Acessibilidade / Reportar erro

Inserção múltipla, intermitência e filiação cultural: o trabalho de músicos brasileiros na França

Multiple insertion, intermittency and cultural affiliation: Brazilian musicians’ labour in France

Múltiple, intermitencia y afiliación cultural: el trabajo de los músicos brasileños en Francia

Resumo:

O objetivo é analisar o trabalho de músicos brasileiros na França, afetado pelo regime de trabalhadores intermitentes de espetáculos e o trabalho por projetos. Procura-se identificar as formas identitárias relacionadas a trajetórias profissionais, caracterizar a organização de trabalho e as formas de contratação. A metodologia recorre a dados governamentais, à literatura sobre trabalho musical e a entrevistas, além de observação em ambientes laborais. O trabalho de brasileiros pode ser comparado ao de músicos em geral na França, caracterizando-se pela pluriatividade, múltipla inserção e polarização entre contratos por tempo indeterminado ou determinado e prestação de serviços eventuais. Entretanto, a “filiação cultural” a gêneros musicais característicos, associada às redes de cooperação pode ser compreendida como estratégia de construção identitária profissional em um mercado competitivo.

Palavras-chave
Trabalho musical; Profissão; Intermitente do espetáculo; França

Abstract:

The aim here is to analyze the work of Brazilian musicians in France, affected by the regime of intermittent workers in the entertainment industry and the work by projects. It seeks to identify the identity forms related to professional trajectories, to characterize the work organization and the forms of hiring. The methodology uses government data, the literature related to musical work and interviews, as well as observation in work environments. The work of Brazilians can be compared to that of musicians in general in France, characterized by pluriactivity, multiple insertion and polarization between contracts for indeterminate or determined time and occasional service provision. However, the “cultural affiliation” to characteristic musical genres associated with the cooperation networks can be understood as a strategy of constructing a professional identity in a competitive market.

Keywords
Musician's labour; Profession; Intermittent worker in entertainment industry; France

Resumen:

El objetivo es analizar el trabajo de los músicos brasileños en Francia, afectados por el régimen de la intermitencia de los trabajadores del espectáculo y el trabajo por proyectos. Busca identificar las formas de identidad relacionadas con las trayectorias profesionales, caracterizar la organización del trabajo y las formas de contratación. La metodología utiliza datos gubernamentales, literatura sobre trabajo musical y entrevistas, así como la observación en entornos de trabajo. El trabajo de los brasileños puede compararse con el de los músicos en general en Francia, caracterizado por la pluriactividad, la inserción múltiple y la polarización entre contratos indefinidos o determinados y la prestación de servicios ocasionales. Sin embargo, la “afiliación cultural” con géneros musicales característicos asociada con las redes de cooperación puede entenderse como una estrategia de construcción de identidad profesional en un mercado competitivo.

Palabras clave
Trabajo musical; Profesión; Intermitente del espectáculo; Francia

Introdução2 2 O artigo está relacionado a uma pesquisa realizada de março a julho de 2018, durante estágio pós-doutoral na Universidade de Versalhes, França. Uma versão preliminar deste texto foi apresentada durante o 42.º Encontro Anual da Anpocs. Agradeço aqui aos colegas pelas observações e sugestões apresentadas na ocasião.

O trabalho de migrantes brasileiros geralmente é associado, em análises sociológicas, a estratégias de sobrevivência ou mobilidade social com base em ocupações de baixo perfil. São pouco frequentes investigações sobre o trabalho de músicos brasileiros no exterior (Reis 2012Reis, Cacilda Ferreira dos. 2012. Sonhos, incertezas e realizações: as trajetórias de músicos e dançarinos afro-brasileiros no Brasil e na França. Tese em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo.; Furtado 2014Furtado, Luís Carlos V. 2014. Flautear: a construção identitária do flautista brasileiro como trabalhador. Tese em História, Universidade de Brasília, UnB, Brasília, Brasil.; Segnini 2016Segnini, Liliana R. 2016. Questions sur les carrières des femmes musiciennes. In Genre, race, classe, organizado por Nadya Guimarães, Margareth Maruani e Bila Sorj, 221-233. Paris: L'Harmattan.). A principal questão neste artigo é relativa à identidade profissional desses músicos: qual é seu perfil no mercado de trabalho musical? Como se reconhecem no exercício de atividades tão diversas, como performance, arranjo, composição, ensino, produção? Como são reconhecidos e valorizados nos diversos contextos de relações sociais, como família, ambientes culturais, locais de trabalho? As respostas estão relacionadas ao mundo institucional, mas também a subjetividades e contextos comunicacionais, um traço quase consensual nas abordagens sociológicas da identidade (Dubar 2006Dubar, Claude. 2006. A crise das identidades. Lisboa: Afrontamento.; Sennett 2014Sennett, Richard. 2014. A corrosão do caráter. As consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record.). Supõe-se que formas de regulação, como o regime de trabalho dos intermitentes do espetáculo, influenciam bastante a construção dessas formas identitárias. No entanto, é importante também considerar as motivações de músicos e suas trajetórias laborais, relacionadas a políticas culturais.

Embora não seja o caso de estabelecer hipóteses a priori, é possível construir alguns enunciados como conjeturas:

  1. a situação do músico brasileiro na França não difere significativamente da situação dos músicos em geral, a não ser em relação à condição de imigrado;3 3 Segundo o Alto Conselho de Integração (HCI), em 1990, “é imigrado toda pessoa nascida estrangeira, em um país estrangeiro, que vive na França”. Segundo Spire (1999, 50), o uso dessa categoria foi estendido, progressivamente, no aparato estatístico oficial, substituindo a oposição jurídica entre “estrangeiro” e “nacional”.

  2. a identidade profissional está relacionada a formas de contratação e principal gênero musical desempenhado (erudito ou popular) e não a tipos de atividade desenvolvidas;

  3. a filiação cultural representa mais uma estratégia para garantir um mercado de trabalho do que propriamente uma identificação estética com gêneros musicais tipicamente brasileiros.

Em relação ao processo de emigração no Brasil, a França não ocupa lugar de destaque, representando cerca de 4% do fluxo total de emigrantes segundo o Censo de 2010. As estatísticas oficiais do governo francês, relativas a 2013, apuradas pelo Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos da França (Insee), apontam para comunidade brasileira composta por 43.383 pessoas, das quais 52,3% mulheres e 47,7% homens. Essa população certamente é subnotificada, pois não incorpora migrantes ilegais e nem os que adquiriram nacionalidade francesa.

