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Conhecimento não se vende”: a colonialidade e o embate de perspectivas sobre os conhecimentos tradicionais

“Knowledge is not to sell”: coloniality and the conflict of perspectives over traditional knowledge

“Conocimiento no se vende”: la colonialidad y el embate de perspectivas sobre conocimientos tradicionales

Resumo:

A colonialidade do poder, do saber e do ser se perpetuam no imaginário moderno através do avanço da mercantilização massiva sobre as plantas, a terra, a água, o conhecimento. Esse processo, que se inicia no século 15, com a constituição da América, avança desde então sobre os territórios e os conhecimentos dos povos que foram colonizados. Nesse sentido, analiso um acontecimento que ocorreu no ano de 2014, no Encontro da Região Sul de Povos e Comunidades Tradicionais, em Curitiba, Paraná, no qual se estabeleceu um embate cosmopolítico sobre um projeto de transformação dos saberes tradicionais em patentes. Essa proposta envolveu, por um lado, agentes do Estado, do mercado e da ciência, que almejavam convertê-los em fonte de lucro, e, por outro, os povos e comunidades tradicionais para quem esses conhecimentos são coletivos e circulam entre si, compondo seus modos de existência.

Palavras-chave:
Conhecimentos tradicionais; Colonialidade do saber, do poder e do ser; Cosmopolítica; Recursos genéticos

Abstract:

The coloniality of power, of knowledge and of being has been perpetuated in the modern imaginary through the advance of the massive mercantilism of everything. That process, which started in the fifteenth century with the discovery of America, has spread since then throughout territories and knowledge from the peoples who were colonized. In this regard, I analyze an event that occurred in 2014, at the Conference of the Southern Region for Traditional Peoples and Communities, in Curitiba/Paraná, in which a cosmopolitical conflict took place, regarding a project to transform traditional knowledge into patents. This initiative involved, on one side, the State, Market and Science, all aiming at transforming them into sources of profit, and on the other side, the traditional peoples and communities for whom this knowledge is collective and circulates freely among them, composing their modes of existence.

Keywords:
Traditional knowledge; Coloniality of power, of knowledge and of being; Cosmopolitics; Genetic resources

Resumen:

La colonialidad del poder, del saber y del ser se perpetúa en el imaginario moderno por medio del avance de la mercantilización masiva de todo. Este proceso, que se inició en el siglo XV con la constitución de América, avanza desde entonces sobre los territorios y sobre los conocimientos de los pueblos que fueron colonizados. En este sentido, analizo un hecho que tuvo lugar en 2014, en el Encuentro de la Región Sur de Pueblos y Comunidades Tradicionales, en Curitiba, Paraná, en el que se estableció un embate cosmopolítico sobre un proyecto de transformación de los saberes tradicionales en patentes. Esta propuesta involucró agentes del estado, mercado y ciencia, quienes anhelaban convertirlos en fuentes de lucro, en contraposición a los pueblos y comunidades tradicionales, quienes defendían que sus conocimientos son colectivos y circulan entre ellos, componiendo sus modos de existencia.

Palabras clave:
Conocimientos tradicionales; Colonialidad del saber, del poder y del ser; Cosmopolítica; Recursos genéticos

Introdução

Para iniciar, descrevo um acontecimento ocorrido em agosto de 2014, no Encontro da Região Sul de Povos e Comunidades Tradicionais, em Curitiba, Paraná (Wedig 2015Wedig, Josiane Carine. 2015. Rede Puxirão de povos e comunidades tradicionais do Paraná: luta pelo território e pela diferença. Tese em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ, Seropédica, RJ, Brasil.). O encontro foi organizado pelos Ministérios do Meio Ambiente (MMA), do Desenvolvimento Social (MDS) e do Desenvolvimento Agrário (MDA), buscando elaborar propostas para a Conferência Nacional desses coletivos e discutir políticas públicas a eles concernentes. Para os povos que se reuniram – indígenas, quilombolas, faxinalenses, ilhéus, pescadores artesanais, cipozeiros, ciganos e benzedeiras – o objetivo era realizar a discussão coletiva sobre as questões de território e de regularização fundiária, além de poder denunciar os conflitos que enfrentavam com o avanço das monoculturas de soja e eucalipto, com a construção de grandes obras de infraestrutura – como as hidroelétricas – e, ainda, com o deslocamento forçado a que eram submetidos, pelo poder público, por ocasião da criação de áreas de preservação ambiental integral (Wedig 2020Wedig, Josiane Carine. 2020. Acontecimentos e memórias da Rede Puxirão de povos e comunidades tradicionais do Paraná. Anuário Antropológico 45 (1): 213-231. https://doi.org/10.4000/aa.4968.
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).

