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).

Mainwaring (2003)Mainwaring, Scott. 2003. Introduction: democratic accountability in Latin America. In Democratic accountability in Latin America, organizado por Scott Mainwaring e Christopher Welna, 3-33. New York: Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/0199256373.003.0001.
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ressalta que os resultados da atuação coordenada das agências de accountability horizontal pode não ser positiva e se distanciar do pretendido. Como os grupos e indivíduos envolvidos têm contraditórios incentivos e interesses nessa atividade, é importante observar as estratégias, as divisões e os conflitos. Além disso, pode haver a usurpação das funções pelo excesso de autonomia e de empoderamento das agências dentro da estrutura burocrática, o chamado unchecked checkers.

Para fins de análise, neste artigo, entendemos os processos de accountability como: vertical, expressa pelo voto; horizontal, expressa pela atuação das agências controle, poder judiciário e diversas instituições da burocracia; e a societal, que remete à opinião pública. Nesse sentido, argumentamos que a atuação da Lava Jato é foi um novo momento de coordenação das ações de fiscalização e de controle que proporcionou transformações na percepção da corrupção, que impactaram na eleição presidencial de 2018. Houve, portanto, uma convergência entre accountabilities contribuindo para a vitória de um candidato com um discurso anticorrupção e antissistema.

Na seção a seguir, dentro da perspectiva das accountabilities horizontal e societal, destacamos a atuação da operação Lava Jato como elemento que interfere no sistema político, se afastando do modelo liberal e passando a ancorar-se na opinião pública. Essa alteração de rota conduziu à produção de uma narrativa anticorrupção com duas marcas: justiça contra a corrupção e justiça “salvadora” da política.

Lava Jato e a disputa na opinião pública

A operação Lava Jato ganha expressão no cenário nacional logo após o que se convencionou chamar de “jornadas de junho de 2013” (Nobre 2013aNobre, Marcos. 2013a. Choque de democracia: razões da revolta. São Paulo: Editora Companhia das Letras., 2013bNobre, Marcos. 2013b. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Editora Companhia das Letras.; Avritzer 2016Avritzer, Leonardo. 2016. Impasses da democracia no Brasil. 3ᵃ ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) e, em março de 2014, tem início a sua primeira fase. Em outubro, do mesmo ano, é divulgado o depoimento de Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa e, no mesmo mês, a revista Veja8 8 Bonin, Robson. Dilma e Lula sabiam de tudo, diz Alberto Youssef à PF. Veja, 23 out. 2014. Acessado em 27 fev. 2020, https://veja.abril.com.br/brasil/dilma-e-lula-sabiam-de-tudo-diz-alberto-youssef-a-pf/. publica declarações de Youssef afirmando que o ex-presidente Lula da Silva e a então presidenta e candidata à reeleição Dilma Rousseff “sabiam de tudo”. Resultado de uma disputa acirrada, a reeleição da petista foi questionada pelo candidato do PSDB, que requereu uma auditoria nas urnas eletrônicas junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Em linhas gerais, o pleito de 2014 antecipa aspectos que ganharão centralidade na disputa de 2018: o tema da corrupção e a desconfiança nas instituições. Outro fator nascente no período avoluma-se e fecha a tríade: a ideia de uma justiça que se sobrepõe à política, sendo a primeira uma virtuosa salvadora da segunda, ou nos termos que usamos nesse artigo, a accountability horizontal se propondo a orientar a societal e a vertical sob a “missão redentora” do combate à corrupção.

A Carta do Rio de Janeiro, divulgada em 2017 pelos integrantes da Lava Jato, afirma a endemia da corrupção no sistema político brasileiro e faz o alerta ao loteamento de cargos nas chefias da estrutura do estado como forma de arrecadar propina. Dentre vários apelos, a carta sugere “que, nas eleições de 2018, os eleitores só votassem nos candidatos que têm o passado limpo e que estejam comprometidos com a agenda anticorrupção” (Kerche e Marona 2018Kerche, Fábio, e Marjorie Marona. 2018. O Ministério Público na operação Lava Jato: como eles chegaram até aqui? In Operação Lava Jato e a democracia brasileira, organizado por Fábio Kerche e João Fábio Ferres Júnior, 69-100. São Paulo: Contracorrente., 70). Vale ressaltar, que a menção ao pleito é acompanhada de uma série de alertas sobre o Congresso Nacional, que não aprovou o conjunto de medidas defendidas por Sérgio Moro e demais membros da Lava Jato, as quais aumentariam o poder dos integrantes do sistema de justiça. O documento sugere ainda que a população acompanhe a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o foro privilegiado e a colaboração premiada.

