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“O que o burguês faz lamentando... o fascista faz sorrindo”: neofascismo, capital internacional, burguesia associada e o Sistema Único de Saúde

“What the bourgeois does complaining... the fascist does smiling”: neo-fascism, international capital, associated bourgeoisie and the Brazilian Unified Health System

“Lo que el burgués hace lamentándose ... el fascista lo hace sonriendo”: neofascismo, capital internacional, burguesía asociada y Sistema Único de Salud

Resumo:

Este estudo realiza uma revisão crítica ensaiando dialeticamente a relação entre o capital internacional, o neofascismo e suas repercussões no Brasil, em geral, e na saúde pública, em particular. Neste sentido, este estudo está dividido em três seções. A primeira seção trata do papel da crise do capital como gatilho do fascismo na tradição marxista. A segunda seção aborda como o neofascismo emerge como resposta à dinâmica capitalista na fase neoliberal do capitalismo. E a terceira seção apresenta algumas relações entre a burguesia associada e seus interesses em desfinanciar o Sistema Único de Saúde e aproveitar a pandemia da Covid-19 para encampar o projeto genocida governamental.

Palavras-chave
Neofascismo; Capital Internacional; Neoliberalismo; Marxismo; Saúde Pública

Abstract:

This study carries out a critical review by dialectically rehearsing the relationship between international capital, neo-fascism and its repercussions in Brazil, in general, and in public health, in particular. In this sense, this study is divided into three sections. The first section deals with the role of the capital crisis as a trigger for fascism in a Marxist tradition. The second section addresses how neo-fascism emerges as a response to capitalist dynamics in the neoliberal phase of capitalism. And the third section presents some relations between the associated bourgeoisie and its interests in defunding the Unified Health System and taking advantage of the Covid-19 pandemic to take over the government genocidal project.

Keywords
Neo-fascism; International Capital; Neoliberalism; Marxism; Public Health

Resumen

Este estudio realiza una revisión crítica ensayando dialécticamente la relación entre el capital internacional, neofascismo y sus repercusiones en Brasil en general y en la salud pública. Así, este estudio se divide en tres apartados. La primera sección trata sobre el papel de la crisis del capital como detonante del fascismo en la tradición marxista. La segunda sección aborda cómo surge el neofascismo como respuesta a la dinámica capitalista en la fase neoliberal del capitalismo. La tercera sección presenta algunas relaciones entre la burguesía asociada y sus intereses en desinvertir el Sistema Único de Salud y aprovechar la pandemia del Covid-19 para caminar con el proyecto genocida del gobierno.

Palabras clave
Neofascismo; Capital Internacional; Neoliberalismo; Marxismo; Salud Pública

O papel da crise do capital em uma visão marxista do fascismo

Na análise marxista em geral (Boito Júnior 2020Boito Júnior, Armando. 2020. Por que caracterizar o bolsonarismo como neofascismo? Crítica Marxista 50: 111-119.), o fascismo é considerado uma forma-política do regime do estado capitalista. Nele, a relação de dominação do estado sobre a sociedade conduz-se por meio da suspensão das “liberdades democráticas” burguesas,2 2 Calil, Gilberto. 2018. Dez notas iniciais depois da eleição de Bolsonaro. Esquerda online, 29 out. 2018. Acessado em 10 fev. 2022, https://esquerdaonline.com.br/2018/10/29/dez-notas-iniciais-depois-da-eleicao-de-bolsonaro. de modo que a sua manutenção e os seus “graus” de fechamento do regime político emergem como a única alternativa da burguesia3 3 Melo, Demian B. de. 2017. As reflexões de Gramsci sobre o fascismo e o estudo da direita contemporânea: notas de pesquisa. Anais Niep-Marx 2017. Acessado em 10 fev. 2022, http://www.niepmarx.blog.br/MManteriores/MM2017/anais2017/MC45/mc454.pdf. no comando do destino do estado, diante de uma crise capitalista de grande envergadura (Semeraro 2019Semeraro, Giovanni. 2019. La restaurazione in Brasile: un fascismo neoliberista. Critica Marxista: analisi e contributi per ripensare la sinistra 1: 31-41.). Por isso, é fundamental ressaltar a ligação orgânica que existe entre o capitalismo, suas estagnações, crises e decadência com o fenômeno fascista.

Diferentemente de uma ditadura tradicional, o fascismo se converte em uma ditadura por meio do apoio social. Ou seja, ao ocorrer o fechamento do regime político, cresce a legitimação popular que apoia as restrições democráticas. E essa adesão, muitas vezes, acontece em função das precárias condições de vida proporcionadas pela crise. Vale dizer que esta última característica é um elemento importante que delimita o fenômeno fascista, pois, sem essa mobilização popular fascistizada, não é possível dizer que o fascismo se apresenta enquanto forma-política (por mais que as frações de classe e os grupos fascistas estejam presentes na sociedade de forma latente).

Quando se fala de fascismo clássico (ou histórico), Konder (2009)Konder, Leandro. 2009. Introdução ao fascismo. São Paulo: Expressão Popular. apresenta uma definição mais localizada sócio-historicamente. Ao pensar o fascismo do período entreguerras, o autor o classifica como uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo contemporâneo, que procura se estabelecer nas condições de implantação de um capitalismo monopolista de estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente concentração de capital. É um movimento político-social de conteúdo reacionário, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório.

Em uma perspectiva derivacionista pachukaniana,4 4 Derivação do estado em relação ao Capital. Ver Pachukanis (2020). o papel da crise do capital internacional e sua relação intrínseca com a forma jurídica do estado capitalista ganham relevo para explicar o fascismo. Para Mascaro (2020)Mascaro, Alysson L. 2020. Prefácio. In Fascismo, escrito por Evguiéni B Pachukanis, 9-24. São Paulo: Boitempo., a forma jurídica condenada ao opróbrio pela força da conjuntura (demonstrando os sinais de esgotamento do direito) e o fenecimento do estado são, respectivamente, índices da agudização da luta de classes e da superação do capitalismo. Estes últimos, ao serem identificados pela burguesia como sinais de desgaste de sua dominação política – democracia procedimental –, uma vez que não consegue solucioná-los parlamentarmente, conduzem a uma ditadura de classe fascista cuja essência é uma tentativa desesperada de manter as formas sociais capitalistas, buscando retardar o seu definhamento (Mascaro 2020Mascaro, Alysson L. 2020. Prefácio. In Fascismo, escrito por Evguiéni B Pachukanis, 9-24. São Paulo: Boitempo.).

