Resumo:
Este texto tem por objetivo fazer uma apresentação do dossiê “Coletivos nas ações coletivas contemporâneas: emergência, contexto, definições e práticas”. A partir da contextualização da emergência dos coletivos como forma de organização e ação coletiva contemporânea, o dossiê reúne trabalhos que contribuem com a análise da diversidade desses coletivos contemporâneos e ilustram a expansão e solidificação dessa agenda de pesquisa. Os artigos selecionados, provenientes do edital do dossiê, foram agrupados em três blocos com subtemas do universo dos coletivos. O primeiro, sobre Coletivos e ação coletiva, contém três artigos; o segundo, Coletivos, cultura e política, agrupa dois artigos; e, o terceiro bloco, focaliza os Coletivos e tecnologias: formas de uso e apropriações das tecnologias digitais pelos coletivos e apresenta três artigos.
Palavras-chave:
Coletivos. Ação coletiva; Ativismo; Cultura política; Tecnologias
Abstract:
The aim of this text is to present the dossier Collectives in contemporary collective action: emergence, context, definitions and practices. From the emergence of collectives as a form of organization and contemporary collective action, the dossier brings together works that contribute to the analysis of the diversity of contemporary collectives and illustrates the expansion and solidification of this research agenda. The articles were selected from among those that responded to the dossier’s call for proposals and were grouped into three blocks with sub-themes on the universe of collectives. The first on Collectives and collective action contains three articles; the second on Collectives, culture and politics brings together two articles; and the third block focuses on Collectives and technologies: forms of use and appropriation of digital technologies by collectives and presents three articles.
Keywords:
Collectives; Collective action; Activism; Political culture; Technologies
Resumen:
El objetivo de este texto es presentar el dossier Los colectivos en la acción colectiva contemporánea: emergencia, contexto, definiciones y prácticas. Empieza con la contextualización del surgimiento de los colectivos como forma de organización y acción colectiva contemporánea, el dossier reúne trabajos que contribuyen al análisis de la diversidad de los colectivos contemporáneos e ilustra la expansión y solidificación de esta agenda de investigación. Los artículos se seleccionaron entre los que respondieron a la convocatoria del dossier y se agruparon en tres bloques con subtemas sobre el universo de los colectivos. El primero sobre Colectivos y acción colectiva contiene tres artículos; el segundo sobre Colectivos, cultura y política reúne dos artículos; y el tercer bloque se centra en Colectivos y tecnologías: formas de uso y apropiación de las tecnologías digitales por parte de los colectivos y contiene tres artículos.
Palabras clave:
Colectivos; Acción colectiva; Activismo; Cultura política; Tecnologías
Desde o início da década de 2010, a eclosão de manifestações sociais em diferentes contextos, tais como o Occupy Wall Street, nos EUA e em grandes cidades europeias, como Londres e Frankfurt, os Indignados, na Espanha, Nuit Debout, na França, e em países como Portugal, Grécia e Chile apresentou aos observadores uma nova configuração da ação coletiva contemporânea, marcada pela expressão de demandas, formas de mobilização e organização diferenciadas dos modelos tradicionais. Os manifestantes saíram às ruas para expressar sua indignação contra os partidos e políticos, contra políticas econômicas de austeridade e em defesa das pautas ambientalistas e de reformas sociais. Diferentemente de outros momentos históricos, essas manifestações já não dependiam da intermediação direta de organizações políticas clássicas, como partidos políticos, sindicatos ou movimentos sociais clássicos. Muitos demonstraram recusa em relação a essas formas de ação coletiva e a busca por novos modelos organizacionais para a ação política (Clemens 2010) em um contexto de crescente desenvolvimento das redes sociais de internet e de novas formas de ação coletiva (Bennet e Segerberg 2012; Gerbaudo 2021).