O protagonismo que o Ministério Público tem assumido na cena pública brasileira, relaciona-se diretamente com uma estratégia de negação e criminalização da política, acompanhada de um discurso de exaltação dos fatores virtuosos e supostamente neutros que integram a Justiça, um braço do poder estatal diante dos partidos políticos e da prestação de contas aos eleitores. (Kerche e Marona 2018Kerche, Fábio, e Marjorie Marona. 2018. O Ministério Público na operação Lava Jato: como eles chegaram até aqui? In Operação Lava Jato e a democracia brasileira, organizado por Fábio Kerche e João Fábio Ferres Júnior, 69-100. São Paulo: Contracorrente., 71)

É curioso como o caso brasileiro atualiza, sob o manto do combate à corrupção e com a participação do Ministério Público, um dilema clássico que envolve a justiça e a política. Para os procedimentalistas, tais como Habermas e Garapon, a justiça cumpriria um papel negativo de salvação, tomando o espaço da política e esvaziando os locais da clássica luta por representação. Haveria uma clericalização da burocracia, com cidadãos clientes de um estado providencial.

Distante do modelo liberal, o judiciário agora enfrenta a questão de ser um ator político central, rompendo o distanciamento que o caracterizava. É nessa ação “combativa” do juiz, sob os holofotes da mídia, que se vê tanto uma nova forma de perceber a relação entre judiciário e política quanto a inserção da relação do juiz com a opinião pública como um elemento legitimador. Esse entrelaçamento do judiciário com a política não ocorre em um plano similar ao judicial review, por vias institucionais diretas e estabelecidas pela Constituição, mas está imbricado na ascensão da carreira judicial e nos leva a outro ponto: o petit juge, o poder de julgar e sua relação com a mídia (Garapon 1979Garapon, Antoine. 1979. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan.). No caso em questão, a Lava Jato atua em uma via processual, que é a de processar e julgar, mas também de expor, de chegar à opinião pública em uma construção de narrativa tendo como cerne o combate à corrupção. A relação com a mídia está no centro do debate. A centralidade combativa do judiciário e do Ministério Público na democracia brasileira, sob o manto da operação, levou-os a atuar se sobrepondo ao sistema político.

Vale lembrar o célebre artigo de Sérgio Moro,9 9 Moro, Sérgio Fernando. Considerações Sobre a Operação “Mani Pulite”, Revista Conselho Da Justiça Federal, 2004, https://www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf, 56-62. publicado em 2004, fazendo referência à operação Mãos limpas no qual afirma como os vazamentos tiveram uma utilidade no caso italiano e emenda: “o constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva”. Anos depois, a assessora de imprensa da Lava Jato, Christianne Machiavelli, em entrevista ao site The Intercept Brasil,10 10 Filho, João. A Lava Jato usou o judiciário para fins políticos. The Intercept Brasil, 16 jun. 2019. Acessado em 29 fev. 2020, https://theintercept.com/2019/06/16/vaza-jato-corrupcao-sergio-moro-politica-dallagnol/?comments=1. falou sobre como a imprensa “comprou” sem a devida autocrítica as informações e as narrativas divulgadas pela operação.

A justiça salvadora da política

Se a afirmação do sistema de justiça como antagonista do sistema político passa pela disputa junto à opinião pública, é preciso ver as marcas discursivas de como essa narrativa foi construída. A primeira diz respeito ao antipetismo como sinônimo de luta anticorrupção. O ápice dessa construção esteve em evidência no episódio do power point em que na apresentação havia diversos itens (enriquecimento ilícito, petrolão + propinocracia, Mensalão etc.) – um destaque semântico era o que ligava Lula ao termo “maior beneficiado”. O episódio gerou o hoax de uma frase: “não tenho provas, mas tenho convicções”, destacando a posição em que um ânimo, algo do qual se está convicto, se coloca diante de um alvo específico. A Lava Jato colocava a “justiça como algo moral que se opõe a uma política imoral” e, nesse sentido, o Partido dos Trabalhadores (PT) era o alvo contumaz.