Assim, sob a crise capitalista mundial, muitas fissuras ideológicas que desvelam o sentido perverso do modo de produção e que são exploradas pela burguesia ao seu favor são abertas. Os manejos repressivos, além daqueles salvacionistas do capital, repercutem nos ânimos das massas como soluções “radicais” que visam reaquecer a economia a passos rápidos (impossíveis de serem dados nos tempos “normais”) e que não se ajustam à cadência das mudanças sociais. Neste sentido, o fascismo se move, em um segundo momento, como uma ação (supra)estrutural, política, do capitalismo em crise e em decadência. É esse um último manejo possível antes de uma derrocada, ou seja, já que não se consegue resolver suas contradições nos termos do liberalismo, volta-se ao passado, distorcendo-o, para fazê-lo substituir o liberalismo já ineficaz (Mascaro 2020Mascaro, Alysson L. 2020. Prefácio. In Fascismo, escrito por Evguiéni B Pachukanis, 9-24. São Paulo: Boitempo.).

Assim, evitando a superação do modo de produção, o fascismo permite expor a democracia, os sistemas parlamentares, as liberdades e o campo político na berlinda para que o capitalismo e a exploração burguesa permaneçam intocados. Nessa mudança, há, sim, algo extremamente real: as alianças militares. Ao adotar essa tática, o capitalismo substitui o velho sistema dos partidos políticos por organizações terroristas do capital, paramilitares e militares em defesa de frações burguesas envolvidas nesse projeto. Logo, os interesses dos grandes industriais, do capital financeiro e do militarismo em aliança fazem com que pareçam ser dos pequenos proprietários (lojistas, artesãos etc.) as utopias reacionárias da pequena burguesia.

É nesse sentido que Pachukanis (2020)Pachukanis, Evguiéni B. 2020. Fascismo. São Paulo: Boitempo., ao analisar o fascismo italiano, afirma que o fascismo é produto da decomposição da ideologia democrático-burguesa. Do ponto de vista prático, os fascistas sabem estabelecer um laço estreito entre eles e o grande capital, especialmente para permitir o afluxo de recursos que financiam a comunicação, o transporte e até mesmo o fornecimento de armas. Do ponto de vista retórico, os fascistas sempre propõem um programa forte com um misto de “limpeza” e destemperos, mas que, ao mesmo tempo, garante a liberdade absoluta para circulação do capital e definha o monopólio estatal nas circunstâncias onde a previsão de condições mais favoráveis à acumulação capitalista se apresenta.

Pachukanis (2020)Pachukanis, Evguiéni B. 2020. Fascismo. São Paulo: Boitempo. ainda reforça que o crescimento do fascismo depende de um movimento operário desorganizado pela traição dos reformistas e pelas meias-táticas dos líderes centristas, que, em conjunto, vão direcionando a estratégia socialista ao declínio. No caso da ditadura fascista na Itália, isso se percebe muito bem, ao ponto de o fascismo ter sido justificado, porque o governo parlamentar foi absolutamente incapaz de conduzir as medidas indispensáveis, necessárias para reequilibrar o orçamento, eliminar o déficit, desenvolver a economia e fortalecer o debilitado aparelho estatal, ou seja, todas aquelas medidas financeiras e administrativas emergenciais que constituem as condições de estabilização capitalista.

Portanto, o exemplo italiano demonstra o limite da ação política de esquerda dentro do estado e o fato de que a insistência apenas nessa via contribui, contraditoriamente, para o crescimento da mobilização fascista. O caminho para a esquerda derrotar o fascismo parte primordialmente – mas não exclusivamente – da mobilização das massas à esquerda, com organização e criação de lideranças capazes de guiar o extermínio da política fascista. Contudo, o caminho tomado pelas forças revolucionárias deve compreender o papel que o capital internacional tem na estrutura do fenômeno fascista com vistas a desarticulá-lo.

É nesse caminho que seguem os autores que se dedicam a compreender como o fascismo dos tempos atuais (também chamado de “fascismo de novo tipo” ou somente “neofascismo”) vem estabelecendo análises sobre o novo período de crise capitalista e sua relação com a ascensão neofascista. Assim, a preocupação dos dias atuais é de entender como o capital, em sua fase de desenvolvimento neoliberal, permite o avanço das forças fascistas em reposta à dinâmica de desaceleração e à crise de longa duração (Roberts 2016Roberts, Michael. 2016. The long depression: how it happened, why it happened, and what happens next. Chicago: Haymarket Books.).

Neofascismo como resposta à dinâmica capitalista no neoliberalismo

A crise de longa depressão e duração descrita por Roberts (2016)Roberts, Michael. 2016. The long depression: how it happened, why it happened, and what happens next. Chicago: Haymarket Books. tem demonstrado o estágio da crise capitalista e como a sua agudização é um elemento que justifica a adoção da tática fascista. É fundamental lembrar que a crise vem se caracterizando como uma crise de “longa depressão” para os próximos 30 anos, partindo-se de 2008. Trata-se de entendê-la como uma combinação entre produto de baixo investimento e baixo crescimento da produtividade, decorrente de uma menor lucratividade do investimento em setores produtivos e de uma alteração no campo da especulação financeira. O capitalismo mundial experimenta uma profunda depressão e tem dificuldades para superá-la. É nesse ponto que o neofascismo encontra terreno fértil para germinar (Guamán, Martín e Aragoneses 2019Guamán, Adoración, Sebastián Martín, e Alfons Aragoneses. 2019. Neofascismo. La bestia neoliberal. Espanha: Ediciones Akal.).

