Open-access Presença e ausência do Estado: a localização do Airbnb em Blumenau-SC

Resumo

Este artigo investiga a ausência e a presença do Estado, através da localização dos investimentos públicos viários, no espaço intraurbano de Blumenau, cidade industrial e turística de porte médio, especialmente nas áreas onde se localizam os imóveis ofertados pela plataforma Airbnb. São também analisados, no contexto do urbanismo de plataforma, os efeitos socioespaciais e econômicos dos investimentos públicos viários. A metodologia combina revisão bibliográfica, análise de dados estatísticos e censitários e a elaboração de cartografias que contribuíram para espacializar o Airbnb e a presença e ausência do Estado em Blumenau. A pesquisa evidenciou desigualdades socioespaciais e segregação, com significativa concentração de investimentos públicos nas áreas onde predominam as camadas de alta renda e as ofertas de locação pelo Airbnb.

Palavras-chave:
presença e ausência do Estado; investimentos públicos; Airbnb; urbanismo de plataforma; desigualdades socioespaciais

Abstract

This article investigates the absence and presence of the State by locating public road infrastructure investments in the intra-urban space of Blumenau, a medium-sized industrial and tourist city, especially in areas where the properties offered by the Airbnb platform are situated. The socio-spatial and economic effects of such investments are also analyzed in the context of platform urbanism. The methodology combines a bibliographic review, analyses of statistical and census data, and the creation of maps that contributed to spatializing Airbnb and the presence and absence of the State in Blumenau. The research highlighted socio-spatial inequalities and segregation, with a significant concentration of public investments in areas where high-income classes and Airbnb rental offers predominate.

Keywords:
presence and absence of the State; public investments; Airbnb; platform urbanism; socio-spatial inequalities

Introdução

Este artigo investiga a relação entre a localização dos imóveis disponibilizados para aluguel de curto prazo na plataforma Airbnb na cidade de Blumenau e a ausência ou presença do Estado no espaço intraurbano, medidas através da localização intraurbana dos investimentos públicos efetuados no sistema viário. São analisadas a localização dos imóveis disponíveis no Airbnb entre os meses de setembro e outubro de 2024, quando, neste último, acontece no município a Oktoberfest, e dos investimentos públicos viários mais significativos, efetuados entre 2014 e 2023 pela Secretaria Municipal de Obras (Semob), além da distribuição socioespacial da população por níveis de renda.

Os dados sobre os valores e a localização dos investimentos públicos viários e dos imóveis ofertados pelo Airbnb, estes últimos capturados por meio do método do web scraping (ferramenta computacional de coleta de dados em websites que auxilia no monitoramento do avanço do Airbnb nas cidades enquanto o site não disponibiliza esses dados para as autoridades), foram coletados para pesquisas de dissertações, possibilitando a construção de uma base de dados. Foram produzidas cartografias e tabelas que, quando cotejados, permitiram a espacialização e caracterização da presença do Airbnb em Blumenau, o que contribuiu para a compreensão das dinâmicas socioespaciais que envolvem a localização intraurbana dos imóveis ofertados pela plataforma, vista como um agente que opera sem distinção de territórios e impacta significativamente “as interações urbanas” (Graham, 2020, p. 453).

A discussão acerca da localização e dos impactos do Airbnb no espaço intraurbano de cidades do mundo todo vem sendo relacionada e problematizada com base em conceitos e expressões convencionalmente denominadas de “digitalização do espaço urbano” (Lee et al., 2020) e “urbanismo de plataforma” (Graham, 2020). No Brasil, as pesquisas sobre o impacto do Airbnb têm se concentrado principalmente nos estudos sobre as novas dinâmicas de sociabilidade e hospitalidade promovidas pela plataforma (Vera e Gosling, 2017), o que, segundo Souza e Leonelli (2021), se distancia das influências do Airbnb no espaço urbano, sobretudo se considerarmos que a atuação do Airbnb no Brasil foi além do simples ato de compartilhar e se transformou em um serviço que, por ser pouco ou nada regulado, impacta de diversas maneiras a dinâmica socioespacial das cidades onde está presente (Souza, 2021).

Considerando o panorama internacional das pesquisas sobre o Airbnb (Kaplan e Nadler, 2017; Gallagher, 2018; Ioannides, Röslmaier e Van de Zee, 2018; Graham, 2020; Van Doorn, 2020; Goyette, 2021) e o cenário nacional, que ainda detém poucas mas significativas conclusões (Lobo, 2018; Souza e Leonelli, 2021; Souza, 2021; Silva, Barbosa e Farias, 2020; Cruvinel, 2024), torna-se essencial a produção de investigações acadêmicas que tratem das dinâmicas socioespaciais no contexto do urbanismo de plataforma. Nesse sentido, Souza e Leonelli (2021, p. 11) propõem novas abordagens a serem exploradas, relacionando o Airbnb ao campo dos estudos urbanos, e destacam a importância de se levar em conta as especificidades de cada cidade, uma vez que “as manifestações da plataforma no território provavelmente variam no litoral, no interior, em cidades turísticas e não turísticas, e em cidades pequenas, médias, metrópoles e regiões metropolitanas”.

Dessa forma, torna-se fundamental fortalecer o desenvolvimento de investigações que não sejam apenas teóricas, mas também empíricas e comparativas, voltadas para as principais tendências e consequências da localização e concentração intraurbana dos imóveis ofertados pelo Airbnb e suas consequências socioespaciais. Neste artigo, são consideradas as especificidades de Blumenau, uma cidade média, turística e industrial, onde as áreas turísticas coincidem com as centrais, e que, assim como muitas das cidades da periferia do capitalismo, é permeada de desigualdades e significativamente segregada (Pires, 2024).