Não se pode dizer que não existam elementos como releases ou notas oficiais, mas a verdade é que o juiz Sérgio Moro sempre foi mais eloquente pelos atos do que pela prática. Nesse quesito, a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a liberação do áudio em que ele fala com a então presidenta Dilma Rousseff são os exemplos mais significativos dessa estratégia, que usa instrumentos processuais como a forma mais contundente de enviar uma mensagem.11 11 Albuquerque, Grazielle. Os dilemas de uma Justiça ancorada na opinião pública. El Pais, 19 set. 2016. Acessado em 25 fev. 2020, https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/19/opinion/1474317768_045612.html.

As mensagens que vieram à tona com a Vaza Jato fortaleceram a noção de que o PT era o alvo primeiro. Além disso, o projeto não mirava apenas o partido, a luta anticorrupção produzia também um discurso antissistema. Isso é destacado na segunda marca discursiva. É a accountability horizontal orientando a vertical. Há um diálogo que ilustra a questão: o procurador da República Deltan Dallagnol propõe a Sergio Moro a realização de um concurso para a criação de um monumento em homenagem à operação. A ideia, que foi refutada por Moro, era que a obra se tornaria um ponto turístico em Curitiba.

A minha primeira ideia é esta: Algo como dois pilares derrubados e um de pé, que deveriam sustentar uma base do país que está inclinada, derrubada. O pilar de pé simbolizando as instituições da justiça. Os dois derrubados simbolizando sistema político e sistema de justiça […].12 12 Sem autor. Dallagnol pediu apoio a concurso de monumento à Lava-Jato, mas Moro previu crítica à ‘soberba'. O Globo, 21 ago. 2019. Acessado em 27 fev. 2020, https://oglobo.globo.com/brasil/dallagnol-pediu-apoio-concurso-de-monumento-lava-jato-mas-moro-previu-critica-soberba-diz-jornal-23891949.

Antes mesmo dessas revelações, em um acampamento de apoio à Operação Lava Jato que ficava montado em frente ao prédio da Justiça Federal de Curitiba, assim como em diversas manifestações pelo país, era comum ver camisetas, bonecos, cartazes e uma série de apetrechos em que Moro aparecia com as roupas do super-homem, em oposição aos ex-presidentes Dilma e Lula os quais sempre eram representados com roupas de presidiários, atrás das grades.

Além de uma questão com foco em um partido, o herói era o juiz e os presidiários eram os políticos. Rompia-se ali a ideia de juiz imparcial. O liberalismo aparta-se enquanto ideal a ser perseguido. O judiciário coloca-se como uma instituição com poderes especiais sobre o sistema político. Nesse sentido, é coerente que o candidato que na eleição de 2018 tenha se colocado em antagonia ao sistema seja aquele que melhor mobilizou a narrativa anticorrupção produzida pela Lava Jato.

Campanha eleitoral 2018 e luta anticorrupção

A eleição presidencial de 2018 foi marcada por dois acontecimentos: o impeachment de Dilma Rousseff e os desdobramentos da Lava Jato, com destaque para a condenação, prisão e impedimento da candidatura de Lula (PT). Esses eventos têm estreita conexão, no entanto, os destacamos em separado porque cada um desempenha funções diferentes no aprofundamento da crise política e econômica que o Brasil experimentou desde 2015 (Lopes e Lopes 2019Lopes, Monalisa Soares, e Paulo Rodrigo Soares Lopes. 2019. Interfaces entre antipetismo e bolsonarismo: uma análise da narrativa eleitoral no segundo turno da eleição presidencial. In Atores políticos e dinâmicas eleitorais, organizado por Emanuel Freitas Silva, Francisco Horácio da Silva Frota e Maria Andrea da Luz Silva, 274-318. Fortaleza: Edmeta.).

