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Um sonho à venda: a comercialização dos imóveis do PMCMV – faixa 1

Resumo

No Brasil, historicamente as ações do poder público na agenda da habitação mobilizam-se a partir da ideologia da casa própria, abrindo a possibilidade, mesmo que irregular, de comercialização. Este artigo analisa o cenário de comercialização dos imóveis do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) – faixa 1 (2009 a 2020). Dos procedimentos metodológicos, constam: monitoramento dos anúncios; acesso ao banco de dados de controle de notificações da Caixa Econômica Federal; e mapeamento de uso do solo dos conjuntos. A pesquisa visa contribuir contemplando diferentes escalas analíticas: da unidade da federação (estado do Rio Grande do Norte), da Região Metropolitana de Natal (RMN) e de municípios de porte médio (a cidade de Mossoró), com o mesmo prisma metodológico.

política habitacional; comercialização; Programa Minha Casa Minha Vida; ideologia da casa própria; Rio Grande do Norte

Abstract

Historically, in Brazil, the government’s actions regarding the housing agenda have been based on the home ownership ideology, opening up a possibility, even though irregular, for commercialization. This article analyzes the context of the sale of houses from the Minha Casa Minha Vida Program – range 1 (2009 to 2020). The methodological procedures include monitoring of advertisements, access to the notification control database of the federal bank Caixa Econômica Federal, and land use mapping of housing units. This research’s contribution is that it analyzes those processes in different analytical scales – federation unit (state of Rio Grande do Norte), metropolitan region of Natal, and medium-sized city (Mossoró) – with the same methodological approach.

housing policy; commercialization; Minha Casa Minha Vida Program; home ownership ideology; Rio Grande do Norte

Introdução

Na cesta dos sonhos, colocamos os desejos, as utopias e os projetos de difícil execução. A casa própria, para a população brasileira, apresenta-se como um sonho. Primeiro, ela se consolida como desejo e aspiração; depois como as dificuldades para o acesso. Socialmente produzido e alimentado, o desejo por uma casa “própria” é utilizado como ferramenta de mobilização pelos programas governamentais, bem como pelo mercado imobiliário ( Barlow e Duncan, 1988BARLOW, J.; DUNCAN, S. (1988). The use and abuse of housing tenure. Housing Studies , v. 3, n. 4, pp. 219-231. ; Cobos, 1987COBOS, E. P. (1987). Capital, estado y vivienda en América Latina . México, Fontamara. ; Bolaffi, 1982BOLAFFI, G. (1982). “Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema”. In: MARICATO, E. A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo, Alfa-Omega. ; Arantes e Fix, 2009ARANTES, P.; FIX, M. (2009). Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação. Alguns comentários sobre o pacote habitacional Minha Casa Minha Vida . Disponível em: https://www.correiocidadania.com.br/especiais/66-pacote-habitacional/3580-31-07-2009-minha-casa-minha-vida-o-pacote-habitacional-de-lula. Acesso em: 3 set 2021.
https://www.correiocidadania.com.br/espe...
) e pela mídia em geral (Ritter e Gonsales, 2017). A casa própria é uma mercadoria cara, com características peculiares na produção e no consumo ( Valença, 2003VALENÇA, M. M. (2003). Habitação: notas sobre a natureza de uma mercadoria peculiar. Cadernos Metrópole. São Paulo, n. 9, pp. 165-171. ). A imprescindibilidade da terra e o imperativo da localização fazem da casa seu ticket de acesso à cidade ( Ribeiro, 1996RIBEIRO, L. C. de Q. (1996). Dos cortiços aos condomínios de luxo . Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. ).

Historicamente, a intervenção do Estado sobre a política habitacional no Brasil tem como principal instrumento para a resolução do problema da moradia a “política da casa própria”, demonstrando uma franca aliança entre o ‘combate’ ao déficit habitacional e a construção civil ( Azevedo, 1988AZEVEDO, S. (1988). Vinte e dois anos de política de habitação popular (1964-86): criação, trajetória e extinção do BNH. Revista de Administração Pública . Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, pp. 107-119. ; Andrade e Azevedo, 1982ANDRADE, L.; AZEVEDO, S. (1982). Habitação e poder: da Fundação da Casa Popular ao Banco Nacional Habitação. Rio de Janeiro, SciELO. ; Medeiros, 2004MEDEIROS, S. R. F. Q. (2004). Moradia x ordem social. Sociedade e Território . Natal, v. 16, n. 1/2, pp. 7-20. ). Os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) – de 1937 a 1964 – foram pioneiros na promoção de habitação à classe trabalhadora, mas de forma seletiva, atendendo aos assegurados dos institutos ( Bonduki, 1998BONDUKI, N. G. (1998). Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo, Estação Liberdade ). Em 1946, com a Fundação da Casa Popular, tem-se o primeiro Órgão, de âmbito nacional, voltado exclusivamente para a provisão de residências às populações de pequeno poder aquisitivo. Essa atuação foi assumida pelo Banco Nacional de Habitação (1964--1986), criado concomitantemente ao Sistema Nacional de Habitação, que contava com as cadernetas de poupança – da Sociedade Brasileira de Poupança e Empréstimo (SBPE) – e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) como principais fontes de recurso da política habitacional ( Andrade e Azevedo, 1982ANDRADE, L.; AZEVEDO, S. (1982). Habitação e poder: da Fundação da Casa Popular ao Banco Nacional Habitação. Rio de Janeiro, SciELO. ; Arretche, 1999ARRETCHE, M. T. (1999). Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais , n. 14, pp. 111-141. ; Valença, 2001VALENÇA, M. M. (2001). Globabitação: sistemas habitacionais no Brasil, Grã-Bretanha e Portugal. São Paulo, Terceira Margem. e outros).

Essas políticas no formato topdown receberam várias críticas, pautadas essencialmente no modelo de política que utilizava em sua justificativa o déficit habitacional, mas que em sua execução não atingia as metas traçadas ( Bonduki, 1998BONDUKI, N. G. (1998). Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo, Estação Liberdade ; Maricato, 1979MARICATO, E. (1979). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial . São Paulo, Alfa-Omega. ; Bolaffi, 1982BOLAFFI, G. (1982). “Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema”. In: MARICATO, E. A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo, Alfa-Omega. ; Azevedo, 1988AZEVEDO, S. (1988). Vinte e dois anos de política de habitação popular (1964-86): criação, trajetória e extinção do BNH. Revista de Administração Pública . Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, pp. 107-119. ). Na agenda está o déficit, mas, na implementação, essas ações são executadas apenas pelas “bordas”. Outra crítica recorrente é pautada no agenciamento do problema da moradia pela construção civil, que orienta suas ações nos extratos de demanda solvável, em que o teto (limite de rendas nos programas) vira o piso, ou seja, somente os extratos superiores de renda acessam as políticas ( Cardoso, 2003CARDOSO, A. (2003). Política habitacional no Brasil: balanço e perspectivas. Revista Proposta. Rio de Janeiro, n. 95, pp. 6-17. ; Maricato, 1983MARICATO, E. (1983). Indústria da construção e política habitacional. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. ).

