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O sujeito, as coisas e a rede nas Jornadas de Junho

The individual, the things and the network in the 2013 Brazilian June Protests

Resumo

As Jornadas de Junho de 2013 representam uma odisseia insurgente, multiescalar e em rede na história recente do Brasil. Reflete-se aqui a imanência da rede na articulação de uma ação insurgente, partindo de um estudo de caso das Jornadas de Junho de 2013 no Brasil. Percorrem-se as categorias sujeito, objeto, mobilização social, rede e dispositivo para uma aproximação das configurações das redes diante das práticas insurgentes. Observa-se que, nessa tipologia de movimentos, a rede opera como um dispositivo interacional composta por arranjos contingenciais que perpassam e simultaneamente ultrapassam os anelos iniciais de um protesto. A rede torna-se, portanto, adensadora de laços mobilizados e de peças constitutivas de desenhos insurgentes entre fatos, narrativas e ideários que se combinam no evento reivindicatório.

rede; Jornadas de Junho; mobilização social em rede; insurgência

Abstract

The 2013 June Journeys represent an insurgent, multi-scale, networked odyssey in recent Brazilian history. This study reflects on the immanence of the network in the organization of an insurgent action, based on a case study about the 2013 June Journeys in Brazil. The categories subject, object, social mobilization, network, and device are used in order to address the configurations of the networks in face of insurgent practices. We found that, in this typology of movements, the network functions as an interactional device composed of contingent arrangements that permeate and simultaneously surpass the initial longings of a protest. Therefore, the network thickens mobilized ties and constitutive pieces of insurgent drawings between facts, narratives and ideas that are combined in the claiming event.

network; June Journeys; networked social mobilization; insurgency

Introdução

As mobilizações sociais e insurgentes mais recentes são marcadas por uma ampla ação em rede. "Em rede" é uma predicação que adjetiva a constituição desses movimentos, mas acena para uma ontologia da agência e da potência no limiar dessa conjuntura sociopolítica. A ação reticulada atravessa a mecânica de detonação, ativação, reprodução e difusão das mobilizações sociais em rede, como junho de 2013, mas convoca o olhar para uma plataformização dessa ação.

Nessas mobilizações, há duas frentes que se imbricam e interpolam em plataforma: a on e a off-line . Corriqueiramente tida como uma oposição direta do real ( Lévy, 2000LÉVY, P. (2000). Cibercultura. São Paulo, Editora 34. e 2011LÉVY, P. (2011). O que é o virtual? São Paulo, Editora 34. ), a frente on-line é uma inclinação da realidade extra ao contexto da virtualização, sendo-lhe um espelhamento dotado de realidade própria ( Merleau-Ponty, 2019MERLEAU-PONTY, M. (2019). O visível e o invisível. São Paulo, Perspectiva. ), constituindo uma dinâmica de refletância com o que é off-line ( Santos, 2021SANTOS, G. S. (2021). (Ciber)Espaços de insurgência: refletância on-line e off-line nas Jornadas de Junho de 2013. Revista Verde Grande. Montes Claros, v. 3, n. 1, jul./dez. ); isto é, ambas as frentes são multidimensionais em sua forma, mas unidimensionais em sua natureza.

Quando os sujeitos desses novíssimos movimentos se põem nas ruas, habitam também as matrizes interacionais das redes digitais. Desloca-se, então, uma inflexão de sua performance insurgente ora on-line, ora off-line , ora híbrida. A articulação da comunicação se arregimenta-se nessa inflexão, mas a própria dimensão da agência se vê no intercurso do empuxo das redes, cujos nós e arcos tornam cativos os sujeitos em seus emaranhados de sentidos, lógicas e (im)permanências.

Cumpre observar a natureza dessas redes para bem examinar a constituição dos sujeitos que nela navegam para a ação sociopolítica. A caminho também estão os objetos, as coisas em si, os dispositivos de ação e interação. Contudo, os objetos também reclamam sua ação, coproduzindo e performando unidos aos sujeitos.

Por certo que uma performance não prescinde de sua cenografia e suporte de infraestrutura. Da inflexão do on e do off-line na mobilização social, desprendem-se elementos de uma performance entre plataformização, participação social e interação entre dispositivos e sujeitos.

Reflete-se, aqui, a imanência da rede na articulação de uma ação insurgente, partindo dos postulados das Jornadas de Junho de 2013 no Brasil. Inicialmente, discutem-se os elementos constitutivos para uma ação em/da rede e, a seguir, examinam-se suas potencialidades de mobilização e mediação; por fim, debatem-se as realocações dos sujeitos promovidas pela virtualidade das redes.

As Jornadas de Junho é o nome atribuído a uma série de protestos ocorridos nos 26 estados e no Distrito Federal, de 17 a 30 de junho de 2013. Concentraram atos em 538 municípios entre cidades de pequeno, médio e grande porte. Atos inicialmente radicados pelo aumento da tarifa do transporte público1 1 Capitaneados pelo Movimento Passe Livre (MPL), como pode ser conferido em Santos (2017) e em Santos e Cunha (2019) . ampliaram seu escopo, levando, às vias públicas e digitais, uma miríade heterodoxa de sujeitos, pautas, agenciamentos e conclames.

Inicialmente, este texto reflete a constituição do sujeito e a imanência das coisas, isto é, dos objetos, como elementos deflagradores e intervenientes sobre a conjuntura das redes, ponderando sobre seus arranjos como um esteio de agência e potência. A seguir, avança na discussão sobre o potencial mobilizador das redes, capaz de mediar performances sociopolíticas. Por fim, promove-se um debate sobre a virtualidade da ação em rede como promotora de novas alocações do sujeito no tempo, no espaço, na política e no real, ancorando-se como exemplar de análise, os eventos de junho de 2013.

O sujeito, o objeto e a rede: um esteio de ação

O sujeito não é uma "alma" presente no corpo ou no espírito dos indivíduos. É a procura, pelo próprio indivíduo, das condições que lhe permitem ser o ator de sua própria história. E o que motiva esta procura é o sofrimento da dilaceração e da perda de identidade e de individuação. Não se trata, para o indivíduo, de se colocar ao serviço de uma grande causa, mas sobretudo de reivindicar o seu direito à existência individual. Esta reivindicação só pode formar-se onde a dilaceração é sentida mais fortemente. ( Touraine, 1998TOURAINE, A. (1998). “O sujeito”. In: TOURAINE, A. Iguais e diferentes. Poderemos viver juntos? Lisboa, Instituto Piaget. , p. 84)

A compreensão de que o sujeito nasce a partir do reconhecimento de si, atravessado pela resistência em torno da garantia da própria singularidade, é simples, mas cercada de controvérsias e disputas. Ao dar sentido social, político e linguístico à unidade do ser – e de um ser que age e reage –, desprendem-se imagens e aliterações sobre modelos existenciais salvíficos. Isto é, corre-se o risco permanente de, na teorização dos sujeitos, se acorrer a definições metonímicas e tautológicas.

A existência do indivíduo e a consciência de sua condição são a passarela que o conduz ao seu acionamento como sujeito. Esse sentido resistente e projetual do sujeito que contraria a norma e o poder vigente para fazer valer sua essência é paradoxal. Isto é, ao passo em que este acionamento é um grito incontido de autopreservação, essa atividade não se dá ignorando os players em campo: o outro, os outros, as instituições e toda a sorte de objetos e adversidades.

Tornar-se sujeito é um retorno ao Si Mesmo – da essência, da existência livre – por meio de uma saída do si mesmo – constituído pela norma. Esse movimento existencial simultaneamente centrípeto e centrífugo é permeado de sentidos construídos de modo adjacente. Afinal, a própria existência pressupõe um outro igual e diferente e um outro antagônico ao qual se objeta, além da estrutura material e sensível de objetos que povoam essa odisseia do ser.

O sujeito é, então, um depositário da ação, visto que sua condição existencial se forma por meio de sua mobilização intrassubjetiva e intersubjetiva. Na mobilização social, o sujeito é o elemento de articulação. A atividade insurgente consequentemente inspira uma malha de reprodução pelos contornos da subversão, que é virulenta. Embora sempre ator, o sujeito reveza entre protagonismos e coadjuvações.

Na mobilização, o caráter multitudinário oblitera – enquanto dura sua ação – a película existencial do sujeito, tornando-o um conjunto populoso combinado ao conteúdo discursivo detonador da atividade sociopolítica. Esse duplo movimento, do acionamento do sujeito e sua singularidade à diluição temporária dessa mesma singularidade, desloca a autonomia do indivíduo-sujeito para uma condição corpórea de massa, dotada de um poder caudaloso.

Essa mecânica da mobilização social se arregimenta no laço que se confere à unidade insurgente e conjuntural dos sujeitos mobilizados sob o influxo da rede. A rede, como trama informacional e comunicacional, garante a acuidade desse processo complexo de agregação, desagregação e reagregação dos sujeitos.

O sujeito é, então, agente e ator. Protagoniza a atividade mobilizada. Na duração da formação da mobilização, seu processo de acionamento continua a adquirir sentidos. No trânsito da mobilização, o sujeito empunha ferramentas e usa de indumentárias para arregimentar sua atividade. É comum enxergar objetos como disposições dirigidas, ferramentais, sentidos coisificados ou meros dispositivos.

Todavia, como aponta Latour (2012)LATOUR, B. (2012). Reagregando o social. Uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador, Edufba; Bauru, Edusc. , o número de atores em jogo precisa ser aumentado, bem como é preciso aprender também das coisas o que é ação, uma vez que os objetos são partícipes de seu curso. Na mobilização, é premente o trabalho da corpografia e do logos insurgente como significação totalizante da ação. Dela, porém, acopla-se uma processão de objetos intervenientes sobre seu conjunto.