As respostas pouco efetivas do governo Temer aos problemas econômicos de um lado, e as denúncias de seu envolvimento nos esquemas de corrupção investigados pela Lava Jato de outro, aprofundaram o desgaste que os atores e os partidos tradicionais do sistema político vinham enfrentando desde as jornadas de junho de 2013. No centro da insatisfação com o sistema político: a corrupção, entendida como “mal maior do País” que assola o orçamento, desviando verbas dos serviços públicos de saúde, educação, segurança, entre outros.

A avalanche promovida pela Lava Jato sobre os partidos tradicionais adensou o sentimento de desconfiança e de aversão à política, contribuindo para o desejo de uma liderança outsider “com discurso combativo e antipolítica” (Gonzales-Ocantos e Pavão 2018). O discurso anticorrupção e de defesa da Lava Jato perpassou a maior parte das 13 candidaturas do pleito ganhando destaque na campanha de Jair Bolsonaro (PSL), que se constituiu como o representante genuíno das insatisfações populares com o sistema. Desde 2014, Bolsonaro vinha percorrendo o país e atuando nas redes sociais com vistas à candidatura em 2018. Apesar de sua inserção na disputa como “azarão”, vindo de um partido pequeno, com apenas 8 segundos de televisão e poucos recursos do fundo partidário, aspectos que como veremos contribuíram para fortalecer sua imagem de antissistema, o candidato viu suas chances aumentarem com o impedimento da candidatura de Lula13 13 Datafolha. 39% votariam em Lula; sem petista, Bolsonaro lidera disputa presidencial. Datafolha, 19 ago. 2018. Acessado em 26 fev. 2020, http://datafolha.folha.uol.com.br/eleicoes/2018/08/1979559-39-votariam-em-lula-sem-petista-bolsonaro-lidera-disputa-presidencial.shtml. e se consolidarem após o atentado que sofreu em Juiz de Fora.

A campanha de Jair Bolsonaro vocalizou diversas insatisfações e mudanças postas pelo eleitorado, se constituindo em um poliedro que reuniu setores: econômicos (empresários, comerciantes, agentes do mercado financeiro, agronegócio); conservadores (líderes religiosos com suas bases; conservadores alinhados ao ideólogo Olavo de Carvalho; profissionais de segurança pública e das Forças Armadas); e antissistema (grupos articulados em torno da luta anticorrupção) O antipetismo foi o elemento que perpassou as percepções eleitorais desses variados setores.14 14 Gomes, Wilson. O Polígono. Cult, 24 abr. 2020. Acessado em 13 jun. 2020, https://tecnoblog.net/247956/referencia-site-abnt-artigos/.

Quando analisamos o HGPE de Bolsonaro, encontramos elementos semânticos que se relacionam com as demandas de seu diverso eleitorado. Metodologicamente combinamos as perspectivas quantitativa e qualitativa para analisar os conteúdos dos programas veiculados.15 15 A propaganda eleitoral do 2.° turno foi veiculada entre 12 e 26 de outubro, de segunda a sábado, no rádio e na TV, em dois horários por dia. Cada candidato teve direito a 5 minutos. Analisamos quantitativamente o total de produções e não de exibições dos programas, já que esses podem ser reprisados. Após a transcrição dos programas eleitorais, delimitamos categorias representativas do léxico bolsonarista, compondo quatros eixos: anticorrupção/antissistema, conservadorismo, economia, anti-esquerda. Com vistas a dar a dimensão do debate sobre a corrupção no HGPE, associamos as categorias aos eixos, a partir de uma análise do contexto do seu uso. Realizamos, também, um levantamento quantitativo da recorrência de cada categoria por eixo (gráfico 1); um comparativo da recorrência entre todas as categorias (gráfico 2); e produzimos uma nuvem de palavras que apresenta a dimensão das categorias de cada eixo (figura 1).

Gráfico 1
Recorrência de Categorias por Eixo Discursivo
Gráfico 2
Recorrência todas as Categorias no HGPE
Figura 1
Nuvem de palavras HGPE Bolsonaro

Depreende-se da análise dos dados que a campanha de Jair Bolsonaro teve a discussão sobre a corrupção como eixo central, mencionada em 10 dos 11 programas do candidato. O PT aparece em todos os 11 e sempre associado aos escândalos de corrupção e a práticas não republicanas na gestão pública. Na nuvem das palavras (imagem 3), visualizamos a tônica do discurso eleitoral, com a centralidade do antipetismo e a dimensão das várias faces do poliedro.