Em 2009, seguindo o mesmo modelo de resposta à questão habitacional no Brasil, foi criado o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), regulamentado pela lei n. 11.977/2009, em vigor até agosto de 2020. O programa contemplou as famílias inseridas em quatro faixas de renda. Os imóveis destinados à faixa 1, que compreendeu as famílias de rendimento mensal de até R$1.800,00 e constitui o foco desta análise, abrangem algumas especificidades. A comercialização (venda e locação) e cessão de tais imóveis são proibidas durante todo o período do financiamento, isto é, por dez anos, exceto mediante quitação. No contrato de financiamento do PMCMV, há uma cláusula de alienação fiduciária (retenção da propriedade do bem) na qual consta que, enquanto o imóvel estiver financiado, o Fundo de Arrendamento Residencial – FAR, credor fiduciário, possui a propriedade indireta do imóvel. Somente após a quitação é que o beneficiário, denominado fiduciante, pode integrar o bem ao seu patrimônio. Outro fator que deve ser destacado é o aporte de subsídio de até 95% do valor do imóvel destinado para a população pertencente à faixa de renda aqui analisada. A política de subsídio é agregada ao cumprimento de condicionalidades — de ingresso e permanência no programa. O descumprimento das condicionalidades pode levar à perda do imóvel e à impossibilidade de participar de novas ações do programa. A condicionalidade da permanência no imóvel, por no mínimo dez anos, para os beneficiários do PMCMV faixa – 1 implica que, se houver comercialização antes de concluir esse tempo, o subsídio não fica mais à disposição, sendo necessário quitar todo o valor do imóvel.

Ao estruturar-se sobre um modelo de mercantilização do bem, Cardoso, Jaenisch e Aragão (2017) afirmam que o PMCMV estimula o valor de troca da habitação, haja vista que “uma vez transferido, o bem tem um valor de mercado, o que permitiria ao beneficiário capitalizar o valor monetariamente, transferindo-o para outra pessoa” (pp. 42-43). Assim, se, por um lado, o subsídio de até 95% vinculado aos dez anos de permanência tem o objetivo de preservar a função social do PMCMV, por outro, retira um dos atributos centrais do bem habitação – o seu caráter mercantil –, limitando o direito de propriedade sobre o imóvel.

Apesar da vedação à comercialização, pesquisas sobre os resultados do PMCMV em diversas cidades do Brasil ( Rufino, 2015RUFINO, M. B. C. (2015). “Um olhar sobre a produção do PMCMV a partir de eixos analíticos”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO. L. Z.; RUFINO. M. B. (orgs.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida em seis estados brasileiros . Rio de Janeiro, Letra Capital. ; Pequeno e Rosa, 2015PEQUENO, R.; ROSA, S. V. (2015). “Inserção urbana e segregação espacial: análise do Programa Minha Casa Minha Vida em Fortaleza”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO. L. Z.; RUFINO. M. B. (orgs.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida em seis estados brasileiros . Rio de Janeiro, Letra Capital. ; Chaves, 2019CHAVES, C. (2019). Quanto vale a minha casa? A comercialização dos imóveis faixa 1 do Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Natal . Dissertação de mestrado. Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. ) demonstram a existência de procedimentos de comercialização pelos beneficiários dos imóveis da faixa 1, ainda durante o período de financiamento, mediante meios informais de negociação. A hipótese é que, mesmo com as cláusulas contratuais de permanência no imóvel (de no mínimo dez anos), a população de menores rendimentos termina por comercializar os imóveis em virtude de inadequações da tipologia e/ou de dificuldades de inserção em uma nova localização, ou ainda os utiliza como moeda de troca para aquisição de outros bens para atender às necessidades imediatas.

Este artigo analisa o cenário de venda e/ou locação dos imóveis do Programa Minha Casa Minha Vida – faixa 1 (2009 a 2020), considerando variáveis como tempo, inserção urbana e tipologia. A pesquisa visa contribuir com o debate acerca da habitação social, ampliando as análises e avaliações realizadas sobre o PMCMV, contemplando diferentes escalas analíticas: da unidade da federação (estado do Rio Grande do Norte), da Região Metropolitana (RMN) e de municípios de porte médio (a cidade de Mossoró), com o mesmo prisma metodológico.

O próximo tópico apresenta o delineamento metodológico, com a descrição das etapas e dos procedimentos realizados. Em seguida, apresenta-se o Programa Minha Casa Minha Vida no estado do Rio Grande do Norte, destacando o número de empreendimentos e unidades habitacionais recebidas em todo o estado, evidenciando os municípios contemplados pelo programa. O artigo discute as normas legais que vedam a comercialização dos imóveis da faixa 1, bem como os veículos de oferta e comercialização utilizados e os principais agentes que atuam nesse mercado. Por último, ele analisa as cidades e os empreendimentos em que mais ocorreram venda e locação dos imóveis dos imóveis, considerando os fatores tempo, localização e tipologia habitacional, em diferentes contextos.

Delineamento metodológico

Este artigo apresenta os principais resultados de uma pesquisa com os seguintes procedimentos: a) monitoramento dos anúncios de venda ou aluguel de imóveis faixa 1, tendo como recorte empírico o estado do Rio Grande do Norte (RN), no Nordeste do Brasil; b) controle de notificações da Caixa Econômica Federal (CEF); e c) mapeamento de uso e ocupação do solo dos conjuntos do programa na RMN e Mossoró, as duas localidades de maior atuação do programa no estado do RN. Para os resultados do monitoramento de comercialização dos imóveis faixa 1, a pesquisa parte de um banco de dados do grupo de pesquisa Estúdio Conceito – do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – referente aos anos de 2016 a 2020.

Na coleta de anúncios on-line , foram utilizadas as informações disponíveis na OLX – website de anúncios classificados na internet presente em 118 países – e na plataforma Facebook Marketplace. A periodicidade do acesso ao website foi de uma vez por semana, compreendendo o período de dezembro de 2016 a agosto de 2020. Os anúncios coletados foram sistematizados em planilhas de dados, destacando a operação de cada anúncio (venda ou aluguel) e o seu respectivo valor, características dos imóveis, tipo de anunciante (pessoa física ou imobiliária), tipologia (casa ou apartamento), localização e justificativa utilizada no anúncio, possibilitando compreender a dinâmica imobiliária em que os residenciais estão inseridos, bem como aproximar-se das motivações e necessidades dos moradores ao abrirem mão do imóvel obtido através do programa. Além disso, foram coletadas as fotos publicadas, a descrição e o detalhamento de cada anúncio. Os arquivos foram numerados igualmente segundo a tabulação em planilha de dados. Os empreendimentos contínuos (separados apenas por um muro) foram agrupados, sendo identificados pela localidade. A sistematização do banco de dados viabiliza o uso para outras pesquisas e/ou ampliação do levantamento realizado.