O rendimento médio no trabalho de imigrados foi, na França, no período de 2003 a 2016, 12% mais baixo do que o de autóctones, salientando que esse valor representa a remuneração média líquida no trabalho principal. Esse desnível provavelmente decorre de uma diferença no capital humano, ligado à capacitação e ao tempo de trabalho exercido na ocupação, embora algum tipo de preconceito possa influenciá-lo. No mesmo período, a remuneração de profissionais de artes e espetáculos imigrados foi de 7% acima da média do rendimento de imigrados em outras ocupações, ainda que oscilações tenham ocorrido.4 3 Segundo o Alto Conselho de Integração (HCI), em 1990, “é imigrado toda pessoa nascida estrangeira, em um país estrangeiro, que vive na França”. Segundo Spire (1999, 50), o uso dessa categoria foi estendido, progressivamente, no aparato estatístico oficial, substituindo a oposição jurídica entre “estrangeiro” e “nacional”. Os dados demonstram que o mercado de trabalho em artes e espetáculos tem sido propício ao ingresso de imigrantes.

Pierre-Michel Menger (2011Menger, Pierre-Michel. 2011 [2005]. Les intermitents du spectacle. Sociologie du travail flexible. Paris: Ehess., 341) demonstrou o espetacular crescimento de 278% no número de músicos ativos de 1982 a 2007 O crescimento certamente foi menos pronunciado após 2003, quando mudanças foram introduzidas no regime de intermitência, afetando a evolução no setor.

Há outros dados que nos permitem inferir que a França tenha acolhido mais imigrados como profissionais de artes e espetáculos, ainda que as condições para a acolhida de estrangeiros no mercado de trabalho não sejam muito favoráveis, conforme aponta Mantelin (2003)Mantelin, Maud. 2003. Les artistes étrangers en France, ambassadeurs de cultures du monde? Une analyse politique et juridique du dispositif d'accueil. Lyon: Univ. Lumière., destacando, por exemplo, a não concessão do regime de intermitência a imigrados que ainda não adquiriram a nacionalidade francesa. O afluxo de estrangeiros na formação musical de nível superior tem sido crescente na área cultural de espetáculos ao vivo.5 5 O Ministério da Cultura e da Comunicação do Ensino Superior e da Pesquisa informou, em boletim publicado em 2015, que a porcentagem de estudantes estrangeiros no ensino superior francês cresceu de 12% em 2003 para 16% em 2016. Por outro lado, tem ocorrido, nos últimos quinze anos, uma profunda transformação nos hábitos de consumo de bens culturais: mais do que dobrou o que se gasta na França com espetáculos ao vivo; diminuíram as despesas com livros e jornais impressos, ainda que, sob outro aspecto, o crescimento dos gastos com bens e serviços como computadores, jogos e softwares, celulares e serviços de distribuição de RTV e streaming, tenha aumentado em relação a serviços de produção cultural.6 6 Ministère de la Culture et de la Communication. 2018. Morphologie et économie du champ culturel, pratiques et usages culturels. In Chiffres clés, statistiques de la culture et de la communication 2018, organizado pelo Ministère de la Culture et de la Communication, 31-128. Paris: Ministère de la Culture – Deps. Acessado em 20 mar. 2018, https://www.cairn.info/chiffres-cles-statistiques-de-la-culture-2018--9782111515178-page-31.htm.

A metodologia aqui empregada envolve primeiramente um levantamento da literatura a respeito do trabalho musical na França. Nesse aspecto sobressai o material de pesquisa produzido pelo Centro de sociologia do trabalho e das artes (Cesta), de 2002 a 2006, sob a coordenação de Menger. O Cesta obteve, mediante convênio, dados protegidos por um fundo criado em 1939 para gerenciar abonos pagos a trabalhadores intermitentes (artistas e técnicos) ligados à realização e produção de espetáculos. O regime diferenciado tornava-se necessário para compensar as condições de trabalho precárias e a existência de múltiplos empregadores. O acompanhamento longitudinal de fichas cadastrais de trabalhadores(as) beneficiários(as), associado a entrevistas de profundidade embasaram empiricamente diversas obras de referência (Menger 2011Menger, Pierre-Michel. 2011 [2005]. Les intermitents du spectacle. Sociologie du travail flexible. Paris: Ehess.; Coulangeon 2004Coulangeon, Philippe. 2004. Les musiciens interprètes en France. Portrait d'une profession. Paris: Ministère de la culture et la communication.; Ravet 2011Ravet, Hyacinthe. 2011. Musiciennes. Enquête sur les femmes et la musique. Paris: Autremont.). A segunda referência é a pesquisa coordenada por Coulangeon (2004)Coulangeon, Philippe. 2004. Les musiciens interprètes en France. Portrait d'une profession. Paris: Ministère de la culture et la communication. dos músicos intérpretes na França. Em resumo, tais pesquisas consideraram o regime de trabalho intermitente associado: a) ao crescimento do número de músicos em atividade na França, como categoria principal de artistas intérpretes, a partir da década de 1990; b) ao crescimento significativo de unidades de ensino artístico na França; c) à valorização, a partir de 1980, das artes ligadas ao entretenimento (Coulangeon 1999Coulangeon, Philippe. 1999. Les musiciens de jazz en France. Paris: Harmattan.) e de formas musicais populares como jazz, rock, rap e diversos estilos da chamada música étnica. Essa transformação na política cultural francesa decorreu da substituição de uma “democratização da música erudita” por uma “democracia cultural” incentivada pela atuação de Jack Lang no Ministério da Cultura durante o governo Mitterand a partir de 1981 (Coulangeon 2004Coulangeon, Philippe. 2004. Les musiciens interprètes en France. Portrait d'une profession. Paris: Ministère de la culture et la communication., 23).

O contexto e a dinâmica do regime de intermitência estão relacionados a fatores relativos ao trabalho no mundo do trabalho e a mudanças na economia do setor cultural. Dentre os primeiros destaca-se a substituição de empregos estáveis por vínculos instáveis em tempo parcial. No que concerne à economia da música contemporânea, torna-se cada vez mais dependente dos bens e serviços das indústrias culturais e da evolução tecnológica (da indústria fonográfica, rádio e TV até a transmissão por streaming na internet). A repercussão dessa evolução no mercado de trabalho para músicos é ambígua, pois a oferta de vínculos em estúdios de gravação e no setor audiovisual em geral é contrastada com a retração da música ao vivo em alguns locais públicos como bares e restaurantes, já que o acesso livre ou a baixo de custo de fonogramas e videogramas torna-se amplamente disseminado. A segunda transformação diz respeito à redistribuição territorial da oferta musical; desde meados da década de 1990, a maioria dos artistas franceses residia fora da região de Paris. Segundo Coulangeon (2004Coulangeon, Philippe. 2004. Les musiciens interprètes en France. Portrait d'une profession. Paris: Ministère de la culture et la communication., 85), “esta transformação se deve em parte à evolução dos modos de financiamento para a cultura”.

