Open-access Desafios da participação cidadã: sobre o perfil institucional dos conselhos municipais brasileiros

Resumo

O objetivo deste trabalho é entender as mudanças e permanências no perfil institucional dos conselhos municipais no Brasil e analisar os fatores que influenciaram esses processos. Analisamos os bancos de dados do IBGE/Munic e construímos o Indicador de Perfil Institucional dos Conselhos Municipais (IPICM), adaptado do trabalho de Almeida et al. (2021). A partir de análise quantitativa, verificamos o fortalecimento no perfil institucional dos conselhos, relacionado, por um lado, a um processo de convergência das instituições participativas nos municípios e, por outro, da influência de variáveis como o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal e o Índice de Gini, a população, a ideologia política dos prefeitos e o número de Organizações da Sociedade Civil (OSCs). Apesar desse avanço, percebemos que a distribuição dessas instituições ainda reproduz padrões de desigualdade territorial entre os municípios brasileiros.

Palavras-chave
perfil institucional; conselhos municipais; desigualdades; municípios; participação

Abstract

The objective of this work is to understand the changes and continuities in the institutional profile of municipal councils in Brazil and analyze factors that have influenced these processes. We analyzed the IBGE/Munic databases and constructed the Municipal Councils Institutional Profile Indicator (IPICM), adapted from the work by Almeida et al. (2021). Based on descriptive and inferential statistics, we observed the strengthening of the councils’ institutional profile, related, on the one hand, to a process of moderate convergence of participatory institutions in the municipalities and, on the other hand, to a process influenced by variables such as the Municipal Human Development Index and the Gini Index, population, mayors’ political ideology, and the number of Civil Society Organizations. Despite this progress, we perceive that the distribution of these institutions still reproduces patterns of territorial inequality between Brazilian municipalities.

Keywords
institutional profile; municipal councils; inequalities; municipalities; participation

Introdução

A partir da Constituição Federal de 1988, inúmeros instrumentos foram incluídos na rotina da gestão pública com o objetivo de democratizar o Estado brasileiro e possibilitar maior participação cidadã. Podemos citar, entre os mais destacados, as audiências, as conferências, os Orçamentos Participativos (OPs) e os conselhos de políticas públicas. Desses esses formatos, o mais presente em território nacional são os conselhos, que foram alvo de inúmeros estudos, especialmente nas duas últimas décadas (Almeida, Cayres e Tatagiba, 2015).

Buvinich (2014), Lavalle e Barone (2015) e Almeida et al. (2021) mostram que os conselhos de educação, saúde, assistência social e criança e adolescente se tornaram quase universais nos municípios brasileiros, pois foram induzidos pelas legislações federais a partir da gestão de fundos setoriais. Porém, o mesmo não é válido para os conselhos de outras áreas, visto que os municípios desfrutam de ampla liberdade para sua criação. Nesse sentido, a literatura acadêmica postula que a expansão dos conselhos se caracteriza por desigualdades territoriais (Antonietto e Severi, 2016; Lavalle e Barone, 2015), em que municípios menores e mais pobres apresentam diferenças significativas quando comparados com municípios maiores e mais ricos. Tal fato implica na necessidade de compreender e caracterizar essas diferenças da participação política no Brasil.

Lavalle, Voigt e Serafim (2016) apontam que uma primeira geração de estudos sobre conselhos, ainda na década de 1990, era otimista sobre a possibilidade de democratização via participação, pois “partiram de expectativas exigentes” (p. 614) e sinalizaram a existência de desigualdades no interior desses espaços. Uma segunda geração, a partir dos anos 2000, desenvolveu diagnósticos “mistos”: os conselhos permitiam certo protagonismo para os atores da sociedade civil, mas em condições periféricas para influenciar a administração pública. Apesar de contribuições importantes para o acúmulo de conhecimento sobre o tema, ainda sobram lacunas, uma vez que:

O notável avanço na produção de conhecimento sobre os conselhos foi preponderantemente de índole qualitativa [...] a caracterização dos alcances e das limitações de tais instituições, frequentemente baseada em estudos de caso, assumiu o status de conjecturas ou de implicações plausíveis – porque derivadas de diagnósticos ricos –, mas sem fundamentos sólidos para permitir generalizações. (Ibid., p. 617)

Nos últimos anos, a crescente disponibilização de dados públicos possibilitou o desenvolvimento de análises mais abrangentes, com maior capacidade de generalização sobre o tema da participação conselhista (Almeida et al., 2021; Buvinich, 2014; Lavalle e Barone, 2015). Apesar dos avanços realizados por esses estudos, a análise dos instrumentos de participação cidadã ainda demanda esforços no entendimento de suas diferenciações internas e ao longo do território nacional, bem como os caminhos e descaminhos para o seu fortalecimento. Também é importante a constante reflexão sobre o tema, uma vez que, nos últimos anos, o Brasil observou ações contrárias às instituições participativas por parte de governos conservadores, o que ensejou a análise sobre desinstitucionalização da participação em nível federal (Bezerra et al., 2024).

