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“A prometida”: Normas educativas e práticas disciplinares em comunidades ribeirinhas da região do Tapajós, estado do Pará

“On the bench”* * “On the bench” is a tentative translation of a local expression “a prometida” (literally, “the promised”) used by a mother to say that she hadn't physically punished her daughter for a while, but “promised” to do so, reinforcing the role of threats in the local disciplinary practices. : Educational norms and disciplinary practices in riverside communities in the Tapajós region, Pará

Resumo:

Este artigo é fruto da confrontação entre a atual discussão em torno do projeto de lei contra os castigos físicos na educação das crianças no Brasil e as práticas educativas e disciplinares observadas nas comunidades ribeirinhas da região do Tapajós. A pesquisa etnográfica realizada em duas destas comunidades (13 meses de campo entre 2010 e 2012) revela que as relações parentais ali são marcadas por uma forte hierarquia e que, o que é localmente percebido como permissividade de pais ou cuidadores, é considerado uma “falha” parental das mais graves, interpretada inclusive como falta de amor. Neste contexto, os castigos físicos integram o repertório de dispositivos disciplinares. No entanto, a análise dos dados mostra uma ambivalência na opinião de pais e cuidadores: por um lado, eles são unanimemente contrários à proibição legal dos castigos físicos, reivindicando a importância de poder recorrer à eles, por outro, sua aplicação não deixa de provocar desconforto e a maioria das pessoas relata a importância de não tornar a prática uma rotina, buscando em cada caso uma “justa medida”. A atitude mais valorizada é aquela que instaura eficazmente respeito e obediência das crianças em relação aos adultos que os educam, mas com o mínimo de violência física possível. O papel das ameaças e a crucial margem de liberdade que o conjunto do ambiente (físico e social) oferece às crianças são também evocados no artigo, já que esses elementos marcam de maneira determinante a experiência cotidiana das crianças neste contexto.

Palavras-chave:
Comunidades ribeirinhas; Educação; Práticas disciplinares; Castigos físicos

Abstract:

In this paper, I confront the current discussions about the bill against corporal punishment of children in Brazil, with field observations of educative and disciplinary practices in two rural villages on the shores of the Tapajós River (Brazilian Amazon). Ethnographic research in these villages shows that there is a strong hierarchy between generations and parents' permissiveness is one of the “defects” less tolerated; it is perceived as an evidence of lack of love. Corporal punishment does exist, but is kept to a minimum. There is an ambivalence in parents' opinions: on one side, all interviewees are against the interdiction of corporal punishment, claiming it is important to be permitted to use physical punishment if necessary, on the other hand, they mention the embarrassment they experience on these occasions and many mention the risk of physical punishment becoming usual. The most valued attitude is one that successfully instills respect in children vis-à-vis adults who educate them with the least possible violence. The paper also considers the role of threatening injunctions and the crucial margin of discretion set by the environment (social and physical), elements that critically shape children's daily experience.

Keywords:
Amazonian river-dwellers; Education; Disciplinary practices; Physical punishment

Não é nenhuma novidade a forte disparidade que pode haver entre as normas de “boa parentalidade” promovidas por agentes estatais e organizações-não-governamentais, orientados pelos os princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e certas práticas situadas de parentalidade principalmente quando estes “sítios” se localizam em zonas rurais, por definição distantes dos centros de informação e de influência ideológica que são os grandes centros urbanos. A mídia, no Brasil mas praticamente em todos os países, em sua maioria formada e representando pessoas oriundas desse sistema de valores da modernidade urbana, não deixa de noticiar, frequentemente de forma dramática1 1 Não se trata aqui, evidentemente, de questionar o caráter dramático das histórias individuais apresentadas (crianças em cativeiro, abusos graves e regulares) mas sim a representatividade desses casos, já que eles vêm frequentemente associados a dados gerais que englobam situações extremamente diversas. A mesma lógica de “exemplaridade do extremo” é denunciada por Rosemberg e Freitas (2002) e Prado (2011) no que se refere ao trabalho infantil. alguns desses casos “díspares”, quando eles ganham notoriedade local.

Durante a minha pesquisa de doutorado em antropologia da aprendizagem na região do baixo Tapajós, esta disparidade me saltou aos olhos nos primeiros meses de campo. Eu que havia, poucos anos antes, trabalhado como agente governamental promovendo (pregando?) a importância e a superioridade evidente de uma educação conforme aos princípios dos “direitos da criança”, me via agora na obrigação profissional, senão oposta, pelo menos radicalmente diferente: a de observar estas práticas sem julgá-las, e mais, a obrigação de tentar entender esses comportamentos do ponto de vista dos atores que as praticam.