O quadro, por nós identificado no HGPE, também se expressou na campanha produzida para as redes sociais (Twitter e Facebook), onde Bolsonaro mais atuou. O candidato do PSL explorou bastante as acusações de corrupção contra o adversário e o PT, com 30 publicações no Twitter e 36 no Facebook. Enquanto nas publicações do petista, o tema da corrupção não aparece no Twitter e, no Facebook, aparece em apenas 11 postagens (Oliveira, Coimbra, e Santos 2019Oliveira, Luiz Ademir de, Mayra Regina Coimbra e Lucas de Almeida Santos. 2019. Estratégias eleitorais nas redes sociais: um estudo das campanhas dos candidatos à Presidência da República no segundo turno no Twitter. In Comunicação política, eleições 2018 e campanha permanente, organizado por Luiz Ademir de Oliveira, Carla Montuori Fernandes e Paulo Roberto Figueira Leal. Timburi: Editora Cia do eBook. Kindle.; Coimbra, Campos, e Quadros 2019Coimbra, Mayra Regina, Mariane Motta de Campos e Ana Resende Quadros. 2019. A disputa eleitoral nas redes sociais: uma análise das estratégias dos candidatos à presidência da república em 2018 no Facebook e no Twitter. In Comunicação política, eleições 2018 e campanha permanente, organizado por Luiz Ademir de Oliveira, Carla Montuori Fernandes e Paulo Roberto Figueira Leal. Timburi: Editora Cia do eBook. Kindle.).

Observamos que o tema da corrupção foi pouco tematizado pelo HGPE de Fernando Haddad, dois programas do total de 14, e apenas em decorrência de denúncia publicada na Folha de S.Paulo16 16 Mello, Patrícia Campos. Empresários bancam campanha contra o PT pelo “WhatsApp”. Folha de S.Paulo, 18 out. 2018. Acessado em 14 jun. 2020, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/empresarios-bancam-campanha-contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml. sobre a contratação de disparos em massa de mensagens por empresários como forma de contribuir para a candidatura de Bolsonaro. A matéria também incidiu na campanha de Bolsonaro contribuindo para a radicalização do discurso anticorrupção. O programa de dois dias após a denúncia é dedicado à discussão da corrupção, como veremos a seguir.

A análise qualitativa identificou os enquadramentos interpretativos17 17 Porto, Mauro P. 2002. Enquadramentos da Mídia e Política. Trabalho apresentado ao 26.° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – Anpocs (Sessão Estratégias de Comunicação e Política: Teoria e Pesquisa do GT Mídia e Política: Opinião Pública e Eleições), Caxambu, MG, Brasil, 22 a 26 de outubro de 2002. Acessado em 13 jun. 2019, http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/26-encontro-anual-da-anpocs/gt-23/gt09-13/4400-mporto-enquadramentos/file. sobre o tema da corrupção mobilizados nos programas eleitorais do 2.° turno do candidato vitorioso. Detalharemos os três enquadramentos identificados, nas próximas sessões: 1) Antipetismo e Luta Anticorrupção; 2) Luta Anticorrupção e discurso antissistema; e 3) Bolsonaro como o candidato da Luta Anticorrupção.

Antipetismo e luta anticorrupção

Antipetismo e luta anticorrupção são apresentados na campanha de Bolsonaro como duas faces da mesma moeda. O PT é descrito como o representante mor da corrupção na política brasileira. O HGPE arrola o Mensalão e o Petrolão como os maiores escândalos da história do país, os quais redundaram na prisão de inúmeras lideranças petistas, entre elas, o ex-presidente Lula.