Inseridos nessa agenda, buscamos investigar as mudanças e permanências no perfil institucional dos conselhos nos municípios do País nos últimos anos, bem como analisar os fatores que influenciaram esse processo. Entendemos por perfil institucional as características mais gerais dos desenhos formais dos conselhos nos municípios, como sua densidade, suas regras e competências (Almeida et al., 2021). Atualmente, parte dessas características é passível de visualização e operacionalização por meio de variáveis disponíveis na Pesquisa de Informações Básicas Municipais (IBGE/Munic). Mais do que analisar um ponto temporal, buscamos comparar o ano de 2009 e os anos de 2019/2020/2021 para verificar também a distribuição geográfica das mudanças observadas, o que confere um caráter inovador a este trabalho, uma vez que poderemos atualizar o diagnóstico sobre as persistências ou alterações nos padrões de desigualdades territoriais da participação conselhista, conforme trabalhos anteriores (Lavalle e Barone, 2015). A tabulação dos dados para os anos de 2009 e 2019/2020/2021 é explicada pela presença de restrições na disponibilidade das informações, sendo tabulados os dados disponíveis para todos os anos em questão.

Na primeira parte do texto abordamos os estudos sobre conselhos a partir das características dessas instituições no Brasil. Após, apresentamos a metodologia, que se trata de estatísticas descritivas e inferenciais a partir dos bancos de dados da Pesquisa de Informações Municipais (IBGE/Munic, 2009, 2019, 2020, 2021) e da elaboração de um indicador de perfil institucional para os conselhos municipais, adaptado a partir da proposta de Almeida et al. (2021). A análise está subdividida em uma primeira parte, na qual analisamos os dados e sua distribuição ao longo do tempo e do espaço, e em uma segunda parte, em que mobilizamos estatísticas inferenciais para testar algumas hipóteses sobre os condicionantes do perfil institucional dos conselhos e sua relação com a reprodução de desigualdades. Concluímos indicando que houve um fortalecimento no perfil institucional dos conselhos ao longo do território nacional, mas esse avanço ainda é marcado por desigualdades regionais.

Participação e perfil institucional dos conselhos

Conselhos são instituições vinculadas ao poder executivo com o objetivo de ampliar a participação e a representação da sociedade civil organizada, de forma permanente e interativa, nos diferentes aspectos do ciclo de políticas públicas (Wampler, 2011). Mesmo que estejam vinculados ao Executivo, os conselhos também podem ser vistos como instituições híbridas (Avritzer e Pereira, 2005), uma vez que operam no espaço público ao captarem as demandas da sociedade civil para fomentar maior atenção dos agentes estatais em distintas áreas de política pública. Atualmente, no Brasil, eles fazem parte de um ambiente político, econômico e social mais amplo, composto por uma arquitetura de instituições que restringem e potencializam sua capacidade de atuação na medida em que as diferentes arenas de participação podem atuar de maneira isolada ou estarem mais conectadas entre si em áreas específicas de política (Lüchmann, 2020). Essa arquitetura, composta por conferências, audiências, orçamentos participativos, ouvidorias, entre outros instrumentos, é entendida pela literatura a partir do conceito de instituições participativas (Wampler, 2011), sendo que a conjugação e a articulação dessas diferentes interfaces permitem formas menos circunstanciais e mais estruturadas de ampliação da participação cidadã na administração pública (Lüchmann, 2020).

Nos últimos anos, presenciamos um acúmulo importante de pesquisas sobre os conselhos que ampliou nosso conhecimento e questionou a relação linear e automática entre participação conselhista e políticas públicas mais efetivas ou democráticas, uma vez que “não se deve esperar, a partir da sua mera presença e atuação, transformações dramáticas nos resultados observados” (Wampler, 2011, p. 152). Hoje entendemos melhor tanto as características da participação quanto os diferentes desenhos institucionais, as fraquezas, as potencialidades dessas instituições e suas trajetórias em diferentes áreas de políticas públicas (Almeida, Cayres e Tatagiba, 2015).