A intra e intersubjetividade, caras a Touraine (1998TOURAINE, A. (1998). “O sujeito”. In: TOURAINE, A. Iguais e diferentes. Poderemos viver juntos? Lisboa, Instituto Piaget. e 2009TOURAINE, A. (2009). “O sujeito como movimento social”. In: TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Petrópolis, Vozes. ), para a sociologia do sujeito e sua ação no mundo, precisam de um complemento dialógico com interobjetividade, cara a Latour (2012)LATOUR, B. (2012). Reagregando o social. Uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador, Edufba; Bauru, Edusc. . Os objetos deslizaram da ação pelos pressupostos da modernidade, fazendo crer em um purismo pela separação entre sujeito e objeto ( Lemos, 2013LEMOS, A. (2013). A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo, Annablume. ; Latour, 2013LATOUR, B. (2013). Jamais fomos modernos. São Paulo, Editora 34. ).

Essa ideia ganha sentido sob o argumento de que a essência plena da realidade seria aquela descontaminada de mediações ou quaisquer invólucros que o sujeito e sua imanência possam e venham a possuir. O divórcio epistemológico entre sujeito e objeto priva a compreensão da realidade complexa, incorrendo em um afã pela realidade complicada.

Por certo que, se o sujeito é o indivíduo que irrompe em ação ( Touraine, 2009TOURAINE, A. (2009). “O sujeito como movimento social”. In: TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Petrópolis, Vozes. ), os objetos são artefatos dotados de alguma agência nesse processo. Ora, é a realidade mesma uma constelação de arranjos dos quais não se esquiva, mas se navega em interregno – o reino do humano e do não humano. O real forma-se e eclode em realidades a partir das redes interacionais entre sujeitos e objetos.

As coisas fazem parte dos modos de existência, assim como a formação dos sujeitos. Dissociar o objeto do sujeito na composição do real e no exame das interações sociais é escapar às minúcias das mediações e intermediações intrínsecas ao real e ao social. Essa compreensão é importante ao estudo da mobilização social, porque faz avançar a compreensão dos sujeitos (humanos e não humanos) como eventos dinâmicos.

Sobre os objetos:

[...] o que é novo não é a multiplicidade de objetos mobilizados por um curso de ação ao longo do caminho – ninguém negou que eles existem aos milhares. Novo é o fato de que os objetos surgiram de súbito não apenas como atores completos, mas também como aquilo que explica a paisagem variegada pela qual começamos, os poderes supremos da sociedade, as notórias assimetrias, o rude exercício do poder. ( Latour, 2012LATOUR, B. (2012). Reagregando o social. Uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador, Edufba; Bauru, Edusc. , p. 109)

A análise dos objetos é imprescindível para uma procura honesta do real, visto que a ação humana não se dá isoladamente, mas compartimentaliza e compartilha sua atuação com uma miríade de coisas que viabilizam interações, influem sobre o curso da ação e constituem ao mesmo tempo a condição humana. Quanto mais o objeto é incorporado ao curso da ação – tido ele mesmo como um agente –, mais humanas são a percepção do sujeito e sua mobilidade.

A existência é vivida sob uma floresta de signos. Mas o símbolo enquanto presentificação de uma materialidade ausente exerce sua argumentatividade apenas sobre a semântica e sintaxe da vida. O objeto aporta a materialidade como elemento constitutivo da construção do real, integrante do fazer-ser e, portanto, dotado de uma inteligibilidade antropológica (ibid.).

A casa, o carro, o ônibus, o computador, o smartphone , a TV, o jornal, o livro, o lápis, os bancos de dados e inúmeros outros objetos conferem sentido à produção do cotidiano. Os objetos, portanto, permitem a formalização do cotidiano, não pela arquitetura de uma estrutura da possibilidade, mas como uma agência produtora das lógicas que permitem a apreensão do real.

É preciso ir além da separação entre sujeitos autônomos e objetos passivos e subservientes dispostos a uma mediação programada. Os meios fabricam a instância de operação da realidade dos sujeitos, enquanto guardam relação de extensão junto a eles.2 2 Como teorizou McLuhan (1969), os meios de comunicação são extensões do homem, abarcando os produtos materiais como coparticipantes da ação humana. Afinal, toda ação é uma rede – de sentidos, práticas, lógicas, dinâmicas e operações.

Se o sujeito só o é quando se percebe ator – isto é, quando se alinha à ação –, também a rede – como sistema complexo de sujeitos, objetos, direções, sentidos e veículo da ação – é um ator. Sujeito, objeto e rede são atores, na medida em que sua interação produz associações que, por sua vez, produzem sentidos, acontecimentos e lastros, revezando-se entre mediadores e intermediários no/do/pelo real (cotidiano).

Latour (2013)LATOUR, B. (2013). Jamais fomos modernos. São Paulo, Editora 34. reforça o papel dos objetos na constituição dos sujeitos e de sua ação, afirmando que o sujeito é feito dos objetos, na mesma medida em que os objetos são feitos dele. Essa acepção permite nomear os objetos como quase-sujeitos – ou actantes, em sua teoria –, desempenhando papéis céleres na envergadura da atividade humana e de sua quotidianidade.

Em um dia regular, um sujeito acorda sob objetos, ativa-os para demarcar sua rotina, exerce-os para chancelar funções cidadãs, recorre a eles para navegar socialmente, vive, move-se e produz o cotidiano sob seu lastro. Essa processão não é um fenômeno apartado da existência em si, é força produtiva e existencial. Isto significa dizer que sujeito e objeto avançam juntos em uma existência modular, sendo agentes híbridos.

Essa hibridez de sujeitos humanos e não humanos é importante para considerar o curso, o conteúdo, as protuberâncias e as fibras que interligam os ínfimos detalhes da ação. Os objetos que cercam o mundo e que assentam lógicas e sentidos por meio de sua materialidade permitem o rastreio da conexão social e sua envergadura ( Latour, 2012LATOUR, B. (2012). Reagregando o social. Uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador, Edufba; Bauru, Edusc. e 2013LATOUR, B. (2013). Jamais fomos modernos. São Paulo, Editora 34. ).

Retomando a mobilização social em rede, o sujeito híbrido é seu ator clássico. Os sujeitos humanos imiscuem-se dos sujeitos não humanos, para criarem ambiências nas quais o conteúdo insurgente possa se manifestar, fazendo valer as demandas e motivações de querela. A mobilização, antes de ser uma organização sociopolítica dinâmica, é um ambiente de elucubração de sentidos reivindicatórios.

A pujança e a instabilidade de um protesto comumente distraem o olhar com sua emergência abrupta e a temperatura de sua influência. Uma mobilização, antes de ser demonstração viral e potente de participação social, é um arcabouço de formação do sujeito. Os objetos como elementos que viabilizam a articulação de atos mobilizados e a navegação social dos próprios sujeitos que os animam cumprem a função de aparato interobjetivo para a consecução da ação.

De posse dos objetos, os sujeitos informam-se, comunicam, aprendem, coordenam, disputam e detonam a catarse de que todo ato em eclosão representa. As telas, dispositivos e outras materialidades movem-se como órteses dos sujeitos e, graças à sua própria agência por intermediação, os guia a um aprendizado multitudinário expresso simultaneamente à própria manifestação. A multidão aprende sobre si mesma na medida em que se forma e se move.

O efeito multitudinário exerce a função de laboratório dos sujeitos, de modo que as demandas, práticas, estéticas, gramáticas e disputas e sua própria performance são cumuladas de aprendizados e sentidos ( Brandão, 2004BRANDÃO, C. R. (2004). “A vida reinventada: movimentos sociais e movimentos ambientalistas”. In: PESSOA, J. M. (org.). Saberes de nós: ensaios de educação e movimentos sociais. Goiânia, UCG. ; Zibechi, 2008ZIBECHI, R. (2008). Autonomías y emancipaciones: América Latina en movimiento. Ciudad de México, Bajo Tierra-Sísifo Ediciones. ). Os objetos exercem papel fundamental nesse processo. O sujeito híbrido tem, assim, o passe para detonar a voluptuosa energia social de uma mobilização.

O laboratório é fundamental para a produção das mobilizações sociais em rede. De fato, sua envergadura é possível porque sujeitos e objetos se interpolam, imersos em sua própria elucubração para que, a partir de um evento-fenômeno, possam emergir. Conceber o sujeito híbrido permite compreender que, de modo oculto, nas franjas do cotidiano, redes submersas atuam forjando, educando e preparando sujeitos para a ação ( Zibechi, 1997ZIBECHI, R. (1997). La revuelta juvenil de los 90. Las redes sociales en la gestación de una cultura alternativa. Montevideo, Nordan-Comunidad. e 2008ZIBECHI, R. (2008). Autonomías y emancipaciones: América Latina en movimiento. Ciudad de México, Bajo Tierra-Sísifo Ediciones. ).

[...] habitualmente existem centenas de redes dispersas pela cidade, sem relações entre elas e invisíveis para a sociedade oficial; [...] operam como "laboratórios culturais", em que se constroem significados e códigos diferentes dos dominantes, [depois] emergem e confrontam a autoridade, se fazendo visíveis. ( Zibechi, 2008ZIBECHI, R. (2008). Autonomías y emancipaciones: América Latina en movimiento. Ciudad de México, Bajo Tierra-Sísifo Ediciones. , p. 52)

O sujeito e os objetos acessam o laboratório por meio das redes. As redes que representam um "conjunto estruturado de ligações ou de fluxos, em que os 'fios' entre os nós são chamados de arcos e os 'nós' são, muito simplesmente, chamados também de nós , com tudo isso compondo uma trama integrada" ( Souza, 2013SOUZA, M. L. (2013). Os conceitos fundamentais da pesquisa socioespacial. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. ; grifos do autor).