É essencial lembrar que tanto o neofascismo quanto o próprio fascismo histórico não devem ser interpretados exclusivamente à luz de suas lideranças, mas, sim, a partir de aspectos conjunturais que se encontram (e se constroem) com o culto à liderança e à mitologia política, forjando uma relação simbiótica entre líderes, estado e nação (Caldeira-Neto 2020Caldeira Neto, Odilon. 2020. Neofascismo, “Nova República” e a ascensão das direitas no Brasil. Conhecer: Debate entre o Público e o Privado 10 (24): 120-140. https://doi.org/10.32335/2238-0426.2020.10.24.2060.
https://doi.org/10.32335/2238-0426.2020....
). É por isso que Fassin5 5 Fassin, Éric. 2018. The neo-fascist moment of neoliberalism. Brave New Europe, 9 ago. 2018. Acessado em 10 fev. 2022, https://www.opendemocracy.net/en/can-europe-make-it/neo-fascist-moment-of-neoliberalism. vem batizando o fenômeno que se vive hoje como “o momento neofascista do neoliberalismo”. Para o sociólogo, ao contrário de certas análises que se recusam a classificar os partidos populistas6 6 A categoria populismo tende a esvaziar o conteúdo histórico-social dos movimentos populares igualando mobilizações de trabalhadores com mobilizações reacionárias. Ver Löwy, Michel. 2021. Dois anos de desgoverno – a ascensão do neofascismo. Instituto Humanitas Unisinos, 10 fev. 2021. Acessado em 10 fev. 2022, https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606674-dois-anos-de-desgoverno-a-ascensao-do-neofascismo-artigo-de-michael-loewy. de direita como ‘extrema-direita’ ou ‘neofascista’, ele argumenta que o novo tipo de fascismo vivido apresenta ancoradouro na dinâmica capitalista do neoliberalismo em sua fase atual.

Assim, não se trata apenas de uma “fase autoritária” do neoliberalismo, como apontam Boffo, Saad-filho e Fine (2018)Boffo, Marco, Alfredo Saad-Filho, e Ben Fine. 2019. Neoliberal Capitalism: the authoritarian turn. Socialist Register 55: 312-320., já que o cerne da dinâmica capitalista é ser autoritária em si mesma, impondo sua Weltanschauung e construindo formas e relações capitalistas em todos os terrenos da vida social. Portanto, segundo Prado,7 7 Prado, Eleutério. 2020. Neofascismo e neoliberalismo. A Terra é Redonda, 0 jul. 2020. Acessado em 10 fev. 2022, https://aterraeredonda.com.br/neofascismo-e-neoliberalismo. deve-se apostar na recorrência do fracasso neoliberal em conseguir tanto uma reprodução mais célere do sistema quanto uma reprodução pouco conflitiva da vida social como elementos responsáveis pela guinada à extrema-direita.

Ao identificar o neofascismo no âmbito dos países imperialistas, alguns autores, como Prado,8 8 Ver nota 6. afirmam que o ressurgimento do fascismo na Europa não é apenas consequência de uma hostilidade à imigração, mas um dos resultados da exploração dos países da periferia do capitalismo pelos chamados “governos civilizados”. Mesmo dentro da Europa, o neofascismo veio como uma resposta à crise, combinada com a impossibilidade de resolução liberal das contradições de classe, que, lá, estabeleceu-se no irreconciliável ajuste entre demandas sociais e acumulação capitalista.

Logo, o neofascismo europeu não é a repetição do fascismo dos anos 1930: é um fenômeno novo, com características do século 21. Ele não assume a forma de uma ditadura militar, pois respeita alguns ritos democráticos: eleições, pluripartidarismo, liberdade de imprensa, existência de um parlamento etc. Mas trata, na medida do possível, de limitar ao máximo essas liberdades democráticas, com medidas autoritárias e repressivas a depender da conjuntura. Tampouco se apoia em tropas de choque armadas, como eram as SA alemãs ou o fascio italiano.9 9 Löwy, Michel. 2021. Dois anos de desgoverno – a ascensão do neofascismo. Instituto Humanitas Unisinos, 10 fev. 2021. Acessado em 10 fev. 2022, https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606674-dois-anos-de-desgoverno-a-ascensao-do-neofascismo-artigo-de-michael-loewy. Assim,10 10 Ver exemplos de Tony Blair e José María Aznar em: Campos, Rogério de. 2018. Uma inovação brasileira: o fascismo servil. Le Monde Diplomatique, 17 dez. 2018. Acessado em 10 fev. 2022, https://diplomatique.org.br/uma-inovacao-brasileira-o-fascismo-servil pode-se dizer que a Europa aprendeu algo com as tragédias dos anos 1930 e 1940. Ou, pelo menos, aprendeu que não se devem fazer campos de concentração dentro de seu continente, mas fora.11 11 Ver exemplos de Tony Blair e José María Aznar em Campos, Rogério de. 2018. Uma inovação brasileira: o fascismo servil. Fonte ver nota10.

Já no caso dos países de capitalismo dependente, o papel do neofascismo é bem peculiar. Na tentativa legítima de evitar imprecisões analíticas, alguns autores12 12 Fontes, Virgínia. 2019. O núcleo central do governo Bolsonaro: o proto-fascismo. Esquerda online, 8 jan. 2019. Acessado em 10 fev. 2022, https://esquerdaonline.com.br/2019/01/08/o-nucleo-central-do-governo-bolsonaro-o-proto-fascismo. têm insistido em termos como: “conservador”, “autoritário”, “totalitário” e até prefixos que designam incompletude, como: “protofascista”, “semifascista”, “hemifascista”, para qualificar a emergência do fascismo nos países latino-americanos. Nós consideramos isso um equívoco, já que tais termos soam como eufemismo em vista dos fatos e da sua articulação com a totalidade. Além disso, a gestão do medo, a apologia à violência e, em especial, o papel de um estado contrainsurgente – que flerta constantemente com o fascismo (Marini 1978Marini, Ruy M. 1978. O Estado de contrainsurgência. Cuadernos Políticos 18: 21-29.) e atua sempre sob a batuta de uma contrarrevolução preventiva (Fernandes 1976Fernandes, Florestan. 1976. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar.) – fazem com que as readaptações ou reinterpretações das políticas fascistas tradicionais às novas circunstâncias se tornem uma realidade bem mais agressiva.