A pesquisa fundamenta-se, ainda, sobre o controle de notificações da Caixa Econômica Federal, que registra os tipos de denúncia sobre irregularidades praticadas pelos beneficiários do programa. O acesso ao banco de dados possibilitou identificar os empreendimentos nos quais mais ocorreram denúncias, verificando se há relação com a quantidade de classificados on-line coletados.

Por fim, outra etapa da pesquisa de campo empírica foi realizada na RMN e em Mossoró. Essa fase consistiu no mapeamento de uso e ocupação do solo dos imóveis entregues pelo PMCMV, identificando, com base em tipologias pré-definidas, o uso de cada imóvel do conjunto (projetado inicialmente como residência). O mapeamento objetivou responder às diversas questões acerca das dinâmicas socioespaciais que ocorreram e vêm ocorrendo naquelas localidades desde o surgimento dos conjuntos habitacionais. Desse modo, revela, além das mudanças de uso e da ocupação, a diversificação do espaço interno dos conjuntos, que passam a abrigar novas tipologias habitacionais, prestação de serviços, comércio e outros usos ( Medeiros, 2017MEDEIROS, S. R. F. Q. (2017). “É periferia?: reflexões sobre a localização dos empreendimentos do MCMV na Região Metropolitana de Natal/RN”. In: MARQUES T. S. e t al. (orgs.). As dimensões e a responsabilidade social da geografia . Porto, Associação Portuguesa de Geógrafos. ).

O monitoramento permitiu acompanhar o processo, analisando como os fatores de tempo, de inserção urbana e de tipologia habitacional atuam nos cenários de maior comercialização dos imóveis do Programa Minha Casa Minha Vida – faixa 1 no estado do Rio Grande do Norte.

A comercialização dos imóveis do PMCMV – faixa 1

A comercialização de imóveis frutos de política habitacional não ocorreu exclusivamente no PMCMV. Valladares (1978)VALLADARES, L. P. (1978). Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro, Zahar. possui uma pesquisa pioneira no Brasil sobre o contexto de comercialização de imóveis do Banco Nacional da Habitação, construídos na década de 1960. Por meio da cessão de direitos, o morador beneficiado com o imóvel passava a propriedade deste a um terceiro, que, além de pagar uma quantia no momento da compra, assumia o restante das prestações da casa.

Ainda que o PMCMV estabeleça que seu objetivo para a faixa 1 seja providenciar moradia adequada para a população de baixa renda e delimite um período em que o imóvel deve ser utilizado apenas para a moradia da família beneficiada, a realidade observada nos empreendimentos dessa faixa demonstra que isso não se efetiva. Pesquisas realizadas em diversas cidades brasileiras evidenciam imóveis destinados à venda ou aluguel durante o período de financiamento. Autores como Rufino (2015)RUFINO, M. B. C. (2015). “Um olhar sobre a produção do PMCMV a partir de eixos analíticos”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO. L. Z.; RUFINO. M. B. (orgs.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida em seis estados brasileiros . Rio de Janeiro, Letra Capital. e Nascimento et al. (2015)NASCIMENTO, D. M. et al. (2015). “Programa Minha Casa Minha Vida: desafios e avanços na região metropolitana de Belo Horizonte”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO. L. Z.; RUFINO. M. B. (orgs.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro, Letra Capital. destacam que uma das causas da comercialização dos imóveis da faixa 1 está associada a famílias economicamente vulneráveis e que anteriormente não possuíam os custos que a nova moradia exige. Se o formato de condomínio fechado é inviável para as famílias menos favorecidas economicamente, contraditoriamente desperta o interesse de uma população que vincula o formato de condomínio fechado à sensação de segurança ( Pequeno e Rosa, 2015PEQUENO, R.; ROSA, S. V. (2015). “Inserção urbana e segregação espacial: análise do Programa Minha Casa Minha Vida em Fortaleza”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO. L. Z.; RUFINO. M. B. (orgs.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida em seis estados brasileiros . Rio de Janeiro, Letra Capital. ). Outros motivos também estão associados à venda ou locação dos imóveis, como a localização dos empreendimentos, que em muitas cidades brasileiras se encontram em periferias distantes dos trabalhos e dos acessos a serviços básicos e infraestrutura. Os conflitos sociais, os conjuntos tomados pela violência, o tamanho e as tipologias também são evidenciados como fatores que impulsionam a comercialização dos imóveis.

O estudo de caso, realizado no estado do Rio Grande do Norte, identificou que o Programa Minha Casa Minha Vida – faixa 1, até o ano de 2017, contemplou 11 municípios, totalizando 33 empreendimentos e 14.694 unidades habitacionais (UH) entregues, conforme o Quadro 1 . Dos 16 municípios que compõem a RMN, nove receberam unidades habitacionais subsidiadas pelo programa. Parnamirim e São Gonçalo do Amarante são as cidades que receberam o maior número de UH na RMN. Fora da RMN, onde a produção habitacional se intensificou, apenas os municípios de Mossoró e Assú foram contemplados com empreendimentos da faixa 1. A tipologia vertical representa 47,8% das UH entregues pela faixa 1 no RN. Os empreendimentos mais antigos do estado foram entregues no ano de 2011. Sendo assim, todos ainda se encontravam, em 2021, no período de financiamento, compreendido em 120 meses.

Quadro 1
Empreendimentos do PMCMV – faixa 1 entregues até 2017 no RN, por município

Na segunda fase do PMCMV, iniciada em 2011, foi inserida nas condicionalidades do programa a proibição da venda ou aluguel dos imóveis da faixa 1. A vedação à comercialização pelos beneficiários das unidades habitacionais recebidas no âmbito do PMCMV – faixa 1 é expressa nos artigos 6ºA e 7ºB da legislação que regulamenta o programa, a lei n. 11.977/2009. Essas regras também são reproduzidas nos documentos da Caixa Econômica Federal, que são assinados pelos beneficiários da faixa 1, como o Instrumento Particular de Compra e Venda e a Declaração do Beneficiário. Ao assinar este último, além de declarar outros requisitos, o beneficiário declara “ter ciência de que o imóvel ora adquirido se destina à residência do(s) adquirente(s), não podendo alugá-lo ou cedê-lo” ( Brasil, 2009BRASIL (2009). Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida-PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 2-2. ).

Somado à comercialização, o Instrumento Particular de Compra e Venda destaca o abandono dos imóveis entre as causas que podem fazer com que o beneficiário tenha o vencimento antecipado da dívida. O vencimento antecipado da dívida consiste na finalização do contrato antes do prazo, sendo o valor total do imóvel cobrado antecipadamente ao beneficiário, isto é, o valor do imóvel sem o subsídio concebido de até 95%. Caso o proprietário não possa quitar esse valor, o imóvel é retomado pela Caixa Econômica Federal.