As reivindicações desses grupos buscavam o reconhecimento de seus modos de existência e de seus territórios, demandando acesso à terra e a outros direitos associados. No entanto, mesmo com a centralidade dessa discussão, os responsáveis pelos órgãos estatais de demarcação de terras, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), não estiveram presentes naquele encontro. A discussão afastou-se das questões de regularização dos territórios desses povos e passou a versar sobre um processo de acesso industrial aos seus conhecimentos, proposta que foi publicizada já no primeiro dia do Encontro, pelo então secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA. Ele apresentou o Projeto de Lei (PL) 7.735/2014, posteriormente transformado na Lei 13.123, de maio de 2015, que dispõe sobre “o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado à repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade” (Brasil 2015Brasil. 2015. Decreto lei nº 13.123. 20 maio 2015. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13123.htm.
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).

A referida lei enuncia uma perspectiva de extração de valor econômico da biodiversidade por meio da bioprospecção, em que peritos mapeiam, catalogam e classificam os recursos ambientais, transformando-os em produtos com potencial econômico. O conhecimento tradicional associado é definido como a “informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético” (Brasil 2015Brasil. 2015. Decreto lei nº 13.123. 20 maio 2015. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13123.htm.
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). Ela define, ainda, como comunidade tradicional, o

grupo culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma própria de organização social e ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição (Brasil 2015Brasil. 2015. Decreto lei nº 13.123. 20 maio 2015. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13123.htm.
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).

O projeto de lei apresentado foi elaborado por membros do estado, das indústrias farmacêutica, de cosméticos e alimentar, além de cientistas de instituições de pesquisa, sem a realização de consulta prévia aos povos e às comunidades tradicionais, nem mesmo à Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criada em 2004 e sediada no MMA. Por meio dessa lei, os conhecimentos dos povos e das comunidades tradicionais passam a ser calculados de acordo com os valores econômicos de mercado das corporações. Conforme o secretário de florestas, essa lei permitiria “promover a bioindústria e a competitividade do setor produtivo e o desenvolvimento sustentável”. O papel do Estado, por sua vez, seria organizar “o acesso e a repartição dos benefícios”. Os povos e as comunidades tradicionais teriam acesso a 1% dos lucros das empresas desse setor, que se tornariam “parceiras”. Na visão do secretário, esse acesso a uma parte do lucro das empresas seria algo “bom para os povos”.

No entanto, sobre esse PL, os ativistas de povos e comunidades tradicionais presentes, apresentaram uma sequência de argumentações e criaram um espaço de hesitação a respeito daquilo que foi definido, previamente, como um “bom negócio”, por parte dos peritos do estado, do mercado e da ciência. Aqueles que se pronunciaram – lideranças indígenas, quilombolas, benzedeiras, ribeirinhos etc. – rechaçaram o projeto, uma vez que eles, sendo os principais alvos, não haviam sido consultados. Eles salientaram a urgência da retirada desse PL do Congresso Nacional, argumentando que “conhecimento tradicional não se vende” e que aquilo que o referido secretário e os demais propositores da lei estavam nomeando como “material genético” eram as suas “plantas, pedras, terra e água”, ou seja, seres intensivamente ativos nas relações que esses grupos operam em seus territórios.

Nesse sentido, os ativistas dos povos e das comunidades tradicionais posicionaram-se contrários ao patenteamento e à comercialização de espécies que são usadas, ancestralmente, por esses grupos, assim como se opuseram também à venda de seu conhecimento, afirmando que esse “não está à venda”. Eles ainda questionaram o fato de que mesmo que algumas comunidades possam ter interesse em inserir-se nesse mercado, que proteção e garantia teriam, em termos de autonomia, aqueles povos que não pretendem se relacionar com a bioindústria? Essas questões – que apontam para a heterogeneidade desses coletivos – foram retomadas e enfatizadas, nos mesmos termos, no II Encontro Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que ocorreu em Brasília, em novembro de 2014. Porém, mesmo com essas contraposições, feitas por aqueles que, supostamente, seriam os principais “interessados” ou “beneficiados”, nos termos do secretário de florestas, o projeto foi transformado em lei ordinária.

Esse acontecimento, portanto, expõe o embate cosmopolítico entre, por um lado, estado, ciência, mercado e seus peritos, e, em contrapartida, os povos e as comunidades tradicionais. Esses são vistos, por aqueles, como fornecedores de saberes e de recursos que podem ser monetizados, fomentando uma economia do conhecimento, que fazem da parceria com a indústria uma condição crucial dos financiamentos de pesquisa, dando-lhe o poder de dirigir e ditar os critérios de êxito das investigações, notadamente, no registro de patentes (Stengers 2015Stengers, Isabelle. 2015. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Editora Cosac & Nayfy.). Levando em conta esse embate, realizo, em seguida, uma discussão sobre o epistemicídio enquanto uma prática que marca o colonialismo e que se perpetua na atual colonialidade do poder, do saber e do ser, constituindo um desprezo, por parte dos agentes hegemônicos, dos saberes dos povos que vivenciaram a violência colonial. Em oposição a essa violência, é necessário atentar para as formas de resistência e (r)existências produzidas pelos povos e comunidades tradicionais ao confrontarem o estado, em defesa de seus modos de existência e de seus saberes ancestrais.