Essa trama integrada mantém sua coesão com os sujeitos e suas trocas nas/pelas redes. A dimensão existencial e ativa do sujeito carece de um amparo para que sua consciência repouse. A rede fornece esse refrigério na medida em que confere, aos sujeitos, fluxos de socialidade, identificação, expressão, laço e solidariedade. Uma rede, antes de ser uma lógica organizacional e informacional, é uma flexão solidária.

O caráter volumoso da multidão mobilizada frequentemente a coloca sob o risco da massificação descontrolada ( Hardt e Negri, 2005HARDT, M.; NEGRI, A. (2005). Multitud: guerra y democracia en el a era del Império. São Paulo, Record. e 2006HARDT, M.; NEGRI, A. (2006). Império. São Paulo, Record. ), ameaçando a coesão de que a ação política necessita para assegurar sua mensagem. É na rede que essa coesão é salvaguardada pelos fluxos informacionais e de sociabilidade que nós e arcos oferecem.

A constituição dos arcos é feita, sobretudo, de conteúdos sociais, culturais, políticos e de dados. Dados sobre cenários, saberes localizados e leituras de mundo e contextos situacionais. Os ligamentos que arqueiam as redes e produzem sua extensão advêm da produtividade de sua informação circulante. A informação desdobra-se em ação produtiva, consequente em manifestação patente de poder, capaz de reivindicar e disputar.

É nos arcos que circulam os afetos e as emoções articuladoras da indignação mobilizadora. Circulam, ainda, os ensejos utópicos dos projetos de vida que acompanham os sujeitos, bem como a catarse opositora que sustenta o engajamento sociopolítico e, por vezes, "carnavaliza"3 3 Como Ricci e Arley (2014) , recuperando Boaventura de Souza Santos (1997), concebem manifestações dentro da cultura política brasileira, como uma necessidade de transgressão demonstrativa, sem romper a ordem, fazendo as vezes de uma "festividade" mobilizada. a manifestação visível. São laços informativos, afetivos e solidários que se intercomunicam para a cadência da rede e das práticas ativistas.

Os nós, por sua vez, abrigam os efeitos da informação e dos afetos que os arcos fazem circular. Enquanto estruturas de sustentação da trama, os nós abrigam os sujeitos – humanos e não humanos –, fornecendo a vivacidade e a inteligibilidade da rede. Para a mobilização, os nós são as células nevrálgicas da mobilização: seu observatório e sua coordenação sensível.

Nós designam fios em entrelaçamento, reforços que conferem, à trama, sua estabilidade estrutural. Pode-se designar que, na rede, os nós carregam o conteúdo humano (e não humano). É dele que o laço emana, seja pela ação mobilizada que se demonstra visivelmente no espaço, seja pelos sentidos e afetos que engajam os sujeitos e que, por solidariedade e identificação, abarcam novos adeptos.

A trama é um emaranhado significativo e significante. É o desenho latente das redes que se desenvolvem visíveis pelo ruído de uma mobilização. Em outras palavras, uma trama é um diálogo. Como prática comunicativa, o diálogo torna-se discurso – possuindo ethos, páthos e logos próprios – e controvérsia. Logo, a trama ou a rede desencadeiam disputas comunicacionais entre autonomias e hegemonias.

Antes de ser urbana, logística ou técnica, a rede é uma tessitura eminentemente espacializada e intersubjetiva. É de sua natureza concentrar certo nível de organização e agenciamento – garantidos pela sincronia de arcos e nós –, tornando-se um conceito surpreendente4 4 Souza (2013) argumenta que o conceito de rede suscita interpretações epistemologicamente indigentes pelo desdobramento de sua conjuntura frequentemente "espontânea" e de inovação do social, a despeito de uma pretensa formalidade do conhecimento. Entretanto, é nessa minúcia analítica atípica que reside a empiria necessária a novos caminhos epistemológicos capazes de ler o real. de criação histórica e sociopolítica. Na mobilização social, é da rede seu caráter espiral.

A rede é o adensamento da sociabilidade cotidiana. De modo orgânico e introjetado na configuração do ordinário, as redes dão vazão à produção e circulação de conteúdos humanos. Embora inspire estabilidade por sua característica funcionalista e estruturalista, o poder das redes é capaz de funcionar como dispositivo de reordenamento cotidiano, por vezes instável e caótico do ponto de vista da perturbação dos sistemas legitimadores, como protestos e mobilizações.

Sujeitos e objetos têm nas redes o arranjo possível para assegurar sua indissociabilidade na feitura do real ( Figura 1 ).

Figura 1
Relação entre sujeito, objetos e rede

O sujeito híbrido, nascido da inseparabilidade do sujeito clássico e dos objetos produzidos por ele e produtores dele/com ele, é a soma da potencialidade do sujeito humano e do não humano. Essa cosmogonia do sujeito híbrido tem seu balanço a partir das redes, invólucros de sua consistência existencial e veículos de sua ação. É a rede a comensurabilidade prática da incomensurabilidade do existencialismo do sujeito híbrido, que perfura o signo e produz a realidade em caráter extralinguístico.

A rede é uma ambiência de elucubração dos sujeitos e um feixe de prerrogativas a partir do momento em que sua trama se torna patente sobre o tecido social, isto é, quando se torna visível. Isto vai ao encontro dos postulados de Gohn (2010)GOHN, M. G. (2010). Movimentos sociais e redes de mobilizações civis no Brasil contemporâneo. Petrópolis, Vozes. e Brandão (2004)BRANDÃO, C. R. (2004). “A vida reinventada: movimentos sociais e movimentos ambientalistas”. In: PESSOA, J. M. (org.). Saberes de nós: ensaios de educação e movimentos sociais. Goiânia, UCG. sobre o caráter relacional, educativo e afetuoso dos movimentos sociais. O afeto é um denominador de laço social, mas também de acuidade da potência da ação.

Acerca disto, Castells (2013CASTELLS, M. (2013). Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar. , p. 167) articula:

As redes horizontais, multimodais, tanto na internet quanto no espaço urbano, criam companheirismo. Essa é uma questão fundamental para o movimento, porque é pelo companheirismo que as pessoas superam o medo e descobrem a esperança. Companheirismo não é uma comunidade porque esta implica uma série de valores comuns, e com isso é uma obra em progresso no movimento, já que a maioria das pessoas nele ingressa com seus próprios objetivos e motivações, vindo a descobrir denominadores comuns na prática do próprio movimento. Assim, a continuidade é o ponto de partida e a fonte de acesso ao poder: "juntos conseguimos".

Esse caráter de companheirismo ou solidariedade se dá pela aglutinação dos sujeitos híbridos pela faculdade específica das redes: acoplar sentidos, contextos e diferenças em um todo corporificado com força identificadora, sem necessariamente atomizar as interações e seus produtores. Esse prospecto permite uma esquiva ao perigo moderno da individualização do social ( Giddens, 2002GIDDENS, A. (2002). Modernidade e identidade. Rio de Janeiro, Zahar. ; Bourdieu, 2009BOURDIEU, P. (2009). O senso prático. Petrópolis, Vozes. ).

A individualização social designa crises dos laços sociais e dos ferramentais necessários para a operação da realidade ( Giddens, 2002GIDDENS, A. (2002). Modernidade e identidade. Rio de Janeiro, Zahar. ), marcando cultos ao individualismo por desfiliação e vulnerabilidade ( Castel, 1998CASTEL, R. (1998). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, Vozes. ). Na rede, uma inversão é praticada na medida em que ela abarca os sujeitos isolados e os põe em uma trama informativa e comunicacional.

A rede é também uma utopia. Arcos e nós formam inegavelmente uma trama contextual e definida, porém o influxo informacional e a prática comunicativa que decorre desse fenômeno de interconexão reticulada inscrevem os sujeitos em sua individualidade (ou individualismo), em um anelo por cenários e comunidade imaginadas.

A conexão é efeito e resíduo da rede. Consequentemente, ela rompe ordenamentos e configurações desfavoráveis a um sentido coletivo por meio da amplificação de desejos inscritos no sujeito clássico em algoz na modernidade. A utopia da rede se dá, então, em instâncias provisórias de projetos de futuros ou presentes idealizados que perduram na temporalidade dos eventos cotidianos em que ela é acionada.

O edifício da mobilização não é perene. Antes de tudo, é uma estrutura predial modular. Os módulos servem a propósitos de temporalidades que se evadem na medida em que sua função surte efeito e cumpre propósito. Nessa arquitetura, o edifício do eu se expande por meio de reformas incessantes sob a alvenaria do coletivo.

O sujeito, os objetos e a rede são elementos constitutivos da ação social e da mobilização. É por meio deles que a performance flui como desenho pervasivo de insurgência e participação social. Deflagrada a performance, o cenário, o enredo, os bastidores e a audiência tornam-se mais observáveis.

Junho de 2013 demonstra, com sua excrescência conjuntural, o circuito do sujeito, dos objetos e das redes. O sujeito de junho levanta-se a partir da demarcada indignação dos protestos iniciais nas ruas por mobilidade em ressonância indignação confessional e reticulada, munidos de dispositivos e plataformas para mobilizar-se.