A polaridade entre um emprego estável como o de músico de orquestra sinfônica concursado e a instabilidade de um artista freelancer que trabalha com gêneros populares na informalidade descontrói-se com o surgimento de tipos intermediários em decorrência do crescimento de assalariados pelo regime de intermitência. Torna-se possível alternância ou até a concomitância entre a condição de intermitente e outras formas de contratação temporária ou até por duração indeterminada nas trajetórias profissionais de músicos na França a partir da década de 1980. A condição de assalariado estável, por duração indeterminada, ainda que cobiçada e de difícil acesso, passa a ser reconhecida entre os músicos como uma ocupação de “operário especializado” (Coulangeon 2004Coulangeon, Philippe. 2004. Les musiciens interprètes en France. Portrait d'une profession. Paris: Ministère de la culture et la communication., 163; Dupuis 1993Dupuis, Xavier. 1993. Les musiciens d'orchestre, entre passion et frustation. Paris: Dep. Ministère de la culture., 95), com pequena autonomia criativa e execução de repertórios heterodeterminados, conduzindo a um tipo de anonimato que é contraditório ao anseio de artistas. Por outro lado, o assalariado intermitente, a despeito de sua fronteira com a precariedade e a flexibilização contratual, tem maior liberdade para criar. Como em geral, atua mediante contratos de curta duração com diversos empregadores, não tem uma jornada obrigatória e alterna períodos de muitas apresentações e atividades e outros praticamente sem vínculos, dispondo assim de mais tempo para criação, treinamento e atualização.

Não é possível acompanhar longitudinalmente as trajetórias de músicos brasileiros na França em razão da inacessibilidade a microdados identificados sem negociação prévia e à ausência de uma variável não agregada que designe o país de origem. Daí a importância metodológica de entrevistas de profundidade com músicos brasileiros imigrados.

O acesso inicial a esses músicos foi iniciado a partir de uma inserção no Club du Choro de Paris. Como violonista amador, frequentei dois cursos no primeiro semestre de 2018, em uma prática etnográfica que permitiu acompanhar o ensino, a performance e a produção realizadas por músicos brasileiros em equipes com colegas franceses e de outras nacionalidades. O trabalho de campo auxiliou a construção de uma amostra intencional, do tipo de bola de neve. Como o choro é um gênero instrumental, seus adeptos provêm de formações diferenciadas, na música popular ou erudita, o que facilitou o contato com profissionais dedicados a outros estilos. A pesquisa desenvolvida compreendeu um estudo de caso, de caráter descritivo e exploratório.

As dezessete entrevistas empregadas nesta análise, com duração média de uma hora, foram realizadas de forma presencial em locais públicos, locais de trabalho, ou em residências de músicos. Houve também entrevistas por comunicação intermediada, tipo voz sobre IP. Todas foram gravadas e transcritas, atendendo às normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Embora não seja possível generalizar com base nesse tipo de amostra, é possível ressaltar algumas relações confirmadas não somente com base nesse pequeno conjunto, mas em uma literatura já produzida sobre o trabalho de músicos, em enfoque sociológico, incluindo diversas obras em que foram realizadas entrevistas na França. A própria seleção da amostra foi guiada pelo exame prévio de inúmeras páginas e perfis pessoais de músicos brasileiros na França, obtidas principalmente no site Spectacles e musiques du monde,7 7 Acessado em 18 fev. 2018, http://www.musiquesdumonde.fr. na Wikipedia e em aplicativos de redes sociais frequentados por músicos, como MySpace, Soundcloud e Facebook.

Identidade, inserção múltipla e o regime de intermitência

Os músicos da amostra residem, na maioria, em Paris e arredores, mas alguns entrevistados moravam em outras regiões, como Normandia, ao norte, vale do Loire, no centro, Occitania, no sudeste e Paca (Provença, Alpes, Costa Azul), no sul. Trabalham principalmente em escolas, conservatórios, casas de espetáculos, lojas de instrumentos, associações, mediante contratos por tempo indeterminados (CDIs), por tempo determinado (CDDs), contratos de curta duração por serviços no setor de espetáculos, como apresentações em cafés, teatros etc (CDDs d'usage) e contratações amparadas pelo regime de intermitência, que requer no mínimo 507 horas de apresentações comprovadas ou o recebimento de 43 cachês por apresentações em cada ano considerado, segundo o protocolo vigente até a convenção do seguro desemprego de 2009 (Menger 2011Menger, Pierre-Michel. 2011 [2005]. Les intermitents du spectacle. Sociologie du travail flexible. Paris: Ehess., 339).

O número de contratos mais estáveis, como o CDI, é baixo entre os músicos e, no caso dos entrevistados, as musicistas que usufruem de CDIs foram contratados em outros setores, como professores de educação artística (Maria Inês, Margaret e Heloisa) ou empregados no setor de vendas (Marco). Os empregos de CDIs entre músicos geralmente são restritos a corpos orquestrais estáveis, como na companhia Ópera Nacional de Paris. Entretanto, o CDI na educação musical é bastante cobiçado e praticamente inatingível a músicos imigrados, devido a exigências burocráticas para a obtenção de certificados que viabilizem, por exemplo, lecionar em instituições públicas.

Maria Inês, pianista brasileira há quase trinta anos na França, nunca foi intermitente, mas ostenta uma trajetória diversificada, desde sua formação inicial no Brasil, em um conservatório municipal em Uberaba, MG. Formou-se como odontóloga e compatibilizou essa ocupação com atividades musicais em casas noturnas. Decidiu então realizar um doutorado na França, defendendo sua tese em Musicologia na Sorbonne em 1996. Começou a trabalhar em uma academia musical, ministrando também aulas particulares e atuando como intérprete. Depois que teve o primeiro filho, decidiu prestar um concurso público, ingressando como professora de ensino artístico no Conservatório Darius Milhaud, em Antony, cidade nos arredores de Paris. Maria Inês elogia o contrato de trabalho no conservatório onde ingressou:

Como eu tinha doutorado fiz uma equivalência, passei no concurso e tenho então o Grade A, aqui na França tem esse estatuto, que eu considero melhor ainda que a intermitência, que é ser professor de ensino artístico. A gente só tem dezesseis horas e um salário como se trabalhasse quarenta. Considera-se que você tem que produzir, então compor, publicar, fazer formações pedagógicas e organizar projetos, faz parte do perfil do professor que eles querem nos conservatórios (Maria Inês, comunicação pessoal).

As condições e os direitos relacionados ao cargo de professor de ensino artístico nesses conservatórios assemelham-se às prescritas no estatuto de docentes em instituições federais de ensino brasileiras, pelo Regime Jurídico Único.