Colonialismo, colonialidade e apropriação dos conhecimentos de povos e de comunidades tradicionais

As bases que constituíram a tríade colonialismo, capitalismo e modernidade, são inauguradas com a “descoberta da América”, em 1492 (Dussel 2005Dussel, Enrique. 2005. Europa, modernidade e eurocentrismo. In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Edgardo Lander, 24-33. Buenos Aires: Editora Clacso.), período em que a Europa se institui como centro da história mundial e inaugura o sistema-mundo colonial moderno (Wallerstein 2001Wallerstein, Immanuel. 2001. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Editora Contraponto.; Quijano 2005Quijano, Anibal. 2005. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Edgardo Lander, 107-126. Buenos Aires: Editora Clacso.). Isso acarretou, subsequentemente, o controle dos territórios, dos corpos, do trabalho, com o estabelecimento do estado-nação e da propriedade privada da terra, constituindo a divisão internacional dos espaços, marcada pelo centro (para onde eram levados os produtos) e pela periferia (de onde se extraia recursos humanos e não humanos). A partir dessa classificação, os territórios colonizados passam a estar destinados à produção, à extração e ao fornecimento de matérias-primas para o abastecimento das metrópoles.

Em vista disso, com a invenção da América, ocorreu o genocídio dos povos indígenas, que foram considerados “primitivos” e “selvagens”, além da violência racial sobre os povos africanos que foram escravizados. Essas violências foram amparadas em explicações teológicas e, mais tarde, por meio de justificativas pautadas nas ciências modernas que constituíram esquemas de classificações racistas, baseadas em estruturas que consideravam os povos divididos em “raças”. Assim, passou a operar a colonialidade do poder, do saber e do ser, em que os homens europeus se autodefiniram como humanos e, aos “outros”, foi negada a humanidade e a racionalidade. Os territórios dos povos colonizados foram classificados como “espaços vazios”, uma vez que eles não foram considerados humanos e seus modos de existência passaram a ser vistos como recursos para a acumulação das metrópoles e, posteriormente, para a industrialização, a urbanização e o progresso do mundo moderno europeu (Quijano 2005Quijano, Anibal. 2005. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Edgardo Lander, 107-126. Buenos Aires: Editora Clacso.).

Outro aspecto que constitui a modernidade, pela colonialidade do saber, é a classificação hierárquica e dualista que produziu a separação entre sociedade e natureza, humanos e não humanos, racional (moderno e eurocêntrico) e irracional (saberes dos demais povos do planeta), verdadeira ciência e falsos saberes, sujeito e objeto, selvagens e civilizados etc. (Latour 1994Latour, Bruno. 1994. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34.). De acordo com Isabelle Stengers (2017)Stengers, Isabelle. 2017. Reativar o animismo. Belo Horizonte: Chão de Feira., por meio dessa divisão, uns se sentiam livres e autorizados para estudar e categorizar outros, uma relação que ainda persiste. A colonialidade do saber estabeleceu a ciência moderna como o ponto zero, apagando um conjunto de saberes dos povos, que foram elaborados ao longo de milênios. Desse modo, ela passa a ser marcada pelo racismo e pelo sexismo epistêmicos, que inferiorizam os conhecimentos vindos dos humanos classificados como não brancos, não ocidentais, não masculinos ou não heterossexuais (Grosfoguel 2016Grosfoguel, Ramón. 2016. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado 31 (1): 25-49. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003.
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).

Esse paradigma está centrado no viés antropocêntrico, androcêntrico e patriarcal – tendo o homem (branco) como soberano frente à natureza, às mulheres e aos povos não europeus (Curiel 2009Curiel, Occhy. 2009. Descolonizando el feminismo: una perspectiva desde America Latina y el Caribe. In Primer Coloquio Latinoamericano sobre praxis y pensamiento feminista, Buenos Aires.). Para Vandana Shiva (2003)Shiva, Vandana. 2003. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo: Editora Gaia., o colonialismo destituiu os povos indígenas da terra e os seus sistemas locais de saber foram subjugados por políticas de eliminação, invisibilizados face à imposição do saber ocidental dominante, considerado único e universal. A ciência moderna foi postulada como independente e livre de valores, considerada racional, objetiva, neutra e universal. Nesse contexto, os conhecimentos dos povos, incluindo os de suas agriculturas e farmacologias, foram considerados crenças, ineficazes para a lógica do mercado internacional de transformação de alimentos e de remédios em mercadorias (Wedig e Ramos 2020Wedig, Josiane Carine e João Daniel Dorneles Ramos. 2020. A colonialidade nas práticas de saúde e as resistências de benzeiras e mães de santo. Revista Mediações 25 (2): 488-503. http://dx.doi.org/10.5433/2176-6665.2020v25n2p488.
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).