O levantamento feito por Almeida, Cayres e Tatagiba (2015) aponta a existência de uma multiplicidade de enfoques na análise dos conselhos, com distintos níveis de generalidade e ampla diversificação teórica e metodológica. No entanto, a onda mais recente de investigações se caracteriza por uma análise mais pragmática da prática participativa, em comparação com as esperançosas décadas anteriores (ibid.). Os estudos realizados nos anos 1980 e 1990 destacavam potencialidades dessas instituições que, muitas vezes, não vieram a se concretizar, a partir de enquadramentos enviesados teoricamente e unicamente baseados em estudos de caso (Lavalle e Szwako, 2015). Desse modo, as pesquisas das últimas décadas têm sido mais parcimoniosas sobre as instituições participativas, indicando a necessidade de análises mais panorâmicas e conjunturais do fenômeno conselhista no Brasil:

[...] ainda carecemos de uma visão do conjunto que nos mostre quais são as condições de funcionamento dessas instâncias nas esferas subnacionais e em quais aspectos de suas atribuições elas variam conjuntamente pelo território brasileiro, a despeito das significativas diferenças dos contextos locais em que operam. (Almeida et al., 2022, p. 392)

Em estudo pioneiro sobre o tema, Buvinich (2014) sinalizou a existência, em 2009, de 43.156 conselhos municipais.1 Nesse ano verificou-se que os conselhos de Assistência Social, Alimentação Escolar, Saúde e Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) já eram quase universalizados, cobrindo mais de 94% do território brasileiro. Geograficamente, o maior percentual de conselhos encontrava-se no Sul e no Sudeste, com instituições mais antigas, e os menores no Norte e Nordeste, com instituições mais recentes. A maioria dos conselhos municipais era paritário, com equilíbrio na representação dos diferentes segmentos da sociedade, sendo metade dos integrantes do setor público e a outra metade da sociedade civil. A região Sul é aquela com menor presença de conselhos paritários, e o Nordeste aquela com maior número de conselhos paritários. Em nível federal, Buvinich (2014) destaca a ampliação recente dessas instituições, uma vez que dos 36 conselhos nacionais analisados pela autora, 44% foram criados entre os anos de 2003 e 2010, 38% entre 1990 e 2002 e somente 16% antes de 1990.

Esse crescente e expressivo número de conselhos no Brasil explica sua importância para as gestões públicas bem como sua centralidade nos estudos acadêmicos de diferentes áreas. Nesse sentido, o trabalho de Lavalle e Barone (2015) evidencia o crescimento dessas instituições, na década de 1990 e nos anos 2000, como uma segunda geração de Instituições Participativas (IPs) que sucedeu os orçamentos participativos, dado que, antes de 1988, “praticamente inexistiam conselhos” (ibid., p. 56). A partir de então, concorrem três padrões de evolução dos conselhos no País: 1) universalização; 2) expansão média e desigual; 3) expansão baixa e desigual, que engloba a maior parte dos conselhos. Nessa argumentação reside, sobretudo, uma preocupação acerca da reprodução das desigualdades ao longo do território, fruto da expansão dos conselhos, principalmente em municípios mais prósperos, com melhores condições socioeconômicas e índices de desenvolvimento humano (IDHM).

Almeida et al. (2021) apontam que os conselhos de educação, saúde, assistência social e criança e adolescente são os mais antigos e presentes em quase todos os municípios brasileiros. Eles são universalizados, paritários e deliberativos e encontram-se entre os mais ativos (ibid.), posto que foram induzidos pelas legislações federais a partir da gestão de fundos setoriais. Lavalle e Barone (2015) indicam que os conselhos municipais de saúde se expandiram tanto em municípios com alto IDH quanto em municípios com baixo IDH, entre 1990 e 1996. Já os conselhos de educação e da criança e do adolescente, inicialmente, expandiram-se de forma mais lenta e mais focados nos municípios com maior IDH. Após esse primeiro ciclo, a partir dos anos 2000, ocorreu uma forte expansão, que cobriu a maior parte dos municípios brasileiros.

Um segundo grupo de conselhos foi criado no final dos anos 1990 e alcançou média expansão, o caso dos conselhos do idoso, da habitação, da cultura e do meio ambiente. Na época da pesquisa, Lavalle e Barone (2015) indicam que eram conselhos pouco induzidos, com exceção do conselho de habitação, e estavam mais presentes em municípios com IDH alto. Por último, temos os conselhos considerados de baixa e desigual expansão: “direitos humanos; juventude; direitos da pessoa com deficiência; lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, direitos da mulher, promoção da igualdade racial, segurança pública e segurança alimentar” (Almeida et al., 2021, p. 77).2 Segundo análise de Lavalle e Barone (2015) para o ano de 2009, os municípios com menor IDH quase não dispunham de conselhos dessas áreas, que foram criados somente em municípios com maior IDH. Ao analisarem a indução federal a partir das legislações específicas de cada área e sua relação com a quantidade de conselhos existentes no ano de 2014, Antonietto e Severi (2016, p. 571) explicitam essa contradição:

[...] verificamos um menor número de Conselhos Municipais sobre temas como pessoas com deficiência, mulheres, direitos humanos, juventude, igualdade racial e população LGBTT, que são justamente aqueles voltados às políticas de combate direto à desigualdade e por isso exigiriam maior respaldo institucional para serem efetivos.

Assim sendo, embora a expansão geral dos conselhos seja um fato corroborado pela literatura, trata-se de um processo complexo e multifacetado, que responde a distintos padrões que necessitam de reflexão constante e atualizada da literatura.