O artigo está estruturado em três seções, que se apresentam como caminhos complementares para se compreender as dinâmicas socioespaciais que envolvem a localização dos investimentos públicos viários e das ofertas de Airbnb no espaço intraurbano de Blumenau: na primeira, são apresentadas e correlacionadas sínteses e análises das abordagens sobre o Airbnb – com base em estudos que abordam o conceito de urbanismo de plataforma – e sobre a produção do espaço intraurbano, considerando os investimentos públicos efetuados no sistema viário, destacando também os conceitos de segregação, acessibilidade e localização elaborados por Villaça (1998); na segunda são analisadas as localizações dos imóveis disponibilizados pelo Airbnb em Blumenau e a distribuição socioespacial da população por níveis de renda; e na terceira são investigadas as relações entre os aspectos discutidos na sessão anterior e os investimentos públicos viários mais significativos produzidos pelo Estado.

Airbnb e produção do espaço

O Airbnb, inicialmente nomeado de AirBed & Breakfast, surgiu em 2007 e foi fundado oficialmente em 2008, em São Francisco, região do Vale do Silício, nos Estados Unidos, a partir da parceria entre três amigos, que viram na lotação dos hotéis locais uma oportunidade de alugar seus espaços privados e seus “colchões de ar” como alternativa de renda extra (Gallagher, 2018).

Inserido no mesmo campo de grandes empresas com capital fechado e avaliada em mais de US$1 bilhão, como a Uber e o iFood, o Airbnb tem promovido o debate acerca do modelo de negócios conhecido como “Economia do Compartilhamento”. Trata-se de um modelo econômico baseado na intermediação digital, que facilita o compartilhamento de bens e serviços entre indivíduos, muitas vezes de maneira descentralizada. Nesse contexto, os recursos, que anteriormente poderiam permanecer ociosos, são disponibilizados para uso temporário por outras pessoas, sem a necessidade de posse permanente (Koopman, Mitchell e Thierer, 2015). De acordo com o Airbnb, anfitriões pelo mundo todo afirmam que receber hóspedes em suas acomodações os ajuda a cobrir seus custos com sua própria moradia, sendo esse, muitas vezes, o principal motivo pelo qual muitos decidiram disponibilizar seus imóveis na plataforma (Airbnb, 2022).

Visto como símbolo da Economia de Compartilhamento, assim como a Uber, o Airbnb é também interpretado como uma das manifestações do urbanismo de plataforma, que obteve forte adesão da geração dos millennials – indivíduos nascidos entre 1981 e 1995, que testemunharam a ascensão da internet, trazendo novas características de consumo e estilo de vida (Souza, 2021; Cruvinel, 2023).

Conforme Gallagher (2018), o ideário que sustenta o Airbnb está alinhado às práticas neoliberais contemporâneas, o que contribuiu para o seu êxito, especialmente durante o período de recessão econômica nos Estados Unidos, que culminou no colapso imobiliário de 2008. Assim, o compartilhamento de imóveis emerge como uma alternativa viável, mantendo a ideia da moradia como um investimento e objeto de especulação, permitindo aos seus proprietários a possibilidade de remuneração adicional (Van Doorn, 2020). Conforme Srnicek (2017), a Economia do Compartilhamento é um desdobramento do “capitalismo de plataforma”, o que permite compreender o Airbnb como uma expressão da reconfiguração do sistema capitalista, que está constantemente à procura de novas formas de exploração e que tem alterado as dinâmicas urbanas, resultando em problemas urbanos de significativo impacto socioespacial e econômico (Souza e Leonelli, 2021).

A produção acadêmica internacional sobre os impactos urbanos do Airbnb tem direcionado sua atenção, predominantemente, para questões relacionadas à regulação e turistificação. Van Doorn (2020) argumenta que a integração do Airbnb com a sociedade civil constitui uma das principais estratégias utilizadas pela plataforma para reforçar sua capacidade de influenciar a legislação urbana, configurando uma característica do empreendedorismo regulatório. Já Ioannides, Röslmaier e Van de Zee (2018) evidenciam que a plataforma tende a intensificar a concentração do turismo nas denominadas “bolhas turísticas”, o que promove a alteração do tecido urbano, especialmente da população, por meio da gentrificação, e do padrão comercial do local, que passa a ser voltado ao mercado do turismo (Brossat, 2019). Para Brauckmann (2017), a “turistificação” do espaço urbano é uma das principais características do processo gentrificação, pois valoriza a terra e dificulta a permanência daqueles que nela já viviam, encarecendo o custo de vida.

Conforme Cruvinel (2023), as relações observadas entre os países norte-americanos e asiáticos indicam como o processo de expansão do aluguel de curto prazo pode acompanhar lógicas políticas e econômicas historicamente definidas, que envolvem, por exemplo, a produção de desigualdades socioespaciais, assim como disputas no entorno do espaço produzido. Prien e Graz (2021), de forma semelhante, discutem as desigualdades na distribuição das infraestruturas urbanas digitalizadas, como os serviços de aluguel de temporada, utilizando o conceito de direito à cidade de Lefebvre (2016).