Não foi sem conflito interno que adotei essa postura e não é ainda sem certo incômodo (sensação de saia justa) que trago esse assunto à tona na minha pesquisa e neste artigo. Diante da educadora assim como da antropóloga, antes dos sujeitos de pesquisa ou de políticas públicas, estavam pessoas e suas vidas. E a maneira pela qual minha ação profissional poderia afetá-las, sempre me importou em primeiro plano. Não cabe aqui fazer uma discussão ética aprofundada dos caminhos desta pesquisa. Partilho com o leitor apenas a aposta simples, de principio antropológico, que fiz quando adotei o ponto de vista desta disciplina: a aposta de que entender, permite melhor interagir.2 2 Acompanhando de longe as diferentes manifestações populares que chacoalham o Brasil desde junho de 2013, as análises que me soam mais sensatas da situação parecem fazer essa mesma aposta em relação a violência. Como resume Antônio David se referindo aos “Black Blocs”: “Se eles estão certos ou errados, é outra coisa. O que importa é que eles têm suas razões. Cabe à esquerda entende-las” (David, 2013).

Neste artigo sigo o caminho aberto por esta aposta para tratar de um tema particularmente “espinhoso”: a utilização de castigos corporais na educação das crianças.3 3 Este artigo nasceu do diálogo frutífero e prazeroso com Fernanda Bittencourt Ribeiro. Sua pesquisa (ver artigo neste volume) sobre a elaboração do projeto de lei conhecido como “lei da palmada” rapidamente me interpelou e decidimos então cruzar nossos trabalhos. Durante minha última estadia em campo, realizei então entrevistas centradas nesta questão. Este cruzamento deu origem a duas apresentações conjuntas: em agosto de 2012 em Porto Alegre, no Ciclo de debates Crianças e infâncias em contextos, realizado na Pucrs, e em maio de 2013, em Paris, no evento Journées Internationales ‘A quelles disciplines appartiennent les enfants?', realizado na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS), onde apresentamos a comunicação Des “disciplines” en question: projet de loi contre les punitions corporelles faites aux enfants, résonances et débats brésiliens. Para tanto apresentarei uma descrição etnográfica das práticas disciplinares e da utilização de castigos corporais em duas comunidades riberinhas da região do baixo Tapajós, no estado do Pará. O recurso aos castigos corporais acontece ali de forma esporádica e eu mostrarei a tensão existente entre a percepção da legitimidade de poder recorrer aos castigos e a tentativa de minimizá-los no processo de instauração da autoridade nas relações entre os adultos e as crianças das quais eles se ocupam no cotidiano.

Para melhor apreender essas práticas, apresentarei os contornos do sistema educativo no qual se inscrevem, assim como as premissas morais às quais elas respondem. Esta abordagem de conjunto nos permitirá identificar as representações locais da “boa parentalidade” (e, por contraste, do que se entende localmente por maus tratos) colocando em relevo a disparidade entre o discurso oficial e a realidade vivida no cotidiano destes ribeirinhos da Amazônia.4 4 Limito-me aqui à compreensão do ponto de vista dos adultos, conforme suas práticas e ideias sobre a parentalidade. Certamente, seria muito interessante confrontá-las à percepção das crianças sobre o assunto. No entanto, essa confrontação requer, a meu ver, o desenvolvimento de dispositivos específicos para este objetivo, contando com a contribuição de diferentes disciplinas para dar conta de captar essa percepção em profundidade.

Não se trata, portanto, de uma defesa culturalista destas práticas nem da busca relativista de justificativas para a utilização de castigos físicos. Mas sim de uma perspectiva analítica que privilegia a proximidade compreensiva das práticas e dos discursos cotidianos como modo de evitar o efeito estigmatizante que, com frequência, tende a potencializar violências justamente quando se pretende combatê-las (Grinberg, 2010GRINBERG, Julieta. De “malos tratos”, “abusos sexuales” y “negligencias”. Reflexiones en torno al tratamiento estatal de las violencias hacia los niños en la ciudad de Buenos Aires. In: VILLALTA, Carla (Org.). Infancia, justicia y derechos humanos. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2010.; Schulteis et al., 2007SCHULTHEIS, Franz; FRAUENFELDER, Arnaud; DELAY, Christophe. Maltraitance – contribution à une sociologie de l'intolérable. Paris: L'Harmattan, 2007.).

“Ribeirinhos” do Tapajós: organização social e premissas morais

As duas comunidades nas quais este estudo foi realizado têm 600 e 950 habitantes cada e se situam a aproximadamente uma noite de barco da cidade de Santarém.5 5 A pesquisa de campo realizou-se em treze meses de estadia nestas duas comunidades. Como tratarei aqui de práticas que estão, ou correm o risco de estar em breve, em conflito com o sistema legal nacional, os nomes das comunidades serão omitidos e todos os nomes próprios foram mudados. Seus habitantes vivem principalmente da agricultura de subsistência (produção de farinha de mandioca), da pesca, caça e extração de produtos da floresta e, desde a instauração de programas sociais redistributivos criados pelo governo Lula, estes completam suas rendas de maneira significativa. Ali se fala português e, a partir dos anos 1990, os moradores passaram a ser identificados pelos órgãos governamentais (Ibama/Icmbio, Incra) como “populações tradicionais”.6 6 Durante as duas últimas décadas, o Brasil, e a região amazônica em particular, conheceu um processo de redistribuição e/ou regularização territorial importante, com a criação de inúmeras unidades nacionais de conservação ambiental. Neste cenário, o compromisso entre a conservação ambiental e a luta pela garantia da permanência de antigos moradores dessas áreas faz surgir a categoria de “populações tradicionais” (Barreto Filho, 2006; Santilli, 2005). Mais recentemente (a partir principalmente de 2005) uma parte dessas pessoas iniciou um processo de reivindicação identitária indígena, criando uma situação delicada já que a reivindicação não é consensual entre os moradores.