Almeida et al. (2021) realizaram um retrato sobre os conselhos gestores no Brasil, para dados da Munic 2013 e 2014, a partir do conceito de força institucional, segundo o qual IPs com melhor funcionamento são aquelas com ampla implementação territorial, estáveis ao longo do tempo e com forte desenho institucional. Ao analisarem os dados de 14 tipos distintos de conselhos municipais disponíveis nos anos selecionados, os autores destacam a universalização dos conselhos induzidos, a média intensidade de alguns e a baixa presença de outros ao longo do território nacional, em sentido semelhante ao apontado por Lavalle e Barone (2015).

Ainda, como forma de explorar a noção de força institucional, Almeida et al. (2021) desenvolveram o Índice do Potencial Participativo dos Conselhos (IPPC), que será central em nosso trabalho e que busca mensurar o perfil institucional e a participação nos conselhos a partir de quatro variáveis: 1) número de conselhos por município; 2) caráter paritário; 3) caráter deliberativo; 4) número de reuniões. Os autores concluem que, para os anos de 2013 e 2014, os municípios de grande porte possuem IPPC alto, enquanto os de médio porte, IPPC médio; a maioria dos municípios de pequeno porte do País apresenta baixo IPPC. A média do indicador, de 0 a 1, ficou em 0,152 – enquanto a média de conselhos por município, considerando os 14 conselhos analisados, é de 6, sendo 4 obrigatórios e mais 2 criados de forma discricionária. Além disso, observaram que o número de reuniões é maior nos conselhos não obrigatórios, enquanto nos obrigatórios e de média capilarização as reuniões ocorrem em menor número. Segundo Almeida et al. (2021), os conselhos de baixa indução federal possuem alta participação em relação aos demais, uma vez que são áreas que mobilizam redes movimentalistas. Ou seja, sua força institucional decorre do engajamento dos seus ativistas, diferentemente dos conselhos mais clássicos que foram induzidos por legislações federais.

Sobre esse engajamento, é necessário mencionar a centralidade do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC – Lei n. 13.019 (Brasil, 2014), que permitiu aos conselhos apresentarem propostas de termos de colaboração com as OSCs para a administração pública, em um processo causal que ainda necessita de maiores esforços de compreensão.

Embora com enfoque nos OPs, o estudo de Fedozzi, Ramos e Gonçalves (2020, p. 1) também procurou entender quais variáveis explicativas favorecem ou dificultam a adoção de IPs e chegaram às seguintes conclusões:

Os resultados indicam que a orientação ideológica, a região geográfica, o desenvolvimento social, a desigualdade econômica e o porte do município interferem nas chances de adoção do OP. Por outro lado, a riqueza econômica relativa e o associativismo não têm impactos significativos.

Diferentemente do que tem sinalizado a literatura sobre conselhos, Fedozzi, Ramos e Gonçalves (2020) indicam maior aderência aos OPs nos municípios do Nordeste, com governos do Partido dos Trabalhadores (PT), com melhores índices socioeconômicos, enquanto o associativismo e a renda não se mostraram variáveis significativas. Apesar das inúmeras diferenças entre os OPs e os conselhos gestores de políticas públicas, os autores apontam elementos essenciais para as análises sobre os condicionantes da institucionalização das IPs no Brasil.

Podemos perceber que a literatura sinaliza distintas configurações institucionais, padrões temporais e territoriais de distribuição dos conselhos ao longo do País (Almeida et al., 2021; Buvinich, 2014; Lavalle e Barone, 2015; Wampler, 2011). Entre as principais características dessa agenda está a tentativa de construção de graus, índices e indicadores para comparar os conselhos e os municípios. As análises apontam aspectos operacionais dos conselhos que indicariam diferenças no perfil institucional, como o ano de criação, a estrutura organizacional, a existência de regimentos internos, a frequência de reuniões obrigatórias e os locais próprios de reunião, as características e a duração dos mandatos dos conselheiros e presidentes, entre outras (Almeida et al., 2022).

Em sentido semelhante, Bezerra et al. (2024) elencam vários aspectos importantes dos desenhos institucionais dos conselhos, como o caráter deliberativo ou consultivo; a designação orçamentária específica; a equipe técnica exclusiva; a definição clara de autoridade e incidência na área de política; o caráter da presidência e a representação paritária com a sociedade civil. Mayka (2019), por sua vez, indica que desenhos institucionais fortes são construídos e adaptados durante o tempo e caracterizados por prerrogativas claras de atuação e de deliberação formal diante de outras instâncias estatais, bem como sanções para o não cumprimento das decisões dos conselhos. Isto posto, Almeida et al. (2021, p. 73) afirmam que “[...] o perfil institucional é um importante preditor da força institucional dos conselhos [...] as regras do desenho institucional são importantes condicionantes de sua efetividade”.