Para Lefebvre (ibid.), o direito à cidade vai além da provisão de infraestrutura e serviços urbanos, representando o direito dos cidadãos de participar ativamente dos processos de comunicação, troca e transformação da vida urbana. Não se trata apenas de uma política estatal ou de um marco legal, mas de uma utopia que orienta a luta social, a partir da qual o papel da produção capitalista do espaço deve ser compreendido como determinante da problemática urbana que emerge a partir da segunda metade do século XX. Dessa forma, as abordagens de Prien e Graz (2021) e Cruvinel (2023), ainda que distintas em seus enfoques, lidam com o dilema entre a produção do espaço e o agravamento das desigualdades socioespaciais, destacando, inclusive, a desigualdade de poder político.

As desigualdades racial e de gênero, apontadas por Piracha et al. (2019), Goyette (2021), Medvedeva (2023) e Borghys et al. (2020), são aspectos estruturais da sociedade capitalista que se manifestam no urbanismo de plataforma europeu e norte-americano. No entanto, a relação entre a localização e concentração espacial dos imóveis ofertados pelo Airbnb e a produção desigual de infraestrutura urbana pelo Estado, que culmina em desigualdades e segregação socioespacial, ainda é um processo pouco explorado. Esse tema se presume de grande relevância, sobretudo nos países da periferia do capitalismo, onde as disputas entre grupos ou classes sociais são muito mais evidentes do que nos países centrais (Villaça, 1998; Carlos, 2013).

Villaça (1998, p. 142), ao definir a segregação como “um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros”, também destaca a importância de considerar as localizações intraurbanas para compreendermos como se dá a estrutura das nossas cidades. Essa localização é influenciada por dois fatores principais: as redes de infraestrutura e as possibilidades de locomoção, sendo o deslocamento – que envolve atividades como ir para casa, trabalho, compras e educação – o mais relevante, pois molda a estrutura do espaço intraurbano. Conforme o autor, quando discutimos deslocamentos intraurbanos, estamos essencialmente abordando o tempo, e o controle desse tempo de deslocamento é a força mais impactante na produção do espaço, pois “não podendo atuar sobre o tempo, os homens atuam sobre o espaço como meio de atuar sobre o tempo” (Villaça, 2011, p. 56). Assim, a distância se torna, principalmente, um tempo gasto para o deslocamento. Portanto, quando o capital adquire um espaço, ou quando domina uma determinada área, não está apenas comprando ou se apropriando do valor de uso da terra, mas também, e principalmente, do valor de troca e do tempo de deslocamento para outros locais, incluindo custos e frequências.

A localização, portanto, deve também ser compreendida como acessibilidade: quanto melhor a localização, maior a acessibilidade a outros pontos da cidade. Assim, a acessibilidade, mais do que a infraestrutura, é o fator crucial na configuração do espaço intraurbano (Villaça, 1998; Lago, 2012; Sugai, 2015). É a acessibilidade que determina a possibilidade de viver na cidade (Villaça, 1998). A produção e consumo do espaço urbano são, em última análise, a produção e consumo de acessibilidades. E, se, como indicam Humes e Freire (2020), há uma necessidade de epistemologias diversas para debater o urbanismo de plataforma, considerando a capacidade das plataformas de não só estender e escalar as interações sociais, mas também intensificando a acumulação do capital, faz-se necessária a compreensão das dinâmicas socioespaciais que envolvem a localização do Airbnb no espaço intraurbano.

Com as melhores localizações das cidades brasileiras produzidas pela e para a classe dominante, inclusive com significativo apoio do Estado, a manutenção do seu domínio político, e consequentemente da sua dominação social através do espaço, é histórica e recorrente (Villaça, 1998). Desse modo, com a produção do espaço acontecendo de modo desigual, Sugai (2015, p. 36) defende que “uma das características mais evidentes que definem as desigualdades dos espaços intraurbanos, e a presença ou ausência do Estado, diz respeito a distribuição e a localização diferenciadas dos investimentos públicos, em especial os relativos ao sistema viário”, pois estes aparecem “como fator decisivo na estruturação do espaço urbano” (Villaça, 1998, p. 13). Sendo assim, as investigações sobre a distribuição e a localização dos investimentos públicos, sobretudo os do sistema viário, “são imprescindíveis para que se possa conhecer como são produzidas as localizações privilegiadas e os espaços urbanos desiguais” (Sugai, 2015, p. 36).

Conforme Villaça (1998), nas investigações acerca da segregação e da distribuição espacial da população por grupos sociais, por nacionalidades e etnias, por exemplo, muito estudadas nos países centrais, a dimensão de luta só aparecerá quando se introduzir a segregação por classe. Já na segregação entre classes, a etnia ou a nacionalidade são irrelevantes. Daí a relevância de investigar a localização intraurbana dos imóveis ofertados pelo Airbnb junto ao processo de produção capitalista do espaço, considerando a distribuição espacial da população por níveis de renda e dos investimentos públicos viários, pois é a segregação por classes a que tem “implicações mais profundas sobre a estrutura urbana” (ibid., p. 148).

O Airbnb em Blumenau

Blumenau está localizada no Vale do Itajaí, nordeste de Santa Catarina, e conta com 361.261 habitantes, sendo a terceira mais populosa do estado e a oitava da região Sul do Brasil (IBGE, 2022). É composta por 35 bairros e, sobre sua geomorfologia, “cortada” pelo rio Itajaí-Açu, assim como pela rodovia BR-470, e composta por diversos morros (Figura 1).