A trajetória de Maria Inês envolve também um trabalho de divulgação da música brasileira. Em 2001, criou o Clube do Choro de Paris, que promove anualmente cursos abertos à comunidade, de violão, cavaquinho, percussão, criando conjuntos que se apresentam em eventos organizados. O Clube do Choro emprega, mediante CDDs renováveis anualmente, professores que atuam nos cursos oferecidos e participam da organização dos eventos. Apenas um deles é brasileiro, outros dois são franceses que já assimilaram a técnica do choro, inclusive vindo ao Brasil para aperfeiçoamento. Produziram também CDs e DVDs com música brasileira, além de organizarem e participarem também de rodas de choro na cidade de Paris. O professor brasileiro Wander Pio, natural da cidade do Rio de Janeiro, tem 45 anos e teve a sua iniciação na escola Villa-Lobos, centro de formação musical ligado à Secretaria de Cultura. O músico não tem conseguido completar o mínimo de horas exigido para fazer jus ao regime de intermitência. Seu rendimento provinha de CDDs no Clube do Choro, em uma escola em Fontenay-sous-Bois, onde reside, e em uma associação onde desenvolve o bilinguismo português-francês pra crianças. Além disso, como percussionista, toca como acompanhante em diversos grupos, ligados a associações musicais, recebendo mediante CDDs d'usage. Entretanto, Wander considera que uma relativa estabilidade em sua ocupação é obtida no ensino:

Eu gostaria que no futuro toda essa parte de ensino fosse mais formal. Eu dou aula semanalmente na escola de música no subúrbio perto de onde eu moro. O que acontece? Eu não tenho nenhuma garantia de que aqueles alunos vão voltar e no primeiro dia de aula me confrontar com a realidade de que eles não estejam mais interessados. No show é mais difícil ainda adquirir essa estabilidade. Mas no ensino seria possível [caso fosse mais formalizado] (Wander, comunicação pessoal).

Evidencia-se uma relação entre o gênero musical desempenhado e a forma de contratação que, a princípio, parece indicar que músicos com formação erudita visam trabalhar em corpos orquestrais fixos, alguns até atingindo o CDI, enquanto os que se dedicam a formas populares trabalham em casas noturnas; como nômades, passam de um projeto a outro, submetem-se a riscos, em consonância com a hiperflexibilidade do regime do trabalhador intermitente de espetáculos. Porém, se considerarmos as trajetórias individuais, músicos eruditos podem usufruir da condição de intermitentes, mediante uma agenda regular de concertos, principalmente em turnês internacionais. Quando isso ocorre, geralmente já vivenciam CDDs como professores em conservatórios. É o caso, por exemplo, de Iara, 27 anos, violista e violinista, há dez anos em Paris:

Eu ingressei em Sorbonne em musicologia. Obtive diferentes diplomas no Conservatório de Paris, no violino e na viola, de performance e de concertista. Depois eu ingressei na viola no Conservatório Nacional Superior, onde obtive o bacharel lá como melhor menção. Recentemente conclui mestrado também com a melhor menção. Entretanto estou seguindo e faço uma tese dedicada a Gilberto Mendes, aqui em Paris com a Sorbonne (Iara, comunicação pessoal).

Essa inserção múltipla permite que Iara acumule muitas horas de concertos, o que a levou à condição de assalariada intermitente. Como musicista está no regime de intermitência, nos últimos dois anos e como educadora em conservatório, renova seu CDD a cada ano. No entanto, seu contrato no conservatório a afasta da condição de risco e alternância emprego-desemprego que os intermitentes na música popular geralmente vivenciam, pois os projetos que desenvolve são respaldados pela escola, já que o conservatório visa também formar plateias e na França há forte investimento na mediação musical.

A valorização positiva do regime de intermitência não é o mais comum entre músicos eruditos. Samuel, flautista e regente de corais e pequenos corpos orquestrais, assim se posiciona em relação à condição de intermitente:

Então na verdade você tem que fazer muito cachê, uma coisa que eu não gostaria. Eu gosto de trabalhar, por exemplo, uma orquestra que vai montar um repertório, continuar com oa mesmoa componentes, aumentar o nível do trabalho. O cachê é um trabalho esporádico. Geralmente é difícil você ter um trabalho artístico bem-acabado, ter o mesmo nível, a mesma participação, como quando você tem um vínculo [de trabalho] (Samuel, comunicação pessoal).

Na condição de regente e instrumentista, Samuel também exercita a inserção múltipla: chefe titular do Coro e do Conjunto Orquestral Interuniversitário de Paris, chefe dos coros L’Oreal, Faidoli e o do Campus Paris-Saclay e professor em diversas associações de música. Transformou essas práticas de ensino de flauta transversal e regência em tema do seu mestrado em Musicologia pela Sorbonne. Além disso, é regularmente convidado para tocar em outros grupos. Mesmo que quisesse, Samuel não poderia ser assalariado intermitente, pois ainda não obteve a nacionalidade francesa. Seu rendimento provém de diversos contratos CDD renovados e de CDDs d'usage como pessoa jurídica. Samuel declarou que o trabalho como empresário individual (PJ) compõe entre 40 a 50% da sua carga horária, mas o que ganha nessas condições compõe mais de 60% do seu rendimento total. Apesar de que trabalhar como PJ corresponda a um tipo de relação desfavorável ao empregado, em razão da ausência de proteção social e do ônus com impostos que caberiam ao empregador, Samuel a valoriza, de certa forma, alegando possível perda da liberdade criativa na contratação em conservatórios. Nesse ponto seu argumento assemelha-se ao de músicos populares, ainda que estes, por outro lado, abracem o regime de intermitência.

Margaret Fazoline e Heloisa Fleury são musicistas brasileiras que estão há 38 anos na França. Ambas estão voltadas preponderantemente para a educação musical e fizeram jus a CDI. Margaret é pianista, trabalhava no Conservatório Charles Munch, em Paris, onde era vice-diretora na ocasião da entrevista. Foi para a França quando cursava, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o ensino superior em Música. Ela tem outros vínculos, além do CDI no conservatório, onde é professora de piano. Em outro conservatório parisiense é chef de chant e monta óperas. É também professora de formação musical para cantores de óperas e rege os corais do Ministério do Trabalho e do Ministério da Saúde. Nunca trabalhou no regime de intermitência, embora tenha, no início de sua trajetória na França, viajado muito em turnês e recebido cachês. Casada com um músico francês, Margaret não tem filhos. Identifica-se com a condição de intérprete musical, mas vem desempenhando, ultimamente, funções na administração musical e pedagógica: “Tem outras pessoas que cuidam de assuntos que não são ligados a música. Meu trabalho é só ligado à música. Eu sou, por exemplo, presidente do júri dos concursos” (Margaret, comunicação pessoal). Seu trabalho, na administração e como professora, tem uma dimensão holística, ligada à formação não só de intérpretes, mas de músicos que trabalham coletivamente na construção ou direção de obras mais abrangentes.

Heloisa teve o início de sua formação musical no Brasil, passando por alguns conservatórios e aulas particulares. Iniciada na música contemporânea e encorajada pela família a prosseguir seus estudos no exterior, prosseguiu sua formação a partir de 1980 no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris, com aulas de composição, análise e orquestração. Graduou-se também em Musicologia, na Sorbonne e tornou-se compositora, empregando linguagens como o serialismo e a música espectral. Entretanto, o repentino falecimento de seu pai levou-a a repensar a carreira. Passou a dedicar-se à música brasileira, depois a canções no estilo popular americano, sob influência do jazz, chegando finalmente à música religiosa: “Poderia ser budista, judaica, pouco importa. Eu espero da minha música recente alguma coisa que deve elevar você, mais espiritual. Foi um percurso bem estranho, bem atípico”. (Heloisa, comunicação pessoal). Desenvolvendo uma prática eclética e libertária, passou a musicalizar poemas para voz e piano. Compôs também uma ópera-rock sobre o romance Germinal, de Émile Zola. Entretanto, Heloísa relata a sua dificuldade para fazer jus a direitos autorais sobre as suas obras, bem como realizar os concursos necessários para lecionar em conservatórios, cujas exigências se tornaram cada vez maiores a estrangeiros. Assim, tanto Margaret como Heloisa demoraram muito mais tempo para obter seus CDIs no ensino do que os cidadãos franceses. Apesar de já terem qualificação superior há muito tempo, só na maturidade conseguiram estabilidade.