Não é o objetivo aqui entrar nos detalhes complexos dessa situação, e para além das questões identitárias ou dos abundantes discursos em torno dela, o que me interessou analisar durante meu doutorado foram práticas cotidianas concretas dessa população. Com o olhar voltado sobretudo para as interações entre adultos e crianças, e de crianças entre si, meu objeto de pesquisa são as práticas de transmissão e de aprendizagem familiares e comunitárias (ou seja, toda a aprendizagem que acontece fora da escola). Nesse caminho, me foi também indispensável compreender as relações de poder e de status, as premissas morais e os valores centrais que enquadram essa relação entre as gerações. Apresento aqui uma breve descrição do quadro geral desses valores, de modo a apreender o uso dos castigos corporais no interior desse sistema educativo mais amplo.

Nessas comunidades ribeirinhas as relações são marcadas por uma clara hierarquia entre gerações e também por uma divisão sexuada das responsabilidades cotidianas: cabe às crianças (e aos membros das gerações mais jovens de maneira geral) respeitar, obedecer e servir os mais velhos, assim como caberá principalmente às mulheres o trabalho doméstico e o cuidado e educação das crianças. No que se refere à relação intergeracional que nos interessa particularmente neste artigo, espera-se das crianças (no duplo sentido da palavra, filho e criança) que elas ajudem nas tarefas domésticas e nas atividades produtivas da família, que não interrompam as conversas de adulto e não os incomodem em suas atividades. Como resume Cleide (72 anos): “Filho, pra mim, não veio pra dar trabalho”. Falando sobre sua neta de 11 anos, a avó sugere que a menina seja enviada ao pai: “lá ela vai poder servir ele, cuidar da roupa, da comida… ao invés de ficar aí dando problema pra mãe. E quem sabe ele não vai conseguir pôr um pouco de cabresto nela?”

Já num tom elogioso Eliane (41 anos) comenta: “Esses meus filhos, Chantal, eles são muito bons… Olha esse mais velho, o Henrique. Eu e Desidério, a gente ia pra roça e eu dizia pra ele: ‘meu filho você limpa tudo aqui a casa, faz comida pra ti, pros teus irmãos tudinho, dá de comer pra eles e deixa um pouco pra mim com teu pai. Dá banho neles que quando eu chegar, quero tudo arrumadinho'. E nós chegava, Chantal, e tava tudo direitinho como eu tinha falado!”

Inúmeros outros diálogos ou cenas poderiam ser aqui restituídos para mostrar o que me parece uma característica central das relações intergeracionais neste contexto: cabe aos mais jovens se adaptar e auxiliar os adultos em suas tarefas cotidianas.

Os elementos centrais desse quadro estão longe de ser exclusividade deste contexto amazônico e foram percebidos com frequência (mas em graus e modalidades diversas, é certo) em outros contextos rurais e campesinos (Almeida, 1986ALMEIDA, Mauro. Redescobrindo a família rural brasileira. Revista brasileira de ciências socias, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 66-83, 1986.; Bourdieu, 1963BOURDIEU, Pierre. Sociologie de l'Algerie. Paris: PUF, 1963.; Mendras, 1976MENDRAS, Henry. Sociétés paysannes. Paris: Armand Colin, 1976.; Woortman, 2001WOORTMAN, Klaus. O modo de produção doméstico em duas perspectivas: Chayanov e Sahlins. Série Antropologia. v. 293. Brasília: UnB, 2001, p. 2-28.). O que torna, a meu ver, ainda mais interessante a confrontação ou o paralelo com normas que se pretende instituir legalmente em nível nacional. No que se refere à utilização de castigos corporais, Ribeiro (2013)RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. Governo dos adultos, governo das crianças: agentes, práticas e discursos a partir da “lei da palmada”. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 2, maio-ago. 2013. já se ocupou de examinar o processo de construção dessas normas legais e seus pressupostos. O refrão “criança não trabalha, criança dá trabalho” do grupo musical Palavra Cantada, me parece resumir bem essa perspectiva, segundo a qual, na relação entre adultos e crianças, todos os esforços e energias devem convergir para o interesse da criança.