Nesse sentido, em uma abordagem dialética, Mathias e Salama (1983)Mathias, Gilberto, e Pierre Salama. 1983. O Estado superdesenvolvido: ensaios sobre a intervenção estatal e sobre as formas de dominação no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense. já anunciavam o papel estreito, inconcluso ou incompleto da democracia burguesa (caracterizada por sua “legitimidade restrita”) em países de capitalismo dependente, como os da América Latina. Dito isso, a hipótese principal que os estudiosos levantam é de que o neofascismo na periferia seria a resposta do bloco dominante transnacionalizado às contradições da mundialização neoliberal, com a conclusão de que o neofascismo periférico do século 21 corresponderia à “fase superior” do neoliberalismo, a última etapa do imperialismo, nos países latino-americanos (Martín 2020Martín, Rafael D. 2020. Crisis orgánica, dependencia y neofascismo periférico en América Latina. ensayo de presentación e interpretación. Bajo el Volcán: Revista del Posgrado de Sociología. Buap 2 (3): 9-75.). Assim, os regimes políticos de legitimidade restrita que compõem a essência do estado contrainsurgente na América Latina, fazem com que o neofascismo que se expressa nessa região possua um caráter muito mais destrutivo que o de países de capitalismo central.

Isso pode ser verificado empiricamente por meio de algumas diferenças. Por exemplo, nos países centrais europeus, o neofascismo13 13 Baseio-me na tipologia proposta por Löwy (2021). se posicionou, em uma primeira versão, contra o estado de bem-estar social, pelo peso dos impostos e por meio de um identitarismo nacionalista anti-imigração que vê no “outro” (não europeu) a raiz da dissolução de suas vidas.14 14 Viel, Ricardo. 2021. Entrevista com Manuel Loff: O bolsonarismo é o neofascismo adaptado ao Brasil do século 21. Publica, 29 jul. 2019. Acessado em 10 fev. 2022, https://apublica.org/2019/07/o-bolsonarismo-e-o-neofacismo-adaptado-ao-brasil-do-seculo-21. Beinstein15 15 Beinstein, Jorge. 2018. Neofascismo e decadência: o planeta burguês à deriva. Iela, 21 maio 2018. Acessado em 10 fev. 2022, https://iela.ufsc.br/noticia/neofascismo-e-decadencia-o-planeta-burgues-deriva. chama esse fenômeno de “neofascismo defensivo”. Contudo, isso não retira dos países europeus o caráter dialético dessa relação, já que, da mesma forma que no fascismo clássico, a burguesia italiana se aliou ao capital inglês no sentido de garantir a manutenção dos privilégios de classe na terra do Duce (Pachukanis 2020Pachukanis, Evguiéni B. 2020. Fascismo. São Paulo: Boitempo.), no neofascismo europeu, a Grécia rendeu-se aos pacotes de austeridade do FMI; e os países do Leste europeu se viram reféns da política protecionista da zona do euro. Assim, mesmo na Europa, esses países são vistos como a “escória” do velho mundo. Suas populações, portanto, são “intrusas dentro de casa”, e não devem sair de seu lugar.

Já na América Latina, o neofascismo é dotado de um caráter “autodestrutivo”,16 16 Beinstein, Jorge. 2018. Neofascismo e decadência: o planeta burguês à deriva. Iela, 21 maio 2018. Acessado em 10 fev. 2022, https://iela.ufsc.br/noticia/neofascismo-e-decadencia-o-planeta-burgues-deriva. tornando-se ainda pior do que nos países de capitalismo central. Se, em condições “normais” de um regime de legitimidade restrita, os países latino-americanos vivem sob a revelia de uma burguesia associada que sobrevive da transferência de mais-valor da periferia para o centro, provocando, com isso, uma superexploração da força de trabalho, em tempos de neofascismo, ela desvela seu caráter pró-imperialista em absoluto e, ainda, contraditoriamente, é conclamada de forma “ufanista” pela classe média e por frações da classe trabalhadora mais atingidas pela crise, que, fascistizadas, endossam politicamente tamanha subserviência. Nesse contexto, sem um “outro” para responsabilizar pela crise, há a necessidade de encontrar alguém a quem culpabilizar, e, claro, de destilar o seu ódio e direcionar sua violência. O culpado passa a ser o próprio cidadão compatriota, que, por algum critério (econômico, étnico-racial ou moral) – por exemplo: os pobres, os negros, os povos originários ou, ainda, os homossexuais –, passa a ser o motivo da crise e cuja existência deve ser eliminada (Carnut 2020aCarnut, Leonardo. 2020a. Neofascismo como objeto de estudo: contribuições e caminhos para elucidar este fenômeno. Semina. Ciências Sociais e Humanas 41: 81-108. http://dx.doi.org/10.5433/1679-0383.2020v41n1p81.
http://dx.doi.org/10.5433/1679-0383.2020...
).

Dadas as características particulares de cada conjuntura doméstica (Carnut 2020aCarnut, Leonardo. 2020a. Neofascismo como objeto de estudo: contribuições e caminhos para elucidar este fenômeno. Semina. Ciências Sociais e Humanas 41: 81-108. http://dx.doi.org/10.5433/1679-0383.2020v41n1p81.
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), o neofascismo no Brasil assume um aspecto muito semelhante ao relatado. Loff, ao ser entrevistado por Viel17 17 Viel, Ricardo. 2021. Entrevista com Manuel Loff: O bolsonarismo é o neofascismo adaptado ao Brasil do século 21. Publica, 29 jul. 2019. Acessado em 10 fev. 2022, https://apublica.org/2019/07/o-bolsonarismo-e-o-neofacismo-adaptado-ao-brasil-do-seculo-21. não hesita em classificar o governo de Jair Bolsonaro como representante do neofascismo: “O discurso que tem sobre os movimentos sociais e políticos que se lhe opõem, sobre as mulheres, as minorias étnicas, a família, a nação, o Ocidente configura um neofascismo adaptado ao Brasil do século 21”.15 Para Löwy,18 18 Löwy, Michel. 2021. Dois anos de desgoverno – a ascensão do neofascismo. Instituto Humanitas Unisinos, 10 fev. 2021. Acessado em 10 fev. 2022, https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606674-dois-anos-de-desgoverno-a-ascensao-do-neofascismo-artigo-de-michael-loewy. o que Bolsonaro tem em comum com o fascismo clássico é o autoritarismo, a preferência por formas ditatoriais de governo, o culto ao chefe (“mito”) Salvador da Pátria, o ódio à esquerda e ao movimento operário. Mas não dispõe de condições de estabelecer uma ditadura, ou seja, de um regime fascista. Nesse sentido, não se pode dizer que no Brasil de 2021 haja um “regime fascista”, mas, sim, vive-se um “governo neoliberal neofascista”. Seu desejo, abertamente evocado por seus filhos, seria de impor um novo AI-5, dissolvendo o Superior Tribunal Federal (STF) e colocando fora da lei sindicatos e partidos de oposição. Mas lhe falta, ainda, o apoio tanto das classes dominantes quanto das Forças Armadas, pouco interessadas, por ora, em uma nova aventura ditatorial.