No Brasil, esse fenômeno ganhou mais destaque a partir das manifestações de Junho de 2013, quando milhares de manifestantes foram às ruas com pautas diversas, reivindicando desde a redução do valor do transporte público a mudanças no sistema político, inaugurando um ciclo de novidades sociais, políticas e culturais no país com a emergência de novos grupos, demandas e formatos de ação coletiva, bem como novos projetos e visões de mundo relativos aos processos de mudança e transformação social, deslocamentos ideológicos e novos padrões de relações com o estado e outras entidades da sociedade civil.
Esse novo ciclo, no Brasil e no mundo, com fortes críticas aos sistemas e modelos de representação político e social, estabeleceu também um contexto de ambiguidades: de um lado, criou oportunidades para formas de ativismo mais horizontais e inclusivas, em defesa das lutas feministas, antirracistas, em prol dos direitos para a população LGBTQIA+, povos originários, e moradores de regiões ribeirinhas e periferias urbanas, ao mobilizarem ativistas de suas causas e inaugurar novas experiências associativas; por outro lado, houve um crescimento da atividade política de grupos conservadores e reacionários, radicais de extrema direita, que se aproveitaram do período de contestações, atuaram intensamente via redes online e assumiram ruas e praças como local de ação direta, dando luz e visibilidade a suas pautas.
Foi em meio a esse complexo contexto, que diferentes analistas passaram a perceber efervescência de diferentes grupos autodenominados “coletivos”. Os coletivos passaram a se diferenciar de outras ações coletivas, tais como sindicatos, partidos, ONGs e mesmo organizações de movimentos sociais (Gohn 2017; Marques e Marx 2020; Pereira e Medeiros 2022; Lima Neto e Tovolli 2023), embora seja possível haver articulações entre essas novidades e as formas tradicionais de ações coletivas. Nesse contexto de críticas aos modelos organizacionais para a ação política, percebidos pelos ativistas como estruturas rígidas, formais, hierarquizadas e centradas na ideia de liderança formal e vertical, os “coletivos” têm indicado a adoção de métodos, formas e práticas organizacionais pautados nos valores e ideais de coletividade, colaborativismo, construção de mecanismos internos baseados na horizontalidade e na desconstrução da ideia de liderança formal e vertical, o que lhes confere uma estrutura mais fluida quando comparados a outras ações coletivas (Gohn 2017 e 2022; Perez e Silva Filho 2017; Perez 2019; Marques e Marx 2020; Faria 2020), que tem no uso das tecnologias digitais importantes ferramentas para sua organização, atuação e mobilização social (Penteado, Valiengo e Oliveira 2023).
A percepção dessa “novidade em cena” não significa uma aceitação tácita de uma causalidade direta entre a multiplicação dos coletivos e os ciclos de protestos pelos quais passou o país entre 2013 e 2016 – época de grandes manifestações nas ruas pelo impeachment da presidenta Dilma, mas também de reativação de movimentos e novos coletivos de secundaristas, nas ocupações das escolas ante as reformas então propostas pelo poder público; e entre 2018-2022, com atos, de um lado de resistência da novo regime político de desdemocratização do país (Gohn 2019); e de outro, com atos de grupos antidemocráticos e de desmonte ou enfraquecimento de políticas públicas progressistas.
A “novidade”4 dos coletivos começa a ganhar visibilidade e se fazer presente no cotidiano das universidades, expresso na multiplicação de coletivos de jovens universitários organizados nas mais diversas demandas, formação de coletivos que passam a ocupar as arenas públicas na defesa de pautas raciais, de gênero e outros marcadores sociais da diferença, também se fazem presentes dentro de partidos políticos, principalmente pela inovação de “mandatos coletivos”. Os coletivos passam a ocupar espaços dentro de sindicatos, incorporando demandas interseccionais aos tradicionais espaços de representação dos trabalhadores. Além de outras formas de organização social, fortemente influenciadas pelo ideal de horizontalidade dos coletivos, que se espalham pelos diversos espaços da vida social contemporânea.
Contudo, é inegável que foi naqueles contextos, em especial a partir de junho de 2013, que ficou mais perceptível aos analistas a estruturação de novas estratégias, performances, discursos e padrões de mobilização societária, o que revigorou debates e fomentou novas agendas de pesquisa (Gohn et al. 2020; Gohn 2017). Os Coletivos têm indicado mudanças nas experiências organizacionais e nas formas de (inter)ação política contemporânea, desafiando tanto analistas como o poder público.