Nossa pesquisa procura contribuir para essa discussão ao atualizar o panorama dos perfis institucionais dos conselhos nos municípios do País, pensando tanto nas mudanças temporais, desde 2009, quanto nas mudanças geográficas que possam ter ocorrido nesse período. Os conselhos são espaços privilegiados para tal operação. Por um lado, situam-se no meio do caminho entre a sociedade civil e os governos, como retrato de movimentos que atingem determinado grau de institucionalidade a partir da própria existência do conselho. Por outro, auxiliam na ampliação dessa legitimidade ao possibilitarem a conexão de uma diversidade de atores, unidos por objetivos comuns e entendimentos compartilhados, considerados legítimos por parte da sociedade. Acreditamos que nosso trabalho possa contribuir para compreender as vulnerabilidades e as potencialidades dessas instituições no País.

Procedimentos metodológicos

Este trabalho utiliza métodos de estatística descritiva e inferencial para analisar os dados da Pesquisa Munic para os anos de 2009, 2019, 2020 e 2021. Trata-se de uma pesquisa que abrange ampla gama de dados demográficos, socioeconômicos e sobre a infraestrutura das gestões municipais. Não obstante, ela exibe limitações, entre as quais cabe pontuar:

  1. defasagem: apesar de ser realizada anualmente, os dados não são disponibilizados em tempo real e, portanto, podem estar desatualizados;

  2. autodeclaração e qualidade da informação: como as informações são fornecidas pelos municípios, alguns podem ter sistemas de registro mais precisos do que outros, podendo resultar em disparidades na qualidade nos dados informados;

  3. subnotificação e subestimação: as informações estão sujeitas à subnotificação e à subestimação devido a problemas de coleta de dados, falta de informações ou resistência dos informantes;

  4. mudanças metodológicas: a pesquisa passa por mudanças metodológicas ao longo das edições, o que dificulta a comparação dos dados.

Cientes dessas limitações, montamos um banco de dados composto por informações extraídas da Munic, com o objetivo de compreender as mudanças no perfil institucional dos conselhos. Essa pesquisa disponibiliza dados com elevada abrangência para a grande maioria dos municípios e para anos distintos, o que possibilita comparações ao longo do tempo e do espaço. O ano de 2009 configura o primeiro ponto no tempo, enquanto os anos de 2019, 2020 e 2021, devido a restrições na disponibilidade dos dados,3 foram agregados para se tornarem o segundo ponto temporal da análise. Encontramos 14 tipos de conselhos, no ano de 2009, que se repetiam nos anos de 2019, 2020 e 2021 (Direitos Humanos, Criança e adolescente, Pessoas com deficiência, LGBTT, Segurança pública e Igualdade racial, tabulados para o ano de 2019; Meio Ambiente, Habitação e Transporte, 2020; e Saúde, Educação, Cultura e Esporte, 2021). O intervalo de tempo de aproximadamente dez anos se explica porque permite comparar os perfis institucionais dos conselhos nos municípios ao longo do tempo. Com isso, amparados na literatura já citada, duas hipóteses principais são verificadas nesse trabalho:

H0: as desigualdades na distribuição dos perfis institucionais dos conselhos ao longo do território nacional se mantiveram no período analisado;

H1: as desigualdades se alteraram com o passar dos anos e deram lugar a uma distribuição mais uniforme dos perfis institucionais dos conselhos.

A partir dessas hipóteses e com base em Almeida et al. (2021) construímos o IPICM:

IPICM ( i , t ) = Cons ( i , t ) + Part ( i , t ) + DEL ( i , t ) (1)

em que IPICMi é o Indicador de Perfil Institucional dos Conselhos Municipais para o município i no ano t; Cons, o número total de conselhos por município; Part , o número de conselhos paritários por município; e DEL , o número de conselhos deliberativos por município.

O IPICM(i,t) foi linearizado com a criação de um caso ideal, o qual assume valor igual a 1,0, se o município possui todos os conselhos analisados, sendo todos paritários e deliberativos, formalmente:

I P I C M ( i , t ) = ( X ( i t ) X ( i , t ) min ) / ( X ( i , t ) max X ( i t ) min ) (2)

A partir disso, procuramos entender as características mais gerais dos dados, como a média de conselhos, os seus diferentes tipos, bem como a média do IPICM(i,t). Ele foi comparado entre as regiões do Brasil, com o objetivo de gerar impressões iniciais sobre as mudanças geográficas dos conselhos nos últimos anos. Assim, o IPICM(i,t) foi elaborado para o ano de 2009, IPICM(i,2009), e para os anos entre 2019 e 2021, IPICM(i,2019). Cabe ressaltar que esse indicador não é capaz de analisar a institucionalização ou o potencial participativo e deliberativo desses conselhos. Devido às suas próprias limitações, que também são limitações dos bancos de dados, ele mensura tão somente o fortalecimento ou o enfraquecimento de aspectos específicos do desenho institucional.4