Ação em rede e suas mediações: mobilização e performance

As redes não estiveram apenas no processo de convocação, mas no próprio conceito de organização e mobilização. Forjaram uma comunidade e, como toda comunidade, entrelaçada pela identidade e afeto. Mas aqui já se apresentava uma novidade. A convocação não se deu por uma organização central ou lideranças. Ocorreu de maneira horizontalizada, pela identidade e confiança entre aquele que convidava (não se tratava de convocatória) e o que recebia o convite. Eram conhecidos e o que recebia tinha garantias que não seria um número no meio da multidão, não estaria dando consistência a uma pauta que teria sido montada alhures, em algum local não conhecido. A fidelidade à organização e voz de comando (até mesmo legítima) foi substituída pela relação minimalista de confiança. Uma rede gigantesca que se formou a partir destas relações individuais, grupais, íntimas. ( Ricci e Arley, 2014RICCI R.; ARLEY, P. (2014). Nas ruas: a outra política que emergiu em junho de 2013. Belo Horizonte, Letramento. , p. 34)

Dos R$0,20 aos #vemprarua, um movimento de sobressalto tomou as ruas, a imprensa, os gabinetes governamentais e o imaginário popular. A rede é uma estrutura lógica capciosa. Captura a realidade por meio da organização produtiva de sua atividade, mas amplifica a consciência potente dos sujeitos e propicia que os objetos assumam papéis para além da mediação técnica.

Sua capciosidade está justamente em sua constituição. Por se tratar de ligamentos que sustentam o cotidiano – como redes urbanas, telemáticas ou de transporte, por exemplo –, da rede se espera o ordenamento, a estabilidade. Mas sua envergadura fornece a ambiência dileta para a realização da potência e da agência. A rede em si mesma assume a subversão como parte de sua trama.

A estrutura reticular engana o olhar domado pelos sistemas do cotidiano e pelas injunções da ordem, garantida pelos centros de poder. O objeto desse engano é oferecer o deleite da aparente calmaria, quando, ao fundo, a rede fornece elementos para atividades e arranjos que podem abalar o ordenamento.

Quando o Movimento Passe Livre (MPL) – em rede – punha-se às ruas para realizar sua reivindicação própria, desprendiam-se de sua atuação componentes interacionais pungentes. Tais componentes remetiam a realidades, problemas e adversidades que outros sujeitos – mesmo em realidades distintas às da metrópole paulistana ou das capitais – recolhiam e percebiam o encaixe, facilitado pela identificação solidária.

Pela pujança da rede ali localizada em São Paulo, outros rizomas já instalados em multiescalas tensionaram arcos multilaterais e celebraram novos nós. Nós solidários ao desenho da mobilização originária, mas que flexionaram para outros conteúdos detonados no espetáculo sociopolítico das performances ativistas. Sendo a rede, antes de material e lógica, uma abstração interacional, é de seu feitio implodir-se ou modificar-se em novas redes.

A rede primária do MPL em São Paulo, agenciada no protesto contra o aumento da tarifa de transporte público, logo desloca seu núcleo para ser aglutinada por um número indefinido de redes, interligadas pelo conteúdo sócio-histórico dos sujeitos e suas localizações, presentificado por um exercício anamnésico de solidariedade com a atualidade, mas de redenção de eventos passados ( Santos, Cunha e Pereira, 2018SANTOS, G. S.; CUNHA, M. G. C.; PEREIRA, A. M. (2018). Na rua e na memória: Junho de 2013 e as dinâmicas anamnésicas. Perspectiva Geográfica. Marechal Rondon, v. 13, n. 19, pp. 117-124. ).

Redes são, portanto, constelações organizacionais entre sujeitos, objetos, informação e comunicação. Sua conjuntura participa da produção do ordinário, confessando suas crenças e participando do sistema capitalista ( Dias, 2001DIAS, L. C. (2001). “Redes: emergência e organização”. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. ), contudo apresenta uma essência rebelde, de modo que seu próprio funcionamento pode detectar novas destinações, implodindo sua estrutura primeira e originando outras redes.

Em outras palavras:

[...] as redes são estruturas complexas de comunicação construídas em torno de um conjunto de metas que simultaneamente garantem a unidade de propósito e a flexibilidade de execução em virtude de sua adaptabilidade ao ambiente operacional. Elas são programadas e, ao mesmo tempo, autoconfiguráveis. Nas redes sociais e organizacionais, suas metas e procedimentos operacionais são programados por atores sociais. Sua estrutura evolui de acordo com a capacidade da rede de se autoconfigurar em uma busca permanente por combinações de redes mais eficientes. [...] As redes constituem um modelo de vida – de todos os tipos de vida – que é fundamental. ( Castells, 2006CASTELLS, M. (2006). O poder da comunicação. São Paulo, Paz & Terra. , p. 67)

Castells (2003)CASTELLS, M. (2003). A sociedade em rede. São Paulo, Paz & Terra. já sentenciou a rede como um predicado interplanetário, designando a sociedade contemporânea como a sociedade em rede. Nesse sentido, abrigando sujeitos e objetos, e neles suas ações, as redes tornam-se elas mesmas sujeitos não humanos. E, como tais, cooperam para que os sujeitos humanos as tomem como efeito de hibridização de sua condição, tecendo sociabilidades e espacialidades.

Para a mobilização social, a rede é uma ambiência de inteligência mobilizadora. Isto se dá por sua eficiência em estruturar e organizar a atividade humana, mas, ao mesmo tempo, por fornecer elementos para a gestão da informação que circula em seus fluxos, tornando-os, ao lado dos objetos, instrumentos arregimentadores de sua extensão.

A sociedade em rede é um denominador dos avanços tecnológicos e de como sua conjugação tornou-se pervasiva e senciente sobre a cultura, a economia e a política (ibid.). O meio técnico-científico informacional capta a evolução das técnicas e sua incursão sobre as paisagens do cotidiano, transformando os modos de ser, agir, viver e acontecer ( Santos, 2008SANTOS, M. (2008). Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo, Edusp. ). As redes são depositárias desse processo em que agem os objetos.

Isto confere às redes sua inteligência da ação:

[...] as redes se tornaram as formas organizacionais mais eficientes como resultado de três de suas características principais que se beneficiaram do novo ambiente tecnológico: flexibilidade, "escalabilidade" e capacidade de sobrevivência. Flexibilidade é a habilidade da rede de se reconfigurar de acordo com as mudanças ambientais e de manter suas metas ao mesmo tempo que muda seus componentes, às vezes contornando pontos que bloqueiam os canais de comunicação para encontrar novas conexões. Escalabilidade é a capacidade de expandir ou encolher em tamanho sem grandes interrupções. A capacidade de sobrevivência ( survivability ) é a capacidade que as redes têm de suportar ataques a seus nós e a seus códigos em virtude de não terem um único centro e poderem operar em diversas configurações. Isso ocorre porque os códigos da rede estão contidos em nós múltiplos que podem reproduzir as instruções e descobrir novas formas de realizar seu desempenho. Portanto, só a habilidade material de destruir os pontos de conexão é capaz de eliminar a rede. ( Castells, 2006, pCASTELLS, M. (2006). O poder da comunicação. São Paulo, Paz & Terra. , p. 69; grifos do autor)

Observa-se que essa autoconfiguração das redes confere à mobilização social, a pujança de sua eclosão, frequentemente ruidosa e avassaladora para o sentido da ordem. A inteligência de mobilização torna o sujeito-rede um organismo do qual não se esquiva, sobretudo quando seus fluxos carregam conteúdos insurgentes que não encontram outra medida de expressão senão aquela que provoca desencaixe – pelo menos momentâneo – dos sistemas detentores do poder.

É desse prospecto que derivou o acontecer político, espacial e midiático das Jornadas de Junho. A inteligência operacional que permitiu com que as duas semanas sísmicas de 2013 produzissem choque se deu pela condição dinâmica flexível, escalável e sobrevivente das redes. Adicione-se a esse encalço a emergência do sujeito híbrido, tornando a mediação dos objetos em força operacional.

Destarte as características das redes, sua dimensão se estabelece não só como malha, indumentária ou trânsito de fluxos, mas também como (i)materialidade discursiva. Isto é, sua substância é um discurso, é comunicação, é um texto codificado por sujeitos e objetos a ser lido por outros sujeitos. Como qualquer discurso e prática de comunicação, a rede é residual. A natureza de sua substância é a chave de compreensão de seus resíduos e, consequentemente, de seus efeitos.

Uma rede é uma odisseia do ser e do agir, mas é também uma epopeia de si mesma. Nela, os sujeitos aparelham-se e equipam-se, mas também se inspiram. Essa inspiração decorre da noção emancipatória que rede, seus nós e arcos insuflam de um laço fortalecido ou de uma solidariedade engajada. Na mobilização, essa inspiração concatena ideais e aspirações nos sujeitos.

Assim como uma mobilização social carrega um ensejo utópico na extensão de sua atividade ( Santos e Cunha, 2019SANTOS, G. S.; CUNHA, M. G. C. (2019). "Não é por R$ 0,20, é por direitos": dinâmicas de insurgência nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil. Caminhos de Geografia. Uberlândia, v. 20, n. 69, pp. 94-110. ), a própria rede é um lastro utópico. Sua funcionalidade acena para um estado provisório de imersão dos sujeitos – tendo seus objetos em órbita – em uma tensão pela meta, idealizada, imaginada, projetual e construtora da realidade.