É nesse debate que a presente proposta de dossiê se inscreve, tendo como objetivo reunir trabalhos que contribuem com a análise da diversidade dos coletivos contemporâneos e com a expansão e solidificação dessa agenda de pesquisa. Os artigos ora apresentados foram selecionados dentre o conjunto que atendeu ao edital do dossiê, e foram agrupados em três blocos com subtemas do universo dos coletivos. O primeiro, sobre Coletivos e ação coletiva, contém três artigos; o segundo, Coletivos, cultura e política, agrupa dois artigos; e o terceiro, focaliza os Coletivos e tecnologias: formas de uso e apropriações das tecnologias digitais pelos coletivos, e contém três artigos. A seguir, apresentamos sínteses resumidas de cada artigo, com o intuito de informar e melhor orientar o leitor sobre o conjunto da obra tratada neste dossiê.
Os três artigos do primeiro bloco Coletivos e ação coletiva, são de Maria da Glória Gohn, “Coletivos: novas formas de expressão dos jovens no associativismo contemporâneo no Brasil”; Olivia Cristina Perez, com o texto “Democratização das instituições por meio da inclusão das diversidades entre os coletivos”; e Luiz Inácio Gaiger, com o artigo “Sentidos dos coletivos de ação: contribuições de um estudo multilocal”.
O artigo de Maria da Glória Gohn, “Coletivos: novas formas de expressão dos jovens no associativismo contemporâneo no Brasil”, aborda as inovações, reconfiguração e mudanças no associativismo civil da sociedade brasileira explicitando o processo de renovação política que está se operando, especialmente entre os jovens, e alerta para o potencial de suas experiências em processos que geram aprendizagens. Essa reconfiguração é analisada, em parte como uma resposta à crise de representatividade do sistema político existente, às desigualdades socioeconômicas na sociedade, e à busca de novos formatos de ação coletiva dentro de um amplo leque de posicionamentos políticos. Dá-se ênfase à mudança geracional e cultural dos jovens ativistas na atualidade, com práticas de pensar e agir diferentes de gerações anteriores, não se importando em criar unidades, mas em criar pautas e eventos que deem visibilidade às suas causas, atuando em redes com uso intenso das mídias tecnológicas. Criticam as formas tradicionais de fazer e atuar na política, com repertórios de demandas e formas de organização distintos. Abrangem causas sociais, político-culturais e identitárias – feministas, antirracistas, em defesa dos direitos para a população LGBTQIA+, povos originários indígenas, ribeirinhos, moradores de periferias – de forma isolada ou interseccional. Gohn indaga sobre o sentido e o significado dos coletivos, caracterizando-os como atores sociopolíticos e culturais relevantes na cena pública, preocupando-se em qualificar o tipo de ativismo, a forma como se organizam para viabilizar suas ações, e quais são seus fundamentos político-ideológicos. Discute a diferença entre movimento e coletivo com destaque para a questão do conflito social. A força que move as ações dos coletivos é a sociabilidade alicerçada no engajamento às causas solidárias, que exigem cooperação para terem êxito.