Por último, estimamos regressões, por meio do Método de Mínimos Quadrados Ordinários, para 4.436 municípios a fim de testar as hipóteses apresentadas, formalmente:

Δ I P I C M i = α 0 + α 1 IPCIM ( i 2009 ) + ( i = 2 ) k α ( 1 + k ) X ( i k ) + ϵ i (3)

em que ΔIPICMi é a variação no IPCIM entre os dois pontos no tempo em análise ((ΔIPICMi= IPCIM (i2009) IPCIM (i2009))); X(i,k) é um vetor composto pelas k variáveis respaldadas na literatura; α0, α1 e αk são os parâmetros a serem estimados e ϵi é o termo de erro. Caso –1 < α1< 0 e seja estatisticamente significativo em nível de confiança de 95%, então o IPICMi convergiu ao longo do período em análise, o que corrobora a hipótese H1, a desigualdade se reduziu com o passar dos anos e conduziu para uma distribuição mais uniforme dos perfis institucionais dos conselhos. As variáveis independentes podem ser vistas no Quadro 1.

Quadro 1
– Variáveis adicionadas na regressão

A explicação para a inclusão de cada uma dessas variáveis encontra respaldo na literatura acadêmica e em determinadas hipóteses formalizadas a seguir:

  • região geográfica: a expansão dos conselhos é caracterizada por desigualdades, com menor institucionalização para os municípios das regiões Norte e Nordeste (Antonietto e Severi, 2016; Buvinich, 2014; Lavalle e Barone, 2015);

  • tempo (IPICM_2009): a posição do município em relação ao indicador, no ano de 2009, está relacionada ao seu crescimento em 2019;

  • IDH-M: a expansão dos conselhos com menor indução federal ocorre com maior força em municípios com indicadores de desenvolvimento humano mais elevados (Lavalle e Barone, 2015);

  • OSCs: o crescimento do perfil institucional ocorre sobretudo por meio do avanço, em direção à universalização, de conselhos de baixa indução, para os quais a presença de redes movimentalistas exerce influência positiva (Almeida et al., 2021);

  • POP: municípios maiores observam melhor indicador de perfil institucional, pois o maior tamanho viabiliza a mobilização e a participação de grupos mais segmentados da sociedade (Antonietto e Severi, 2016; Lavalle e Barone, 2015);

  • Gini: a desigualdade de renda dificulta a participação de parte dos munícipes nas arenas político-representativas, com efeito negativo sobre a institucionalização (Fedozzi, Ramos e Gonçalves, 2020);

  • direita_2012 e direita_2014: a eleição de prefeitos de direita resulta em menor apoio à participação social (Bolognesi, Ribeiro e Codato, 2023).

O tempo e o espaço dos conselhos no Brasil

Inicialmente, cabe destacar que os dados tabulados da Munic evidenciam a existência de 26.009 conselhos em 2009, montante que se eleva para 35.260 conselhos nos anos de 2019-2021, um crescimento expressivo de aproximadamente 35%. Em relação ao número de conselhos por município, a Tabela 1 discrimina o quantitativo geral nos períodos analisados, a diferença entre eles e a categorização do conselho de acordo com a tipologia de Lavalle, Voigt e Serafim (2016).

Tabela 1
– Caracterização dos conselhos em análise – 2009 e 2019-2021

A partir das informações em tela podemos extrair algumas considerações. Como era de se esperar, os conselhos que possuem alta indução por meio de legislações federais (C1) exibiram menores taxas de crescimento, uma vez que já se encontravam universalizados em 2009. O número de conselhos C2, considerados de distribuição média e altamente desigual (Lavalle e Barone, 2015), também se elevou, indicando um movimento de ampliação em direção à universalização. Podemos ver essa tendência no quantitativo dos conselhos de Meio Ambiente (4.375) e da Pessoa Idosa (4.030), por exemplo. A título de comparação, o conselho de Meio Ambiente atinge, no ano de 2020, o patamar do conselho de Educação no ano de 2009 e, dez anos depois, este se encontra praticamente universalizado nos municípios brasileiros. Dessa forma, sobre os conselhos C1, temos um crescimento relativo de 9% e absoluto de 1.398. Já os conselhos do tipo C2 registraram um crescimento de 66%, com a criação de 6.208, enquanto os conselhos do tipo C3 cresceram 101%, com a criação de 1.645. Apesar de serem sensíveis ao ponto de partida, esses dados são úteis, pois indicam diferenças nos padrões de criação desses conselhos e um processo heterogêneo de convergência, sobretudo para os conselhos C3.