No entanto, mesmo com todas as disposições do contrato e da lei que regulamenta o programa, a comercialização figura no banco de dados de notificações da Caixa Econômica Federal, que que registra vários tipos de denúncias sobre irregularidades praticadas pelos beneficiários do programa. Entre os anos de 2012 e 2018, a CEF recebeu um total de 1.757 denúncias (considerando abandono, comercialização, obras irregulares, uso comercial, etc.) no estado do Rio Grande do Norte, com destaque para Mossoró e Parnamirim, que juntas concentram 70% das denúncias (ver Tabela 1 ).

Tabela 1
Número de denúncias por município do Rio Grande do Norte no período de 2012 a 2018

No processo de coleta contínua de classificados on-line , foram identificados 394 anúncios dos imóveis da faixa 1 do PMCMV no RN, distribuídos em oito cidades, conforme Figura 1 . Em 2020, figura o maior número de casos de comercialização, com 108 anúncios (30,7%). A operação comercial de venda é a que predomina em todos os períodos analisados, representando 85,8% (338) dos anúncios do estado, contra 12,9% (51) de locação. Os dados demonstram que a tipologia mais comercializada é a de apartamentos, perfazendo 74,1% dos anúncios coletados. Quanto à distribuição espacial dos anúncios coletados, Parnamirim lidera (46,9%), seguido por Mossoró (20,3%) e Natal (19,0%). Juntos, esses municípios concentram 86,3% do total de anúncios coletados. Esses dados convergem com o banco de dados de denúncias da CEF para os casos de Mossoró e Parnamirim, como municípios que mais receberam denúncias sobre irregularidades praticadas pelos beneficiários do programa.

Figura 1
Distribuição espacial dos anúncios coletados no Rio Grande do Norte – 2016-2020

A inserção dos moradores na lógica mercantil pode ser observada, não apenas no ato de comercialização dos imóveis, mas também na descrição dos anúncios, na qual os anunciantes evidenciam o potencial de auferir renda diferencial com o imóvel, como o uso de imóveis de esquina para inserção de atividade comercial: “Vendo uma casa no Santa Júlia [...] ela é de esquina ótimo para ser colocado um comércio ou um ponto de água mineral” (Publicação 39, 2018) e “Vendo ou troco repasse de apartamento minha casa minha vida [...] ótimo investimento para quem quer ganhar dinheiro com aluguel” (Publicação 23, 2020). Como discutido, além de ter uma utilidade para a família que o utiliza, o imóvel possui um valor alto no mercado de bens, e esse valor de troca surge como uma oportunidade para a realização de outras necessidades, como é o caso da aquisição de um carro. Nos anúncios coletados, foram identificados proprietários que declararam aceitar carro como meio de pagamento pelo imóvel. Em alguns casos, a procura pelo carro foi relatada para a utilização como ferramenta de trabalho.

A comercialização irregular dos imóveis é realizada mediante meios informais de negociação, segundo os quais a operação é efetuada sem a anuência do órgão financiador, com um “contrato de gaveta”. Trata-se de um contrato de cessão de direitos que não atua como instrumento de propriedade direta, mas pode ser prova de posse numa ação de usucapião ( Ruzyk e Frank, 2011RUZYK, C. E. P.; FRANK, F. (2011). Revisitando os direitos reais a partir de sua interface com o direito obrigacional: a importância da relatividade entre os planos real e obrigacional nas relações privadas. Sequência: estudos jurídicos e políticos, v. 32, n. 63, pp. 133-158. ). Além disso, mesmo sendo um contrato informal, o fato de muitas transações imobiliárias periféricas não serem legais ou reconhecidas oficialmente nada retira o seu caráter capitalista ( Santos, 1980SANTOS, C. N. F. dos (1980). “Velhas novidades nos modos de urbanização brasileiros”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. ). Isso reflete a discussão de Abramo (2007)ABRAMO, P. (2007). A Cidade Com-fusa. A mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais . Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, pp. 25-54.: se o mercado informal não pode ser amparado pelas leis, ele cria as suas próprias instituições reguladoras. Para o autor, o mercado informal teria, assim, suas instituições informais, que garantiriam o funcionamento do mercado (ibid.).

Sobre os agentes que publicam na plataforma de anúncios on-line , observou-se que são os próprios proprietários das unidades habitacionais — sendo identificado somente um anúncio publicado por imobiliária. Durante a pesquisa de campo realizada em cada empreendimento, foi possível identificar, ainda, a divulgação da comercialização por meio de placas de venda na fachada dos imóveis. Contudo, essas placas não estavam associadas a nenhuma imobiliária ou corretor imobiliário específico. Assim, os beneficiários têm adotado estratégias de comercialização baseadas em uma combinação de métodos de divulgação virtuais e presenciais. Destaca-se a possibilidade de aumento de acessos de futuros proprietários e inquilinos que a utilização de plataformas on-line pode proporcionar.

Figura 2
Anúncio de apartamento à venda do PMCMV

Figura 3
Detalhe de anúncio de apartamento à venda

Há uma preocupação de que, com a comercialização dos imóveis da faixa 1, ocorra um desvio na finalidade social do programa. Questiona-se sobre a origem da população que vai se instalando nesses empreendimentos, se pertencem à mesma faixa de renda da população beneficiária ou se há uma apropriação desses empreendimentos por classes de maior poder aquisitivo. Conforme verificado no levantamento de ambas as escalas espaciais analisadas, o fato de os anúncios serem publicados apenas por proprietários dos imóveis e não por agentes imobiliários formais, somado ao fato de as transações serem efetivadas por meio de contrato de gaveta, indica que não há a operacionalização do processo de comercialização pelo mercado imobiliário formal. Mas quais fatores têm feito com que o sonho da casa própria seja suprimido, fazendo com que os beneficiários se desfaçam de seus imóveis? Esses fatores exercem o mesmo peso em todas as localidades?

Segundo Rufino (2015)RUFINO, M. B. C. (2015). “Um olhar sobre a produção do PMCMV a partir de eixos analíticos”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO. L. Z.; RUFINO. M. B. (orgs.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida em seis estados brasileiros . Rio de Janeiro, Letra Capital. , analisando os resultados do PMCMV em seis estados, a comercialização dos imóveis ainda no período de financiamento está associada, sobretudo, a famílias que apresentam maior vulnerabilidade econômica. Para algumas famílias, o acesso à moradia formal e adequada por meio da propriedade do imóvel pode deixar de representar a realização de um sonho e passar a representar um impasse. A nova moradia vem acompanhada de despesas, como a de serviços urbanos, aos quais, na moradia anterior, na maioria das vezes, eram acessados de maneira irregular, como água, energia, gás (ibid.). Traz consigo, ainda, novas despesas que não faziam parte da vida da maioria das famílias, como a parcela do financiamento do imóvel recebido e taxas de condomínio, nos casos em que são cobradas. Assim, para Rolnik et al. (2015ROLNIK, R. et al. (2015). “Inserção urbana no PMCMV e a efetivação do direito à moradia adequada: uma avaliação de sete empreendimentos no estado de São Paulo”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO. L. Z.; RUFINO. M. B. (orgs.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro, Letra Capital. , p. 415), as práticas de comercialização podem ser traduzidas como reflexo do modelo de propriedade privada adotado pelo programa, assim como da visão equivocada de que somente o acesso à habitação formal, desarticulada de uma rede de proteção social, é suficiente para a efetivação do direito à moradia.