Locutor off: O PT ficou 13 anos no poder. Durante esse período, dezenas de escândalos e casos de corrupção estiveram presentes no primeiro escalão do governo. As denúncias comprovadas de corrupção nos anos do PT somam inacreditáveis R$ 47 bilhões. Entre os diversos escândalos, dois são simbólicos. O Mensalão, esquema criado por Lula e José Dirceu para comprar apoio de deputados e senadores com dinheiro público. E o Petrolão, megaesquema montado pelo PT na Petrobrás, que desviou mais de R$ 42 bilhões e passou a ser considerado o maior escândalo de corrupção da história do mundo.18 18 Locução do HGPE (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral) do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 20 de outubro de 2018.

O HGPE mobiliza o sentimento partidário de rejeição ao PT recuperando a tese desenvolvida pela Lava Jato. A campanha busca informar em um tom didático para o eleitor que o partido instaurou um modelo de barganha política. A apresentadora do programa diversas vezes afirma que os petistas “fizeram de Brasília um balcão de negócios, muitos deles já estão presos” e “estabeleceram o toma lá, dá cá, como regra”.

A corrupção petista é comprovada através de depoimentos dados à Lava Jato por Antonio Palocci e Mônica Moura. A partir destes depoimentos, e convergindo com o discurso lavajatista, sugerem ao eleitor a noção de que a corrupção nos governos petistas é sistêmica, tendo como principal objetivo drenar recursos para as campanhas eleitorais do PT. Nesse quesito, destaca-se ainda o uso que a campanha fez de uma fala de Cid Gomes (PDT). Em um evento que deveria ser de apoio ao candidato Fernando Haddad, o senador pedetista discutiu com militantes petistas e afirmou que o PT merecia perder a eleição: “vão perder feio, porque fizeram muita besteira, porque aparelharam as repartições públicas, porque acharam que eram donos de um país. O Brasil não tem dono!”19 19 Locução do HGPE do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 16 out. 2018.

Outro ponto de convergência entre o discurso antipetista e a anticorrupção apresentado se refere ao argumento de que o PT é contra o sistema de justiça. Em diversos momentos são destacadas falas de petistas contra o Ministério Público e o STF. Há afirmações explícitas de que o PT tem interesse de “enterrar a Lava Jato”. Um endosso importante desse argumento foi o depoimento de Eliana Calmon, ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que declara apoio a Bolsonaro:

Analisando os programas políticos, fiquei horrorizada com o programa apresentado pelo candidato Haddad, principalmente no que diz respeito à reforma que ele pretende fazer no Poder Judiciário. Quando eu conversei com o candidato Jair Bolsonaro, eu disse das minhas bandeiras, umas das bandeiras seria o combate à corrupção.20 20 Depoimento veiculado no HGPE (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral) do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 24 out. 2018.

O programa de 18 de outubro abre com a uma imagem de José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil do governo Lula, apresentando-o pelas seguintes credenciais “filiado ao PT e condenado por corrupção, tanto no Mensalão quanto na Lava Jato”. Na sequência, o locutor off afirma que “o autoritarismo do PT fica mais evidente quando Zé Dirceu quer tirar o poder do Ministério Público e enfraquecer a Lava Jato, a maior operação anticorrupção da história do mundo moderno”.21 21 Locução do HGPE do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 18 out. 2018. No programa do dia 20 de outubro, o argumento é retomado pelo locutor off: “Tantos escândalos e o PT não aprendeu nada. Ao invés de parar com a roubalheira, eles preferem criticar quem está do lado certo”. Em seguida, apresentam vídeos com as falas de Gleisi Hoffman, Lula e José Dirceu questionando a Lava Jato:

Gleisi Hoffman: A perseguição que é feita hoje pela Operação Lava Jato […] A perseguição a Lula, a perseguição ao PT […]

Lula: Eu já abri processo contra o delegado, já abri processo contra o Moro, estou abrindo agora contra o Dallagnol e vou abrir contra todos.

José Dirceu: A Lava Jato se transformou em um dos maiores erros do país. Tem que tirar o poder de investigação do Ministério Público.22 22 Locução do HGPE do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 20 out. 2018.

A associação antipetismo e anticorrupção percorre todos os programas eleitorais do segundo turno. Nesse enquadramento interpretativo há dois pontos altos: 1) uma afirmação feita pelo locutor off no último programa que diz: “O PT desafia o judiciário. Eles querem soltar o presidiário [Lula] e não sair mais do poder. Agora é o Brasil contra a corrupção. Agora é o Brasil contra o PT”;23 23 Locução do HGPE do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 26 out. 2018. e 2) a imagem (figura 2) que traz o símbolo do PT inscrito na palavra corrupto.