Termo a termo oposta, a “norma” nessas comunidades ribeirinhas prevê que as crianças trabalhem, e não deem trabalho. Os esforços e energias visam o bem estar do grupo familiar como um todo, dirigido de maneira explícita pelos adultos que os habitam. Como explica Salete (52 anos): “faz bem pra família, Chantal… olha porque senão eu tava olha, tava despregada aqui, sozinha, tinha tudo ido embora. Mas não, tão tudinho aqui perto de mim. E quando eram pequenos, iam buscar água… era um monte de filho, de repente enchia uma caixa de água…”

Outro aspecto das relações neste contexto merece a meu ver ser destacado. Trata-se do papel secundário que a linguagem, na sua função explicativa, exerce nas interações cotidianas. Isso se reflete fortemente nos processos educativos. Como alguns autores já identificaram em outros contextos e em situações de aprendizagem “informais”, ou que não envolvem a escrita (Lave e Wenger, 1991LAVE, Jean, WENGER, Etienne. Situated learning: legitimate peripheral participation – learning in doing. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.; Paradise e Rogoff, 2009PARADISE, Ruth; ROGOFF, Barbara. Side by side: learning by observing and pitching. Ethos, v. 37, n. 1, p. 102-138, Mar. 2009.; Pierrot, 2011PIERROT, Alain. Le silence des Aînés. In: DE GRAVE, Jean-Marc (Org.). Dimension formelle et non formelle de l'éducation en Asie orientale: socialisation et rapport au contenu d'apprentissage. Aix-en-provence: Presses Universitaires de Provence, 2011. p 8-23., 2013PIERROT, Alain. Compétence, oralité et écriture. In: LEGUY, Cécile (Org.). Compétences et performances. Paris: Karthala, 2013, p. 34-44.), no Tapajós raramente as diferentes aprendizagens passam pela palavra ou mesmo pela proposição de situações didáticas. Aprender, desde técnicas de pesca, caça, valores ou atitudes morais, até as complexas técnicas de construção de canoas e barcos, depende principalmente de uma postura ativa do aprendiz (criança ou não), tanto através da observação atenta dos gestos dos mais experientes, quanto da experimentação individual quando permitida (Medaets, 2013). Como afirma o antropólogo Mark Harris (2001)HARRIS, Mark. Life on the Amazon: the anthropology of a Brazilian peasant village. Oxford: British Academy, 2001. é uma sociedade do fazer e não do dizer. O recurso aos castigos corporais parece fazer par com esta postura que privilegia o agir sobre o dizer.

Descrição das práticas: atitudes diferenciadas conforme a idade

Mas no que consistem essas punições ditas educativas neste contexto? Antes de descrever alguns exemplos, cabe observar uma distinção local entre as crianças pequenas (em geral, com até dois anos e meio, três anos aproximadamente) e os mais velhos, a quem se referem como já sendo entendidos ou entendidinhos. Ser entendidinho é uma qualidade relativa ou processual, indicando não uma idade fixa ou transformação marcante, mas, sobretudo uma direção de desenvolvimento que poderia ser descrita como a de uma ampliação da consciência de si, do ambiente físico e social e de suas regras. David Lancy usa a expressão “making sense” (Lancy, 2008LANCY, David. The anthropology of childhood: cherubs, chattel, changelings. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.) para indicar, num estudo comparativo, que a maior parte das sociedades faz uma distinção similar entre duas fases na infância, antes da adolescência. Apesar da mobilidade da distinção, no que se refere aos castigos físicos, observei uma atitude claramente diferente em relação a crianças mais velhas (portanto entendidas) e as mais novas.

Presenciei diretamente apenas duas situações de punição corporal de crianças mais velhas. A primeira, um garoto de nove anos que recebeu tapas fortes na boca (até sangrar) por ter dito palavrões perto de sua mãe, e a segunda, um menino de dez anos que recebeu uma surra de cipó (escolhido por não ser nem muito duro, nem muito mole), por ter desobedecido a avó que o criava, ficando, segundo ela, muito tempo fora de casa, várias vezes seguidas. Outros sete episódios me foram relatados durante as minhas estadias em campo e muitos outros foram evocados enquanto memórias, durante as entrevistas. A maior parte dos relatos faz referência ao uso de instrumentos, como cipó, cinto e chicote. Uma história se distingue das demais, uma menina de doze anos teve os cabelos cortados curtos pela mãe, depois desta ter ouvido boatos de que a filha teria consumido álcool.

Já os mais novos, quando punidos, recebem em geral um tapa rápido, muito menos intenso do que no caso dos mais velhos e dado com o objetivo de marcar imediatamente uma ação inadequada: um lugar onde não podem ir, um objeto em que não podem mexer ou uma palavra que não podem dizer. Por exemplo, Jucilane (11 meses) brinca na cozinha em torno dos adultos. Um objeto atrai sua atenção: é um saco de farinha de mandioca (60 kg), no chão num canto da peça. Jucilane se aproxima e tenta alcançar a farinha. Sua avó vê e bate forte em sua mão, Jucilane chora, a avó diz em voz alta que aquilo não é brinquedo de criança. Jucilane chora ainda um ou dois minutos, ninguém a consola. Cenas como esta ocorrem frequentemente e com objetos de uso variado: instrumentos de trabalho, um porta retrato, um caderno da irmã mais velha… No entanto, mesmo que todos saibam o que ou onde não querem que bebês e crianças pequenas ponham as mãos, estes objetos não são colocados fora do alcance deles. A organização de uma casa com crianças pequenas não é diferente de qualquer outra e os objetos não são deslocados para evitar que os pequenos tenham acesso. Cabe à criança aprender no que pode ou não mexer e não ao adulto organizar o ambiente para limitar acessos ou evitar perigos. E a reprimenda física é usada para garantir esse aprendizado. Como se pode facilmente imaginar, rapidamente as crianças pequenas entendem as “regras do jogo” e na maior parte das vezes, um olhar será suficiente para evitar um gesto indesejado.