Pequeno e Rosa (2015)PEQUENO, R.; ROSA, S. V. (2015). “Inserção urbana e segregação espacial: análise do Programa Minha Casa Minha Vida em Fortaleza”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO. L. Z.; RUFINO. M. B. (orgs.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida em seis estados brasileiros . Rio de Janeiro, Letra Capital. constatam que os imóveis do programa em Fortaleza/CE também têm sido alvo de transações de vendas e aluguéis. Para os autores, a má localização dos empreendimentos, distante dos locais de trabalho, figura como a principal motivação dessa comercialização. A má inserção dos conjuntos habitacionais, ao contribuir para o aumento das despesas com transporte, é inserida na “cesta” de despesas dos beneficiários da faixa 1. Fernandes (2019)FERNANDES, A. (2019). Como fecha esta conta? O caso do Residencial Village de Prata, PMCMV Faixa 1. Trabalho de Conclusão de Curso. Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. avaliou todos os custos que envolvem esse novo modelo de moradia para os beneficiários do PMCMV em um empreendimento da RMN, fazendo o comparativo da renda das famílias com as despesas existentes. Assim, o cenário de urbanização precária – com ausência de serviços, comércios e ofertas de trabalhos – no qual os empreendimentos habitacionais se inserem dificulta a permanência das famílias mais vulneráveis na nova moradia, tanto em relação ao tempo gasto, sobretudo nos deslocamentos casa-trabalho, como também no aumento das despesas com transporte. Não foram exploradas, nesta pesquisa, as implicações diretas dos apartamentos-condomínios, configurando uma relevante agenda de pesquisa.

A informalidade, a ilegalidade e a irregularidade nas formas de habitar estão presentes principalmente nas grandes metrópoles brasileiras, atingindo de modo especial a população de menor poder aquisitivo, que, por não conseguir acessar o solo e/ou a moradia, pelas vias do mercado formal de habitação, veem nesses arranjos a única opção de acesso. Embora se concentre na população mais pobre, o acesso ilegal/informal à terra e à moradia incide, ainda, em outros segmentos da população, não se restringindo apenas aos pobres. Smolka (2003)SMOLKA, M. O. (2003). “Regularização da ocupação do solo urbano: a solução que é parte do problema, o problema que é parte da solução”. In: ACSELRAD, H. (org.). Planejamento e território, ensaios sobre a desigualdade. Rio de Janeiro, DP&A. afirma que as taxas de ilegalidade são mais altas do que as taxas de pobreza, demonstrando que a pobreza urbana não é suficiente para explicar a informalidade em sua totalidade, pois o ilegal e o informal vão além dos assentamentos informais. Há vários níveis de ilegalidade e de diversidade da irregularidade.

Considerando a ilegalidade edilícia e urbanística, Maricato (1995)MARICATO, E. (1995). Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo, Hucitec. afirma que “o uso ilegal do solo e a ilegalidade das edificações em meio urbano atingem mais de 50% das construções nas grandes cidades brasileiras, se considerarmos as legislações de uso e ocupação do solo, zoneamento, parcelamento do solo e edificação” (p. 9). Segundo Fernandes (2007)FERNANDES, E. (2007). “Perspectivas para a renovação das políticas de legalização de favelas no Brasil”. In: FERNANDES, E. Regularização fundiária sustentável – conceitos e diretrizes . Brasília, Ministério das Cidades. , essa taxa varia entre 40% e 80% em relação à população urbana das grandes cidades brasileiras, tornando a ilegalidade nas formas de produção do espaço urbano mais a regra do que a exceção. Assim, tanto para a população atendida pelo PMCMV – que, ao repassar os imóveis recebidos, pode ter como resultado o seu retorno ao lugar de habitação inadequado –, como para aqueles que não foram contemplados pelo programa e irão acessar esses imóveis de forma irregular, estar na formalidade ou na informalidade não figura como fator decisivo, em razão das condições de que a ilegalidade/irregularidade é permissível no espaço urbano brasileiro. Dessa maneira, a irregularidade não inibe os que comercializam nem os que compram esses imóveis.

O estudo do mercado informal dos imóveis do PMCMV – faixa 1 constitui-se numa importante ferramenta para o entendimento das formas de acesso à moradia e permite um significativo entendimento do processo de produção e reprodução das informalidades habitacionais nos espaços intraurbanos e no âmbito da população de baixo rendimento. Contribui, ainda, para a compreensão das distorções entre desenho e implementação de políticas habitacionais ( Lotta, 2019LOTTA, G. (2019). “Práticas, interações, categorização e julgamentos: análise da ação discricionária dos agentes comunitários de saúde”. In: PIRES, R. R. C. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas . Rio de Janeiro, Ipea. ).

No tópico seguinte, serão analisadas as negociações irregulares/informais dos imóveis do PMCMV – faixa 1 nas cidades do Rio Grande do Norte com maior número de transações comerciais, notadamente Parnamirim, Natal e São Gonçalo do Amarante, que compõem a RMN, e Mossoró, buscando explorar os cenários em que essas comercializações ocorrem.

Os cenários de maior número de comercialização

No Rio Grande do Norte, 11 municípios foram contemplados com a construção de unidades habitacionais do PMCMV – faixa 1. Todos os municípios possuem notificações no banco de dados da CEF, sendo os municípios de Mossoró e Parnamirim os que mais contêm denúncias, 38,42% e 31,76% respectivamente. Na coleta on-line de publicações, oito municípios apresentaram comercializações desses imóveis, sendo novamente liderados em número absoluto por Mossoró (20,30%) e Parnamirim (46,95%), seguidos por Natal (19,04%) e São Gonçalo do Amarante (5,84%).

A análise das características da produção do PMCMV nas municipalidades analisadas permite situá-la em relação às dinâmicas gerais de produção no País. A proporção nacional de unidades entregues no faixa 1, na modalidade do FAR, em relação ao déficit habitacional no âmbito da população de zero a três salários-mínimos (SM), foi de 23,7% ( Fundação João Pinheiro, 2019FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO (2019). Déficit habitacional no Brasil. Disponível em: <http://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil/>. Acesso em: 13 abr 2022.
http://fjp.mg.gov.br/deficit-habitaciona...
). Essa proporção demonstra-se menor do que as apresentadas pelos municípios em questão. As UH entregues pelo faixa 1 até o ano de 20171 1 Período que compreende o recorte temporal do estudo realizado na presente pesquisa. representam a superação de 99% do déficit habitacional de São Gonçalo do Amarante, município, entre os analisados, com a menor renda média domiciliar per capita ( IBGE, 2010IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010). Censo Demográfico . ). Em Parnamirim, essa taxa foi de 77,7%, e em Mossoró, 42,3%. Somente a capital, Natal, apresentou uma proporção menor do que a taxa nacional, na qual as UH entregues pelo programa até o ano de 2017 equivalem a apenas 9,5% do déficit da capital ( Quadro 2 ).