O neofascismo brasileiro, na atual conjuntura político-econômica, também tem forte apelo entre segmentos importantes da massa pobre marginalizada, totalmente precarizada e sem qualquer tipo de organização política (trabalhista, partidária etc.). Ainda, o presidente Jair Bolsonaro sensibiliza parte da população jovem desinformada e despolitizada, mas que tem presença nas redes sociais e enxerga nele um “comportamento supostamente transgressor”, distinto dos demais políticos profissionais – em geral, desmoralizados.19 19 Filgueiras, Luiz. 2018. A economia política do fascismo. Le Monde Diplomatique, 14 ago. 2018. Acessado em 10 fev. 2022. https://diplomatique.org.br/a-economia-politica-do-fascismo.

O movimento neofascista brasileiro é um processo leviatânico produzido por uma heterogênea coalizão sociopolítica e político-institucional do capitalismo neoliberal no país, na qual as diversas frações da burguesia se alinharam na conjuntura de múltiplas determinações, caracterizada pela crise de estagnação da economia; pela luta de classes de cima para baixo das classes proprietárias contra as reformas sociais (em uma sociedade extremamente desigual) e contra as lideranças da esquerda com elas comprometidas; pela presença de um partido de trabalhadores com vocação e experiência governista e com respaldo no eleitorado; e pela crise dos partidos tradicionais da democracia brasileira, especialmente o PSDB e o PMDB, além do próprio PT.20 20 Ianoni, Marcus. 2019. Crise do capitalismo, democracia e neofascismo no Brasil: um conjunto de interseção. 43º Encontro Anual da Anpocs. Acessado em 10 fev. 2022, http://anpocs.com/index.php/encontros/papers/43-encontro-anual-da-anpocs/mr-10/mr12-1/12015-crise-do-capitalismo-democracia-e-neofascismo-no-brasil-um-conjunto-de-intersecao-autor-marcus-ianoni/file.

Esse processo político leviatânico não se apoderou plenamente do estado, mas seu impacto vem fechando o regime, a tal ponto que a fronteira entre democracia e autoritarismo no Brasil está borrada.21 21 Ianoni, Marcus. 2019. Crise do capitalismo, democracia e neofascismo no Brasil: um conjunto de interseção. 43º Encontro Anual da Anpocs. Acessado em 10 fev. 2022, http://anpocs.com/index.php/encontros/papers/43-encontro-anual-da-anpocs/mr-10/mr12-1/12015-crise-do-capitalismo-democracia-e-neofascismo-no-brasil-um-conjunto-de-intersecao-autor-marcus-ianoni/file. Assim, o breve “verão lulista” e a constituição de uma assim chamada sociedade de classe média ajudaram a adubar ainda mais o terreno para o crescimento do neoliberalismo enquanto processo de constituição de sujeitos22 22 Puzone, Vladimir. 2019. A ascensão do neofascismo entre a crise das esquerdas e os sujeitos neoliberais. 43º. Encontro da Anpocs. Acessado em 10 fev. 2022, http://anpocs.org/index.php/encontros/papers/43-encontro-anual-da-anpocs/mr-10/mr12-1/12016-a-ascensao-do-neofascismo-entre-a-crise-das-esquerdas-e-os-sujeitos-neoliberais-autor-vladimir-puzone/file. potencialmente aderentes às aparentes retóricas de “centro” do neofascismo brasileiro.

O neofascismo, portanto, não é a causa da crise econômica, mas resultado e produto dela; surge como uma suposta solução para remediar os males produzidos pelo capitalismo neoliberal financeirizado, mas, na verdade, aprofunda o problema, aguçando ainda mais a crise: a sua agenda econômica é uma radicalização do neoliberalismo (mais do mesmo do que já vem sendo feito há quatro décadas, uma espécie de ultraneoliberalismo),23 23 Momento histórico compreendido como “virada autoritária” do neoliberalismo. Ver Boffo, Saad-Filho e Fine (2018). cujas reformas e políticas econômico-sociais produziram as sucessivas crises localizadas (em países e regiões) ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000 e, finalmente, a crise mundial de 2008. Na verdade, a pseudossolução oferecida é o ataque à democracia liberal e às suas instituições, através da constituição e da mobilização de um movimento de massa (típica de todos os fascismos), do uso de milícias digitais e da propagação de mentiras e confusão nas redes sociais (típicas do neofascismo), com auxílio do negacionismo24 24 Argumentos retóricos para dar a aparência de debate legítimo onde não há. Para as falácias mais usadas na saúde pública, ver em Diethelm e McKee (2009). e da deslegitimação da ciência, substituindo-a pelo irracionalismo de teorias conspiracionistas25 25 Para entender a razão tática das “teorias conspiracionistas”, ver Martin (2020). tudo isso soldado por uma agenda cultural e moral retrógrada, fundamentalmente heteropatriarcal, pautada no fundamentalismo evangélico (em especial, o neopentecostal) de natureza pré-moderna.26 26 Filgueiras, Luiz e Graça Druck. 2020. EUA: o neofascismo perde seu farol. Outras Palavras,10 nov. 2020. Acessado em 10 fev. 2022, https://operamundi.uol.com.br/analise/67484/eua-o-neofascismo-perde-seu-farol.