Nas entrevistas, a firmeza dessas primeiras correções é apresentada como fundamental. É como se elas “dessem o tom” da relação, indicando claramente a ordem hierárquica e permitindo assim, evitar punições futuras. Como diz Salete (52 anos): “Você acha que vai educar depois que ele vai entender, que crescer? Besteira manazinha… Porque tem um dizer popular muito verdadeiro que diz assim: se você não bate, não faz chorar a criança enquanto criança, você é que vai chorar depois”.

A busca de um equilíbrio frágil

No entanto, diferente do que Helen Kavapalu (1993)KAVAPALU, Helen. Dealing with the dark side in the ethnography of childhood: child punishment in Tonga. Oceania, Sydney, v. 63, n. 4, p. 313-329, June 1993. observou na Polinésia ou Sara Blank (2013)BLANK, Sara. Corporal punishment: the clash of international legislation versus local standarts of proper parenting in Dominica, West Indies. Comunicação apresentada durante a reunião bianual do Anthropology of Children and Youth Interest Group, San Diego, 2013. na região caribenha, os adultos destes comunidades amazônicas não manifestam qualquer tipo de prazer na prática de castigar. Ao contrário, quando convidados a falar sobre o assunto e a assumir portanto uma postura mais reflexiva, apesar de evocarem unanimemente a importância de poder recorrer aos castigos físicos, vários deles fazem também referência ao incômodo e ao sofrimento que estas situações lhes causariam: “Dói mais em mim que nele”, diz a mesma Salete, se referindo ao seu neto de 5 anos. A afirmação poderia ser entendida como uma justificativa cínica do agressor, no entanto, apoiando-me sobre o conjunto da etnografia, esta não é a minha interpretação. As entrevistas, trocas informais e observações me sugerem uma tensão real e contínua entre, de um lado, a necessidade que eles consideram indiscutível de instaurar a autoridade e garantir a obediência aos mais velhos, e de outro, a utilização da violência física para obter esse resultado.

Nesta tensão, entende-se que bater muito, muito frequentemente ou muito intensamente, pode ser contraprodutivo, pois resultaria em crianças revoltadas. Há um modo de castigar percebido como adequado, e que se opõe à outras maneiras de corrigir consideradas localmente como ineficientes ou como manifestação de “maldade mesmo: A minha avó, essa era uma ruim… Aquilo mana não precisava de um nada pra ela descer a peia…”

Por outro lado, observações como: “Mas também olha, foi só aquele dia…” ou “E, tu quer saber? Nunca mais ela fez. Eu digo que foi um bom remédio!…” são muito recorrentes e indicam que o “bom” castigo é aquele que tira o mau costume de uma vez por todas e evita uma segunda correção. As mães – pois como já mencionei, trata-se sobretudo de uma responsabilidade atribuída às mulheres – falam de um castigo aplicado no momento certo, de maneira incisiva, mas seguido de uma explicação – “tem que bater, mas aconselhando”. Isto deve servir de “alerta” para a criança que, acredita-se, precisa ser guiada: “Quem tem que dar o juízo é o pai, porque a criança não sabe… tudo que ela faz, ela acha que é bom. Mas também não é por isso que a gente vai viver batendo, porque não adianta…” afirma Rosario, 43 anos.

Este trabalho de “condução” é considerado como prova da responsabilidade dos pais: “Quando a gente não quer o mal do outro, a gente diz ‘olha isso não presta', e faz até ele entender. Mas se a gente não liga, deixa ele fazer o que quiser por aí…” explica Celeste, 52 anos. Neste contexto, os pais que deixam seus filhos “soltos” demais, são vistos como negligentes.

Claramente, a atitude mais valorizada é aquela que consegue instaurar a obediência das crianças com o mínimo de violência possível. O problema, que eles mesmos constatam, é que não é simples colocar em prática este equilíbrio (só no Tapajós?…). Este “equilíbrio ideal” aparece de maneira contundente nas narrativas que recorrem às histórias dos antigos, quase míticos de tanto que fazem brilhar os olhos dos meus interlocutores…: “Meu pai nunca bateu. Mas olha, só assim pelo jeito deles tratarem a gente, nem tinha como desobedecer… Hmm, a gente respeitava eles demais…” explica José, 62 anos. E se estes velhos casais já não estão mais em vida, o ideal, por sua vez, continua bem presente. E continua guiando as ações educativas atuais.