Com efeito, podemos ver um padrão claro de crescimento no número de conselhos C3, com maior avanço no conselho de Direitos das Pessoas com deficiência, de 490 em 2009 para 1.389 em 2019; crescimento e presença moderada dos conselhos de Segurança Pública e de Transporte, de 579 e 328 em 2009 para 928 e 551, respectivamente, em 2019; presença moderada e avanço mais robusto do conselho de Igualdade Racial, de 148 em 2009 para 630 em 2019. Os conselhos LGBTT exibem baixa presença, mas registram alta taxa de crescimento, uma vez que, em 2009, apenas quatro municípios sinalizaram a existência desse conselho, número que se eleva para 49 conselhos em 2019. Esse crescimento dos conselhos C3 ocorre porque são conselhos que não estavam ainda instalados, ou seja, são conselhos de expansão desigual (Lavalle e Barone, 2015), seja por terem pouca indução federal, seja pela baixa inserção nas agendas públicas municipais, de forma que ainda se visualiza amplo espaço para sua expansão nos próximos anos.

Por meio da comparação entre os dados (Tabela 2), podemos inferir que, nesse período de dez anos, os municípios brasileiros avançaram na criação de conselhos e se tornaram mais homogêneos no que se refere à quantidade de conselhos por município. Se, em 2009, a média de conselhos por município era de 4,6, em 2019, a média sobe para 6,3. Por sua vez, em 2009, o coeficiente de variação foi de 42%, passando para 30% em 2019, indicando que a heterogeneidade e a dispersão dos dados diminuíram nesse período. Ou seja, o número de conselhos por municípios ficou mais próximo da média aritmética.

Tabela 2
– Estatísticas descritivas desagregadas do IPICM por municípios 2009 e 2019-2021

É importante destacar que essa média de 6,3 para os anos de 2019/2021 é somente relativa aos 14 conselhos que estamos analisando, porque, de fato, ela tende a ser maior, uma vez que conselhos importantes e quase universalizados, como o de Assistência Social, Alimentação Escolar e Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), não estão presentes em nosso banco de dados. Ao analisar 14 conselhos a partir da Munic de 2013, Almeida et al. (2021, p. 80) chegaram em números semelhantes ao que encontramos para 2019:5

Em relação ao número de conselhos nos municípios, temos que tanto a média quanto a mediana ficaram em seis; o primeiro quartil com cinco, e o terceiro, com sete. Ou seja, considerando os 14 tipos de conselhos, 50% dos municípios comportam entre cinco e sete deles, 25% dos municípios têm mais de sete conselhos, e 25% menos de cinco.

Em relação aos dados sobre o caráter deliberativo e paritário para os anos de 2019-2021, dos 35.260 conselhos, 31.281 (88%) eram paritários e 28.608 (81%) eram deliberativos. Já em 2009, dos 26.009 conselhos existentes, 23.831 (91%) eram paritários e 21.422 (82%), deliberativos. Percentualmente, podemos perceber que os números de conselhos paritários e deliberativos são similares ao longo do período em análise, indicando que, à medida que cresce o número de conselhos, seu perfil em relação ao caráter paritário ou deliberativo se mantém em proporções semelhantes.

Por sua vez, a média do Indicador de IPICM passou de 0,30 em 2009 para 0,40 em 2019, o que indica, também, um fortalecimento do perfil institucional dos conselhos, tanto no número geral quanto em seu caráter paritário e deliberativo. Ao mesmo tempo, o coeficiente de variação passou de 40% em 2009 para 30% em 2019, corroborando a menor dispersão dos dados em relação à média.

Em termos ideais, cada um dos 5.570 municípios que possui 14 conselhos paritários e deliberativos obteria valor igual a 1,0 para o IPICM. No entanto, nossa análise demonstra que os municípios saem de um patamar que pode ser considerado baixo, 0,30 em 2009 para um patamar intermediário de 0,40 – posto que estão se aproximando do ponto central, que seria 0,50. Com isso, podemos dizer que nesses dez anos os municípios fortaleceram seu perfil institucional, ao passo que as disparidades intermunicipais reduziram, uma vez que o coeficiente de variação diminuiu de 40% para 30%.

Apesar de existirem diferenças nos tipos de conselhos, a comparação entre os anos selecionados ajuda a entender as mudanças no processo de construção institucional dos conselhos nos municípios, conforme pode-se visualizar no Gráfico 1.

Gráfico 1
Box-plot do IPICM de 2009 e 2019-2021

Se o perfil institucional é uma variável importante para entender as mudanças e as permanências do fenômeno conselhista, acreditamos que o espaço, em virtude das proporções do território nacional, também pode ajudar a ilustrar esse processo. Dessa forma, em relação à distribuição geográfica do IPICM (Gráfico 2), todas as regiões do País, de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tiveram aumento no indicador. No entanto, é importante sinalizar que as diferenças regionais, como apontado em estudos anteriores (Lavalle e Barone, 2015), mantêm-se e se atualizam em nossa análise.