A expropriação dos povos não europeus e da natureza segue ocorrendo através da colonialidade, mesmo após a independência dos países colonizados. Essa forma de espoliação chega aos seus limites catastróficos a partir do final dos anos 1960 e 1970, quando passam a ocorrer debates sobre a conservação e a preservação ambiental, impulsionados, notadamente, por diferentes movimentos sociais. Esse debate ambiental vai sendo capturado pelo estado e pelas empresas, que passam a utilizar-se do enunciado do desenvolvimento sustentável, dando continuidade à exploração da biodiversidade, transformando-a em negócios rentáveis para a indústria, mas agora encobertas pelo rótulo do capitalismo verde, no qual atua, principalmente, a indústria de cosméticos e a farmacêutica, cujos materiais são provenientes da sociobiodiversidade (Almeida 2015Almeida, Mauro William Barbosa de. 2015. As ciências sociais e seu compromisso com a verdade e com a justiça. Mediações, 20 (1): 260-284. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2015v20n1p260.
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). Desse modo, o capital prossegue a sua expansão sobre os modos de existência, as culturas e os conhecimentos dos povos, visando transformá-los em mercadorias, negócios e em formas de obter lucro.

Em seu discurso, o secretário justifica que essa lei permitiria “manter a floresta em pé” frente ao avanço do agronegócio, que tem provocado vasto desmatamento na ampliação da fronteira agrícola para produção de soja e gado. Contudo, por mais significativa e fundamental que possa ser essa noção de conservação das florestas, ela traz implícita a linguagem desenvolvimentista, de mercantilização da floresta, única justificativa moderna para que ela “fique em pé”. Segundo Alfredo Wagner de Almeida (2012)Almeida, Alfredo Wagner Berno de. 2012. Territórios e territorialidades específicas na Amazônia: entre a “proteção” e o “protecionismo”. Caderno CRH 25 (64): 63-71. https://doi.org/10.1590/S0103-49792012000100005.
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, atualmente, o que se observa é que a discussão ambiental tem, cada vez mais, composto as agendas dos estados e das agências multilaterais, nas quais os territórios passam a assumir um sentido de “biologismo” extremado, que se refere ao ambientalismo empresarial de grandes fundos de investimento, em que as florestas, o patrimônio genético e a biodiversidade passam a ser considerados ativos ambientais.

Por meio de métodos de regulação e controle, sobre o conhecimento de povos e comunidades tradicionais e os recursos naturais, seus saberes passam a ser convertidos em pacotes tecnológicos, incorporados à caixa de ferramentas de cientistas, empresários e burocratas como informação e transformados em patentes (Blaser 2009Blaser, Mario. 2009. La ontologia política de um programa de caza sustentable. Red de Antropologías del Mundo. E-journal 4: 81-107. http://ram-wan.net/old/documents/05_e_Journal/journal-4/jwan4.pdf.
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). Nessa concepção, a forma-natureza é enunciada como “recurso genético” a ser transformada em mercadoria regulamentada pela legislação internacional que tem fomentado as patentes da biodiversidade, na busca pela ampliação de lucros, desconfigurando os sistemas de saúde autônomos das comunidades, transformando-os em novos consumidores obrigatórios de produtos farmacêuticos (Eloy et al. 2014Eloy, Christinne Costa, Danielle Machado Vieira, Camila Marques de Lucena, Maristela Oliveria de Andrade. 2014. Apropriação e proteção dos conhecimentos tradicionais no Brasil: a conservação da biodiversidade e os direitos das populações tradicionais. Gaia Scientia 8 (2): 189-198. https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/gaia/article/view/22587.
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), desconectando-os de suas relações com seus territórios e com os seres extra-humanos neles existentes.