Figura 1
– Bairros e regiões gerais de Blumenau

Importante polo da indústria têxtil no Brasil durante os anos 1990, Blumenau ainda mantém em seu território um expressivo número de grandes indústrias, como a Cia. Hering, Karsten, Cremer, Altenburg e Teka. A região central da cidade, onde muitas indústrias de médio e grande porte estão estabelecidas desde o final do século XIX, sempre abrigou uma parcela significativa da população de alta renda, especialmente os industriais do setor têxtil. Ainda que tenha passado por grandes transformações em seu cenário produtivo no final do século XX, muitas dessas indústrias ainda permanecem onde originalmente se estabeleceram (Siebert, 1999; Pires, 2024).

O fenômeno das enchentes é lamentavelmente recorrente no município, visto que desde a sua fundação, em 1850, foram registrados ao menos 100 eventos desse tipo na cidade. A suscetibilidade do sítio de Blumenau às cheias do rio Itajaí-Açu é tão grande que, “se descontarmos do perímetro urbano as áreas inundáveis e as encostas com declividade acentuada, a área remanescente, que pode ser considerada urbanizável, mal chega a 20% do total” (Siebert, 2000, p. 183), o que, em outras palavras, significa a existência de uma acirrada disputa por essas localizações (Pires, 2024).

Em 1983 e 1984, Blumenau enfrentou duas das maiores enchentes de sua história, quando o nível do rio Itajaí-Açu ultrapassou a marca de 15 metros acima de seu nível normal. A repercussão socioespacial da enchente de 1983 foi bastante significativa, afetando mais de 70% da população e provocando “uma modificação profunda no modelo de urbanização de Blumenau” (Siebert, 1999, p. 95). Para comemorar a superação da população frente aos desastres socioambientais, a Prefeitura Municipal de Blumenau criou a Oktoberfest, festa que promove a cultura germânica anualmente, durante o mês de outubro, para alavancar a economia do município que enfrentava dificuldades naquele período. A festa ocorre no centro de eventos Parque Vila Germânica, no bairro Velha, vizinho ao Centro da cidade, e, desde a sua inauguração, vem se mostrando um componente gerador de capital para o município, com uma receita que supera milhões de reais anualmente (Becker, 2011).

Em Blumenau, as áreas turísticas coincidem com a região central ou estão localizadas muito próximas a ela, como a própria Vila Germânica, no bairro Velha, que faz divisa com o Centro da cidade. É nessas áreas que identificamos, como mostra a Tabela 1 e os mapas da Figura 1, a maior presença do Airbnb. Dos 335 imóveis disponibilizados pela plataforma entre os meses de setembro e outubro de 2024, quando a cidade recebe o maior número de turistas do ano, por conta da Oktoberfest, 163 deles, ou seja, 48,66% do total, estão localizados na região central.

Tabela 1
– Imóveis disponibilizados na plataforma Airbnb em Blumenau entre setembro e outubro de 2024

Seguida da região central, a oeste apresenta os maiores números, abrigando 37,31% do total de imóveis disponibilizados, com destaque para o bairro Velha, onde ocorre a festa, que é disparado o que possui o maior número de imóveis para aluguel de curto prazo: foram 88 unidades identificadas, representando 26,27% do total do município e 70,40% do total da região oeste. Já as regiões sul, norte e leste possuem representação pouco significativa, apresentando no total, respectivamente, apenas 2,09%, 5,07% e 6,87% do total de unidades disponibilizadas no município.

Dos 35 bairros existentes no município, o Airbnb se faz presente em 26 deles, ou seja, 74,28% do total. Quando confrontados com a distribuição espacial da população por níveis de renda, podemos observar a maior presença da plataforma nas áreas onde historicamente predominam as camadas de média e alta renda na cidade, cujo rendimento é superior a 6 salários mínimos (Figura 2). No entanto, é possível também observar a ausência do Airbnb nas áreas onde predominam as elites, como o bairro Jardim Blumenau, por exemplo, único setor do município com rendimento superior a 15 salários mínimos.

Figura 2
– Distribuição espacial do Airbnb e da população por níveis de renda em Blumenau

Assim como os setores de mais alta renda, os de baixa renda também apresentaram pouca ou nenhuma presença do Airbnb (Figura 2). São setores que, conforme estudos elaborados por Pires (2024), apresentam alto número de ruas irregulares – ainda não cadastradas na Prefeitura –, difícil acesso à água tratada, ausência de tratamento do esgotamento sanitário, e que, por conta da topografia, são ocultas aos olhos da maioria da população, significativamente inclinadas, ou seja, morros que correm médio ou alto risco de deslizamento e que abrigam moradias populares.

Em 2022, o Censo do IBGE apontava Blumenau como a segunda cidade com o maior número de favelas e comunidades urbanas em Santa Catarina, um total de 37 (IBGE, 2022). Em 2011, o Plano Municipal de Habitação de Interesse Social de Blumenau havia identificado que ao menos 11 mil famílias viviam nos 55 assentamentos precários existentes na cidade, cerca de 7,5% do total da população (Pires, 2023). Essa realidade, entretanto, é ocultada não apenas pela topografia da cidade, mas também pelo elevado Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), de 0,806, pelo alto PIB per capita e também pelo discurso ideológico que a classe dominante produziu e ainda produz sobre Blumenau: o discurso de uma “cidade europeia”, desprovida de desigualdades (Moser, 2010). Nessas áreas, como mostraram os mapas da Figura 2, o Airbnb não se faz presente.