O artigo de Olívia Cristina Perez “Democratização das instituições por meio da inclusão das diversidades entre os coletivos” analisa a questão da inclusão das diversidades na construção do campo dos coletivos, e como essa pauta está colaborando para democratizar as instituições e gerar aprendizados. Argumenta que a ideia de interseccionalidade, presente principalmente nos movimentos sociais feministas negros, considera as desigualdades sociais como múltiplas e inter-relacionadas e está sendo incorporada em organizações políticas contemporâneas que se definem como Coletivos. Isso possibilita que pessoas marcadas por diversas clivagens sociais, além da classe social, como gênero, raça, geração, sexualidade e região, participem das decisões organizacionais, contribuindo para análises sobre as dificuldades de acesso a direitos e na construção de uma sociedade mais justa. A fonte de dados da autora deriva de duas pesquisas: a primeira nos anos de 2017 e 2018, na cidade de Teresina – Piauí – com entrevistas que focaram em 21 coletivos que atuavam dentro da universidade. Depois, a pesquisa foi ampliada por meio de notícias de jornais, buscas na internet, em redes sociais digitais onde ela sistematizou a pauta principal de 725 coletivos em páginas no Facebook. O feminismo e a questão racial destacam-se como bandeiras que, frequentemente, se cruzam com outras lutas sociais, especialmente relacionadas à identidade de gênero e sexualidade, enquanto o movimento estudantil e a classe social estão mais entrelaçados. A horizontalidade e a fluidez dos coletivos permitem a inclusão das diversidades. As referências para a análise da interseccionalidade, Perez busca em Kimberlé Crenshaw e em feministas e militantes negras, como Angela Davis, Lélia Gonzalez, além de Patrícia Collins, autoras que há décadas já apontavam como gênero, raça e classe social se traduzem em desigualdades. Recorre também a Djamila Ribeiro, que popularizou no Brasil a categoria “lugar de fala”.
O texto adverte que não basta que o estado concretize direitos; os agentes sociais expressos nos coletivos organizados têm de estar presentes nos processos decisórios, nas questões coletivas que lhes dizem respeito. É um processo contínuo onde os coletivos são fontes geradoras de aprendizados. As considerações finais do artigo trazem sugestões para incorporar a democratização das instituições por meio da inclusão das diversidades como uma forma de aprimorar a democracia.
Luiz Inácio Gaiger, no artigo “Sentidos dos coletivos de ação: contribuições de um estudo multilocal”, apresenta um texto que tem a finalidade de apontar as singularidades das formas de organização e atuação dos coletivos, que expressam uma nova razão de ser que evidenciam novos propósitos e modos de engajamento, da “agenda viva” que se constituem os coletivos. A partir de uma base de dados sobre coletivos em diferentes regiões do mundo (multilocal), constituída por revisão sistemática da bibliografia, entrevistas, observações participantes e análise de material publicado em perfis de redes sociais de internet, o autor revisita o estudo de 120 coletivos em doze países (Brasil, Chile, Espanha, EUA, Bélgica, Portugal, Alemanha, Argentina, França, Equador, Itália e Japão), para destacar uma tipificação dos coletivos, a partir das características encontradas na pesquisa, com destaque para a variedade de formas de organização e constituição, por vezes como grupos informais, comunidades, associações e cooperativas, com singularidades associadas às suas características socioculturais e regionais.
A principal contribuição do artigo é identificar duas lógicas estruturantes de atuação dos coletivos: a lógica de confronto e a lógica de construção alternativa. A lógica de confronto reflete o ativismo voltados para a realização de protestos e reivindicações diante do estado, instituições políticas e agentes econômicos, na defesa de uma outra forma de fazer política, mas calcada nas experiências dos ativistas. Os coletivos que operam pela lógica do confronto vão se disseminar em dois momentos: inicialmente, associados aos movimentos altermundistas no começo do século 21 e, em um segundo momento, a partir do ciclo de protestos de 2011 a 2013, que vai mobilizar protestos com ocupações de espaços públicos em várias regiões do mundo, que emergem coletivos com fortes traços do autonomismo. Já a lógica de construção alternativa, engloba coletivos que atuam territorialmente em questões do cotidiano, e na valorização da construção coletiva de um novo modo de viver em comum. Esses coletivos focam sua ação em ações que visam construir condições que possam viabilizar o seu modo de vida em determinadas localidades, na promoção de “novas formas de solidariedade e a criação de vínculos sociais genuínos”. Por vezes, esses coletivos fazem parte de experiências de redes de Economia Solidária e segmentos do campo associativismo (França) ou do cooperativismo (Espanha). Gaiger conclui seu artigo apontando que, apesar do impacto frágil e disperso nas arenas políticas, o estilo do ativismo dos coletivos sinaliza uma continuidade, que talvez seus efeitos sejam sentidos somente mais no futuro, mas que representam no momento uma “nova maneira de viver no mundo”. Essa nova forma de ativismo valoriza a autonomia individual e a intersubjetividade dos ativistas, que “apostam nas virtudes da sua dispersão e atomização, sua instabilidade e imprevisibilidade, às vezes sua não institucionalização”.