As patentes e os direitos de propriedade intelectual vigem internacionalmente a partir de 1995, ligados às regras estabelecidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Nesse cenário, vigora a imagem de um “herói inovador”, que deve ser recompensado em termos financeiros por sua obra, difundindo, assim, um “imaginário individualista, economicista e desenvolvimentista” (Cunha 1999Cunha, Manuela Carneiro da. 1999. Populações tradicionais e a Convenção da diversidade biológica. Estudos Avançados, 13 (36): 147-163. https://doi.org/10.1590/S0103-40141999000200008.
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, 154), enquanto os povos tradicionais, que detêm, ancestralmente, esses conhecimentos e práticas são vistos como fornecedores de matéria-prima. Nesse aspecto, o Brasil e outros países da América Latina, em razão de sua grande biodiversidade, tornam-se alvos privilegiados das multinacionais de biotecnologia. E, uma vez que a biodiversidade se encontra em territórios de povos e de comunidades tradicionais, abrem-se negociações entre indústrias, ciência e estado e criam-se regulações jurídicas referentes aos “recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais associados” (Little 2002Little, Paul Elliott. 2002. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Anuário Antropológico 28(1): 251-290. https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6871.
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, 22).

Escobar e Pardo (2005)Escobar, Arturo e Maurício Pardo. 2005. Movimentos sociais e biodiversidade no Pacífico Colombiano. In Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos caminhos rivais, organizado por Boaventura de Sousa Santos, 289-317. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. salientam que, desde o começo dos anos 1990, a noção de biodiversidade se converteu em um poderoso discurso em que estão envolvidas organizações internacionais, estados, ONGs, cientistas, prospectores, comunidades locais e movimentos sociais, em torno da qual se desenvolve uma série de controvérsias. Conforme Cunha (1999)Cunha, Manuela Carneiro da. 1999. Populações tradicionais e a Convenção da diversidade biológica. Estudos Avançados, 13 (36): 147-163. https://doi.org/10.1590/S0103-40141999000200008.
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, até 1992, por uma determinada perspectiva, os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais eram considerados patrimônio da humanidade; no mundo industrial da biotecnologia, ao contrário, tudo é patenteado, de remédios a sementes, que se tornavam propriedade privada, perpetuando-se a noção de que a privatização estimulava a inovação científica. Para a autora, essa diferença de tratamento coincide com a divisão Norte-Sul, na qual se reproduz a noção de que a tecnologia é do Norte e o germoplasma do Sul, reproduzindo o modelo de divisão internacional do trabalho no sistema-mundo colonial moderno.

Quando a Lei 13.123, apresentada na introdução do artigo, define que se dará a “exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado” (Brasil 2015Brasil. 2015. Decreto lei nº 13.123. 20 maio 2015. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13123.htm.
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), perpetua-se a colonialidade do saber, do poder e do ser, pois os conhecimentos locais só passam a ter valor depois de fragmentados e transformados em bens vendáveis no mercado mundial (Mies e Shiva 1993Mies, Maria e Vandana Shiva. 1993. Ecofeminismo. Lisboa: Editora Instituto Piaget.), sem consideração com os modos de existência dos povos e das comunidades tradicionais. Desconhece-se, assim, que esses saberes ancestrais não são bens mercantis, mas são constitutivos e inseparáveis da vida dos povos (Walsh 2015Walsh, Catherine. 2015. Saberes acestrales y economía del conocimiento. Seminario internacional. Capitalismo cognitivo y economía social del conocimiento. Centro Internacional de Estudios de Comunicación para America Latina. Acessado em 8 maio 2015. https://www.youtube.com/watch?v=uiFpnug8h7M&t=1714s.
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). Na próxima seção, discuto sobre alguns dos embates cosmopolíticos entre estado, mercado e ciência moderna, em confronto com os modos de existência e resistências operadas por povos e comunidades tradicionais.

Estado, mercado, ciência e os conhecimentos tradicionais: embates cosmopolíticos

Frente ao embate causado por indústrias, cientistas e representantes do estado, buscando transformar os conhecimentos tradicionais em propriedade intelectual, caberia questionar a quem pertence esse conhecimento. De quem é o direito sobre ele? No acontecimento que relatei na introdução do artigo, é possível observar que a manifestação do secretário de florestas e dos povos indígenas, quilombolas e outros não se refere aos mesmos mundos. Quando o secretário de florestas expõe a proposta do PL, ele fala em nome da forma-estado e do mercado, de uma compreensão moderna do que é a natureza, reproduzindo em seu discurso a colonialidade do saber, do poder e do ser. Quando ele afirma que a decisão da lei foi criada por peritos, constituídos por “cientistas, industriais e representantes do governo”, seu argumento está fundamentado na noção de que quem não é cientista ou perito não pode intervir nessas questões.

Nesse embate cosmopolítico é mobilizado o que Isabelle Stengers (2017)Stengers, Isabelle. 2017. Reativar o animismo. Belo Horizonte: Chão de Feira. definiu como a racionalidade científica hegemônica, a Ciência com “C” maiúsculo, produto do processo de colonização, que se autoatribuiu a exclusividade do conhecimento racional e objetivo. Em tal concepção, povos e comunidades tradicionais seguem sendo definidos como “atrasados”, “irracionais”, como possuidores de crenças toleradas, mas que não são levadas a sério. Na fala do representante do estado, a justificativa para que esses coletivos não fossem chamados para a construção da PL é que, supostamente, eles não compreenderiam o assunto, que era de acesso privilegiado de cientistas e peritos, mesmo que fosse para deliberar sobre seus conhecimentos tradicionais.