Quadro 2
Características da produção do PMCMV (modalidade FAR) em Natal, Mossoró, Parnamirim e São Gonçalo do Amarante

Na RMN, a pesquisa demonstra que os municípios que mais apresentam anúncios possuem, em sua maioria, a tipologia de habitação vertical e a localização em inserções urbanas menos privilegiadas da cidade, com precariedade de acesso a serviços e a infraestruturas urbanas básicas. No município de Mossoró, a tipologia não é uma variável condicionante, uma vez que todas as unidades habitacionais entregues foram casas. No entanto, a localização distante e precária é um fator destacado nos empreendimentos que apresentam maiores índices de comercialização, assim como a idade (tempo de construção) do conjunto habitacional, ou seja, em empreendimentos mais recentes, o número de imóveis colocados para venda e/ou locação é maior do que nos mais antigos.

Comercialização dos imóveis do PMCMV – faixa 1 na RMN

A RMN recebeu 11.855 UH do PMCMV, perfazendo 80,6% da produção habitacional no estado. Destas, 36% localizam-se em Parnamirim, 16% em São Gonçalo do Amarante e 9% na capital, Natal. Foram coletados, no total, 283 anúncios nesses municípios, o que representa 71,8% do total de anúncios referentes ao RN (ver Quadro 3 ). Parnamirim é o município que mais possui anúncios. A plataforma mais utilizada para divulgação dos classificados nesses municípios foi o website da OLX (72% dos anúncios).

Quadro 3
Anúncios de Parnamirim, Natal e São Gonçalo do Amarante por empreendimento – 2016-2020

Em Parnamirim, todos os empreendimentos tiveram anúncios publicados. Os residenciais Terras do Engenho I e II concentram o maior número de anúncios coletados, com um total de 36,7% dos anúncios do município (ver Gráfico 1 ). Em segundo lugar, estão os residenciais Nelson Monteiro e Waldemar Rolim, com 26,5%, seguidos pelos residenciais América I e II, com 18,9%. Os residenciais Terras do Engenho I e II e os residenciais América I e II são os que se situam mais distantes e desconectados da malha urbana, apresentando baixa conectividade com outros bairros ( Rodrigues, 2018RODRIGUES, D. (2018). Casa nova, vida nova? Mobilidade urbana nos empreendimentos minha casa minha vida (faixa 1) na região metropolitana de Natal . Dissertação de mestrado. Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. ). Por sua vez, os residenciais Nelson Monteiro e Waldemar Rolim estão inseridos numa área de valorização imobiliária, com malha viária consolidada, próximos ao centro da cidade e com uma boa conectividade com outros bairros, apresentando infraestrutura e serviços mínimos em seu entorno.

Gráfico 1
Anúncios on-line dos empreendimentos de Parnamirim

Em Natal, 85,3% dos anúncios são referentes ao residencial Vivendas do Planalto, localizado no bairro do Planalto. Das 896 unidades habitacionais desse empreendimento, 448 foram destinadas às famílias que residiam nos assentamentos denominados 8 de Outubro, Monte Celeste e Anatália. O residencial está inserido em uma área de baixo adensamento, com grandes vazios urbanos em seu entorno, o que, em conjunto com um sistema viário ainda em desenvolvimento, dificulta a conectividade com as demais áreas da cidade (ibid.). Além desse empreendimento, o programa entregou em Natal, em 2017, o residencial São Pedro, no bairro da Ribeira, um dos mais antigos e consolidados do município. Esse empreendimento foi destinado ao reassentamento de famílias que residiam na favela do Maruim, localizada no mesmo bairro. A implantação do residencial ocorreu em uma localização que dispunha de boa provisão de infraestrutura, em áreas adensadas e consolidadas. No ano de 2018, foram entregues as unidades do residencial Village de Prata, o qual possui 11 anúncios de comercialização, o que representa 14,7% do que foi coletado para Natal.

Em São Gonçalo do Amarante, todos os empreendimentos tiveram anúncios publicados. O residencial Ruy Pereira apresenta o maior número de anúncios coletados no município (78,3%), seguido pelo residencial Padre João Maria, entregue em 2017. O residencial Jomar Alecrim, juntamente com o Ruy Pereira, tem forte dependência de deslocamento ao centro, para o acesso a equipamentos, comércio e serviços cotidianos. Ambos os empreendimentos compartilham a mesma rede de malha viária, de infraestrutura precária, baixa conectividade com outros bairros e baixa atratividade para deslocamentos não motorizados (ibid.).

Os dados indicam que a tipologia habitacional e a localização são os fatores que possuem maior relação para as transações de venda e aluguel na Região Metropolitana de Natal. Os empreendimentos com maior número de anúncios são os de apartamentos. O caso de São Gonçalo do Amarante, por meio dos residenciais Jomar Alecrim e Ruy Pereira, demonstra que, mesmo havendo empreendimentos de ambas as tipologias – horizontal e vertical – e com características semelhantes entre si no que diz respeito à localização, com baixa conectividade com outros bairros ( Rodrigues, 2018RODRIGUES, D. (2018). Casa nova, vida nova? Mobilidade urbana nos empreendimentos minha casa minha vida (faixa 1) na região metropolitana de Natal . Dissertação de mestrado. Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. ), os residenciais de apartamentos são os mais frequentes nos anúncios. Evidencia-se, assim, a inadequação da tipologia ao perfil da população beneficiária. Essa característica pode ser observada por meio de anúncios encontrados em classificados nos quais o beneficiário deseja a troca do apartamento recebido pelo programa por uma casa: “Troco apartamento por uma casa [...] Motivo da troca meu esposo trabalha com marcenaria” (Publicação 131, 2020).

A má localização demonstrou influência na disposição dos imóveis no mercado. A exceção são os residenciais Waldemar Rolim e Nelson Monteiro, que estão localizados entre as melhores inserções urbanas da RMN. Outros empreendimentos que também apresentam localizações privilegiadas, como os condomínios Ilhas do Pacífico e Vida Nova, que estão inseridos em um bairro intensamente adensado e com conectividade satisfatória com o restante da cidade de Parnamirim (ibid.), não aparecem com a mesma frequência nos anúncios publicados como o Waldemar Rolim e Nelson Monteiro, localizados na mesma cidade.

O tempo não aparece como fator determinante, pois, desde os empreendimentos mais antigos, como os residenciais Waldemar Rolim e Nelson Monteiro, em Parnamirim, entregues no ano de 2011, até os mais recentes, como o Residencial Ruy Pereira, em São Gonçalo do Amarante, entregue em 2016, e, em Natal, o Residencial Village de Prata, entregue em 2018, apresentam números significativos de anúncios de comercialização.

