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Apresentação

O capitalismo atravessa, desde os anos 1970, uma crise global expressa pela combinação entre baixo crescimento da economia mundial, sucessivas bolhas especulativas, explosão em diversas escalas das desigualdades sociais entre os muitos ricos e o restante da população, fragilização da função regulatória dos Estados Nacionais, entre outros traços. A hoje famosa crise das hipotecas subprimes de 2007-2008, iniciada nos Estados Unidos e tornada global, vem suscitando nos meios acadêmicos o debate sobre a vigência de tendências à financeirização do capitalismo expressas pela emergência de um padrão sistêmico de acumulação de riqueza baseado em endividamento, liquidez, securitização e rentismo que penetra profundamente na economia, indo além da exacerbação do tradicional bancário e desencadeando efeitos societários mais gerais. A literatura vem apontando como carro-chefe dessa transformação o desenvolvimento de uma indústria financeira global com capacidade de gerar novas mercadorias baseadas em títulos e dívidas, decorrente do acúmulo da sua capacidade de articular mercados creditício, de capitais e de derivativos.

O tema da financeirização penetrou nos meios acadêmicos ganhando, pouco a pouco, importância na agenda de pesquisa dedicada aos estudos urbanos. Sem pretender construir o mapeamento sistemático, podemos identificar alguns eixos de análise presente na literatura já bastante robusta que trata do tema denominando a financeirização urbana.

Em primeiro lugar, algumas pesquisas vêm buscando entender as condições criadas pela indústria financeira para tornar viáveis novas modalidades e condições de circulação do capital no meio ambiente construído, setor que historicamente apresentava como limite o fato de implicar na imobilização de longa duração de grandes massas de capital fixo. As inovações financeiras decorrentes da mobilização de investidores institucionais, como fundo de pensão, fundos de investimentos, fundos imobiliários, companhias de seguros, têm permitido a criação da liquidez para investimento de capital imobiliário, mudando a intensidade, a natureza e a escala das transformações do meio ambiente construído.

Outro eixo da pesquisa tem buscado lançar luz nas novas ondas de privatização dos serviços urbanos impulsionadas pela financeirização, não apenas pela maior abundância de capital-dinheiro disponível, mas também pelas possibilidades de integrar esse setor na gestão de portfólios de negócios dos grandes grupos econômicos, forma organizacional típica do capital financeirizado. Se antes a privatização retirava a provisão dos serviços urbanos do âmbito político-institucional dos serviços públicos e dos direitos sociais para inseri-los na rentabilidade capitalista, as novas ondas de privatização submetem a sua gestão às condições que regulam o movimento do capital no mercado financeiro.

Um terceiro eixo refere-se à proliferação das operações urbanas baseadas nas parcerias público-privadas como padrão de planejamento da cidade, nas quais o financiamento se funda na geração e valorização de instrumentos próprios do mercado de capital, como os conhecidos Cepacs. O desenho urbanístico e arquitetônico dessas operações assim como as escolhas dos lugares, dos atores, da estratégia de realização ficam subordinados a estudos da modelagem financeira que assegure a conexão entre valorização imobiliária dos empreendimentos projetados e a valorização dos ativos financeiros criados para circularem no mercado de capitais.

Por fim, podemos identificar o eixo da pesquisa sobre a financeirização urbana que analisa a conexão entre a financeirização e as finanças públicas das municipalidades, expressa nas práticas de venda antecipada de receitas futuras, oriundas da cobrança de tributos sobre a propriedade imobiliária incidente nas zonas mais valorizadas da cidade, condicionando os governos a concentrarem os investimentos urbanos nesses pedaços.

Se a hipótese da financeirização urbana é evidenciada na literatura como fenômeno em curso, com fortes tendências a universalizar-se em razão da mundialização da indústria financeira, ela parece se difundir de forma variegada na escala do sistema-mundo capitalista. Por essa razão, a chamada para o presente número de Cadernos Metrópole foi formulada com a intenção de sugerir reflexões que criem as bases teóricas e empíricas necessárias à compreensão de como, no Brasil e na América Latina, estão se constituindo as conexões entre financeirização e a difusão do urbanismo liberal. Nesse contexto periférico, o traço distintivo central que emerge é, de um lado, processos de destruição criativa espacial e institucional que anteriormente embebiam a cidade em mecanismos de proteção anexos ao mercado, contramercados ou mitigadores dos efeitos desarticuladores do mercado; e, de outro lado, a constituição de novos marcos regulatórios e formas de governança urbana que buscam colocar no centro da política urbana a “disciplina de mercado”.

O conjunto dos artigos selecionados foi um interessante mosaico de reflexões que podem ser agrupadas em dois conjuntos: o primeiro dedicado a propor a reflexão teórica e conceitual sobre os temas da financeirização e da sua tradução em modelos liberais de urbanismo. O segundo, reunindo artigos que apresentam análises de processos concretos de transformações urbanas que traduzem esses dois processos.