Nessas ações, portanto, os castigos corporais existem, mas devem ser acionados com parcimonia. A frequência efetiva destas práticas está longe de ser diária como observou Kavaphalu (1993) nas ilhas Tonga ou Ember e Ember (2005)EMBER, Carol; EMBER, Melvin. Explaining corporal punishment of children: a cross-cultural study. American Anthropologist, v. 107, n. 4, p. 609-619, Dec. 2005. em algumas populações do Oriente Médio. No contexto amazônico em que pesquiso, o castigo corporal não é valorizado “em si”, nem idealizado como afirma Blank (2013)BLANK, Sara. Corporal punishment: the clash of international legislation versus local standarts of proper parenting in Dominica, West Indies. Comunicação apresentada durante a reunião bianual do Anthropology of Children and Youth Interest Group, San Diego, 2013. em relação ao Caribe, ou Musil (1928)MUSIL, Alois. The manners and customs of the Rwala Bedouins: Oriental explorations and studies 6. New York: American Geographical Society, 1928. sobre os Rwala no Oriente Médio.

A violência da ausência: o avesso da história

Mas, se atitudes que são tidas como violentas pelas normas dominantes podem ser toleradas neste contexto amazônico, em caminho inverso, certos comportamentos que são bem aceitos pelo ethos urbano ocidental contemporâneo podem, por sua vez, ter uma conotação negativa (e mesmo violenta) para as comunidades ribeirinhas que estão aqui em questão. A liberdade da criança, sua criatividade, a valorização de suas produções, o direito de brincar e de se sujar (quem não se lembra da bela campanha publicitária do sabão em pó Omo?), são valores que não apenas não seduzem como são desvalorizados ou desaprovados do ponto de vista destes ribeirinhos (embora raramente eles diriam isso abertamente). Não é surpreendente que certas diretrizes no campo educacional, inspiradas nos princípios da “escola ativa” ou “escola nova”, façam pouco sentido ou sejam vistas com desconfiança nesse contexto.

Aqui, deixar os filhos circular livremente na comunidade, deixar que eles se sujem excessivamente brincando de terra, que tomem banho de rio só por brincar (esse negócio de tá pulando n'água. ..) ou subam em árvores sem nenhuma restrição, é percebido como negligência. Os pais que permitem frequentemente estas escapadas são criticados tanto por seus pares quanto por outras crianças. Eles são vistos como relaxados, pais que não estão nem aí pros filhos, que não têm paciência para ensinar. A falta de disciplina é percebida como uma evidente prova de incompetência parental, e mesmo de falta de amor pelas crianças. Como disse uma mãe de 32 anos: “são pais que não tem sentimento”.

Os riscos e perigos para as crianças são seguidamente evocados e é preciso ter em mente que, diante da distância dessas comunidades de um hospital e do custo do acesso a cuidados médicos, esse risco é real. Assim, o trabalho que um eventual acidente daria aos pais é também frequentemente mencionado para explicar essas proibições. Mas a observação mostra que, para além das atividades que poderiam expor as crianças a um risco real de acidente, a desobediência aos códigos sociais ou de convivência (simplesmente “não fica bem” que os outros vejam seus filhos pulando n'água muito tempo, ou andando de carrera pela comunidade) podem ser punidas fisicamente. O mesmo vale para a quebra ou desafio de regras rituais ou de convivência com o sobrenatural: ir numa parte do rio, riacho ou num caminho habitado por bichos ou seres encantados, por exemplo.

Se os pais considerados muito violentos suscitam comentários críticos, aqueles que, do ponto de vista local, dão muita liberdade às crianças, são ainda mais criticados por adultos e também por crianças, provavelmente reproduzindo seus comentários. David Wu (1981WU, David. Child abuse in Taiwan. In: Korbin, Jane (Org.). Child abuse and neglect: cross-cultural perspectives. Berkley: University of California Press, 1981. p. 139-165.apudMontgomery, 2009MONTGOMERY, Heather. An introduction to childhood: anthropological perspectives on children's lives. Chichester: J. Wiley-Blackwell, 2009.), conduzindo pesquisa na China, descreve uma situação análoga. Ele mostra que ali, a falta de disciplina mais do que o excesso, será considerada um comportamento abusivo nas relações com as crianças.

Ameaças e margens de liberdade

Ter presente as características do ambiente físico sobre o qual se constroem as relações sociais é crucial para poder apreendê-las corretamente (Ingold, 2000INGOLD, Tim. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routeledge, 2000., 2011INGOLD, Tim, Being alive: essays on movement, knowledge and description. London: Routeledge, 2011.). Nesse sentido, uma precisão sobre a disposição e o ambiente físico dessas comunidades me parece indispensável e servirá de ressalva ou contraponto à descrição que acabo de fazer.

As comunidades que descrevo aqui são comunidades pequenas (de interações face a face), com abundância de espaços abertos, curtas distâncias que separam a maior parte das casas e instituições (escola, campo e clube de futebol, igreja), casas sem cerca e forte densidade de parentesco entre os habitantes. Apesar de não terem permissão dos pais para exercer uma mobilidade total nesse território, as crianças podem, no entanto frequentar um número razoável de casas e lugares. Isso lhes permite percorrer, com a bênção dos pais ou cuidadores, um grande número de caminhos diários que lhes oferecem momentos (inúmeros momentos…) fora de alcance do controle adulto. E as crianças, claro, não perdem essas oportunidades para se lançar em atividades que não são “oficialmente” permitidas.