Comercialização dos imóveis do PMCMV – faixa 1 em Mossoró

O município de Mossoró recebeu 2.433 UH do PMCMV e figura, assim, como o terceiro município com o maior número de UH entregues, ficando atrás apenas de Parnamirim e da capital. Todas as UH construídas em Mossoró são de tipologia horizontal. No monitoramento de comercialização, foram coletados 80 anúncios no município, o que representa 20,3% do total referente ao RN (ver Tabela 2 ). Destes, 84% são referentes à operação de venda. Diferentemente do que ocorre na RMN, a plataforma mais utilizada para divulgação dos classificados on-line é o Facebook Marketplace (97,5% dos anúncios).

Tabela 2
Anúncios de Mossoró por empreendimento

Em Mossoró, todos os empreendimentos tiveram anúncios publicados. O residencial Maria Odete Rosado concentra 58% dos anúncios coletados no município. Em segundo lugar, está o residencial Jardim das Palmeiras, que foi destinado à remoção de famílias que residiam na favela do Tranquilim. Ambos os empreendimentos são os mais novos no município, entregues, respectivamente, nos anos de 2017 e 2016. Além disso, são os que se situam mais distantes e desconectados da malha urbana, com algumas unidades do Maria Odete inseridas no perímetro rural.

Os residenciais Américo Simonetti I e II e o residencial Santa Júlia, entregues em 2012 e 2015, encontram-se inseridos na malha urbana do município. Ambos os empreendimentos se localizam próximos dos conjuntos habitacionais construídos pela Cohab/RN, o Conjunto Abolição, construído em quatro etapas (I, II, III e IV), entre os anos de 1977 e 1983, e o Santa Delmira, inaugurado em 1980. As áreas em que os conjuntos da Cohab estão inseridos exercem atualmente uma grande centralidade no município. Segundo Beserra (2017)BESERRA, F. (2017). Diferenciação do espaço e transformações urbanas: expansão da indústria da construção em Mossoró (RN) . Dissertação de mestrado. Fortaleza, Universidade Estadual do Ceará. , essa localização em áreas adjacentes aos conjuntos da Cohab torna menos hostil o acesso dos moradores do Américo Simonetti e do Santa Júlia a alguns serviços, além de atrair, sem tantas dificuldades, equipamentos e infraestruturas. Como no caso do Américo Simonetti, onde, em virtude da existência dos conjuntos Abolição III e IV, ruas foram criadas e ligadas àquele residencial ( Beserra, 2017BESERRA, F. (2017). Diferenciação do espaço e transformações urbanas: expansão da indústria da construção em Mossoró (RN) . Dissertação de mestrado. Fortaleza, Universidade Estadual do Ceará. ). O Américo Simonetti apresentou o maior valor máximo anunciado de imóveis da faixa 1 no estado e o maior valor médio, R$90.000,00 e R$65.000,00 respectivamente. O residencial Santa Júlia apresentou valores superiores aos anunciados nos empreendimentos Jardim das Palmeiras e no Maria Odete Rosado ( Tabela 3 ), o que demonstra maior incorporação de valor de troca com a consolidação dos residenciais, notadamente o Américo Simonetti e o Santa Júlia.

Tabela 3
Valores anunciados dos empreendimentos PMCMV – faixa 1 de Mossoró

O PMCMV estabelece um teto por unidade construída – que, na fase 1, do programa variava entre R$46.000,00 e R$52.000,00 e, na fase 2, ficava entre R$70.000,00 e R$76.000,00 ( Amore, 2015AMORE, C. S. (2015). “Minha Casa Minha Vida para iniciantes”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO, L. Z.; RUFINO, M. B. C. (orgs.). Minha casa... e a cidade: avaliação do programa Minha Casa Minha Vida em seis estados. Rio de Janeiro, Letra Capital. ). Contudo, é importante ressaltar que, mesmo que no contrato firmado entre o banco financiador e o beneficiário o imóvel possua o valor próximo ao teto estabelecido, o subsídio do governo podia compor até 95% da dívida, o que resulta em um encargo bem menor para o beneficiário. Com isso, a venda dos imóveis, mesmo numa situação em que este esteja abaixo do valor do contrato de alienação fiduciária, pode auferir ganhos ao proprietário, quando realizado sem a anuência do banco financiador.

Destaca-se que a maioria dos anúncios coletados do Américo Simonetti são dos anos de 2015, 2016 e 2017. Em 2019 e 2020, apenas um anúncio foi coletado em cada ano. Em 2013, no MPF-RN — órgão que também recebe queixas sobre as práticas de comercialização irregulares —, havia ao menos quatro procedimentos de apuração de denúncias em curso; um deles referente ao residencial Américo Simonetti ( Lucena, 2019LUCENA, R. (2019). Imóveis são alugados e até vendidos. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/imoveis-sao-alugados-e-ate-vendidos/271524. Acesso em: 9 set 2019.
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia...
). Evidencia que, embora apareça com menos frequência nos anúncios atuais, no passado o residencial também foi alvo de operações comerciais.

Observa-se, assim, uma tendência na comercialização dos imóveis em Mossoró. O maior número de transações comerciais ocorre após os primeiros anos de ocupação do conjunto. Depois dos primeiros anos, com a consolidação da área em que o residencial está inserido, a comercialização tende a diminuir. A exemplo disso, os empreendimentos Maria Odete e Jardim das Palmeiras, que são os mais novos, concentram o maior número de anúncios, enquanto o Américo Simonetti e o Santa Júlia, mais antigos, apresentam um pequeno número de classificados, principalmente anúncios recentes. Desse modo, o tempo mostrou-se um fator importante nos procedimentos de comercialização em Mossoró.

A constatação de que com a consolidação da área em que o residencial está inserido a comercialização vai diminuindo evidencia ainda o peso do fator da localização nas transações. Isso pode ser observado no mapeamento de uso e ocupação do solo nos imóveis dos conjuntos ( Figuras 4 , 5 , 6 e 7 ), em que os residenciais mais desconectados da malha urbana consolidada — Jardim das Palmeiras e Maria Odete Rosado — apresentam o maior número de mudanças de uso. Nesses conjuntos, que são os mais novos entregues pelo programa, as transformações no uso do solo surgem como produto da demanda por serviços e comércios na localidade. O percentual de unidades habitacionais sem uso nesses empreendimentos, isto é, abandonadas, sinaliza a possibilidade de comercialização pelos proprietários.

Figura 4
Mapeamento de uso e ocupação do solo do empreendimento Jardim das Palmeiras

Figura 5
Mapeamento de uso e ocupação do solo do empreendimento Maria Odete Rosado

Figura 6
Mapeamento de uso e ocupação do solo do empreendimento Américo Simonetti

Figura 7
Mapeamento de uso e ocupação do solo do empreendimento Santa Júlia

Destacam-se os anúncios do Jardim das Palmeiras, assim como os do Vivendas do Planalto em Natal. Ambos os casos podem ser traduzidos como resultado da remoção de favela com um processo de desterritorialização. Ao remover a população para um espaço distante do que habitava anteriormente, e com infraestrutura precária, há uma perda de dinâmicas sociais e econômicas da população com o território em que são desenvolvidas as relações de trabalho, moradia e lazer ( Haesbaert, 2005HAESBAERT, R. (2005). Da desterritorialização à multiterritorialidade. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA. Anais.. . São Paulo, pp. 6774-6792. ). Assim, a perda de vínculos territoriais e da rede de solidariedade ou externalidade comunitária ( Abramo, 2007ABRAMO, P. (2007). A Cidade Com-fusa. A mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais . Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, pp. 25-54. ) existentes nesses assentamentos pode atuar como elemento impulsionador para que o proprietário se desfaça do seu imóvel.