Assim, no artigo Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal: reflexões a partir do enfoque dos ciclos sistêmicos de acumulação e da teoria do duplo movimento, Luiz César de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz propõem uma reflexão conceitual sobre os processos de financeirização do capitalismo e de mercantilização e suas implicações no atual ciclo de reestruturação espaço-temporal a partir das teorias do sistema-mundo capitalista e da economia política das relações internacionais. Já, no artigo Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro, Jeroen Klink e Marcos Barcellos de Souza sistematizam a literatura internacional e nacional e analisam a relevância do debate para o campo do planejamento urbano, priorizando as questões brasileiras. Ainda nesse grupo de textos conceituais, insere-se o artigo A metrópole entre o neoliberalismo e o comum: disputas e alternativas na produção contemporânea do espaço. Nele, João Bosco Moura Tonucci Filho e Felipe Nunes Coelho Magalhães propõem uma sintética reflexão teórica acerca de como as contradições da produção do espaço da metrópole contemporânea podem ser compreendidas a partir do embate entre dois polos políticos e teóricos contrapostos – o do neoliberalismo e do bem comum. Para tanto, o trabalho explora injunções e cruzamentos geo-históricos entre neoliberalismo e metrópole, assim como os processos de endividamento e financeirização da cidade.

No segundo grupo de artigos, Paula Freire Santoro e Raquel Rolnik, em Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo, exploram o conceito de complexo imobiliário-financeiro na análise ainda preliminar das conexões globais-locais da financeirização na compreensão de uma nova frente de expansão imobiliária junto ao Rodoanel. Esse tema é novamente explorado no artigo de Laisa Eleonora Maróstica Stroher, Operações urbanas consorciadas com Cepac: uma face da constituição do complexo imobiliário-financeiro no Brasil?, no qual a autora apresenta uma visão crítica panorâmica sobre a literatura acerca da implementação das operações urbanas consorciadas (OUCs) com Cepacs no Brasil.

Mudando de objeto e de continente, Luís Mendes, em Gentrificação turística em Lisboa: neoliberalismo, financeirização e urbanismo austeritário em tempos de pós-crise capitalista 2008-2009, propõe pensar a relação entre financeirização da produção imobiliária e prática do urbanismo neoliberal na explicação das tendências da gentrificação turística da cidade de Lisboa na última década. Já Suely Ribeiro Leal, em A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras: a crise do Estado diante da crise do mercado, apresenta a reflexão sobre a hipótese da retração das tendências da expansão da acumulação urbana como força de transformação das cidades brasileiras em razão dos impactos da crise mundial de 2008 sobre o nosso mercado imobiliário.

Centrando a atenção mais em aspectos institucionais, o presente número apresenta três interessantes reflexões sobre condições que favorecem ou dificultam o avanço de políticas públicas orientadas pela financeirização urbana e a mercantilização da cidade. Em A política pública para os serviços urbanos de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil: financeirização, mercantilização e perspectivas de resistência, Ana Lucia Britto e Sonaly Cristina Rezende analisam como foram criados marcos institucionais favoráveis à financeirização e à mercantilização do serviço de saneamento em razão das ambiguidades práticas e de concepção da política de abastecimento de água e esgotamento sanitário durante as gestões do Partido dos Trabalhadores entre 2007 e 2014. Por outro lado, Nelson Rojas de Carvalho, em Urban politics in Brazil and the US: state, economic actors and local development scenarios, propõe interessante reflexão comparativa sobre diferentes padrões de articulação entre mercado e estado em unidades subnacionais no Brasil e nos EUA. O artigo enfatiza que a atrofia organizacional dos atores econômicos no Brasil, em nível local, associada à presença das gramáticas políticas do clientelismo e corporativismo nos governos municipais colocam-se como desafios analíticos para o uso de teorias urbanas inspiradas pela economia política norte-americana, como o regime urbano e as teorias de máquinas de crescimento.

Por último, o dossiê deste número de Cadernos Metrópole publica a reflexão proposta por Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson e Daniel Santana Rivas, em La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social en las áreas metropolitanas de Valparaíso y Santiago (1990-2014): ¿hacia la construcción idelógica de un rostro humano?, sobre como o neoliberalismo em torno da política de habitação social, praticada nas cidades chilenas de Valparaíso e Santiago, no período 1990-2014, constituiu discursos humanistas que atuam como o que os autores chamam ideologias espaciais legitimadoras da expansão da produção imobiliária capitalista e mercantilizadora da cidade.

Fora do dossiê temático, publicamos ainda o artigo de Sidney Piochi Bernardini, Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística instituída nos municípios da Região Metropolitana de Campinas entre 1970 e 2006, que examina as consequências da contradição entre a autonomia municipal e a necessidade da regulação urbanística do território metropolitano, tomando o caso da Região Metropolitana de Campinas–SP. Os dois últimos artigos que compõem este número tratam de temas e questões que certamente estão fora da concepção do urbanismo liberal impulsionado pela financeirização. Marina Simone Dias e Milton Esteves Júnior, em O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano em: Copenhague, Barcelona, Medellín e Curitiba, apresentam uma perspectiva comparativa, envolvendo as cidades de Copenhague, Barcelona, Medellín e Curitiba, sobre o papel de um urbanismo dos espaços públicos baseado em valores de liberdade, diversidade e lazer poder gerar conexões virtuosas entre práticas sociais, cultura urbana e afirmação da cidadania. Por outro lado, Arturo Orellana e Catalina Marshall, em La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida en las ciudades metropolitanas en Chile, usando informações de uma pesquisa empírica em cidades chilenas, refletem sobre os desafios na promoção da qualidade de vida na escala metropolitana, confrontando as alternativas via os investimentos públicos municipais e os investimentos privados.

Luiz César de Queiroz Ribeiro
Orlando Alves dos Santos Jr.
Organizadores

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
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