Burguesia associada, Sistema Único de Saúde e Covid-19: um projeto genocida

O desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), a partir da promulgação da Emenda Constitucional 95 (EC-95), foi a primeira ação estritamente neofascista diretamente relacionada à saúde pública com vistas a articular os interesses da burguesia associada, dos neofascistas e do capital internacional (Mendes e Carnut 2020Mendes, Áquilas e Leonardo Carnut. 2020. A atenção primária à saúde privada do decreto presidencial n. 10.530/2020. Revista Movimento, 28 out 2020. Acessado em 10 fev. 2021, https://movimentorevista.com.br/2020/10/a-atencao-primaria-a-saude-privada-do-decreto-presidencial-no-10-530-2020.
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). Mesmo sob diversos ataques à saúde pública, tanto do ponto de vista do financiamento quanto da sua lógica organizativa, mesmo antes do golpe institucional de 2016 (Carnut e Mendes 2020Carnut, Leonardo, e Áquilas Mendes. 2020. Estado, golpe e regime político: o dilema institucionalismo versus historicização na saúde. Izquierdas 49: 3631-3648.), o momento neofascista na saúde pública tem nessa Emenda seu marco inicial.

A articulação dos grupos empresariais por meio de uma trama complexa de relações tem sua expressão condensada na chamada “Coalizão Saúde”, grupo de associações e de empresas que convergem no intuito da mercantilização dos serviços de saúde em relações público-privadas imbricadas com ações governamentais, partidos políticos e, claro, na execução da política de saúde no SUS em todos os níveis de atenção.

Em que pese que o mix público-privado seja preconizado pelo SUS desde o seu nascedouro e encontre diversas expressões na organização do sistema, o tema relacionado ao momento histórico vivenciado com o neofascismo encontra nessa coalização27 27 Para ver os grupos, associações e empresas que fazem parte da Coalizão Saúde (Icos). 2017. Acessado em 10 fev. 2022, http://icos.org.br/quem-somos/associados-2. sua expressão mais fascistizada. Conforme dados de Bravo, Pelaez e Menezes (2020Bravo, Maria Inês S., Elaine J. Pelaez, e Juliana S. B. Menezes. 2020. A Saúde nos governos Temer e Bolsonaro: Lutas e resistências. SER Social 22 (46): 191-209. https://doi.org/10.26512/ser_social.v22i46.25630.
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, 197-198), ainda no:

governo Temer [houve] articulação efetiva com o setor empresarial de saúde. O documento “Coalizão Saúde Brasil: uma agenda para transformar o sistema de saúde”, divulgado em 2017, elaborado pelo Instituto Coalizão Brasil, objetiva construir um novo sistema de saúde para o Brasil e defende a tese de que os setores público e privado precisam construir uma rede integrada de cuidados contínuos, a qual pressupõe maior participação da iniciativa privada na gestão dos serviços.

Em março de 2020, com a decretação de emergência sanitária em função da pandemia do novo coronavírus, Bolsonaro e seu núcleo neofascista identificaram na Covid-19 a oportunidade de manter um estado de “crise permanente” que justificasse o peso da “mão militar” na condução do estado, especialmente, como forma de iludir o público mais despolitizado. Aliado à sensação concreta de perda de capacidade de compra e ao desemprego em alta na classe trabalhadora mais precarizada, juntamente com a herança de um ranço neoescravocrata da classe média, forjou-se a possibilidade de manipular politicamente a pandemia em uma retórica genocida (como “apenas uma gripezinha”), contando com uma burguesia associada ao seu projeto de maneira contundente.

Especialmente os representantes que acessaram postos no estado lideraram, ainda que em um primeiro momento, posições convergentes ao projeto genocida. Esses personagens que assumiram a pasta da saúde importam muito neste debate, por isso, nomeá-los e identificar as suas relações são dados essenciais para compreender a conjuntura. Luiz Henrique Mandetta, ortopedista com breve passagem como médico de um hospital militar, foi o primeiro Ministro da Saúde de Bolsonaro. Ele é ligado, por exemplo, a um plano privado de saúde (Unimed) e, quando deputado, votou a favor do golpe que depôs a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ele foi exonerado por não consentir a flexibilização do isolamento social, o que deixou a esquerda liberal descontente, pois, para este grupo do espectro político, mesmo sendo um representante direto da burguesia médica privada, Mandetta mantinha embasamentos técnicos e científicos em suas estratégias de enfrentamento ao problema (Carnut, Mendes e Guerra 2020Carnut, Leonardo, Áquilas Mendes e Lúcia D. da S.Guerra. 2020. Coronavirus, Capitalism in crisis and the perversity of public health in Bolsonaro’s Brazil. International Journal of Health Services 50: 1-13. https://doi.org/10.1177/0020731420965137.
https://doi.org/10.1177/0020731420965137...
).

Com a demissão de Mandetta, em seguida, assumiu Nelson Teich, oncologista, empresário ligado ao lobby da indústria farmacêutica. Sem nenhuma experiência pregressa de gestão pública do SUS, ainda assim, Teich foi aclamado pela Associação Médica Brasileira (AMB) como um nome avalizado para assumir o cargo. Sob forte pressão de Bolsonaro para assinar o protocolo de uso da cloroquina no tratamento da Covid-19, Teich não cedeu, pedindo exoneração com apenas 90 dias de trabalho na pasta. Percebe-se que até mesmo os legítimos representantes dos interesses do capital não sobreviveram ao traço neofascista de Bolsonaro (Carnut 2020bCarnut, Leonardo. 2020b. SUS e o coronavírus: uma breve análise de conjuntura. Trabalho & Saúde: Revista do Diesat 30: 3-5.).

Com o processo de desfinanciamento do SUS e o caminho pavimentado, ainda pelo governo de Lula-Dilma, com o projeto de lei dos planos acessíveis (PL n. 7419/2006), foi permitido o avanço do setor privado na saúde, que se aproveitou da crise sanitária para florescer seus negócios. A morosidade proposital da capacidade de enfrentamento institucional do Ministério da Saúde à pandemia, juntamente com os problemas de operacionalização do SUS e da aquisição de insumos fundamentais, reforçou uma busca de atendimento privado (testes diagnósticos, máscaras especiais, álcool em gel, equipamentos médico-hospitalares, entre outros), reaquecendo o mercado privado.