O segundo bloco sobre Coletivos, Cultura e Política agrupa dois artigos: “Museus sociais e territoriais: abordagens conceituais em diálogo”, de Taísa Sanches, e “Crítica à política tradicional e posição diferencial: algumas considerações sobre a emergência dos coletivos culturais contemporâneos”, de Marcelo de Souza Marques.
O artigo de Taísa Sanches contribui para o conhecimento dos Coletivos no campo de estudos do associativismo urbano na atualidade, de tipo novo, expresso em coletivos que unem preservação da memória de territórios, especialmente em comunidades periféricas, e criação e desenvolvimento de identidades e sociabilidades. Articula saberes do campo do social, do cultural, do histórico/memórias e do planejamento urbano. São investigadas 10 iniciativas que se autodenominam Museus ou Ecomuseus sociais e/ou territoriais localizados na cidade do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. Elas se unem em diferentes iniciativas, destacando-se a Rede Favela Sustentável, a Rede de Museologia Social e o grupo Memória Climática nas favelas. O artigo dialoga também com a literatura sobre os movimentos sociais e suas formas de manifestação em comunidades de favelas, afirmando que a criação de museus sociais não pode ser abordada apenas pelas vertentes tradicionais de interpretação dos movimentos sociais, uma vez que a formação dos museus ilumina questões como memória e espaço, questões caras às demandas e repertórios de ação dos coletivos investigados. A organização dos museus sociais pelos movimentos sociais favelados pode ser compreendida como práticas infraestruturantes desses movimentos. Isso ocorre porque, muitas das iniciativas parecem funcionar como formas de ampliação da capacidade de articulação e visibilização dos movimentos, além de desafiar as formas hegemônicas de planejar e fazer a cidade. Muitos dos museus analisados nasceram como parte da luta contra as remoções das comunidades onde se localizam e se tornaram importantes ferramentas de luta por cidades mais igualitárias e plurais. A existência dos museus, na atualidade, se constitui como rede que conecta saberes e memórias da cidade, oferecendo existência física e infraestrutura aos grupos ativistas, fatores fundamentais à experiência da diferença, considerada central à construção identitária de sujeitos e sujeitas periféricas.
O artigo de Marcelo de Souza Marques focaliza os coletivos culturais e diz que eles são importantes porque são um tanto quanto “originários” desta forma de ação coletiva, e na atualidade são expressivos numericamente. É dada grande ênfase para a questão organizacional, sendo os coletivos vistos como experiências organizacionais. Segundo Marques, ser um coletivo indica ser um grupo caracterizado por métodos, formas e práticas organizacionais baseadas em princípios de coletividade e colaboração, além da desconstrução discursiva de concepções tradicionais de liderança formal e verticalizada. Os coletivos se apresentam como experiências organizacionais mais flexíveis, dinâmicas e descentralizadas, informando uma alternativa para aqueles que buscam uma participação mais inclusiva e dinâmica de representação e de participação política, especialmente das juventudes, a partir de uma demarcação discursiva diferencial em relação a outras experiências organizacionais e (associ)ativistas.
Marques assinala que no plano político-institucional, na primeira metade da década de 2010 observou-se em alguns municípios brasileiros uma recomposição institucional do setor das políticas públicas de cultura. Em alguns casos, a estrutura estatal passou a contar com uma maior presença de ativistas em seu interior. Essas mudanças promoveram novas condições favoráveis às estratégias de ação política junto às instituições e às mudanças internas nos mecanismos estatais no setor cultural. Foi no interior desse processo que os coletivos culturais encontraram melhores condições para sua ação, expansão – inclusive em redes nacionais e internacionais; e, segundo o autor, encaixes institucionais na estrutura estatal. No entanto, entre 2018 e 2020, algumas mudanças importantes nas políticas públicas passaram a restringir muitos coletivos de atuarem com apoio institucional estatal. A pesquisa de Marques, realizada no Espírito Santo, demonstra que 50% dos 55 Coletivos investigados foram criados a partir de 2013, sendo que 35% foram criados exatamente entre os anos de 2013 e 2016. É neste contexto que os coletivos têm conseguido apresentar novos significados aos discursos político-organizacionais e promover o debate em torno do (associ)ativismo contemporâneo.