Assim como se identificou a maior presença do Airbnb nas áreas de média e alta renda, com exceção de onde vivem as elites, verificou-se uma maior concentração da plataforma também nos bairros de maior densidade demográfica, como Velha, Vila Nova e Victor Konder, cujas densidades variam entre 2.500 e 10.000 habitantes por km2. Esses bairros estão entre os mais verticalizados de Blumenau (Pires, 2024) e apresentam também as menores médias de moradores por domicílio, entre 2,00 e 2,50 (ver Figura 3). Em contrapartida, bairros populares, que possuem as maiores médias de moradores por domicílio, como a Itoupava Central, o mais populoso do município, onde o Airbnb é quase inexistente, têm densidades demográficas mais baixas, o que pode ser atribuído à menor especulação imobiliária nesses locais, visto que se encontram distantes do centro administrativo e dos principais centros comerciais e de serviços (ibid.).

Figura 3
– Densidade, média de moradores por domicílio e distribuição espacial do Airbnb e dos hotéis em Blumenau

Nota-se um contraste entre as realidades urbanas das porções norte e sul do rio Itajaí-Açu. Ao sul predominam os setores de mais alta renda, assim como também a presença do Airbnb e dos bairros com maior densidade e moradores por domicílio, ao passo que ao norte ocorre o inverso. Em virtude “das barreiras de acessibilidade ao Centro, que são o Rio Itajaí-Açu e a BR-470” (Back, (2004, p. 201), a região norte de Blumenau foi urbanizada tardiamente, mesmo contando com significativo contingente populacional em seus bairros desde os anos 1980. Embora apresente edifícios históricos e grandes indústrias, o turismo dessa região intraurbana é pouco incentivado pelo poder público municipal e a acessibilidade aos bairros é precária quando se consideram as poucas alternativas de acesso (Pires, 2024).

Ainda que o Airbnb esteja majoritariamente concentrado na região central de Blumenau, os dados apontam para uma expansão gradual, embora tímida, em direção ao norte e oeste. Já a rede hoteleira, que enfrentou uma concorrência desleal com o surgimento dos aluguéis de curto prazo (Souza e Leonelli, 2021), permanece concentrada principalmente nos bairros centrais e ao longo da rodovia BR-470, como ilustrado na Figura 3. Esse fenômeno também foi observado em Curitiba, por Lobo (2018), que demonstrou que, enquanto o setor hoteleiro se concentra em áreas turísticas ou regiões centrais das cidades, o Airbnb também está presente nessas áreas, mas com distribuição mais dispersa.

Confirmam-se, assim, os argumentos de Kaplan e Nadler (2017, p. 106, tradução nossa) de que “o crescimento do Airbnb não ocorre necessariamente à custa da rede hoteleira”. Atendendo aos interesses do capital, as repercussões do Airbnb são melhor percebidas pelos meios de hospedagens mais baratos, como hotéis menores, pousadas e albergues (Brossat, 2019), especialmente aqueles com infraestrutura de média ou baixa qualidade e localizados distantes das áreas de interesse, como centros de eventos, por exemplo. Brauckmann (2017), inclusive, identificou que estabelecimentos menores têm anunciado seus dormitórios dentro do próprio Airbnb, como alternativa de sobrevivência frente às adversidades impostas pelo urbanismo de plataforma.

Se a oferta de imóveis pelo Airbnb está concentrada em uma área específica, nesse caso a região central e o bairro Velha, compreende-se que há uma forte relação entre a localização desses imóveis com a localização das áreas onde predominam as camadas de média e alta renda em Blumenau, e consequentemente, como apontou Pires (2024), dos investimentos públicos viários mais significativos.

Airbnb e investimentos públicos em Blumenau

A atração exercida pelos bairros centrais por parte do setor hegemônico das camadas de alta renda e também das elites de Blumenau historicamente influenciou no direcionamento dos investimentos públicos viários para esse setor, o que permitiu à classe dominante a sua autossegregação na região central e em suas imediações, com destaque para os bairros Velha e Ponta Aguda (Pires, 2024). Esse processo de dominação social a partir do espaço é contínuo e também se fez presente nas duas primeiras décadas do século XXI.

A revisão do Plano Diretor de 2006 tinha como justificativa a ausência de conexões no sistema viário, sobretudo em direção às regiões norte e oeste, e definia que investimentos viários deveriam ser efetuados para que tal objetivo fosse atingido. Entretanto, o plano raramente citava obras e muito menos as suas possíveis localizações (Pires, 2024). Como indicado na Tabela 2, entre 2014 e 2023, essas duas regiões receberam investimentos públicos em infraestrutura viária, mas de forma desigual. A região norte, que concentrava 27,71% da população do município em 2022, recebeu apenas 18,55% dos investimentos. Já a região oeste, com 29,77% da população, recebeu 41,55% do total investido. Desses investimentos, 76,35% foram direcionados ao bairro Velha, que abriga apenas 5,58% da população da cidade, mas concentra 31,72% dos investimentos públicos efetuados no sistema viário em Blumenau entre 2014 e 2023.

Tabela 2
– Valor e localização dos investimentos públicos viários efetuados em Blumenau entre 2014 e 2023

A região central, já consolidada e, como vimos, onde predominam as camadas de média e alta renda e também as elites, que recebeu significativos investimentos viários na segunda metade do século XX (Pires, 2024), apresentou o menor percentual de investimentos públicos no sistema viário do município entre 2014 e 2023. Os mapas da Figura 4 evidenciam que, apesar de a região oeste deter 41,55% dos investimentos efetuados pela Semob, eles estão concentrados no bairro Velha. Os demais bairros a oeste receberam, em sua maioria, entre 0 e 3%, número muito inferior aos 31,72% concentrados no bairro Velha. Alguns bairros, como Victor Konder, Salto Weissbach e Tribess, não apresentaram investimentos viários nesse período, conforme o Portal Transparência do município. A cartografia também nos permite observar uma massa espessa de concentração do Airbnb nas proximidades do Parque Vila Germânica, no extremo leste do bairro Velha, que faz divisa com a região central.