Conforme Catherine Walsh (2015)Walsh, Catherine. 2015. Saberes acestrales y economía del conocimiento. Seminario internacional. Capitalismo cognitivo y economía social del conocimiento. Centro Internacional de Estudios de Comunicación para America Latina. Acessado em 8 maio 2015. https://www.youtube.com/watch?v=uiFpnug8h7M&t=1714s.
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, os conhecimentos ancestrais e saberes locais possuem quatro características principais: (i) eles são anteriores ao estado; (ii) são transmitidos entre gerações, pelos mais velhos, de modo contínuo e guardados na memória coletiva para ordenar seu mundo cultural, político, material e imaterial; (iii) contêm um conjunto de princípios sobre o universo e os seres tangíveis e intangíveis que ordenam as ações dos indivíduos e dos coletivos; e (iv) são cultivados em um território e reforçam o sentido de pertencimento a um povo, um coletivo e expressam sua forma de pensar e de viver. Para a autora, transformar os conhecimentos tradicionais em patentes é parte de uma política de produtividade e de modernização na qual eles são convertidos em bens separados de sua base territorial vital para exploração e expropriação de outros, constituindo um extrativismo epistêmico. Esse código de economia do conhecimento converte esses saberes, enlaçados aos territórios e à vida, em produtos medíveis e tangíveis, úteis e apropriáveis pelas empresas.

Manuela Carneiro da Cunha (1999Cunha, Manuela Carneiro da. 1999. Populações tradicionais e a Convenção da diversidade biológica. Estudos Avançados, 13 (36): 147-163. https://doi.org/10.1590/S0103-40141999000200008.
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, 159) considera que os saberes locais se reconstroem e se modificam, não sendo, portanto, imutáveis. Trata-se de uma “ciência viva, que experimenta, inova, pesquisa, não é um simples repositório de conhecimentos” e é baseada na livre circulação. Nos termos de Isabelle Stengers (2017)Stengers, Isabelle. 2017. Reativar o animismo. Belo Horizonte: Chão de Feira., eles podem ser definidos como ciências experimentais, no plural e com “c” minúsculo, conectando práticas e modos heterogêneos de dar sentido aos modos de existência dos povos. São conhecimentos coletivos, ligados a terra e a territórios concebidos como entidades multidimensionais, nos quais se desenvolvem muitos tipos de práticas e de relações (Escobar 2005Escobar, Arturo. 2005. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Edgardo Lander, 69-86. Buenos Aires: Editora Clacso.).

As comunidades locais – que ocupam seus territórios há gerações – passam a ter seus saberes visados pelo capital e ficam, em grande medida, subordinadas às decisões das políticas ambientais do estado, regulamentadas por lei. Para Eloy et al. (2014Eloy, Christinne Costa, Danielle Machado Vieira, Camila Marques de Lucena, Maristela Oliveria de Andrade. 2014. Apropriação e proteção dos conhecimentos tradicionais no Brasil: a conservação da biodiversidade e os direitos das populações tradicionais. Gaia Scientia 8 (2): 189-198. https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/gaia/article/view/22587.
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, 192), a ciência moderna, a indústria (farmacêutica, de cosméticos e alimentar) e o estado, quando buscam o acesso aos saberes sistematizados pelos povos ao longo do tempo – ligados às plantas usadas na alimentação, medicação, em rituais religiosos etc., – arranjam “atalhos” para a apropriação desses conhecimentos sobre substâncias que podem vir a ter um alto valor mercadológico no comércio internacional. Dessa forma, grandes empresas, como os laboratórios de biotecnologia, as indústrias farmacêuticas e de cosméticos passam a disputar os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais na busca por patentes e lucros.

Esses produtos, transformados em commodities, passam a ser transportados por longas distâncias, o que contrasta com os usos florestais que ocorrem de forma comunitária, pelas associações, baseados no trabalho artesanal, que incorporam tecnologias endógenas e que os comercializam em circuitos específicos de mercados locais. Portanto, se, por um lado, existe uma correlação entre a OMC e os grandes laboratórios de biotecnologia que visam patentear “todas as espécies e fórmulas que possam ser usadas na transformação industrial destas espécies nativas”, por outro lado, há a posição das cooperativas e

associações artesanais, dos movimentos sociais, das organizações ambientalistas e dos pajés de que os conhecimentos tradicionais […] não são passíveis de patenteamento por grandes laboratórios, porquanto se trata de conhecimentos centenários e/ou imemoriais que não podem ser regulados por patentes ou a elas reduzido (Almeida 2004Almeida, Alfredo Wagner Berno de. 2004. Amazônia: a dimensão política dos conhecimentos tradicionais como fator essencial de transição econômica: pontos resumidos para uma discussão. Somanlu 4 (1): 9-28. https://doi.org/10.17563/somanlu.v4i1.208.
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, 17).