Não obstante, parte do empresariado bilionário, a exemplo de Jorge Neval Moll Filho (da Rede D’Or, com US$ 11,3 bilhões); Dulce Pugliese de Godoy Bueno (Amil, com US$ 6 bilhões); Pedro de Godoy Bueno (Dasa, com US$ 3 bilhões); Maurizio Billi (Eurofarma, com US$ 1,4 bilhão), aproveitou-se da situação de terra arrasada no SUS para lucrar com a demanda que foi drenada para o seu setor.28 28 Laporta, Thais. 2011. Quem são os 11 novos bilionários brasileiros na lista da Forbes em 2021. InvestNews, 8 abr. 2021. Acessado em 10 fev. 2022, https://investnews.com.br/geral/quem-sao-os-11-novos-bilionarios-brasileiros-no-ranking-da-forbes-2021. O caso mais expoente desse avanço dos negócios da saúde com a crise sanitária foi do Grupo Hapvida, que teve um crescimento de 62,7% da receita líquida, chegando a R$ 2,1 bilhões durante a pandemia de coronavírus. A Hapvida fez, ainda, uma série de empreendimentos recentes, como a compra do grupo São Francisco, maior operadora de saúde do Brasil. Candido Pinheiro Koren de Lima, do Hapvida (US$ 3,7 bilhões); Jorge Pinheiro Koren de Lima, do Hapvida (US$ 1,8 bilhão) e Candido Pinheiro Koren de Lima Junior (US$ 1,8 bilhão) são seus sócios,29 29 Magno, Alan. 2020. Lista da Forbes: dos 238 bilionários brasileiros, 16 são cearenses. O povo online, 21 set. 2020. Acessado em 10 fev. 2022, https://www.opovo.com.br/noticias/economia/2020/09/21/lista-da-forbes--dos-238-bilionarios-brasileiros--16-sao-cearenses.html. alguns deles ligados ao grupo Coalizão Saúde.

É importante lembrar que os fascistas não chegam ao poder sozinhos, logo, o apoio de uma burguesia associada, aqui, no caso, o setor saúde, que encampe seu projeto, é essencial na sustentabilidade política do espectro neofascista no governo. Em troca do apoio da máquina estatal para avançar com seus negócios no mercado sanitário, aumentando sua rentabilidade, essa burguesia é omissa e mantém-se como cúmplice do projeto de genocídio do governo carreado por um “núcleo duro”.

Contudo, alguns membros são fascistas explícitos. Especialmente no caso da comunidade médica, alguns nomes têm sido aventados como personagens que sustentem a ligação orgânica dessa categoria com o governo Bolsonaro. Isso foi verificado com o posicionamento de membros da cúpula do Conselho Federal de Medicina (CFM) que aconselham diretamente o governo Bolsonaro, os quais permitem que o órgão promova cursos sobre falsos tratamentos para Covid-19, e, ainda, que siga protegendo médicos negacionistas. Segundo Lara:

[...] médicos que insistem em prescrever remédios sem eficácia comprovada para a doença se preparavam para pregar o chamado tratamento precoce em uma live promovida pelo grupo Médicos pela Vida. Na programação, havia um convidado ilustre: o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Emmanuel Fortes, escalado para falar no primeiro painel do evento [grifo nosso].

Conforme Lara,30 30 Lara, Bruna de. 2021. Cúpula do CFM é peça-chave da tragédia que nos levou a 290 mil mortos por Covid-19. The Intercept Brasil, 19 mar 2021. Acessado em 10 fev. 2022, https://theintercept.com/2021/03/19/cfm-290-mil-mortos-por-covid-19. “Fortes acabou cancelando o compromisso e foi substituído [por] Fernando Pedrosa, presidente do Conselho Regional de Medicina, o CRM, de Alagoas”. Em agosto de 2020, a discussão sobre o “tratamento precoce” apresentada nesses cursos relacionava o papel “preventivo” de medicamentos para Covid-19, sabidamente sem eficácia científica comprovada, como é o caso da hidroxicloroquina, da ivermectina e da azitromicina. Estes “treinamentos” relacionados ao uso dos medicamentos para tratamento da Covid-19 têm, também, rendido ganhos financeiros aos organizadores:

Se isso tivesse sido feito quando o tratamento precoce com cloroquina, azitromicina e ivermectina provou-se falso, conforme mostram estudos mais recentes e consolidados, os médicos poderiam ter sido orientados a parar de receitá-lo. Mas não é mais novidade que os conselhos ignoraram essas responsabilidades durante a pandemia. O presidente do CFM, Mauro Ribeiro – acusado pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul de ter faltado a 873 plantões e embolsado o dinheiro desses expedientes na Santa Casa -,31 31 As Santas Casas são complexos hospitalares de ensino que, por lei, são considerados filantrópicos, mas apresentam diversas relações com o setor privado lucrativo, inclusive fazendo parte da Coalizão Saúde. veio a público em janeiro deixar claro que médicos não seriam proibidos de receitar medicamentos comprovadamente ineficazes para Covid, muito menos punidos por isso.21

Mesmo sob a evidência da ineficácia dos medicamentos, no final do mês de maio, foi publicado, às pressas e de forma autoritária, pelo MS, um protocolo para o uso da cloroquina, inclusive em espaço ambulatorial, como, por exemplo, na Atenção Básica. Esse protocolo abrange todos os casos clínicos de infecção por Covid-19, incluindo os mais leves. Nesse sentido, o projeto de morte do neofascismo se capilariza pela Atenção Primária em todo o país, levando uma “possibilidade de cura” que, na realidade, sendo inócua, deixa o usuário à mercê da própria sorte. Esse traço perverso, segundo Jardim,32 32 Jardim, Ítalo. 2020. Por quem os sinos dobram. Revista Movimento, 8 maio 2020. Acessado em 10 fev. 2022, https://movimentorevista.com.br/2020/05/por-quem-os-sinos-dobram. é típico de todo fascista. A palavra perverso detém a ideia de má versão da vida no seu sentido mais simples. Assim, pode-se afirmar que os fascistas e, sem dúvida, os neofascistas são pervertidos e têm relativo prazer por situações mórbidas. O prazer pelo macabro pode ser simbolizado por passeatas em que carregam caixões celebrando a morte, como aconteceu na Avenida Paulista e na famosa declaração de que é preciso matar mais 30 mil pessoas para que “o Brasil dê certo”.