A abertura de linhas de ensino e pesquisa sobre jazz e música improvisada nos Conservatórios Nacionais Superiores de Música e Dança (CNSMD), a partir do início da década de 1990, revela um apoio institucional a gêneros de música popular. Como esses estabelecimentos monopolizam a formação de docentes para o ensino superior, a abertura veio a beneficiar músicos latino-americanos, africanos, vietnamitas e outros que carregam uma filiação cultural. No que concerne às casas de espetáculos, há, pelo menos em Paris, muitos cafés e caves de jazz, desde os anos 1940, como se evidencia no mapeamento realizado por Coulangeon (1999)Coulangeon, Philippe. 1999. Les musiciens de jazz en France. Paris: Harmattan.. Recentemente outras casas vêm surgindo, voltadas a gêneros latino-americanos, africanos e especificamente brasileiros. Entretanto, a competitividade é muito grande. O violonista Marco comenta a respeito de se apresentar em uma dessas casas:

Acho que esperei, vislumbrei tocar lá durante quatro a cinco anos. Hoje em dia se precisar tocar o “L'Ermitage” não tem mais mistério. Mas não foi no começo, tem que ter produção para tocar lá, disco gravado na gravadora tal, coisa de renome e um grupo bem estabelecido (Marco, comunicação pessoal).

Marco iniciou sua formação em uma escola municipal de artes em Goiânia. Logo passou ao violão, com aulas particulares. Herdeiro de um capital cultural de classe média, Marco foi apoiado pela família para tentar estabelecer-se como artista em outros países. Viveu nos Estados Unidos e depois na Argentina, em um período em que gravou dois discos. Estabeleceu-se na França a partir de 2007, onde cursou violão clássico no CNSMD de Paris: “Foi muito formador e aprendi muito, mas deixou várias lacunas que precisava completar para fazer o que eu gosto: tocar Brazilian Jazz, que tem muita improvisação” (Marco, comunicação pessoal). Marco chegou a dar aulas em conservatório durante algum tempo e ainda conserva alguns alunos particulares, mas seu rendimento provém principalmente de um contrato CDI que mantém na loja em que trabalha, La Guitarreria, ponto de encontro de violonistas profissionais. Em sua entrevista, realizada na própria loja, tornou-se evidente a importância desse emprego para sua inserção na rede de músicos. O violonista Marco é casado com uma musicista italiana, com quem divide projetos e parcerias musicais. Envolvendo também a produção de CDs e eventos, a sua trajetória ilustra como a inserção na rede de cooperação de músicos na França, sobretudo a de profissionais que cultivam formas típicas, é importante.

Existem outras associações de músicos em cidades “da província”, como Lylle e Toulouse. No interior o trabalho como intermitente é bem mais frequente e, pode-se dizer, necessário, principalmente quando se prioriza estilos típicos. É o caso de Elaine Lopes, nascida em Santos, diplomada como bailarina clássica e pianista em conservatório. No Brasil trabalhou quatro anos como professora de dança em escola municipal. Chegou à França em 2003, juntamente com o seu então marido, filho de uma francesa que morava no Brasil. Obteve formação em Canto e Treinamento Vocal e em Músicas Populares e Tradicionais pela Universidade de Toulouse II. Em Toulouse atua como professora de canto e dança, mas 90% de seu rendimento provém de numerosos projetos como artista, no regime de intermitência. Contratos de CDD renováveis anualmente em escolas da região lhe garantem os 10% restantes. Hoje, Elaine, que tem duas filhas, cursa Musicoterapia e consegue, com dificuldade, alternando a guarda das meninas com o ex-marido, realizar o número de horas requerido:

Faz cinco anos que sou intermitente. Continua não sendo fácil conseguir 43 datas declaradas em 12 meses [segundo a legislação atual do regime de intermitência]. Então nós estamos sempre nessa corda bamba, a gente se torna um pouco escravo do sistema, fazendo apresentações como eles chamam aqui, “alimentares”, mais animações do que projetos com qualidade artística. É difícil conseguir esse equilíbrio entre a qualidade e a quantidade de horas para atender ao estatuto (Elaine, comunicação pessoal).

Zé Lauro Azevedo, artista que também se estabeleceu na região próxima a Toulouse, há vinte anos, elogia o regime de intermitência, embora criticando-o em diversos aspectos. Os seus rendimentos provêm exclusivamente do trabalho como intermitente. Engajado politicamente e envolvido com associações musicais, Zé Lauro recorre a agências ligadas à intermitência, como a Afdas,8 8 Estrutura associativa de gestão paritária que coleta as contribuições das empresas no que concerne ao quadro de financiamento da formação profissional, no caso da formação artistas de espetáculos. inclusive para financiar cursos de formação. O tempo dispendido em formação também é contabilizado como horas de trabalho, no regime de intermitência. Entretanto, o regime não tem propriamente um estatuto:

Nós intermitentes de espetáculos somos considerados “demandeurs d'emploi” [à procura de emprego]), é uma coisa negativa nesse sentido. No Brasil eu tenho o DRT de ator na minha carteira de trabalho, oficialmente eu sou ator. Aqui não sou músico oficialmente. Se eu for comprar e/ou pedir um empréstimo no banco eu tenho que botar “demandeur d'emploi. Fiquei mais ativo depois de morar aqui, sempre em contato com esse mundo sindical (Zé Lauro, comunicação pessoal).

A aquisição da cidadania francesa, necessária para usufruto do regime de intermitência, configura um obstáculo para músicos jovens. Vários deles(as) ingressam em um tipo de “endogamia ocupacional”, relacionando-se com outros(as) musicistas, autóctones ou naturalizados da União Europeia, o que lhes garante a nacionalidade francesa. Marcelo, percussionista, radicado na Normandia há 12 anos, casou-se com uma brasileira naturalizada italiana e só então passou a trabalhar como intermitente. É entusiasta do regime, mas reconhece opiniões contrárias: “tem gente que acha que os caras ficam folgados, que ganham dinheiro pra não trabalhar, tem muitas opiniões a respeito, mas é uma coisa muito legal, meio que é quase que um sonho, né?” (Marcelo, comunicação pessoal). O lado positivo do regime seria esse tipo de seguro-desemprego; há tempo para ensaiar, aprimorar, compor, ganhando como se ocupasse essas horas efetivamente na performance. O lado negativo é participar de projetos com os quais não se têm muita afinidade, para compor o número de horas necessário.