Figura 4
– Investimentos públicos por bairro e regiões gerais e distribuição espacial do Airbnb em Blumenau

A região central, apesar de não ter registrado significativos investimentos viários recentes em seu território, é onde se concentra a maioria das grandes pontes que cruzam o rio Itajaí-Açu. Também em suas proximidades estão os diques de contenção de enchentes do município, que reduzem os efeitos das enchentes em alguns bairros (ver Figura 5), evidenciando, como destacou Pires (2024, p. 204), que “a lógica que determina a localização dos investimentos públicos em Blumenau” está, de certa forma, “vinculada à distribuição das classes sociais no espaço intraurbano”, que coincide também com a localização onde predominam os imóveis disponibilizados para aluguel temporário na plataforma Airbnb na cidade.

Figura 5
– Principais investimentos públicos e distribuição espacial do Airbnb em Blumenau

Dentre as maiores e mais significativas obras viárias efetuadas em Blumenau entre 2014 e 2023, destacam-se: 1) a construção do Complexo Viário do Badenfurt; 2) a ampliação e duplicação da rua Humberto de Campos; 3) a reforma da rua General Osório; 4) a construção do binário e reforma da Rua República Argentina e; 5) a ampliação e duplicação da ponte Adolfo Konder (Figura 5). Com exceção da primeira, e dentre um total de 141 obras, essas infraestruturas somam mais de R$118 milhões, cerca de 42,69% do total investido pela Semob em um período de menos de 10 anos.

Os bairros Vorstadt e Ponta Aguda, os mais beneficiados pelas obras do binário da rua República Argentina, concentravam em seu território, em 2010, mais de 40% das famílias da região leste que recebiam acima de 10 salários mínimos, o que os caracteriza como dois dos bairros mais ricos de Blumenau (Pires, 2024). Nesses bairros, no entanto, como demonstra o mapa da Figura 5, o Airbnb praticamente não se faz presente.

Já no bairro Velha, onde o Airbnb predomina no município, a produção de obras viárias foi bastante significativa. A construção do Complexo do Badenfurt, por exemplo, dividiu o fluxo e a frota de automóveis que entravam em Blumenau pelos bairros ao norte (através da BR-470) e ao leste (pela Via Expressa). Parte dessa frota passou então a trafegar pela região oeste, sobretudo pelo bairro Velha, que até então não havia recebido ajustes e adequações para conviver com essa nova realidade de congestionamentos e conflitos em suas vias, uma vez que mais de 20 mil automóveis passaram a trafegar diariamente pelo complexo, a maioria deles em direção à região central de Blumenau (Pires, 2024).

Entre 2000 e 2010, antes mesmo da inauguração do complexo, a população do bairro Velha havia crescido 17,93%, enquanto o aumento no número de domicílios com rendimento superior a 10 salários mínimos foi ainda mais significativo, de 67,65%. O bairro, que já concentrava o maior número de famílias de alta renda da região oeste em 2000 (25% do total das famílias com rendimento superior a 10 salários mínimos), teve esse percentual elevado para 31,34% em 2010, o que indica uma tendência de maior concentração das camadas de mais alta renda em seu território (IBGE, 2000, 2010).

Ainda na Velha, a obra de ampliação e duplicação da rua Humberto de Campos. Funcionando como porta de entrada da região oeste para a região central e vizinha não apenas ao Centro, mas também ao Parque Vila Germânica, a obra da Humberto de Campos foi parcialmente inaugurada em 2014 e finalizada oficialmente apenas em 2019, consumindo mais de R$65,64 milhões dos cofres públicos, o que corresponde a quase um quarto (23,59%) do total investido pela Semob no município em um período de quase dez anos. Outro investimento viário significativo efetuado na região oeste, iniciado em 2019 e finalizado em 2020, foi a reforma da rua General Osório, que conecta a rua Humberto de Campos com o Complexo do Badenfurt e custou mais de R$17 milhões (Pires, 2024).

Essas três obras viárias – o Complexo do Badenfurt, a rua Humberto de Campos e a rua General Osório – formaram um grande corredor em direção ao Centro (Ver Figura 5), que certamente contribuiu para diminuir o tempo de deslocamento entre as regiões oeste e central de Blumenau, abrindo frentes para o capital imobiliário e favorecendo a acessibilidade dos moradores e a expansão das ofertas de locação de curta duração pelo Airbnb no município.

Ao analisar a percepção dos usuários sobre a plataforma do Airbnb, Silva, Barbosa e Farias (2020, p. 396) argumentam sobre a ampliação do consumo dos locatários, “que ocorre em decorrência do maior acesso a esses serviços [o fácil acesso às áreas melhor equipadas das cidades] e da possibilidade de reduzir custos”. Em Blumenau, essa redução não vem apenas com os custos, visto que as ofertas do Airbnb estão concentradas próximas às áreas turísticas e comerciais, como também no tempo de deslocamento, visto que há, muitas vezes, a possibilidade do deslocamento a pé. Para Villaça (1998), é dessa acessibilidade que depende a possibilidade de viver nas cidades. Nos deslocamentos, as pessoas despendem energia e perdem tempo, sendo que “a primeira pode ser recuperada”, já “o segundo, porém, é irrecuperável”, e este último é quem determina a estruturação do espaço urbano (Villaça, 1998).