Na apropriação industrial desses conhecimentos ancestrais, estabelece-se um paradoxo entre desvalorização, estigmatização e violência sobre os povos e as comunidades tradicionais, desconsiderando seus saberes, ao mesmo tempo em que eles são acessados para serem transformados em propriedade intelectual de laboratórios e indústrias (Escobar 2005Escobar, Arturo. 2005. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Edgardo Lander, 69-86. Buenos Aires: Editora Clacso.). Nessa relação, que perpetua a colonialidade do saber, do poder e do ser, ciência, mercado e estado modernos seguem expropriando territórios e saberes desses povos, que (r)existem e mobilizam outras formas de pensamento e de ação. Para esses povos, a noção mercadológica dos “recursos” e dos conhecimentos que podem ser patenteados não se coloca. Eles nomeiam seus saberes associados às “plantas, pedras, terra e água” e afirmam que “não está à venda”. Constitui-se, assim, um embate cosmopolítico de mundos múltiplos e divergentes, em que são colocadas em questão diferentes perspectivas (Stengers 2018Stengers, Isabelle. 2018. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 69: 442-464. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464.
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).

Nesse embate, colocam-se em oposição as ciências nômades e a ciência régia. Nos termos de Deleuze e Guattari (1997Deleuze, Gilles e Félix Guattari. 1997. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34., 26-27), a ciência de estado (régia) não para de impor a sua forma de soberania às invenções das ciências nômades e “só retém da ciência nômade aquilo de que pode apropriar-se, e do resto faz um conjunto de receitas estritamente limitadas, sem estatuto verdadeiramente científico, ou simplesmente reprime e proíbe”. Caberia, portanto, indagar: quem pode falar de quê, fazer-se o porta-voz de quê, representar o quê? (Stengers 2018Stengers, Isabelle. 2018. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 69: 442-464. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464.
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). É possível notar que continua a se perpetuar o colonialismo, por intermédio do privilégio epistêmico do homem branco, ocidental, racional e concentrador de recursos econômicos, cujo poder foi construído às custas dos genocídios e epistemicídios dos sujeitos colonizados. Segundo Grosfoguel (2016Grosfoguel, Ramón. 2016. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado 31 (1): 25-49. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003.
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, 25), esse privilégio da produção do conhecimento, elaborado por esses corpos políticos e geopolíticos, tem gerado injustiça cognitiva e perpetuado os “projetos imperiais/coloniais/patriarcais de mundo”.

Tal circunstância se reflete, por exemplo, na forma como o secretário de florestas se remete à questão do acesso ao conhecimento de povos e de comunidades tradicionais, salientando que a proposta foi discutida por especialistas, técnicos, acadêmicos, industriais e agentes governamentais. Portanto, reproduz a concepção de que essa convenção, que ocorreu entre esses atores peritos, está baseada na produção de um conhecimento imparcial e universal, sem relação com particularidades (Grosfoguel 2016Grosfoguel, Ramón. 2016. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado 31 (1): 25-49. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003.
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). Nesse ponto de vista, perpetua-se a divisão, estabelecida pela ciência moderna, entre sujeito e objeto, objetividade e neutralidade, além da dicotomia entre natureza e cultura. Ao declarar que não caberia um espaço de participação, no debate, para os integrantes da CNPCT – visto que eles “não entenderiam” os códigos ali usados – percebe-se como se estabelece a invisibilização desses conhecimentos, de vozes e preocupações daqueles que, paradoxalmente, seriam os “beneficiários” dessa lei.

Consequentemente, é no controle e disciplinamento dos conhecimentos de povos e de comunidades tradicionais e de suas relações com a biodiversidade, que o estado e a indústria realizam a apropriação das ciências nômades e as transformam em regras, ordenamentos e métricas que vão limitá-las, controlá-las e proibi-las. O que se observa é que as instituições modernas desconsideram a diversidade dos modos de existência desses povos e tentam lhes impor formas homogêneas de vida, sobrecodificando as relações que eles possuem com outros seres. Restringem, assim, as formas de circulação desses conhecimentos entre as comunidades, que não estão pautadas por direitos individuais que possam ser intercambiáveis no formato de mercadorias modernas, pelo contrário, os direitos são comuns e coletivos. Pela colonialidade, esses conhecimentos passam a ser concebidos como matérias-primas que podem ser transformadas pela indústria farmacêutica, de cosméticos e alimentícia.