Esse cenário “interiorano” pode mesmo levar (e em geral leva) um visitante de passagem a imaginar uma vida infantil idílica, de contato íntimo com a natureza e liberdade irrestrita. Um olhar mais cuidadoso detectará que não é esse o caso, como mostrei acima. Na verdade, o rigor e a disciplina impostos pelos pais e as “brechas” ofertas pelo território se conjugam e se combinam na experiência concreta das crianças dessa beira de rio, que fica assim “nem tanto ao céu, nem tanto à terra”.

Trago um último ingrediente que vem temperar essa experiência da imposição de normas disciplinares nesse contexto amazônico: as ameaças. “Eu digo ‘olha que eu vou já pegar um cipó…' E ela vendo o cipó, já acalma. É… eu faço medo pra ela!” (risos), Arlete (24 anos).

A ameaça é onipresente no cotidiano dessas comunidades e a meu ver ocupa um papel central na busca do equilíbrio educativo entre obediência, respeito e o uso ou não da violência física. Todos os dias, várias vezes ao dia ouvimos esses “prelúdios ao ato”, ou ditas diretamente à quem se destinam ou incorporadas nos discursos das crianças: “né, Chantal, que a Camila tem que ir pra casa senão ela vai apanhar?”

Claudete (28 anos) me conta que hoje é muito raro bater na filha de 10 anos, mas que a ameaça frequentemente: “Mas… sempre eu ‘prometo' ela…, ela é ‘prometida' essa daí, ‘prometida'!” (risos)

As intimidações podem ser mais ou menos sérias e as crianças aprendem rapidamente a diferenciá-las através de indícios da expressão facial ou corporal, pelo tom de voz etc. Com o tempo, percebi que as ameaças menos sérias também têm um efeito sobre o comportamento das crianças que frequentemente diante delas, diminuem a intensidade das atividades visadas: uma criança que estava subindo numa árvore por exemplo, depois da intervenção tende a ficar nos galhos mais baixos, outra vai correr menos ou mais discretamente, e assim por diante. De certa forma, nessa negociação tácita entre o desejo de explorar das crianças e a necessidade de controle dos adultos, as ameaças representam mais uma brecha, ou mais precisamente um espaço intermediário, onde cada um cede um pouco e o conflito aberto não entra em cena.

Se por um lado as crianças do Tapajós convivem com adultos que raramente fazem concessão aos seus desejos, por outro, a margem de liberdade não oficial, mas bem real de que elas dispõem, permite que tenham um cotidiano em que o prazer, a frustração, as descobertas, o medo ou a alegria se combinam em doses que me pareceram em geral proporcionais.

Conclusões

Impor limites, mostrar afeição, instaurar respeito, proteger… são funções às quais praticamente todos os pais (ou adultos que se ocupam de uma criança) são confrontados na educação dos filhos. Em doses variáveis, a busca de um equilíbrio, de uma “justa medida” entre elementos antagônicos se faz também sempre presente no processo educativo. Entretanto, as diferentes escolhas e composições que podemos encontrar nos diversos contextos socioculturais têm uma importância política considerável se pensarmos em suas implicações num eventual diálogo com outros códigos normativos, como por exemplo com as legislações nacionais ou programas promovidos por ONGs ou organismos multilaterais.

Por hora, a discussão sobre a “lei da palmada” teve pouco (para não dizer nenhum) impacto na região deste estudo. A magra presença do estado nestas comunidades contribui certamente para isto. Nem professores do ensino fundamental – única instituição governamental presente aqui – e menos ainda os outros moradores, fazem distinção entre as diferentes iniciativas que promovem a proteção e o interesse das crianças, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Não pretendo, com as descrições e análises que apresentei aqui, defender um “protecionismo cultural” que visasse necessariamente poupar essas populações de qualquer exposição a projetos, normas ou leis que promulguem valores distintos dos que se pratica localmente. No entanto, intervenções que não levam em conta (e a sério) as especificidades locais correm o risco de ser desrespeitosas (Fonseca, 1999FONSECA, Claudia. O abandono da razão: a descolonização dos discursos sobre a infância e a família. In: SOUZA, André Luiz de (Ogr.). Psicanálise e colonização: leituras do sintoma social no Brasil. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.) ou pouco eficientes. Os dados recentes sobre o trabalho infantil no Brasil (OIT, 2013OIT. Domestic workers across the world: global and regional statistics and the extent oflegal protection. Genebra: OIT, 2013.; Repórter Brasil, 2013REPORTER BRASIL. Contribuições para o debate sobre a elimininaçao das piores formas do trabalho de crianças e adolescentes. São Paulo, 2013. <http://reporterbrasil.org.br/documentos/BRASILLIVREDETRABALHOINFANTIL_WEB.pdf> (22 out. 2013).
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) mostram que depois de duas décadas em que o país teve uma expressiva redução dos índices de crianças que trabalham, a partir de 2005 houve uma desaceleração no ritmo da diminuição e inclusive um aumento do índice para certas faixas etárias (de 10 a 13 anos). O que podem indicar esse números? Com certeza a resposta inclui diversos fatores, mas me parece plausível pensar que um deles pode ter sido a consideração insuficiente das diferenças culturais na compreensão dessa questão.