A concentração e a localização dos investimentos viários mais significativos em Blumenau evidenciam que são as elites que, com seu grande poder político, atraem para si os maiores investimentos e as melhores infraestruturas viárias, o que lhes permite otimizar o seu tempo de deslocamento. Portanto, são as elites as privilegiadas no espaço intraurbano, pois dominam a produção do espaço. Além disso, o mercado imobiliário também sai como ganhador na disputa por essas localizações e, consequentemente, seus incessantes investimentos públicos, visto que, “em virtude do aumento da acessibilidade ao centro da cidade, aqueles terrenos adjacentes [aos grandes investimentos viários] trarão economia de transportes a seus eventuais ocupantes” e “seus valores se alterarão e seus proprietários embolsarão essa valorização” (ibid., p. 80).

Conforme dados da Tabela 3, o bairro Velha foi, tanto em 2021 quanto em 2022, o mais procurado no município, tanto para aluguel quanto para moradia, o que pode ser explicado pela sua infraestrutura, que vem recebendo, como vimos, significativos investimentos públicos no sistema viário, otimizando o tempo e os custos com deslocamentos daqueles que vivem na área. A maior busca pelo bairro Velha certamente também pode ser explicada pela sua concentração de imóveis disponibilizados no Airbnb, assim como os bairros Vila Nova e Água Verde, vizinhos à Velha e muito próximos ao Parque Vila Germânica. Outros bairros centrais, como a Itoupava Seca, Vila Nova e Victor Konder, que abrigam grandes indústrias como a Cremer, Teka, Altona e a Universidade Regional de Blumenau (Furb) (ver Figura 6), também foram bastante buscados para compra ou aluguel, segundo a plataforma de imóveis Datazap+ (Datazap, 2022).

Tabela 3
– Bairros mais procurados para aluguel e compra de imóveisem Blumenau em 2021 e 2022

Figura 6
– Principais investimentos públicos e distribuição espacial do Airbnb em Blumenau

Segundo Schor (2017), a orientação de plataformas como Airbnb determina a sua necessidade de expansão para maximização dos lucros. Essa expansão intencional tem maior potencial de gerar impactos urbanos e o mercado imobiliário tem grande participação nesse processo. É esperado, então, conforme a matriz proposta pela autora, que o avanço da plataforma resulte em impactos negativos nas cidades, principalmente em função da sua orientação por fins lucrativos. Em Blumenau, os bairros onde se concentram os imóveis disponíveis no Airbnb são também os bairros que apresentaram maior elevação no valor do m2 entre 2019 e 2022. Enquanto o valor do m2 cresceu em média 5,97% no país, em Blumenau esse percentual foi significativamente maior, de 15,29% (Datazap, 2022).

Corroboram-se, portanto, as colocações de Villaça (1998, p. 359), de que “o homem atua sobre o tempo para reduzir o espaço, ao mesmo tempo e pelo mesmo processo que atua sobre o espaço para reduzir o tempo”, e essa produção e consumo do espaço urbano “nada mais é, em última instância, do que a produção e consumo de acessibilidades, ou seja, de localizações”. Além de se apresentar como uma cidade segregada, com as camadas populares residindo nas periferias e as camadas de média e alta renda predominando na região central e nos bairros vizinhos a ela, como a Velha e a Ponta Aguda (Sugai et al., 2022; Pires, 2024), ficou evidente que em Blumenau plataformas como o Airbnb “se incorporam em locais-chave de troca informacional, [a região do Parque Vila Germânica, por exemplo] enquanto permanecem suficientemente desincorporadas material e organizacionalmente para evitar responsabilidade significativa” (Graham, 2020, p. 456; tradução nossa), ou seja, se eximem do seu papel no processo de produção desigual do espaço urbano. Assim como Von Hippel (2005) havia identificado que historicamente no planeta não há uma “democratização da inovação”, em Blumenau não há uma democratização na distribuição dos investimentos públicos viários.

A concentração e a localização dos investimentos viários, sobretudo os mais recentes, produzidos em Blumenau, evidenciam que não há no município uma democratização na distribuição dos investimentos públicos e que “são as elites que, com seu grande poder político, atraem para si os maiores investimentos e as melhores infraestruturas” (Pires, 2024, p. 179), consequentemente otimizando o seu tempo de deslocamento. Esse processo, junto à cartografia apresentada, além de evidenciar a captura do Estado pelas elites e estas como condutoras do processo de produção capitalista do espaço, revela que a mercantilização do espaço ocorre nas áreas dominadas pela população de mais alta renda, onde elas não apenas residem como também possuem imóveis disponibilizados para aluguel, agregando seu processo de acumulação e agudizando as desigualdades socioespaciais.

Borghys et al. (2020), como alternativa para o enfrentamento das desigualdades promovidas pela mercantilização do espaço, apostam no modelo de cooperação pautado na integração de quatro agentes: universidade, indústria, governo e sociedade. No contexto da periferia do capitalismo, como o brasileiro, as desigualdades são ainda maiores, o que exige análises diferenciadas, ainda que em Blumenau, cuja estruturação intraurbana se deu induzida pela industrialização e pelo advento do automóvel, se alertasse, desde o fim do século XX, para a importância da intersetorialidade no planejamento urbano, envolvendo universidade, indústria, sociedade e Estado (Siebert, 1999).