Figura 2
Associação PT e corrupção

Luta anticorrupção e discurso antissistema

Gonzales-Ocantos e Pavão24 24 Gonzales-Ocantos, Ezequiel, e Nara Pavão. 2018. A luta contra a corrupção e as eleições no Brasil. El País, 24 out. 2018. Acessado em 26 fev. 2020, https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/14/opinion/1539530209_590958.html. argumentam como a opinião e o comportamento político dos brasileiros foi afetado pela luta anticorrupção: “dados que coletamos há mais de um ano já indicavam grande aversão à política tradicional e uma afinidade de grande parte dos brasileiros a discursos populistas e antissistema”, em outro trecho afirmam que

achados sugerem que os eleitores tenham assumido atitudes mais duras em relação à política. A cruzada anticorrupção pode ter desencadeado uma avalanche de eleitores furiosos dispostos a punir a classe política preferindo candidatos com discurso combativo em relação a ela.

Essa perspectiva antissistêmica é outro enquadramento interpretativo que perpassa o discurso da campanha de Jair Bolsonaro no HGPE. Todos os programas se iniciam com a chamada: “Começa agora o programa do presidente livre e independente”.

No primeiro programa, no qual o candidato é apresentado ao eleitorado, a locutora informa: “Bolsonaro é honesto, raridade hoje em dia na política”. Em outro momento, é o locutor off quem destaca a diferença entre o candidato e o restante da classe política: “No Congresso Nacional, Bolsonaro tem orgulho de dizer que nunca fez conchavo”.25 25 Locução do HGPE (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral) do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 12 out. 2018.

Quando o HGPE apresenta “os problemas éticos, morais e econômicos” do Brasil, a apresentadora afirma: “Só elegendo um presidente forte, independente, que não tem compromisso com a indicação política e não tem medo de enfrentar o sistema, teremos a esperança de virar essa triste página de nossa história”. Em outro trecho, afirma: “Bolsonaro não tem compromisso com partidos políticos e vai montar um governo sério, trabalhar com técnicos”. Há, portanto, um discurso enfático de criminalização da política, dos políticos/as e partidos, e uma convocação à renovação através da eleição de Bolsonaro e de seus aliados. Cabe destacar que esse discurso antissistema apresentado pela campanha mobiliza um léxico e um conjunto de argumentos que compõem a narrativa anticorrupção promovida pela operação Lava Jato, como vimos anteriormente.

O ápice do discurso antissistema é o depoimento do próprio Bolsonaro:

Há quatro anos, eu decidi disputar a Presidência da República. Em um primeiro momento, eu confesso, era difícil até para mim aquela situação. Como vencer um sistema? Como vencer uma máquina tão aferrada no terreno como é essa máquina que existe em Brasília? Políticos poderosos? Sabia que não teria um grande ou médio partido ao meu lado, não teria tempo de televisão, não teria fundo partidário, não teria nada.26 26 Locução do HGPE (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral) do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 26 out. 2018.

Houve um intenso debate, entre os eleitores da esquerda, sobre como um político profissional há 30 anos conseguiu construir uma representação de si como outsider. A própria campanha de Haddad (PT) buscou associar Bolsonaro a práticas da velha política, como o fato de ter colocado os filhos para concorrer a mandatos e ter recebido auxílio-moradia mesmo com apartamento próprio em Brasília. No entanto, considerando os sentimentos antissistema que estavam mobilizando os eleitores, entendemos que houve a produção de uma narrativa coerente pela campanha de Bolsonaro. O fato de não ter sido implicado nos escândalos de corrupção é mobilizado para evidenciar o seu não comprometimento, possibilitando assim que o candidato prometa, caso eleito, instaurar os anseios do eleitorado como regra do campo político. Em outras palavras, Bolsonaro foi compreendido como o candidato antissistema, porque se constituiu no representante, dentro do sistema, dos anseios daqueles que vêm evidenciando um descompasso entre a classe política e a sociedade.