Na opinião de Rita Macedo, que está na França desde 1986, o regime facilita o trabalho de quem não se filia à música clássica, que tem todo suporte, e é considerada arte maior:

É como se você ganhasse um salário, mas não num regime geral dos assalariados da França. Todo ano você renova sua intermitência; para renovar tem que ter feito 507 horas de trabalho no ano, sabendo que um cachê vale 12 horas e está incluindo o tempo de ida e volta ao concerto (Rita, comunicação pessoal).

Rita provém de uma família de músicos na Bahia, filha de Osmar, criador do Trio Elétrico, que animava os carnavais de Salvador. Segundo seu relato, “foram alguns franceses que queriam revitalizar o carnaval de Toulouse” (Rita, comunicação pessoal). Começou daí um intercâmbio de equipes ou delegações, ora para ver o carnaval na Bahia, ora para relançá-lo em Toulouse:

Contrataram ele [Osmar] pra vir aqui e tocar, foi uma grande festa com 100 mil pessoas nas ruas. No ano seguinte o sucesso foi muito e vieram de novo para a festa. Na época eu fazia licenciatura em música em Salvador, na Católica, mas queria fazer regência na Federal. Aí meu pai disse: “se quer fazer música como seus irmãos, tenho amigos na França, você vai passar um ano lá pra estudar e aprender uma língua.” Fui ficando e voltando, até o dia em que comecei a voar com as minhas próprias asas e fiquei (Rita, comunicação pessoal).

Apesar de se sustentar preponderantemente com o regime de intermitência, Rita salienta as dificuldades que um músico estrangeiro enfrenta: “Não é simples assim: chegou e você é intermitente. É muito difícil você ter 43 datas declaradas no ano” (Rita, comunicação pessoal).

A existência de fraudes no regime de intermitência é tematizada por alguns entrevistados, como Elio, cantor e compositor com trajetória anterior como músico popular no Brasil. Há sete anos na França, casado com uma psicóloga francesa, o músico já adquiriu cidadania, mas não tem conseguido o número de horas contratadas necessário para postular o regime de intermitência por diversas razões, entre as quais, retornos periódicos ao Brasil e o fato de residir no vale do Loire e ter que se deslocar frequentemente para cidades maiores, para uma ou poucas apresentações. Elio considera o estatuto da intermitência “uma medida maravilhosa”, mas ressalta que

todo sistema tem problemas. Tem gente, músicos e artistas que burlam as leis em todo lugar, infelizmente. Tentam comprar notas, passa por uma empresa de um amigo, coisas assim. Há também as estrelas da música francesa que comem grande parte desse dinheiro e acabam dominando os espaços em que a gente poderia tocar (Elio, comunicação pessoal).

Tive a oportunidade de assistir a uma apresentação de Elio em um café em Montmartre.9 9 Agradeço aqui à colega pesquisadora Helena Hirata, que reside em Paris e, na ocasião, informou a respeito da apresentação de Elio em Montmartre. As condições de trabalho eram típicas de profissionais cujos rendimentos provêm, sobretudo, de CDDs d'usage, contratos ad hoc para apresentações isoladas, mas que não chegam a ingressar no regime de intermitência. Os cachês usuais nessas pequenas casas noturnas variavam de 200 a 500 euros, por um a dois sets de 40 a 50 minutos cada. Embora essa forma de contratação e as condições laborais eventualmente beirem a precariedade, não equivalem ao trabalho informal. Elio menciona, com certo ressentimento, o tipo de travail au noir a que músicos brasileiros, principalmente jovens iniciantes no mercado, se submetem. São contratados por empresas eventualmente gerenciadas por brasileiros, para apresentações turísticas, como nos bateaux mouches que navegam pelo Sena, em casas noturnas e festas em castelos. O músico contesta a ideia de que seria fácil ganhar a vida apegando-se à comunidade brasileira na França e identificando-se com formas culturais típicas:

Aqui você tem que trabalhar do mesmo jeito. Talvez mais duro, senão vai passar o tempo jogando uma capoeira que não joga, dançando o que você não dança. Não é isso que a gente quer! A exploração é em todo lugar. Hoje faço concertos de 40 minutos a uma hora e vinte, no máximo, e sou super bem recebido. Nas primeiras vezes que fui procurar trabalho aqui era pra tocar em barquinho e ganhar 30 euros (Elio, comunicação pessoal).

Filiação cultural: da batucada à ópera

A pesquisa que deu origem a este artigo envolveu questões subjacentes: como a suposta representação cultural do Brasil ligada ao futebol, ao carnaval, ao samba, se aplica aos músicos brasileiros que tentam se estabelecer na França? Esse tipo de representação orienta o trabalho desses músicos, aproximando-os de formas típicas, como baião, samba, choro e bossa-nova? Essas representações influem significativamente na identidade profissional?

Anaïs Vaillant (2013)Vaillant, Anaïs. 2013. La batucada des gringos. Tese em Antropologia, Ecole Doctorale Espaces, Cultures, Sociétés, Aix-en-Provence, França. considerou como certas formas musicais brasileiras, como o samba e o maracatu, circulam em outros locais, mas são também reapropriadas. Procura-se aqui identificar como os músicos brasileiros agem na reapropriação e transformação criativa dessas formas musicais. O caso da reconstrução do carnaval em Toulouse, intermediada por “missões” de artistas baianos, tal como narrado por Rita Macedo, é exemplar nesse sentido. Dentre os inúmeros projetos que desenvolve, a musicista combina formas do nordeste brasileiro com elementos da história e das sociedades locais, escrevendo letras de canções em francês, mas também na língua occitana, considerada a língua regional mais falada no território da França. Organiza também bailes com ritmos como forró e maracatu, integra jovens e também capacita alunos do Conservatório de Bordeaux nesses gêneros musicais.

Outro exemplo nessa linha de sínteses criativas está no trabalho de Cristiano Nascimento, que toca violão de sete cordas, além de outros instrumentos. Iniciou seus estudos na Escola de música Villa-Lobos, Rio de Janeiro e depois tornou-se discípulo de Itiberê Zwarg, contrabaixista que trabalha com o famoso músico Hermeto Pascoal. Formado nessa “academia” de arte popular, Cristiano tem atuado como acompanhante no violão, mas suas principais atividades são composição e arranjo. A sua trajetória, em parceria com a esposa Claire, ilustra a integração de músicos na rede de cooperação, incluindo elementos da filiação cultural:

Minha vontade sempre foi querer ter minhas composições, meus arranjos… e hoje é o que eu faço na França com a minha esposa. Ela é bandolinista, autora e cantora; francesa, né? E na transmissão também, tem 15 anos agora que a gente tem uma associação na França pra divulgação da música brasileira, através, sobretudo, de rodas de choro e um pouco da música nordestina. Fico meio nesse mundo da música de concerto também, música erudita, de câmara, gosto muito de escrever pras essas formações diversas, trabalho com muitos conservatórios também, estágios, “masterclassses” (Cristiano, comunicação pessoal).