A utopia não é cristalizadora, mas presentificadora de uma meta-realidade. Essa meta-realidade existe enquanto perduram o anelo utópico e o esforço produtivo de luta por ela. A rede, como estrutura que abaula as contraturas sistêmicas e que fratura a possibilidade do laço social, possibilita, aos sujeitos, um índice utópico para que sua ação seja vista e empostada como possibilidade real de transformação, a partir da participação.

Sobre redes e sua utopia:

[uma] característica inusitada nas manifestações de junho, um ideário contraditório que poderia se expressar em uma lógica aparentemente sem sentido: a utopia no presente. Uma utopia provisória, de demonstração de força imediata, niilista porque negava toda a forma de organização e estrutura de poder, principalmente aquelas que marcaram o século XX, hierárquicas, centralizadas, que criaram a unidade pelo comando da liderança. A comunicação e a organização em rede são, ao contrário, lacunares. Não se fecham, são irremediavelmente abertas e fluidas, dinâmicas e que se refazem na sua própria comunicação difusa e incompleta. ( Ricci e Arley, 2014RICCI R.; ARLEY, P. (2014). Nas ruas: a outra política que emergiu em junho de 2013. Belo Horizonte, Letramento. )

A rede é em suma uma matriz relacional ( Braga, 2017BRAGA, J. L. (2017). “Dispositivos interacionais”. BRAGA, J. L. et al. Matrizes interacionais: a comunicação constrói a sociedade. Campina Grande, EDUEPB. ), um arranjo comunicacional ( Altheman, 2020ALTHEMAN, F. (2020). Cenas de dissenso, arranjos disposicionais e experiências insurgentes: processos comunicativos e políticos em torno da resistência de estudantes secundaristas. Tese de doutorado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais. ) e um dispositivo interacional ( Braga, 2020BRAGA, J. L. (2020). Uma conversa sobre dispositivos. Belo Horizonte, PPGCOM/UFMG. ). A utopia confessional, possibilitada pela atividade humana e pela estrutura aquiescente da rede, revela que sua acepção extrapola a lógica organizacional ou comunicacional básica, mas inscreve o sujeito e o imaginário em um circuito comunicacional, uma mediação particular em trânsito com as mediações tradicionais.

Anteriormente, discorreu-se sobre a rede como um esteio de comunicação – de organização em fluxos – e que esta seria, no bojo das mobilizações sociais, uma inteligência projetiva de mobilização. Ora, da sabedoria das multidões revela-se que a massa não é um platô multitudinário, mas um contingente oblíquo formado pelo sujeito que se levanta e age, tendo por aportes objetos e suas funcionalidades.

A rede, além de fomentar a ação social por sua constituição, é também ação em si mesma. Chama-se aqui a atenção para a ação das redes, ou ação reticulada, que, junto aos sujeitos, desenvolvem sua performance no tecido social, seja pelas injunções cotidianas, seja pela mobilização insurgente. A ação reticulada é parte da práxis comunicacional e, como tal, está sujeita ao circuito comunicacional dos meios, mediações e acontecimentos midiáticos.

As redes sociais como plataformas de articulação e produção de mensagens de contrapoder, a imprensa como leitora factual e fornecedora de narrativas noticiosas, as caixas de comentários como discussões em tempo real do que se desdobra aos olhos, as notas de assessorias de comunicação governamentais, os canais alternativos, a guerra de narrativas. Uma mobilização é um fenômeno não apenas narrado, mas atravessado pela comunicação.

A práxis comunicacional inclui o uso e a funcionalidade dos meios, abarcando, ainda, processos, leituras e sentidos produzidos a partir do consumo e da incessante codificação-decodificação comunicativa: a midiatização. Esse processo não decorre apenas da comunicação estável e controlada, mas também do registro conflituoso.

Considera-se como comunicação "toda troca, articulação ou tensionamento entre grupos, entre indivíduos, entre setores sociais; frequentemente desencontrada, conflituosa, agregando interesses de todas as ordens; marcada por casualidades que ultrapassam ou ficam aquém das intenções” ( Braga, 2017BRAGA, J. L. (2017). “Dispositivos interacionais”. BRAGA, J. L. et al. Matrizes interacionais: a comunicação constrói a sociedade. Campina Grande, EDUEPB. , p. 21).

Além da comunicação – social – que cerca as trocas cotidianas, os sujeitos e instituições são aparelhados e assistidos por uma miríade de veículos e plataformas. Destrava-se um relacionamento para além da relação produção e consumo, mas de incorporação e reelaboração do curso da comunicação e seu conteúdo, concretizando a cultura do cotidiano ( Martín-Barbero, 2001MARTÍN-BARBERO, J. (2001). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ. ).

A midiatização que atravessa práticas e processos sociais cotidianos também se aplica ao fenômeno insurgente. Junho é reconhecido, como outras mobilizações de sua classe, como um movimento marcado pelo usufruto da comunicação alternativa e autônoma ( Castells, 2013CASTELLS, M. (2013). Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar. ; Santos, 2017SANTOS, G. S. (2017). #Vemprarua: territorialidades de insurgência e ativismos on-line/off-line nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil. Dissertação de mestrado. Montes Claros, Universidade Estadual de Montes Claros. ) como parte de suas táticas.

Os smartphones registrando cenas e trajetos, a comunicação por messengers informando participantes sobre cursos e ameaças, os grupos on-line como fóruns de debate e fomento, as publicações em microblogging para a disputa de narrativas midiacentradas, os próprios veículos de mídia impressa, eletrônica e digital: todos formam o mesmo aparato de mediação.

A mediação é o lugar de trânsito e intercâmbio das atividades de produção e recepção do conteúdo comunicacional. Há, nesse intercurso, um campo volúvel e maleável de produção da cultura cotidiana, a partir da matriz comunicacional. Isto significa que os meios e sua utilização são parte de um fluxo intempestivo de disputas da produção dos sentidos da quotidianidade, da hegemonia à insurgência.

Pensar a mediação é, então, considerar que há um conteúdo humano – a cultura cotidiana e sua socialidade – em disputa por assentamento no ordinário. A comunicação é uma prática social que atravessa esse processo, estabelecendo, não apenas a visibilidade e qualidade do conteúdo, mas também os papéis de produtores e receptores. Estes alternam seus papéis incessantemente no jogo da comunicação.

Martín-Barbero (2001)MARTÍN-BARBERO, J. (2001). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ. traz luz a esse processo, propondo três polos de compreensão da mediação:

Âmbito de conflitos e fortes tensões, a cotidianidade familiar é ao mesmo tempo “um dos poucos lugares onde os indivíduos se confrontam como pessoas e onde encontram alguma possibilidade de manifestar suas ânsias e frustrações”. [...] a mediação que a cotidianidade familiar cumpre na configuração da televisão não se limita ao que pode ser examinado no âmbito da recepção, pois inscreve suas marcas no próprio discurso [...]. [ Temporalidade social ] Enquanto em nossa sociedade o tempo produtivo, valorizado pelo capital, é o tempo que transcorre e é medido, o outro constituinte da cotidianidade é um tempo repetitivo, que começa e acaba para recomeçar, um tempo feito não de unidade contáveis, mas sim de fragmentos. [....] ela [a dinâmica cultural] ativa a competência cultural e, a seu modo, dá conta das diferenças sociais que a atravessam, [...] constituem uma mediação fundamental entre as lógicas do sistema produtivo e as do sistema de consumo, entre a do formato e a dos modos de ler, dos usos. (pp. 305; 307; 311; grifos nossos)

A mediação instaura-se, então, por um processo em que se introduzem socialidades entre as negociações incessantes entre sujeitos e instituições sob a égide do poder; pela noção temporal que altera a percepção de continuísmos, gerando repetições e fragmentações do real; e pela competência cultural que parte da história de vida e da historicidade social para desenvolver habilidades e aprendizados técnicos e de tecnologia social ( Martín-Barbero, 2002MARTÍN-BARBERO, J. (2002). Oficio de Cartógrafo. Travesías latinoamericanas de la comunicación en la cultura. México; Santiago, Fondo de Cultura Económica. ).

A ação em rede, dotada de processos comunicacionais e como matriz interacional por si mesma, está sujeita a mediações, bem como medeia a realidade por meio de seus componentes. Mobilizados, os sujeitos são postos em uma instância que incorpora os elementos do cotidiano, mas que os transporta para uma projeção do real, onde se ativam a insurreição e os projetos de vida.

Com o aporte de Martín-Barbero (2001MARTÍN-BARBERO, J. (2001). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ. e 2002MARTÍN-BARBERO, J. (2002). Oficio de Cartógrafo. Travesías latinoamericanas de la comunicación en la cultura. México; Santiago, Fondo de Cultura Económica. ), tem-se a chave de leitura para a potência das redes para além de sua substância e organização. A ação que advém das redes, característica das mobilizações sociais contemporâneas, está ligada a um ecossistema comunicacional, composto por mediações. A mediação como processo comunicativo é, assim como a insurgência, um exercício imaginativo de um outro cotidiano, de uma outra realidade.

Logo, a ação em rede possui uma pujança particular. Incorporando a complexidade dos sujeitos e dos objetos e marcada por mediações, a ação em rede é uma experiência adutora das consciências, das identidades, das relações e das potencialidades humanas. Desse modo, a rede assume a noção foucaultiana de dispositivo ( Foucault, 1994FOUCAULT, M. (1994). “Le jeu de Michel Foucault. Entrevista dada à revista Ornicar?”. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits. Tome III. Paris, Gallimard. ), e de um dispositivo interacional ( Braga, 2017BRAGA, J. L. (2017). “Dispositivos interacionais”. BRAGA, J. L. et al. Matrizes interacionais: a comunicação constrói a sociedade. Campina Grande, EDUEPB. e 2020).