Catherine Walsh (2015)Walsh, Catherine. 2015. Saberes acestrales y economía del conocimiento. Seminario internacional. Capitalismo cognitivo y economía social del conocimiento. Centro Internacional de Estudios de Comunicación para America Latina. Acessado em 8 maio 2015. https://www.youtube.com/watch?v=uiFpnug8h7M&t=1714s.
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enfatiza que essas regulamentações têm (re)estabelecido um extrativismo epistêmico dos saberes ancestrais que são transformados em uma economia do conhecimento, não reconhecendo as ontologias e as cosmologias dos povos e das comunidades tradicionais. O estado, através de suas legislações, cria dispositivos regulatórios como o uso dos termos de consentimento livre e esclarecido e contratos de repartição “justa e equitativa de benefícios monetários” (Brasil 2015Brasil. 2015. Decreto lei nº 13.123. 20 maio 2015. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13123.htm.
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), permitindo o uso, o aproveitamento e a fixação de taxas e tarifas pelos serviços prestados e pela gestão de direitos de propriedade intelectual dos saberes ancestrais. Desse modo, esses conhecimentos são transformados em formas intercambiáveis no mercado de commodities.

Esses dispositivos consistem em um determinado tipo de governamentalidade – uma tecnologia de poder que se aplica sobre a população e o conjunto de seres vivos e coexistentes –, que considera que a vida é suscetível de ser controlada a fim de ser governada (Foucault 1999Foucault, Michel. 1999. Em defesa da Sociedade: Curso do Colège de France 1975-1976. São Paulo: Editora Martins Fontes.). Eles compreendem processos de gestão, controle e monitoramento dos territórios dos povos, com regulações sobre o uso e a comercialização dos “recursos genéticos”. Ocorrem, assim, tentativas cada vez mais violentas de administrar as multiplicidades, de organizá-las através de dispositivos e de técnicas políticas que buscam controlar a transmissão desses conhecimentos ancestrais. No entanto, ao enfrentarem a lógica posta pelo estado-nação e pelo capital, os povos e as comunidades tradicionais estão reafirmando suas ontologias e cosmologias locais em oposição à lógica mercantil moderna.

Algumas considerações finais

Os conhecimentos de povos e comunidades tradicionais, associados aos “recursos genéticos” passaram a ser, nas últimas décadas, regulamentados pelo estado e disputados por grandes corporações industriais, nacionais e internacionais, da indústria farmacêutica, de cosméticos e alimentos, que impõem um conjunto de dispositivos de controle. A partir da análise realizada – da lei sobre o acesso ao “recurso genético e ao conhecimento tradicional associado” – é possível constatar a reprodução da colonialidade do poder, do saber e do ser. As perspectivas de povos e de comunidades tradicionais continuam a ser deslegitimadas, visto que eles não são considerados como porta-vozes efetivos das decisões que são tomadas sobre seus conhecimentos, pois não lhes é atribuído o estatuto de peritos.

Os seus conhecimentos só passam a ter valor quando subsumidos à ciência moderna e, consequentemente, monetizados na lógica da propriedade intelectual e da produção de patentes. Trata-se, portanto, nos termos de Almeida (2004)Almeida, Alfredo Wagner Berno de. 2004. Amazônia: a dimensão política dos conhecimentos tradicionais como fator essencial de transição econômica: pontos resumidos para uma discussão. Somanlu 4 (1): 9-28. https://doi.org/10.17563/somanlu.v4i1.208.
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, de uma luta entre o uso livre dos conhecimentos tradicionais pelos agentes que os produzem e os reproduzem e o controle absoluto desses conhecimentos pelas empresas transnacionais e laboratórios de biotecnologias. Nesse sentido, vemos que os povos e as comunidades tradicionais, ao defenderem que “conhecimento não se vende”, buscam salvaguardar seus saberes ancestrais, que perpassam gerações, e chamam atenção para a circulação desses conhecimentos e práticas, das suas relações com outros entes, que não são tomados como “recursos”, e sim como sujeitos ativos em suas lógicas cosmopolíticas.

No momento em que este artigo é finalizado, continuam a avançar sobre os territórios de povos e de comunidades tradicionais as políticas de extermínio, em que florestas queimam e que se faz ode ao agronegócio e se nega, em termos governamentais, o acesso à terra àqueles que foram expropriados ao longo dos 500 anos de colonialismo e colonialidade. Reforçam-se os discursos de não acesso aos direitos de existência desses povos. Nessa configuração, torna-se, cada vez mais necessário, repensar como é possível descolonizar o imaginário e as práticas de ser, saber e poder hegemônicos.

  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2019
  • Aceito
    03 Dez 2020
  • Publicado
    24 Ago 2021
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