Cristiano e Claire vêm divulgando seu trabalho nos players digitais, como Soundcloud e Deezer, além de apoiar outros grupos pela associação La Roda, na qual são diretores artísticos. Esse tipo de atuação releva também a importância dos eventos de filiação cultural ligados ao trabalho artístico de brasileiros na França. É o caso, por exemplo, das rodas de choro, de samba, das oficinas de baião, maracatu, realizadas em casas de espetáculos que se transformam, nessas ocasiões, em animadas gafieiras onde participam, além de brasileiros imigrados, estudantes de escolas de dança, conservatórios e associações.

Por outro lado, os músicos de formação erudita tendem a executar e ensinar obras de compositores brasileiros, como Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Mignone e outros. Nesse aspecto são notáveis as contribuições de musicistas como Margaret e Maria Inês que, nos conservatórios em que lecionam, incentivam, por meio de projetos, a produção e a difusão da música brasileira. A razão de privilegiar compositores brasileiros, entretanto, pode não provir apenas da escolha pessoal, de reconhecimento ou filiação cultural. A pianista Silvia, radicada em Paris, por exemplo, remete a uma antecipação da crítica que pode receber do público: “Acho que tenho um pouco mais de autoridade pra tocar músicas brasileiras do que tocar música europeia aqui” (Silvia, comunicação pessoal). Silvia também ressalta que é comum, no Brasil, uma formação na música erudita que privilegia autores estrangeiros, além de que o incentivo à música improvisada também é raro. Ao contrário, na França a exigência por manter um repertório exclusivamente europeu não existe e novidades são bem-vindas.

Os exemplos atrás relacionados ilustram que a filiação cultural pode influenciar de forma positiva trajetórias de músicos brasileiros na França, mas isso depende de fatores conjunturais, como o tipo de política cultural sendo desenvolvida. Nesse caso a contribuição francesa é ambígua já que, de um lado, se valoriza o ensino de música improvisada e institui-se uma permissão de residência específica para profissões culturais, assegurando ao músico um tempo maior de permanência. No entanto, não se assegura a estrangeiros o usufruto do regime de intermitência. Os músicos podem aproveitar o capital cultural relativo a gêneros típicos e abrir associações ligadas a choro, a samba e a outros gêneros, por vezes com sucesso. Porém, essas associações, na condição de “contratantes”, nem priorizam os direitos do trabalhador, preferindo a flexibilidade de CDDs d'usage apenas com pessoas constituídas como microempresas. Em última instância, a filiação à turma da “batucada” brasileira pode conduzir ao travail au noir e à exploração predatória do trabalho artístico. Finalmente, se nos ativermos ao campo da música erudita, a filiação cultural pode se converter até em um obstáculo, decorrente da valorização incipiente do patrimônio e produção musical no Brasil ou, por outro lado, conduzir a um aproveitamento mais seletivo dessas contribuições nos cursos europeus de formação musical.

Considerações finais

A identidade social de músicos brasileiros na França permanece ligada à tradicional distinção entre o erudito e o popular, ainda que se considere a pluriatividade que caracteriza o trabalho musical e eventualidade trajetórias nesses dois domínios. O ensino musical na França é muito mais regulamentado do que no Brasil, a competitividade é maior, as exigências para lecionar em escolas públicas praticamente afastam desse tipo de exercício músicos que não se tenham destacado em orquestras ou grupos instrumentais, ou obtido formação superior e licenças ou certificados para ensino de artes na França. A formação profissional ou mesmo um doutorado dificilmente facultam ao músico imigrado a possibilidade de disputar, em concurso, a condição de agrégé ou de lecionar em nível superior. Ainda assim, o ensino em suas diversas formas, de aulas particulares, eventualmente na informalidade, a CDDs renováveis anualmente ou, após muitos anos de exercício, o CDI, figuram na trajetória da maioria dos músicos na França, incluindo os imigrados. No que tange à performance, a intermitência prevalece sobretudo à música popular, com maior frequência ainda para músicos na “província”. Arranjos articulando CDDs no ensino e CDDs d'usage na performance são mais comuns entre mulheres, principalmente em razão da estabilidade econômica que a condição de maternidade requer. Os arranjos domésticos são fundamentais para a permanência na trajetória. A endogamia ocupacional também é frequente, talvez mais do que comumente ocorre, devido à condição de acesso à cidadania que pode proporcionar para imigrados.

A rejeição à condição de intermitente é comum entre músicos brasileiros eruditos, que contestam a realização de animações culturais e atividades relacionadas a campos conexos, como propaganda ou produção audiovisual. Essa crítica é, contudo, limitada, já que o acúmulo de contratos temporários de ensino e cachês de performances esporádicas pode acarretar doenças relacionadas ao trabalho, além de que, sem complementação pelo regime de intermitência, pode ser insuficiente para manter a qualidade de vida e o trabalho criativo.

A questão das fraudes é importante, pois relaciona-se com a rejeição que o regime apresenta no campo erudito, em que os contratantes frequentemente se recusam a registrar formalmente apresentações, pois o valor das taxas é alto e, diferentemente de casas de espetáculos de entretenimento, não contam com outras fontes de receita. Menger (2011Menger, Pierre-Michel. 2011 [2005]. Les intermitents du spectacle. Sociologie du travail flexible. Paris: Ehess., 140-141), ao analisar o “argumento da fraude”, usado por músicos que não ingressam no regime, mas também por contratantes, a respeito do impacto dos impostos, acaba revelando um problema do próprio sistema O músico tende a não trabalhar mais do que as horas requisitadas para o benefício ou a não exigir comprovação em contratos “excedentes”, o que favorece o contratante, que deixa de pagar os impostos. No entanto, como o regime depende estruturalmente do tripé artista-contratante-agência seguradora, essa situação desfavorece o último polo, representado por instituições que pagam o seguro-desemprego, o que leva a crises e tentativas de desregulamentação. Concebido na perspectiva de um equilíbrio entre as demandas de serviços artísticos no mercado, as necessidades dos trabalhadores e os interesses de agências arrecadatórias responsáveis pela compensação, o regime não previu as próprias transformações no mercado, como o barateamento nas tecnologias, o envelhecimento dos trabalhadores e a mudança de hábitos dos consumidores.

Em relação às perspectivas de ascensão social de músicos brasileiros, é praticamente unânime o juízo de que a permanência na França foi favorável em relação à situação anterior no Brasil. De certa forma, ainda que ocorram crises periódicas, evidencia-se um esforço de regulamentação que, embora não seja unicamente desenvolvido na França,10 10 A respeito de regimes de compensação para intermitentes de artes e espetáculos em outros países, consultar Catherine B. Grosset (2008). tem acarretado, pelo menos, a diminuição de abandono ou deslocamento para outras ocupações.