O próprio Foucault (1994FOUCAULT, M. (1994). “Le jeu de Michel Foucault. Entrevista dada à revista Ornicar?”. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits. Tome III. Paris, Gallimard. , p. 299) define a noção de dispositivo:

O que tento demarcar sob esse nome é, primeiramente, um conjunto resolutamente heterogêneo, comportando discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, em suma: tanto o dito como o não dito, aí estão os elementos do dispositivo. O dispositivo, propriamente, é o sistema de relações que se pode estabelecer entre esses elementos. [...] O que quero enfatizar no dispositivo é justamente a natureza do vínculo que pode existir entre esses elementos heterogêneos. [...] entre esses elementos, discursivos ou não, há como que um jogo, mudanças de posição, modificação de funções, que podem ser, elas também, muito diferentes.

Ora, se o dispositivo é um domínio de saberes ou de exercícios táticos do poder, marcados por um grau relacional e comunicativo, a rede e sua ação assumem essa perspectiva no bojo da mobilização social. A função do dispositivo é desencadear tentativas de transformação dos jogos do sistema, a partir de estratégias de socialidade do/no poder.

A tarefa conceitual e empírica de tratar o objeto das mobilizações sociais gera desconfiança e desafios dialógicos da teoria clássica e vigente da ação social em movimento. É possível fazer crer que essa suspeita advém da formatação disforme e de ensaio e erro do dispositivo no tecido social e nos jogos do poder ( Braga, 2019BRAGA, J. L. (2019). Interagindo com Foucault. Os arranjos disposicionais e a comunicação. Questões Transversais. São Leopoldo, v. 6, n. 12, pp. 81-91. ).

Essa impermanência e caráter ensaístico do dispositivo acenam para sua própria constituição:

Dois aspectos são sublinhados na gênese do dispositivo: uma urgência; e uma função estratégica. O momento em que o dispositivo começa a se preparar socialmente é a constatação de um problema. Não uma questão ideal ou universal para o ser humano, atemporal – mas questão constatada em um momento histórico, concreta, singular, vivida e não apenas “pensada”. Uma urgência, justamente. A gênese do dispositivo se realiza como função estratégica – enfrentar o que se considera como urgência, buscar soluções e encaminhamentos pertinentes. (Ibid., p. 83)

O dispositivo como formulação de transformação social é imperfeito e, nessa condição, impermanente. Seu surgimento é a somatória de práticas, vivências e socialidades que se tornam instrumento interacional estratégico de ação, mas sem formalismos, o que faz dele uma sucessão de erros e acertos. Afinal, tudo é mutável, até as condições do social se alteram enquanto se formam.

Virtualidade e novas alocações dos sujeitos em rede

Do imaginário das ruas ao imaginário da ação reside (e resiste) o sujeito: esse elemento constitutivo da ação e do eixo do qual se conhece e interpreta o cotidiano. Um sujeito esfacelado pelos contrários aos quais está submetido e pelas desilusões dos signos de desenvolvimento cujas promessas, que não se cumprem plenamente, continuam a se renovar sob o ultraprocessamento da realidade pelo capitalismo produtivo e democrático.

Em constante alocação e deslocamento, esse sujeito é submetido a um cenário de intempéries. Por um lado, os instrumentos democráticos e as inovações constitucionais celebram a inclusão e configuram o caminho do político. Por outro, as temporalidades do presente têm um efeito nauseante, pelo empuxo da crise da promessa desenvolvimentista ( Santos e Pereira, 2021SANTOS, G. S.; PEREIRA, A. M. (2021). O lugar do desenvolvimento na mobilização social: signos de desenvolvimento e a produção de utopismos nas Jornadas de Junho de 2013. Sociedade e Território. Natal, v. 32, n. 2, pp. 8-2. ) ou pelo vertiginoso movimento pendular democrático ( Avritzer, 2019AVRITZER, L. (2019). O pêndulo da democracia. São Paulo, Todavia. ).

O resultado é um movimento de realocações sucessivas dos sujeitos, causadas pelas injunções e disjunções do corpus político-democrático, que precisam se desfragmentar, embora as dinâmicas de existência e autopercepção do sujeito como detentor de direitos, participante da ágora, e uma cidadania centrada no trabalho e no consumo o fragmentem continuadamente.

O efeito colateral das sucessivas realocações é um quadro gradativo e intermitente de deslocação. Desse modo, a participação social e a consciência dos sujeitos ora são ativadas inexoravelmente nos sentidos da luta, ora são agredidas com dores que os colocam em estado de dormência ou de comprometimentos parcos. O sujeito de Touraine (1998TOURAINE, A. (1998). “O sujeito”. In: TOURAINE, A. Iguais e diferentes. Poderemos viver juntos? Lisboa, Instituto Piaget. e 2009TOURAINE, A. (2009). “O sujeito como movimento social”. In: TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Petrópolis, Vozes. ) vê-se em risco por um processo autofágico.

As condições e a ativação do sujeito que fazem eclodir sua luta e delineiam os campos de força de sua ação sob a forma de contrapoder – salutares à estrutura democrática – acabam se tornando nutrientes para o catabolismo de lacunas que nem o tempo, a política, a participação, as identidades ou capital são capazes de equalizar.

O sujeito é relegado a uma situação de desencaixe, como se fosse evadido do tempo, de seu próprio tempo. Sua existência segue no tempo atual, enquanto sua consciência permanece adormecida em um tempo virtual. Contudo, essa virtualidade não atualiza o real, mas a sua sombra. É um sujeito que se basta nos simulacros de si e da realidade.

A mobilização social em rede é fascinante, na medida em que, na elegia dos movimentos sociais, é uma constelação em si mesma, junto a outros eventos de mesma natureza. Esse fascínio convive lateralmente com perigos que, ao mesmo tempo que são causais às próprias mobilizações, são sintomáticos e diagnósticos. O que os sujeitos das mobilizações sociais em rede respondem é simultaneamente moléstia e medicina.

É um quadro em que:

O tempo se tornou o problema do hardware que os humanos podem inventar, construir, apropriar, usar e controlar, não do wetware impossível de esticar, nem dos poderes caprichosos e extravagantes do vento e da água, indiferentes à manipulação humana; por isso mesmo, o tempo se tornou um fator independente das dimensões inertes e imutáveis das massas de terra e dos mares. O tempo [...] tornou-se um fator de disrupção. ( Bauman, 2001BAUMAN, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro, Zahar. , pp. 129-130)

Essa disrupção temporal é o que deixa um retrogosto amargo enquanto se observam as Jornadas de Junho de 2013, compreendendo inicialmente a legitimidade de manifestações e querelas em uma democracia. Esse dissabor é percebido na curta duração dos atos, mas continua a chamar a atenção na longa duração de suas consequências.

Destarte as interpretações sobre a singularidade e a incompreensão de junho de 2013 na cultura política brasileira, amplamente debatidas ( Cava, 2013CAVA, B. (2013). A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (junho-outubro). São Paulo, Annablume. ; Maricato et al., 2013MARICATO, E. et al. (2013). Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Boitempo/Carta Maior. ; Cava e Pereira, 2016CAVA, B.; PEREIRA, M. (orgs.) (2016). A Terra Treme: leituras do Brasil de 2013 a 2016. São Paulo, Annablume. ; Solano e Ortellado, 2015SOLANO, E.; ORTELLADO, P. (2015). Pesquisa com os participantes da manifestação do dia 12 de abril de 2015 sobre confiança no sistema político e fontes de informação. GPOPAI-USP. Disponível em: https://gpopai.usp.br/pesquisa/120415/. Acesso em: 30 jul 2021.
https://gpopai.usp.br/pesquisa/120415/...
; Bringel, 2016BRINGEL, B. (2016). 2013-2016: polarização e protestos no Brasil. OpenDemocracy, 18 fev. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/democraciaabierta/breno-bringel/2013-2016-polariza-o-e-protestos-e-no-brasil. Acesso em: 30 jul 2021.
https://www.opendemocracy.net/democracia...
; Bucci, 2016BUCCI, E. (2016). A forma bruta dos protestos: das manifestações de junho de 2013 à queda de Dilma Rousseff em 2016. São Paulo, Companhia das Letras. ; Santos, 2017SANTOS, G. S. (2017). #Vemprarua: territorialidades de insurgência e ativismos on-line/off-line nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil. Dissertação de mestrado. Montes Claros, Universidade Estadual de Montes Claros. ; Gohn, 2018GOHN, M. G. (2018). Manifestações e protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade. São Paulo, Cortez. ), seus significados e postulados ainda são disputados, sobretudo como aporte a eventos posteriores, como manifestações autoritárias de 2015 em diante, à deposição da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016, e o interdito conservador da atualidade.

Os problemas de junho possuem três ordens, duas endógenas à sua gênese e tipificação, como mobilização social em rede, e uma exógena à sua condição, mas a ela atrelada como recurso interpretativo. Nessas três ordens, os mesmos atores, arenas e contextos estão presentes – o sujeito, as redes, seus processos –, embora posicionados de modo distinto.

Há a ordem político-contextual, na qual reside o dilema da ação contemporânea, na qual o cerne das mobilizações sociais em rede está circunscrito e na qual os contextos plurais e singulares que marcaram as temporalidades e espacialidades das jornadas se alinham. Essa ordem, naturalmente, é endógena ao movimento.

Do lado de fora, há a ordem político-interpretativa que desloca os objetos, a forma e o conteúdo dos atos de 2013 para o exame. O caráter exógeno dessa ordem advém não apenas por ser um exercício analítico em que certa distância é praticada, mas de um esforço oracular de atribuir, ao movimento, significados proféticos da conjuntura política, como uma bandagem de suas feridas hodiernas.