Especialmente sobre a ofensiva do capital na atenção primária (forma de capilarizar sua ação via SUS), novas formas de privatização, inclusive do espaço físico e sua forma de propriedade, estão em jogo. Em polêmica e arbitrária atuação, o governo Bolsonaro, em conjunto com Paulo Guedes (Ministro da Economia), promulgou o Decreto n. 10.530/2020. Na “letra da lei”, esse Decreto, escrito de forma sintética com um artigo apenas, dispõe sobre a “qualificação” da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República. Seu objetivo, segundo seus próprios dizeres, é assegurar a elaboração de “estudos de alternativas” de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a “modernização” e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (Mendes e Carnut 2020Mendes, Áquilas e Leonardo Carnut. 2020. A atenção primária à saúde privada do decreto presidencial n. 10.530/2020. Revista Movimento, 28 out 2020. Acessado em 10 fev. 2021, https://movimentorevista.com.br/2020/10/a-atencao-primaria-a-saude-privada-do-decreto-presidencial-no-10-530-2020.
https://movimentorevista.com.br/2020/10/...
).

Mesmo sendo revogado dois dias depois, após forte reivindicação do campo sanitário progressista, artistas e movimentos via mídias sociais fizeram intensa pressão, além de partidos políticos do campo da esquerda. Entretanto, o principal determinante dessa revogação parece ter sido o clima de desentendimento entre o Ministro da Saúde, à época, militar da ativa, General Pazuello, que se sentiu “atropelado”, já que ninguém na pasta sabia dessa intenção. Essas ações autoritárias pegaram de surpresa inclusive o próprio secretário da Atenção Primária à Saúde, à época, o médico fascistizado Rafael Parente, que, em áudio vazado, assumiu não ter ciência de tal decisão. Mesmo sob a revogação, o projeto de aniquilar o ethos público do SUS e abrir espaço para o seu “núcleo duro” (representado majoritariamente pelo agronegócio) sobrevive no Decreto 10.531/2021 (promulgado no mesmo ato),33 33 Mendes, Áquilas e Leonardo Carnut. 2020. A atenção primária à saúde privada do decreto presidencial n. 10.530/2020. Revista Movimento, 28 out 2020. Acessado em 10 fev. 2022, https://movimentorevista.com.br/2020/10/a-atencao-primaria-a-saude-privada-do-decreto-presidencial-no-10-530-2020. que não foi alvo de revogação e está associado ao projeto herbicida representado pelo neofascismo de Bolsonaro.

É pertinente lembrar que, no contexto do desmonte de direitos sociais que assistimos no governo neoliberal fascista Bolsonaro, a saúde tem sido atacada constantemente, em sintonia com as tendências internacionais (Relatório do Banco Mundial) e o documento “Propostas de Reformas do Sistema Único de Saúde Brasileiro”, apresentado na Câmara dos Deputados, com foco na atenção primária. Essa proposta tem sido apontada como um novo lócus de acumulação de capital, particularmente, no que tange ao aprofundamento das formas de intensificação do trabalho e de drenagem do gasto público em direção aos modelos privatizantes de gestão.

Todos esses atos demonstram a complexidade e a pluralidade do fenômeno neofascista brasileiro e como ele se expressa no setor da saúde. A especificidade doméstica do fenômeno e suas formas particulares se engendram nas classes e permitem dizer que o momento neofascista do neoliberalismo brasileiro encontra sua ascensão em Bolsonaro. Portanto, o rótulo neofascista do governo Bolsonaro não deveria surpreender de modo algum. Pesquisas demonstram a sobrevivência do fascismo integralista em linhagens de classes sociais e organizações neofascistas de hoje (Doria 2020Doria, Pedro. 2020. Fascismo à brasileira: como o integralismo maior movimento de extrema-direita da história do país se formou e o que ele ilumina sobre obolsonarismo. São Paulo: Grupo Planeta.). Claro que, como coloca Mattos (2020)Mattos, Marcelo B. 2020. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial., esperar clones precisos e replicantes biorrobóticos do fascismo entreguerras é uma grande ilusão. Contudo, existem várias evidências históricas que comprovam que o neofascismo que encontrou terreno para ascender após a crise do capital em 2008 tem ligações orgânicas com seu passado Goebbelsiano (à la Roberto Alvim – ex-Ministro da Cultura de Bolsonaro). Essas são apenas algumas evidências que demonstram a nova formação política do tipo “fascista explícito” vivenciada no Brasil de Jair (Mendes e Carnut 2020Mendes, Áquilas, e Leonardo Carnut. 2020. Crise do capital, estado e neofascismo: Bolsonaro, saúde pública e atenção primária. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política 57: 174-210.).

Considerações finais

Na visão marxista, o neofascismo é um tipo de fascismo que rememora elementos muito fundamentais do fascismo clássico, entretanto, é adaptado e reinterpretado à conjuntura vigente. No cerne de sua gênese, a questão da crise do modo de produção capitalista é central enquanto mobilizadora de um movimento social e de uma forma de dominação política à extrema-direita.

Entender o neofascismo ajuda a pensar em uma teoria unitária que permita fazer enfrentamento conjunto, sem fragmentar pautas. Entender o neofascismo que se vive hoje dentro dessa chave unitária torna possível que forças sociais importantes convirjam para o enfrentamento do problema. É importante ratificar que os fascismos se sustentam com o endosso popular das camadas médias e de parte da classe trabalhadora, que creem, por exemplo, que, no caso da saúde, desfinanciá-la é uma saída para a superação do estado de crise.

Do ponto de vista do capital internacional, seja na Europa ou no Brasil, suas feições ganham diferenças reais na materialidade dos fatos, mas sua essência é a mesma. Os neofascistas não se sustentam sozinhos, mas através de uma rede de frações burguesas fascistizadas que veem no neofascismo uma saída para a crise do capitalismo neoliberal de longa duração, auferindo lucros vertiginosos com a indigência de muitos, especialmente em cenários de devastação, como no caso do coronavírus.

Por isso é que a diferença entre o fascista e o burguês é mínima. Aquilo que o burguês faz lamentando, o fascista faz sorrindo... mas, no final das contas, os dois fazem exatamente o mesmo: destruir a classe trabalhadora.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2021
  • Aceito
    23 Nov 2021
  • Publicado
    03 Nov 2022
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