Diferentemente do caso dos municípios da RMN, o fator tipologia não aparece nas variáveis condicionantes no cenário de comercialização dos imóveis em Mossoró, pois todas as unidades dos conjuntos analisados são de tipologia horizontal. O caso de Mossoró é importante, desse modo, para demonstrar como o mercado imobiliário informal do PMCMV se comporta quando o cenário disponível é apenas de casas, sem a presença de imóveis de tipologia vertical.

Conclusões

Esta pesquisa evidenciou o peso que as variáveis tipologia, localização e tempo exercem sobre os cenários de comercialização dos imóveis. Olhando para o universo da RMN, a tipologia habitacional de apartamento demonstrou possuir influência no cenário de venda dos imóveis. A má localização, característica que é o principal alvo de críticas do PMCMV – faixa 1, figurou como fator impulsionador da comercialização, tanto nos municípios da RMN como em Mossoró. A exceção são os residenciais Nelson Monteiro e Waldemar Rolim, localizados em Parnamirim. Pode-se inferir que, nesses empreendimentos, a localização não atua como uma variável negativa, mas sim como uma oportunidade, em virtude de estarem inseridos em áreas privilegiadas e de valorização imobiliária. Nos imóveis ofertados pelo programa em Mossoró, onde as práticas comerciais se concentram nos empreendimentos mais jovens, o tempo mostrou-se um elemento de peso. Esse fato não foi observado nos casos analisados na RMN.

O processo de desterritorialização demonstrou ser uma variável importante, entre os empreendimentos destinados a reassentamentos (Vivendas do Planalto, em Natal, e Jardim das Palmeiras, em Mossoró); aqueles construídos mais distantes do tecido urbano e com infraestrutura precária possuem mais anúncios. Quando o assentamento é removido sem um processo de desterritorialização, como no caso do residencial São Pedro, na cidade de Natal, ele não aparece nos anúncios. Outros fatores podem vir a interferir ainda para que o beneficiário se desfaça de seu imóvel. Em conversas informais, os moradores informam que os vizinhos venderam por questões relacionadas a violência e estigma presentes em alguns conjuntos; ao conflito entre moradores de distintas faixas de rendas, escolaridade e ocupação (uma diversidade que inclui catadores, professores, policiais, diaristas, etc.); aos novos arranjos familiares, como casos de divórcio; e até mesmo à própria oportunidade da venda de um bem de alto valor para atender a outras necessidades, como a compra de um carro e/ou moto.

Analisando a dinâmica desse mercado informal, a operação comercial de venda destacou-se como predominante em todos os residenciais analisados. A divulgação das ofertas imobiliárias ocorre principalmente com a publicação de anúncios em plataformas on-line , como a OLX e o Facebook Marketplace. A utilização de métodos de divulgação on-line possibilita a ampliação de acessos para além da escala intraconjunto e das relações de confiança-lealdade, isto é, o fato de o imóvel pertencer a um amigo ou parente — apresentado por Abramo (2007)ABRAMO, P. (2007). A Cidade Com-fusa. A mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais . Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, pp. 25-54. como o principal mecanismo utilizado nas comercializações informais de imóveis.

O subsídio de até 95%, vinculado aos dez anos de permanência, resulta em uma fixação forçada nos empreendimentos, desconsiderando a realidade de cada família e a possibilidade de mudança na dinâmica da vida dos indivíduos e, consequentemente, das necessidades familiares. Esse processo fomenta o surgimento de um mercado imobiliário informal em áreas produzidas pelo Estado. O crescimento da informalidade habitacional é um fenômeno que se observa em grande parte das cidades brasileiras de médio e grande porte. Embora consista em um dos principais meios de acesso à moradia para a população de baixa renda, a produção e reprodução da informalidade não é um processo associado apenas à pobreza ( Smolka, 2003SMOLKA, M. O. (2003). “Regularização da ocupação do solo urbano: a solução que é parte do problema, o problema que é parte da solução”. In: ACSELRAD, H. (org.). Planejamento e território, ensaios sobre a desigualdade. Rio de Janeiro, DP&A. ). A maioria dos estudos relativos ao desenvolvimento e funcionamento do mercado imobiliário informal analisou a dinâmica desse mercado apenas em assentamentos informais. Poucas análises exploram o mercado imobiliário informal em áreas formais, sobretudo no âmbito de uma política de habitação estatal, como a presente pesquisa realiza. Pouco se sabe sobre o fenômeno da informalização do formal.

O movimento de saída dos beneficiários e de entrada de novos moradores pode indicar falhas e desafios da política habitacional direcionada à população de baixa renda. Para a análise territorial e urbana, a venda e o aluguel denotam os processos urbanos a que essas práticas comerciais estão associadas, como a valorização da área em que os empreendimentos estão inseridos ou a desvalorização ligada à expansão urbana precária.

Ao não absorver as diversas necessidades habitacionais da população beneficiária e exigir a permanência das famílias nos imóveis por no mínimo dez anos, o desenho institucional do programa acaba contribuindo indiretamente para a reprodução da informalidade habitacional no âmbito da população de baixo rendimento. Essa reprodução da informalidade habitacional se dá tanto no contexto da transação imobiliária, isto é, no acesso à moradia, que ocorre de maneira informal, como na possibilidade de as famílias que estão saindo dos imóveis retornarem para condições de habitação inadequadas e até mesmo informais/irregulares. Questiona-se, assim, a efetividade do programa na diminuição do déficit habitacional da população de baixa renda.

Ao fim dos 10 anos de financiamento dos imóveis, novos cenários de comercialização irão surgir. Durante o período de financiamento, a comercialização é um assunto velado e, quando se chega aos conjuntos, encontra-se apenas o inquilino ou o novo proprietário. Nessas circunstâncias, é possível explorar apenas o cenário em que ocorrem. Passados os 10 anos, será menos difícil entrevistar os beneficiários que comercializaram seus imóveis, a fim de compreender outros motivos não listados nesta pesquisa.

Nota de agradecimento

Este artigo é fruto de pesquisa com financiamento do CNPq, Chamada MCTIC/CNPq n. 28/2018, processo 424447/2018-5, de Produtividade em Pesquisa - PQ-2 e foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil. Código de financiamento 001.

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Nota

  • 1
    Período que compreende o recorte temporal do estudo realizado na presente pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2021
  • Aceito
    20 Mar 2022
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