Como evidencia a Figura 6, tanto a indústria quanto a universidade marcam significativa presença na região central de Blumenau ou nos bairros vizinhos a ela. Além das camadas de alta renda, essas áreas também abrigam grandes indústrias, como a Cremer, Teka e Eletro-Aço Altona, assim como a Universidade Regional de Blumenau e o centro turístico, representado pelo Parque Vila Germânica. É também onde se concentram as ofertas do Airbnb e outras formas de hospedagem, como os hotéis. Há, portanto, uma notável presença não apenas do Estado nos bairros centrais, representada pelos investimentos públicos viários, como também do capital industrial e de centros acadêmicos de influência regional. O mesmo, entretanto, não é observado nas áreas periféricas e populares, que apresentam dados socioespaciais e econômicos significativamente inferiores aos dos bairros centrais (Pires, 2024), além de não se constituírem como zonas turísticas, e, portanto, são providas de pouquíssimos hotéis e Airbnb.

Nota-se, portanto, que o direito à cidade, a partir do qual a cidade deveria acontecer como prioridade do valor de uso e não de troca, fica ainda mais comprometido com o surgimento do urbanismo de plataforma, que, caminhando de mãos dadas com a classe dominante e contando com o apoio do Estado, se apropria das benesses por este promovido que, em uma sociedade democrática, deveriam ser distribuídas de forma igualitária. Há, portanto, um conflito direto entre o urbanismo de plataforma, representado pelo Airbnb, e o direito à cidade, ou seja, o direito à vida urbana.

São diversos fatores que impactam positivamente na qualidade da vida urbana nos bairros centrais onde há presença do Airbnb, como os parques turísticos, a concentração de investimentos em infraestrutura viária e melhores condições de acessibilidade e tempo de deslocamento intraurbano. É onde o Estado se faz mais presente, sobretudo quando comparado com os bairros periféricos, onde os investimentos públicos são muito menores, resultando em desigualdades e segregação socioespacial. Os usuários da plataforma, em sua maioria, serão certamente beneficiados, pois estão alocados nas melhores localizações de Blumenau. Os impactos dessa desigual distribuição de investimentos, conforme Pires (ibid.), são mais sentidos pelas camadas populares, que predominam nas regiões norte, sul e extremo oeste da cidade e acabam tendo seus tempos e custos de deslocamento significativamente ampliados, sobretudo em uma cidade onde o número de automóveis é superior a 280 mil, bastante elevado para um município com pouco mais de 360 mil habitantes.

Considerações finais

As análises elaboradas neste artigo fundamentam-se na compreensão do urbanismo de plataforma como um desdobramento socioespacial do sistema capitalista no contexto da sociedade de plataforma e do neoliberalismo. De um lado, a partir de Blumenau e considerando suas especificidades urbanas, políticas e socioespaciais, foram identificados aspectos gerais dessa relação: processos associados à produção de desigualdades socioespaciais a partir da distribuição desigual dos investimentos públicos viários, que evidenciou a maior presença do Estado nos bairros onde o Airbnb se faz mais presente. De outro lado, foi percebida a ausência do Estado nas áreas periféricas e populares, onde o Airbnb existe, mas de forma significativamente menor.

Algumas hipóteses foram levantadas de modo a explicar a localização e concentração espacial do Airbnb em Blumenau: não há, necessariamente, estratégias concretas de localização dos proprietários dos imóveis ofertados pelo Airbnb em Blumenau, e sim uma concentração de imóveis por parte da classe dominante nas áreas centrais, que disponibilizam seus imóveis ociosos na plataforma. Presume-se, assim, que não há, ou são mínimos os conflitos e disputas, sobretudo relacionadas aos investimentos públicos viários, entre as localizações das ofertas de Airbnb e das camadas de alta renda, pois elas acontecem na mesma região intraurbana.

Os resultados alcançados, ainda que restritos apenas a uma parcela da produção científica desenvolvida a respeito do Airbnb e à experiência de uma cidade turística e industrial de porte médio, colaboram para o entendimento da relação da plataforma com formulações teóricas presentes em estudos urbanos da atualidade, bem como ampliam os caminhos de investigação sobre o tema, destacando a importância de considerar os fatores localização e acessibilidade do Airbnb nos estudos que investigam os impactos da plataforma no espaço intraurbano.

Ao capturar o Estado e atrair diretamente para suas áreas de interesse a maioria dos investimentos públicos efetuados no sistema viário, a classe dominante também articula, ainda que indiretamente, as benesses desses investimentos aos imóveis disponibilizados na plataforma Airbnb, uma vez que ambos – os imóveis disponíveis no Airbnb e a moradia das camadas de mais alta renda – predominam na mesma área intraurbana. Portanto, tanto os moradores dos bairros centrais quanto os usuários do Airbnb serão beneficiados e terão seus custos e tempo de deslocamentos reduzidos, especialmente se considerarmos a significativa concentração de equipamentos e serviços urbanos na região central de Blumenau.

Surgem então, a partir das análises apresentadas, inquietações a respeito dos impactos do Airbnb no município para além das suas implicações nas dinâmicas intraurbanas: está havendo um processo de gentrificação em Blumenau? O turismo, mesmo ocorrendo majoritariamente no mês de outubro, e a concentração dos investimentos públicos viários estão aumentando os custos de vida na cidade? Estaria o Airbnb contribuindo para a redução de oferta de imóveis para aluguel convencional e ampliando o aluguel de curtas temporadas? Se essa conversão, como vimos, aumenta a lucratividade e a especulação imobiliária, e os imóveis disponibilizados pelo Airbnb em Blumenau estão nas áreas que mais valorizam com o tempo e recebem os maiores investimentos públicos viários, as evidências nos indicam que sim.

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  • Editores:
    Lucia Bógus e Luiz César de Queiroz Ribeiro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    Jul 2025

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2024
  • Aceito
    2 Abr 2025
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