Por fim, há a ordem político-reticular. Também endógena, essa ordem estabelece diálogo com a primeira. Aqui está o significado das redes. Aqui está, também, o sentido das performances das mobilizações sociais em rede e como junho é uma tela do devir, feita de virtualidades políticas e realocações dos sujeitos.

A ordem político-contextual, amplamente descrita anteriormente, diz do que levou as multidões às ruas. Deve-se às pautas e sua natureza sócio-histórica e às formas de articulação e insurgência que as levaram a público. É o que faz de junho de 2013 as Jornadas de Junho, ao passo que é o que faz destas uma mobilização social em rede em um ecossistema de eventos pregressos e posteriores.

Afinal:

Nada mais legítimo numa democracia do que a existência de protestos e manifestações de desagrado. O problema colocado no Brasil na atual conjuntura é o de sua intensidade, magnitude e reiteração, a ponto de colocar em risco valores democráticos importantes como a tolerância, a não violência e as liberdades mútuas. Trata-se, portanto, de uma questão de repensar os canais de interlocução entre setores, que por algum motivo não se sentem representados em suas preocupações básicas pela coalizão predominante no governo, e as entidades do Estado responsáveis pela elaboração e efetividade de políticas públicas fundamentais. Mais criatividade e imaginação institucional no âmbito participativo e menos chavão institucionalista no âmbito representativo devem ser o norte da resposta política do governo à crise. Uma resposta cujo ponto de partida esteja assentado na defesa da solidez de nossas instituições representativas e democráticas. ( Santos, 2008SANTOS, M. (2008). Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo, Edusp. , pp. 23-24)

A ativação territorial dos atos por um processo de solidarização que se transforma em uma manifestação multiescalar, composta por territorialidades insurgentes e episódicas e por identidades flutuantes, bem como o escoamento das demandas vindas das ruas e das redes digitais e as respostas institucionais – mídia, governo, polícia, mercado e política – fundamentam o contexto de junho. E é da ordem político-contextual que surge a ordem político-interpretativa.

As interpretações são esperadas e naturais aos eventos sincrônicos. Junho de 2013 começa por exames que estabelecem sua distinção e especulam seu valor na cultura política nacional. A seguir, análises diagnósticas tomam forma, centradas em uma perspectiva negativa, refletindo associações entre o evento e contextos econômicos e políticos nacionais, sobretudo nas vozes de Jessé Souza e Marilena Chaui.

Jessé Souza faz dois diagnósticos. O primeiro remonta a uma condição de opacidade da luta de classes e da política no Brasil, fruto de economias e culturas conservadoras, que tomaria o Estado por vilão e os novos engajados – sob estímulo da hegemonia – como heróis ( Souza, 2015SOUZA, J. (2015). A tolice da inteligência brasileira. Rio de Janeiro, LeYa. ). O segundo seria entender junho como elemento incontestável à escalada do golpe de 2016, pela apropriação das pautas pela classe dominante com apoio da mídia (ibid., 2016).

O autor explicita:

Para esclarecer este ponto central, temos que analisar o que quase nunca chama a atenção de ninguém entre nós: a “sociedade” brasileira e seus conflitos de classe essenciais. É certo que, no início das manifestações em São Paulo e outras capitais do Brasil, o tema da mobilidade urbana associado às demandas de melhor educação e saúde, sob a pressão de estudantes tanto da classe média quanto da periferia das capitais, dominou a pauta de reivindicações. É certo também que as manifestações se irradiaram, de modo tópico e passageiro, para favelas e para a periferia não estudantil. Nos primeiros dias, uma aliança entre estudantes e “batalhadores” da classe trabalhadora precária [...] foi a grande responsável por uma pauta de reivindicações em consonância com os interesses das classes populares. No entanto, o dia 19 de junho – fato comprovado pelas pesquisas do Ibope feitas com os manifestantes em dimensão nacional – foi um ponto de inflexão fundamental que ajuda a esclarecer a força narrativa e institucional do pacto conservador brasileiro contemporâneo. Foi a partir deste dia que as manifestações se tornaram massificadas e ganharam todo o apoio da mídia nacional, assumindo a “classe média verdadeira” – os 20% mais escolarizados e de maior renda segundo a pesquisa – de modo claro e inconteste o protagonismo do movimento. ( Souza, 2015SOUZA, J. (2015). A tolice da inteligência brasileira. Rio de Janeiro, LeYa. , pp. 239-240)

Todavia, esse posicionamento crítico, ao centrar-se numa leitura excessivamente negativa e contestadora da forma peculiar dos atos, afigura-se como uma espécie de oráculo da realidade ou uma profecia reversa. Visto que se busca apenas, no caráter que endossa um ponto de vista, a justificativa totalizante e apressada para fenômenos do tempo presente que desafiam os postulados das Ciências Sociais.

Isto é, para as fissuras complexas da cultura e da história política nacional, uma análise unidimensional de um evento fractal é usada como esquema para aplicar bandagens em contextos ainda movediços ou dos quais o próprio espectro político do autor – e de quem critica nesse mesmo prospecto – não tem dado conta de responder de imediato.

A interpretação oracular expulsa de junho de 2013 até mesmo o que nela há de político e, portanto, seu caráter de mobilização social, objetificando a forma e conteúdo como inertes em práticas e processos. Embora as premissas do autor teçam interpretações pertinentes sobre a história, a economia e a política brasileiras, nesse contexto, abafa-se o que há de genuinamente sociológico no evento, a diferença em baliza.

Nesse sentido:

Por mais que seja crível que a mídia tenha atuado de forma coordenada e que, em alguma medida, setores de classe média se somaram às manifestações, isso não significa dizer que a mídia se apropriou das pautas e, muito menos, que a classe média era hegemônica nos protestos. Basta relembrar que a pauta da corrupção construída midiaticamente se originou de uma divisão, criada pela própria mídia, que contrapunha “bons” e “maus” manifestantes, ou “pacíficos” e “vândalos”. [...] Um fator que corrobora esse argumento é a própria depredação de “símbolos do capitalismo” durante as manifestações de 2013 e a consequente repressão por parte das forças policiais encarregadas de manter a “ordem”. É fato incontestável que a grande diferença entre as manifestações de 2013 e as de 2015 e 2016 – que levaram ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff – foi justamente a existência de episódios de “violência” (contra manifestantes e contra símbolos do capitalismo) nas primeiras, e a ausência nas que se seguiram em 2015 e 2016 (inclusive, muitas delas ganhavam apoio das forças de segurança policial, como diferentes fotografias das manifestações daqueles anos demonstram). Entendemos, utilizando os próprios argumentos que Jessé Souza nos oferece (Souza, 2009), que as manifestações de 2013 foram muito mais substanciadas pela revolta de setores dos “batalhadores e da ralé” do que pela “classe média” nos termos desenvolvidos pelo autor. ( Pires, 2018PIRES, T. V. (2018). “Jessé Souza e as interpretações do Golpe de 2016”. In: FOLLMAN, J. F. Dialogando com Jessé Souza. São Leopoldo, Casa Leiria. , pp. 185-187)

Em outro polo discursivo, está Chaui (2013aCHAUI, M. (2013a). Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo. e 2013bCHAUI, M. (2013b). “Uma nova classe trabalhadora: indagações”. In: FPA; FES BRASIL (org.). Classes? Que Classes? São Paulo, Editora FPA. ), sem deixar de ressonar alguns argumentos de Jessé Souza. Para a filósofa, junho de 2013 é uma dinâmica de classes, sobretudo na nova classe trabalhadora, que se veria ao sabor dos ideários conservadores e individualistas do neoliberalismo. Há, nessa receita, o componente autoritário residual das origens do País.

Haveria nos sujeitos que se punham nas ruas certa indistinção, pois todos seriam peças de uma mesma dinâmica de autoritarismo social, derivado da insatisfação histórica do republicanismo e do liberalismo de sua fundação (ibid.). Portanto, os ativistas do MPL e aqueles que se vestiam de verde e amarelo vocalizando frases antidemocráticas seriam iguais em uma mesma senda autoritária.

Chaui (ibid.) enxergou as manifestações como um espetáculo de massa – a descrédito da luta de classes – seduzido pelas redes, mas perdido em um desejo de manutenção do status quo , do qual os manifestantes, apesar de protestar, estariam praticando uma recusa à política.

Os signos da participação social das Jornadas de Junho seriam, portanto, uma reação do atraso histórico do País, caracterizando as massas nas ruas com rejeição à política e à ética, inventando democracias por meio de espetáculos massificados de manutenção conservadora.

Em ambos os autores, parece-se recusar tacitamente o histórico dos movimentos sociais, a heterogeneidade complexa de junho e a atualidade da mobilização popular com ensejo interpretativo ( Lima e Hajime, 2018LIMA, P. L.; HAJIME, M. (2018). O ovo da serpente? Fundamentos e variações da crítica ao componente conservador das "Jornadas de junho" de 2013. Leviathan. São Paulo, n. 13, pp. 91-119. ). Conceitos como conservadorismo, fascismo e autoritarismo, ainda que pertinentes e válidos, são misturados em uma avidez pela desqualificação como sociologia do presente.

É o oráculo ou profecia reversa concretizando-se quando junho de 2013 é mais explicativo e factual nos anos posteriores – quando outros eventos e contextos estavam em cena – do que em sua própria emergência. Isso não significa adotar uma postura apologética do movimento, mas cautelosa a partir do que ele representa em si, sem desvincular fenômenos históricos e suas continuidades.