O terceiro bloco focaliza os Coletivos e tecnologias: formas de uso e apropriações das tecnologias digitais pelos coletivos e contém três artigos: “Negociación sociotécnica. Una aproximación teórica desde las prácticas tecnopolíticas”, de Dafne Calvo e Daniel H. Cabrera Altieri, “Espaço público digital e ativismo dos coletivos: (re)definindo fronteiras entre público e privado”, de Fernando Lima Neto, e “Caracterização dos feminismos negros: dos coletivos da geração MNU às coletividades virtuais”, de Dulcilei da Conceição Lima.
O artigo de Dafne Calvo e Daniel H. Cabrera Altieri apresenta um estudo sobre coletivos (comunidades) sociotécnicas na Espanha, que desenvolvem o ativismo tecnopolítico (uso de tecnologias para a ação política, defesa de softwares livres, liberdade de informação etc), destacando os processos de negociação na formação de consensos, especialmente em relação aos usos e apropriações das tecnologias digitais. O processo de negociação é complexo e envolve conflitos e acordos dentro dos coletivos, que operam dentro dos princípios de horizontalidade e tomada de decisões em assembleias, além de uma dinâmica importante de construção da identidade coletiva. Contudo, as especificidades do tema de atuação dessas comunidades sociotécnicas inserem novos elementos, associados às tensões existentes em relação às formas de apropriação das tecnologias, que envolvem discussões sobre alternativas de uso e desenvolvimento de softwares e hardwares e a privacidade dos dados.
Os autores, por meio de entrevistas com membros das comunidades sociotécnicas espanholas, identificaram as práticas, discursos e valores desses coletivos em torno da tecnologia, destacando os processos de negociação nos níveis individual, coletivo e posicional das tecnologias para as práticas ativistas. As entrevistas revelaram que a negociação está relacionada com as diferentes formas de apropriação assimétrica das tecnologias, muitas vezes associadas à ideologia e identidades dos coletivos. Os autores concluem que a negociação ajuda a se adaptar às assimetrias tecnológicas, promovendo o desenvolvimento contínuo das práticas associadas.
No artigo “Espaço público digital e ativismo dos coletivos: (re)definindo fronteiras entre público e privado”, Fernando Lima Neto apresenta uma reflexão sobre as transformações da esfera pública destacando, dentro de uma perspectiva weberiana, o nexo causal do processo de digitalização da sociedade e a mudança da estrutura de comunicação com a emergência e a multiplicação dos coletivos e suas práticas e repertórios. As condições estruturantes da comunicação pelas plataformas digitais criam condições sociotécnicas para que a “ênfase subjetiva dos ativismos dos coletivos” produza importantes mudanças nas dinâmicas da vida social e uma mudança das fronteiras entre os espaços públicos e privados. Nesse novo contexto, surge o desafio para a sociologia política explicar como essas mudanças impactam não somente nas formas de organização da ação coletiva, mas também no sentido subjetivo da ideia de democracia e da luta política.