A atuação de músicos brasileiros não é estritamente diferente das trajetórias vivenciadas por músicos autóctones na França. A instabilidade e a incerteza marcam ou até constituem o próprio princípio de ação (Menger, 2011Menger, Pierre-Michel. 2011 [2005]. Les intermitents du spectacle. Sociologie du travail flexible. Paris: Ehess.) no contexto contemporâneo de trabalho por projetos, sobretudo entre os(as) que trabalham principalmente com gêneros populares. Ainda que praticamente a totalidade desses profissionais brasileiros esteja ocupada parcialmente no campo do ensino e do treinamento, isso é mais comum entre aqueles/as que tiveram formação na música erudita, dentre os quais se incluem, por exemplo, estudantes de pós-graduação que, após ou durante essa formação, vieram a se integrar no mercado de trabalho musical na França. A pluriatividade é também a regra entre brasileiros músicos: ensino ou treinamento em escolas ou sessões de animação ou prática cultural (oficinas, workshops etc.), performances em espetáculos, elaboração de arranjos e composições, sessões de gravação, produção e organização de eventos, um certo nomadismo sazonal na realização de turnês e apresentações. Finalmente, há considerável dispêndio de tempo em atividades antes delegadas a outros setores: elaboração de perfis e homepages, gravação de vídeos para divulgação em players digitais, constituição de associações e coletivos para obter recursos e fortalecer uma identidade cultural, além de outras.

A especificidade de atuação de músicos brasileiros na França está na filiação cultural a gêneros como samba, bossa, choro, “música nordestina”, eventualmente combinados com gêneros típicos latino-americanos, como tango, salsa, cueca etc. Esse tipo de filiação pode ser compreendido como estratégia coletiva em um mercado competitivo, mas também na construção subjetiva de uma identidade profissional esfacelada pela pluriatividade e a instabilidade.

  • 2
    O artigo está relacionado a uma pesquisa realizada de março a julho de 2018, durante estágio pós-doutoral na Universidade de Versalhes, França. Uma versão preliminar deste texto foi apresentada durante o 42.º Encontro Anual da Anpocs. Agradeço aqui aos colegas pelas observações e sugestões apresentadas na ocasião.
  • 3
    Segundo o Alto Conselho de Integração (HCI), em 1990, “é imigrado toda pessoa nascida estrangeira, em um país estrangeiro, que vive na França”. Segundo Spire (1999Spire, Alexis. 1999. De l’étranger à l'immigré. Actes de la recherche en sciences sociales 129: 5-56. https://doi.org/10.3406/arss.1999.3303.
    https://doi.org/10.3406/arss.1999.3303...
    , 50), o uso dessa categoria foi estendido, progressivamente, no aparato estatístico oficial, substituindo a oposição jurídica entre “estrangeiro” e “nacional”.
  • 4
    Os resultados foram calculados com base nos microdados da Enquête Emplois Continue, de 2003 a 2016. A Enquête Emplois Continue é uma pesquisa realizada pelo Insee na França a partir de 2001, com objetivo de observar de forma estrutural e conjuntural a situação das pessoas no mercado de trabalho.
  • 5
    O Ministério da Cultura e da Comunicação do Ensino Superior e da Pesquisa informou, em boletim publicado em 2015, que a porcentagem de estudantes estrangeiros no ensino superior francês cresceu de 12% em 2003 para 16% em 2016.
  • 6
    Ministère de la Culture et de la Communication. 2018. Morphologie et économie du champ culturel, pratiques et usages culturels. In Chiffres clés, statistiques de la culture et de la communication 2018, organizado pelo Ministère de la Culture et de la Communication, 31-128. Paris: Ministère de la Culture – Deps. Acessado em 20 mar. 2018, https://www.cairn.info/chiffres-cles-statistiques-de-la-culture-2018--9782111515178-page-31.htm.
  • 7
    Acessado em 18 fev. 2018, http://www.musiquesdumonde.fr.
  • 8
    Estrutura associativa de gestão paritária que coleta as contribuições das empresas no que concerne ao quadro de financiamento da formação profissional, no caso da formação artistas de espetáculos.
  • 9
    Agradeço aqui à colega pesquisadora Helena Hirata, que reside em Paris e, na ocasião, informou a respeito da apresentação de Elio em Montmartre.
  • 10
    A respeito de regimes de compensação para intermitentes de artes e espetáculos em outros países, consultar Catherine B. Grosset (2008)Grosset, Catherine B. 2008. Tour d'horizon des dispositifs en faveur des artistes dans les pays européens. In Les intermittents du spectacle, organizado por Nicolas Pélissier e Céline Lacroix, 73-98. Paris: L'Harmattan..

Referências

  • Coulangeon, Philippe. 1999. Les musiciens de jazz en France Paris: Harmattan.
  • Coulangeon, Philippe. 2004. Les musiciens interprètes en France. Portrait d'une profession. Paris: Ministère de la culture et la communication.
  • Dubar, Claude. 2006. A crise das identidades. Lisboa: Afrontamento.
  • Dupuis, Xavier. 1993. Les musiciens d'orchestre, entre passion et frustation Paris: Dep. Ministère de la culture.
  • Furtado, Luís Carlos V. 2014. Flautear: a construção identitária do flautista brasileiro como trabalhador Tese em História, Universidade de Brasília, UnB, Brasília, Brasil.
  • Grosset, Catherine B. 2008. Tour d'horizon des dispositifs en faveur des artistes dans les pays européens. In Les intermittents du spectacle, organizado por Nicolas Pélissier e Céline Lacroix, 73-98. Paris: L'Harmattan.
  • Mantelin, Maud. 2003. Les artistes étrangers en France, ambassadeurs de cultures du monde? Une analyse politique et juridique du dispositif d'accueil Lyon: Univ. Lumière.
  • Menger, Pierre-Michel. 2011 [2005]. Les intermitents du spectacle. Sociologie du travail flexible Paris: Ehess.
  • Menger, Pierre-Michel. 2009. Le travail créateur. S'accomplir dans l'incertain Paris: Seuil-Gallimard.
  • Ravet, Hyacinthe. 2011. Musiciennes Enquête sur les femmes et la musique. Paris: Autremont.
  • Reis, Cacilda Ferreira dos. 2012. Sonhos, incertezas e realizações: as trajetórias de músicos e dançarinos afro-brasileiros no Brasil e na França Tese em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo.
  • Segnini, Liliana R. 2016. Questions sur les carrières des femmes musiciennes. In Genre, race, classe, organizado por Nadya Guimarães, Margareth Maruani e Bila Sorj, 221-233. Paris: L'Harmattan.
  • Sennett, Richard. 2014. A corrosão do caráter. As consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo Rio de Janeiro: Record.
  • Spire, Alexis. 1999. De l’étranger à l'immigré. Actes de la recherche en sciences sociales 129: 5-56. https://doi.org/10.3406/arss.1999.3303
    » https://doi.org/10.3406/arss.1999.3303
  • Vaillant, Anaïs. 2013. La batucada des gringos. Tese em Antropologia, Ecole Doctorale Espaces, Cultures, Sociétés, Aix-en-Provence, França.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2020
  • Aceito
    11 Jun 2020
  • Publicado
    07 Maio 2021
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Cep: 90619-900, Tel: +55 51 3320 3681 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: civitas@pucrs.br