Restemos na questão dos castigos físicos e na discussão atual em torno da “lei da palmada” que incitou a escrita deste artigo. Se a intenção deste projeto de lei é produzir uma mudança de mentalidade, como mostra a análise de Ribeiro (2013)RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. Governo dos adultos, governo das crianças: agentes, práticas e discursos a partir da “lei da palmada”. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 2, maio-ago. 2013., parece-me que estratégias que dialogam com especificidades locais como as sintetizadas neste trabalho, poderiam contribuir mais para este objetivo do que a promulgação de uma lei coercitiva que pouco acrescenta ao que já está contemplado na legislação vigente.

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    “On the bench” is a tentative translation of a local expression “a prometida” (literally, “the promised”) used by a mother to say that she hadn't physically punished her daughter for a while, but “promised” to do so, reinforcing the role of threats in the local disciplinary practices.
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    Não se trata aqui, evidentemente, de questionar o caráter dramático das histórias individuais apresentadas (crianças em cativeiro, abusos graves e regulares) mas sim a representatividade desses casos, já que eles vêm frequentemente associados a dados gerais que englobam situações extremamente diversas. A mesma lógica de “exemplaridade do extremo” é denunciada por Rosemberg e Freitas (2002)ROSEMBERG, Fulvia; FREITAS, Rosangela R. Participação de crianças brasileiras na força de trabalho e educação. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 95-125, jan.-jun. 2002. e Prado (2011)PRADO, Renata Lopes Costa. Produção acadêmica e problemas sociais da infância: uma análise de artigos de psicólogos(as) sobre trabalho infanto-juvenil. Comunicação apresentada no 11° Conlab, Salvador, Brasil, 2011. <www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1306437515_ARQUIVO_texto_completo.pdf> (22 out. 2013).
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    no que se refere ao trabalho infantil.
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    Acompanhando de longe as diferentes manifestações populares que chacoalham o Brasil desde junho de 2013, as análises que me soam mais sensatas da situação parecem fazer essa mesma aposta em relação a violência. Como resume Antônio David se referindo aos “Black Blocs”: “Se eles estão certos ou errados, é outra coisa. O que importa é que eles têm suas razões. Cabe à esquerda entende-las” (David, 2013DAVID, Antônio. Quanto mais perseguir os Black Blocs, mais eles crescerão. Viomundo <http://www.viomundo.com.br/politica/antonio-david-6.html> (2 nov. 2013).
    http://www.viomundo.com.br/politica/anto...
    ).
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    Este artigo nasceu do diálogo frutífero e prazeroso com Fernanda Bittencourt Ribeiro. Sua pesquisa (ver artigo neste volume) sobre a elaboração do projeto de lei conhecido como “lei da palmada” rapidamente me interpelou e decidimos então cruzar nossos trabalhos. Durante minha última estadia em campo, realizei então entrevistas centradas nesta questão. Este cruzamento deu origem a duas apresentações conjuntas: em agosto de 2012 em Porto Alegre, no Ciclo de debates Crianças e infâncias em contextos, realizado na Pucrs, e em maio de 2013, em Paris, no evento Journées Internationales ‘A quelles disciplines appartiennent les enfants?', realizado na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS), onde apresentamos a comunicação Des “disciplines” en question: projet de loi contre les punitions corporelles faites aux enfants, résonances et débats brésiliens.
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    Limito-me aqui à compreensão do ponto de vista dos adultos, conforme suas práticas e ideias sobre a parentalidade. Certamente, seria muito interessante confrontá-las à percepção das crianças sobre o assunto. No entanto, essa confrontação requer, a meu ver, o desenvolvimento de dispositivos específicos para este objetivo, contando com a contribuição de diferentes disciplinas para dar conta de captar essa percepção em profundidade.
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    A pesquisa de campo realizou-se em treze meses de estadia nestas duas comunidades. Como tratarei aqui de práticas que estão, ou correm o risco de estar em breve, em conflito com o sistema legal nacional, os nomes das comunidades serão omitidos e todos os nomes próprios foram mudados.
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    Durante as duas últimas décadas, o Brasil, e a região amazônica em particular, conheceu um processo de redistribuição e/ou regularização territorial importante, com a criação de inúmeras unidades nacionais de conservação ambiental. Neste cenário, o compromisso entre a conservação ambiental e a luta pela garantia da permanência de antigos moradores dessas áreas faz surgir a categoria de “populações tradicionais” (Barreto Filho, 2006BARRETO FILHO, Henyo. Populações tradicionais: introdução à crítica da ecologia política de uma noção. In: Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e invisibilidade. São Paulo: Annablume, 2006.; Santilli, 2005SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. Rio de Janeiro: Editora Peirópolis, 2005.).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2013

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2013
  • Aceito
    20 Nov 2013
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