Lima Neto argumenta que a esfera pública liberal habermasiana, estruturada no debate racional pautado por princípios universais e impessoais, que excluía percepções subjetivas do debate público, sofre uma transformação disruptiva com a emergência da constituição de uma esfera pública digital, que por suas características sociotécnicas altera as dinâmicas comunicacionais por meio de algoritmos de interatividade e fragmentação do debate público (a famosa formação das “bolhas”), além de borrar as fronteiras entre o espaço público e privado. Essa nova estrutura de comunicação digital cria condições para a expressão de subjetividades e valorização das relações interpessoais, importantes características observadas nas práticas e dinâmicas dos coletivos e novas formas de engajamento político. Nesse novo espaço público digital, onde há uma imbricação entre o público e o privado que valorizam a subjetividade dos ativistas, são produzidos novos sentidos sobre a participação, que incorpora elementos de valorização de práticas de horizontalidade na ação política e performance presentes nos coletivos, conforme observado pelo autor em entrevistas com coletivos na cidade do Rio de Janeiro. Ao final do texto, Lima Neto argumenta que as novas práticas e significados que os coletivos introduzem na esfera pública digital a politização da vida privada, ampliando a concepção de democracia e cultura política no Brasil e desafia o pensamento sociológico a revisitar suas teorias do século XX.
Por fim, para encerrar o dossiê, o artigo “Caracterização dos feminismos negros: dos coletivos da geração MNU às coletividades virtuais”, de Dulcilei da Conceição Lima, faz uma leitura, a partir de um recorte histórico, sobre o feminismo negro contemporâneo, em especial, os coletivos de mulheres negras que atuam nos espaços da internet. A autora destaca que, dentro do feminismo negro, é possível identificar a existência de coletivos de mulheres negras desde os anos 1980, que dada as limitações impostas por homens negros e mulheres brancas, obrigavam essas mulheres a procurarem outro modelo de organização, que atuava à margem das formas de representação tradicionais na luta antirracismo, associada às demandas feministas. Os coletivos de mulheres negras se espalharam pelo Brasil e se institucionalizaram nos anos 90, muitos deles se tornaram ONGs e/ou recebendo apoio de instituições privadas. Na década seguinte, nos anos 2000, muitas ativistas oriundas dos coletivos assumiram cargos em governos (principalmente em gestões petistas) e promoveram uma série de conferências nacionais e internacionais para discutir a formulação de políticas voltadas para atender às demandas do feminismo negro.
Ao discutir as características do feminismo negro contemporâneo, a partir da realização de um survey online e de grupo focais com ativistas de coletivos de mulheres negras, Lima identifica dois grandes segmentos: um feminismo negro liberal ou de consumo, protagonizado por influenciadoras que promovem estilo de vida de mulheres negras urbanas, e um segundo, que a autora chama de feminismo negro colaborativo, orientado pela busca da justiça social e organizado principalmente em coletivos, que atuam dentro dos princípios de horizontalidade. Com forte atuação nos espaços da internet, os coletivos de mulheres negras contemporâneos, além de incorporarem as pautas tradicionais do feminismo negro nas gerações anteriores, inserem questões ligadas às demandas LGBTQI+, à interseccionalidade e à difusão de conteúdos produzidos por intelectuais negras brasileiras e internacionais, inclusive por meio de traduções e produções de conteúdos voltados para explicação e promoção de uma epistemologia feminista negra nas redes e nas ruas.
Ao final deste breve texto de apresentação do dossiê “Coletivos nas ações coletivas contemporâneas: emergência, contexto, definições práticas”, convidamos o leitor e a leitora a navegarem na leitura dos artigos que representam a diversidade de recortes e abordagens que envolvem a temática da ação coletiva contemporânea, que tem nos coletivos uma das suas principais formas de expressão de organização e atuação social, política e cultural. A forma de ação dos coletivos reflete a reconfiguração do ativismo social, que se apresenta como alternativa de organização para ação coletiva, por meio de novas práticas e formas de organização horizontais, que por vezes entram em choque com os movimentos sociais tradicionais e até mesmo com o referencial teórico do campo.
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A forma de organização denominada coletivo não é uma novidade em termos históricos. Já nos anos 1980 há registros da existência de coletivos de cultura promovendo formas de intervenção nas ruas, contudo somente no começo do século 21 essa forma de ação coletiva vai se popularizar, associada às práticas horizontais e uso das TICs (Valiengo e Oliveira 2020).
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Mar 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Dec 2025
Histórico
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Recebido
12 Nov 2024 -
Aceito
18 Nov 2024 -
Publicado
28 Jan 2025