A última ordem, político-reticular, regressa para dentro do evento. É da novidade das redes, continuando de Lévy (2000LÉVY, P. (2000). Cibercultura. São Paulo, Editora 34. e 2002LÉVY, P. (2002). Ciberdemocracia. São Paulo, Instituto Piaget. ) e Castells (2003CASTELLS, M. (2003). A sociedade em rede. São Paulo, Paz & Terra. ; 2006CASTELLS, M. (2006). O poder da comunicação. São Paulo, Paz & Terra. ; 2013CASTELLS, M. (2013). Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar. ), essa operação. Já se discutiu satisfatoriamente que as redes são dispositivos interacionais que produzem arranjos disposicionais. A vida das/nas redes tem, assim, seu próprio tempo.

Mas que tempo?

Esses tempos construídos pelo discurso se apresentam na realidade quebrados e aos solavancos. Submetidos a "servidões" e a dependências, o tempo da teoria é de fato um tempo ligado ao improvável, aos fracassos, aos desvios, portanto deslocado por seu outro. É o equivalente do que circula na linguagem como "metafórica temporal". E, por um estranho fenômeno, essa relação do controlável com os fracassos constitui precisamente a simbolização, união daquilo que coere sem ser coerente, daquilo que faz conexão sem ser pensável. [...] As práticas cotidianas, fundadas na relação com o ocasional, isto é, no tempo acidentado, seriam, portanto, dispersas ao longo da duração, na situação de atos de pensamento. Gestos permanentes de pensamento. ( Certeau, 2014, pCERTEAU, M. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes. , pp. 280-281; grifos do autor)

Na dimensão sociotécnica das mobilizações como as de junho, as redes representam arcas para os sujeitos. Arcas que transportam os valores e sentidos do que se digna lutar, imbuídas dos dilemas da política e da democracia solapadas pelos conflitos e contrariedades sociais. A virtualidade é o plano de navegação dessa arca.

Quando se observa a refletância on-line e off-line das manifestações de 2013, com as redes servindo de observatórios, laboratórios e elementos arregimentadores da ação, uma série de sociabilidades passa despercebida diante da forma e do conteúdo espetaculares do evento.

No contexto político-reticular, o sujeito, ao se aninhar nos laços dos nós e arcos, não só é diluído em um coletivo, como devorado pelo desejo premente de emancipação ante os ideários sociais de derivas e contradições. Desse modo, o sujeito como um ser-sujeito divide seu espaço com uma imagem desse ser-sujeito. A imagem figura no psiquismo e incorpora o desejo convalescente na realidade contextual instável.

A mobilização, portanto, torna-se um exercício compensatório das insatisfações que inicialmente fundamentaram o próprio levante dos sujeitos. Há uma busca de si na multidão. Na singularidade e nos comuns, ocorre um jogo de fragmentos de si, do outro e da extensão da multidão diante dos significados construídos antes, durante e depois da luta.

As redes estão estetizando e homogeneizando a percepção da realidade, na medida em que permitem, pela utopia de um sujeito-mito – balizado nos fetichismos do capital –, a obliteração do tempo utilitário em nome de um tempo permanentemente virtual, em que a utopia não perde seu brilho nos conflitos do tempo do real atual.

As práticas passam, então, a constituir performances por meio de templates 5 5 Templates indicam modelos genéricos pré-prontos, geralmente gráficos, para que qualquer tipo de ideia ganhe formato em uma perspectiva normalizada, aceita. de ação. Isto é, um simulacro de potência e heroísmo político da multidão, inventado no utopismo confessado nas redes. Os templates – enquanto moldes pré-prontos e inequívocos de um projeto qualquer – são medidas de contenção dos conflitos e pulverizações da realidade atordoante, diante das contradições sempre presentes e dos movimentos pendulares da democracia.

Em junho de 2013, a festividade da flexão solidária dos atos que se combina a múltiplos atores com exercícios assimétricos e discrepantes constitui uma performance particular. Parte desses sujeitos se ativa e se articula diante do conteúdo das demandas. Outra parte assume a rede como arca e participa em seus templates, reproduzindo, por contágio, o ideário do qual internamente deseja, mas que conjunturalmente não articula.

A carnavalização dos atos é um exemplo disso ( Ricci e Arley, 2014RICCI R.; ARLEY, P. (2014). Nas ruas: a outra política que emergiu em junho de 2013. Belo Horizonte, Letramento. ). A celebração das ruas, os cantos, o afã superlativo do momento visto nos vocativos de #vemprarua ou o #ogiganteacordou constituem pausas recreativas que se politizam nos templates que a rede, por entrelaçamento e solidariedade, fornece no que a realidade social e política atual de participação não contempla.

A virtualidade das novas alocações dos sujeitos em junho é um campo de embates entre o que a mobilização celebra da necessária mudança social feita nas lutas como os encalços e problemas que sequestram sua própria aquiescência política.

Considerações finais

Na mobilização social em rede, sua suspeita espontaneidade de origem decorre do caráter de dispositivo da ação em rede. O que sustenta tal caráter, antes de tudo, é uma urgência percebida no tecido social, experimentada e partilhada pelos sujeitos logo acionados. A partir dessa formação, formula-se o objetivo estratégico para a elaboração do problema-objeto da urgência. E é nesse processo que o dispositivo nasce como instrumental interacional tático e experimental de transformação.

A ação reticulada das mobilizações sociais é um dispositivo que interpela o dado social, a partir de urgências que se manifestam no imaginário mediado dos sujeitos. A urgência é definida a partir de elementos ou eventos que conclamem a consciência humana a romper as divisões que a diversidade frequentemente espelha no cotidiano. Definida, os objetivos estratégicos podem ser montados para que a insurgência adquira volume e se reproduza.

Por certo que os objetivos no seio de uma mobilização social são complexos e nada harmônicos, visto que é característica desses fenômenos seu afastamento de qualquer organização formal e/ou utilitarista da ação política e seu objeto. Assim, objetivos chocam-se e disputam-se, entre táticas e estratégias que, embora estejam sob um mesmo selo, concorrem entre si sob o influxo da rede.

Enquanto a ação em rede é um dispositivo interacional, a mobilização social em rede que participa desse processo é formada de arranjos. Arranjos são situações em formação, marcados pelas contingências do cotidiano e, portanto, em possibilidade contínua de alteração.

Importa na construção de uma teoria da ação em rede e da mobilização social em rede um enfoque sobre os arranjos: as tratativas, esquivas, deslizes, controvérsias, contradições, conflitos, retornos e potenciais sociopolíticos. A ação não deve ser aspirada como perfeita e pronta, mas como inacabada e irremediavelmente aberta. A mobilização social em rede, portanto, é composta de arranjos comunicacionais e disposicionais.

Enquanto a ordem político-contextual reafirma as temporalidades particulares das mobilizações sociais em rede, e, portanto, a heterogeneidade de elementos que constituem a gênese e os significados tão disputados de junho, a ordem político-interpretativa levanta debates que previnem a apologética cega e a desconfiança exacerbada como desqualificação.

Por fim, a ordem político-reticular apresenta a ontologia das redes, que ultrapassam a conexão conceitual dos repertórios biológicos e geográficos, apontando para uma direção comunicacional e política, mas não menos espacial. Das ruas às infovias, o movimento é feito, produzido, reproduzido e metabolizado.

Para completar este debate ou o princípio de uma conversa, resta interrogar a interlocução entre espaço e insurgência, na busca por entender, no sistema de objetos e ações, os pormenores do que dele e nele acontecem. O acontecer do espaço é um acontecer político, pois, para além de substrato, ele dá contorno ao devir, suas protuberâncias, concretudes e imaginações.

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Notas

  • 1
    Capitaneados pelo Movimento Passe Livre (MPL), como pode ser conferido em Santos (2017)SANTOS, G. S. (2017). #Vemprarua: territorialidades de insurgência e ativismos on-line/off-line nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil. Dissertação de mestrado. Montes Claros, Universidade Estadual de Montes Claros. e em Santos e Cunha (2019)SANTOS, G. S.; CUNHA, M. G. C. (2019). "Não é por R$ 0,20, é por direitos": dinâmicas de insurgência nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil. Caminhos de Geografia. Uberlândia, v. 20, n. 69, pp. 94-110. .
  • 2
    Como teorizou McLuhan (1969), os meios de comunicação são extensões do homem, abarcando os produtos materiais como coparticipantes da ação humana.
  • 3
    Como Ricci e Arley (2014)RICCI R.; ARLEY, P. (2014). Nas ruas: a outra política que emergiu em junho de 2013. Belo Horizonte, Letramento. , recuperando Boaventura de Souza Santos (1997), concebem manifestações dentro da cultura política brasileira, como uma necessidade de transgressão demonstrativa, sem romper a ordem, fazendo as vezes de uma "festividade" mobilizada.
  • 4
    Souza (2013)SOUZA, M. L. (2013). Os conceitos fundamentais da pesquisa socioespacial. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. argumenta que o conceito de rede suscita interpretações epistemologicamente indigentes pelo desdobramento de sua conjuntura frequentemente "espontânea" e de inovação do social, a despeito de uma pretensa formalidade do conhecimento. Entretanto, é nessa minúcia analítica atípica que reside a empiria necessária a novos caminhos epistemológicos capazes de ler o real.
  • 5
    Templates indicam modelos genéricos pré-prontos, geralmente gráficos, para que qualquer tipo de ideia ganhe formato em uma perspectiva normalizada, aceita.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2021
  • Aceito
    16 Mar 2022
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