Bolsonaro como candidato da luta anticorrupção

O terceiro enquadramento interpretativo que destacamos é o que propõe a vinculação de Bolsonaro à luta anticorrupção, especialmente, às ações que foram promovidas pela operação Lava Jato.

O programa de 20 de outubro é exemplar. De um lado, é o que mais explora a associação PT-Corrupção, e, de outro, é o que traz o explícito credenciamento de Bolsonaro como o candidato anticorrupção. Em seu início, o HGPE traz um apanhado dos escândalos de corrupção envolvendo o PT e suas lideranças e, na sequência, a apresentadora afirma: “O povo brasileiro está cansado deste ciclo de desonestidade que dura 30 anos. Com Bolsonaro vai ser diferente. A verdade e o respeito ao dinheiro público vão ser prioridades absolutas”.27 27 Locução do HGPE (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral) do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 20 out. 2018.

Em seguida, inicia-se o processo de vinculação direta do Bolsonaro à luta anticorrupção. A apresentadora afirma que “foi o único […] que assumiu o compromisso de colocar em prática as dez medidas de combate à corrupção”. Com participação de Onyx Lorenzoni, relator das medidas, e do próprio Bolsonaro reafirmando seu compromisso, o programa traz ainda a informação que associa o candidato aos anseios produzidos com a atuação da Lava Jato:

Na Câmara dos Deputados, Bolsonaro votou a favor da Lei da Ficha Limpa, que impede que corruptos concorram a cargos públicos. Bolsonaro também apoia o trabalho do juiz Sergio Moro e a continuidade da Lava Jato, a maior operação de combate à corrupção da história do Brasil.

No último programa, Bolsonaro destaca a sua associação com o combate à corrupção: “Eu sou o contrário do que eles são. Eu sou uma ameaça aos corruptos”.28 28 Locução do HGPE do então candidato Jair Messias Bolsonaro veiculado em 26 out. 2018.

Conclusão

Para os operadores da Lava Jato, o processo eleitoral representaria a possibilidade de redenção da política pelo sistema de justiça. Duas questões se expressam: a materialização da conversão da opinião pública e do eleitorado ao projeto de renovação do sistema político e a possibilidade de dar continuidade ao avanço e ao aprofundamento da luta anticorrupção, sintetizadoras de uma visão redentora para o país. Esses elementos ganham destaque nesta fala de Dallagnol:

[…] o ano de 2018 é a batalha final da Lava Jato. A operação não vai ser julgada por quem ela prendeu ou condenou. Será julgada pela capacidade de mobilizar a sociedade e catalisar esforços para que reformas contra a corrupção sejam feitas e, para que assim possamos alcançar um país mais justo.29 29 Estadão Conteúdo. 2017. Dallagnol: 2018 será ‘batalha final' da Operação Lava Jato. Veja, 27 nov. 2017. Acessado em 14 jun. 2020, https://veja.abril.com.br/politica/dallagnol-2018-sera-batalha-final-da-operacao-lava-jato/.

Ao longo do artigo, analisamos como o conteúdo produzido pela campanha de Bolsonaro, no 2.° turno, incorporou a narrativa lavajatista. O petismo como sinônimo de corrupção e sistema foi o enquadramento interpretativo mais mobilizado, demonstrando a transversalidade argumentada por Gomes (2020) na composição do poliedro eleitoral. Ao observarmos as expressões com maior recorrência e seus contextos de uso no HGPE, encontramos o discurso anticorrupção como par do discurso antissistema, tendo como destaque categorias antipetistas: PT/Petismo, Corrupção/Corrupto, Escândalo/Mensalão/Petrolão.

Portanto, a campanha de Bolsonaro aproveitou as duas marcas discursivas mais significativas da narrativa promovida pela Lava Jato: antipetismo e antissistema, o que permitiu apresentá-lo como o representante genuíno da luta anticorrupção. Argumentamos, por fim, que as ações e a repercussão da Lava Jato na opinião pública operaram uma convergência das accountabilities horizontal-societal-vertical que foram mobilizadas pela campanha de Bolsonaro em 2018.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Fev 2020
  • Aceito
    09 Jun 2020
  • Publicado
    23 Dez 2020
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