Gráfico 2
Box-plot do IPICM para os anos de 2009 e 2019-2021, por regiões

Na síntese das informações disponível na Tabela 4, dada a ressalva de que a média pode ser sensível ao número de observações, podemos observar que as regiões com maior média, em 2019, são o Sul (0,45) e o Sudeste (0,44). Na sequência, temos o Centro-Oeste (0,39), o Nordeste (0,36) e o Norte (0,34). Trata-se, praticamente, do mesmo ranqueamento observado para 2009, sendo a única diferença o fato de que, em 2009, os municípios do Sul (0,33) estavam atrás dos municípios do Sudeste (0,34), que ocupavam a primeira posição do ranque. No entanto, todas as regiões registram crescimento no indicador.

Tabela 4
– Estatísticas descritivas do IPICM por regiões do Brasil – 2009 e 2019-2021

Também é possível identificar que os estados da região Sul e Sudeste são aqueles que possuem valores mais elevados para o IPICM, muito próximos do ponto médio (0,50), ao mesmo tempo em que possuem maior homogeneidade entre seus municípios. O Centro-Oeste coloca-se como uma região intermediária em termos do indicador, seguido do Nordeste, enquanto a região Norte conta com o menor IPICM. Comparativamente, as regiões Norte e Nordeste contam hoje com um IPICM semelhante ao indicador das regiões Sul e Sudeste em 2009. Isso indica que os municípios brasileiros, como um todo, avançaram no que se refere ao seu perfil institucional, muito embora cada região apresente particularidades.

Da mesma forma, ao observarmos a valor médio do IPICM calculado para as classes de tamanho populacional dos municípios, de acordo com a classificação do IBGE, percebemos que o indicador se eleva para todas as classes, com destaque para a relação entre um alto IPICM e o tamanho da população, conforme Tabela 5.

Tabela 5
– IPICM por classe populacional – 2009 e 2019-20216

Os resultados formalizados na Tabela 5 indicam que os municípios menores conseguiram avançar pari passu quando comparados aos maiores. A variação no IPICM para os municípios com até 5.000 habitantes é semelhante à variação observada para os municípios com população maior que 500.000 habitantes, de 0,1. Apenas para os municípios com população de 5.001 até 10.000 habitantes e de 100.001 até 500.000 habitantes se observa o padrão reportado pela literatura (Almeida et al., 2021), uma vez que a variação no IPICM foi de 0,09 para o primeiro grupo e de 0,12 para o segundo, com elevação gradual para os grupos intermediários.

Em suma, essas estatísticas descritivas nos indicam a ocorrência de um processo de fortalecimento no perfil institucional ao longo do período estudado, em que diferentes conselhos se ampliaram nos municípios. As evidências encontradas corroboram uma trajetória que ocorre desde a década de 1990, caracterizada pelo aumento no número de conselhos municipais. A regressão apresentada a seguir nos ajuda a esclarecer essas questões.

Os condicionantes do IPICM

Dado que nosso intuito também é entender as influências nas mudanças do perfil institucional dos conselhos na última década, utilizamos um modelo de regressão linear para predizer fatores que possam ajudar a explicar a variação no perfil institucional dos conselhos em nível municipal. Para tanto, elencamos 11 variáveis relacionadas aos achados da literatura e estimamos o modelo para quatro configurações distintas para as variáveis explicativas, cujos resultados são apresentados na Tabela 6.

Tabela 6
– Resultados encontrados para o modelo estimado

De modo geral, podemos ver que o modelo quatro, com os pressupostos respeitados, é significativo e explica 41% (0,415) da variação no ΔIPICMi entre os municípios. Sobre as variáveis, boa parte é significativa para todos os modelos estimados, exceto Direita_2016. A relação mais importante do modelo com o IPICMi pode ser vista na variável relativa ao IPICM2009 para o coeficiente α1 na regressão MQO4, cuja correlação é forte e negativa, 0,547. Isso mostra que o perfil institucional dos conselhos cresceu mais em municípios com menor IPICM em 2009, o que evidencia a presença de uma convergência moderada em relação à média do indicador entre os municípios brasileiros. Ou seja, foram criados mais conselhos em locais onde havia maior espaço para a criação dessas instituições. Essa constatação sugere que o padrão elitizado de difusão dos conselhos do período anterior, conforme apontado por Lavalle e Barone (2015), está se alterando, mesmo que gradativamente.

Apesar de os estudos apontarem a falta de clareza e competências bem delimitadas para a maioria dos conselhos (Antonietto e Saveri, 2016), uma das explicações para essa convergência é a implementação de legislações federais de áreas específicas pela maior parte de municípios na última década. Por exemplo, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010), o Plano Nacional de Cultura (Lei n. 12.343/2010), o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) e a Lei da Segurança Pública (Lei n. 13.675/2018) definem padrões nacionais favoráveis à criação de conselhos nos municípios ao indicarem legalmente que as políticas desenvolvam mecanismos de participação. Da mesma forma, pode ter ocorrido uma implementação tardia de políticas instituídas previamente ao recorte da nossa pesquisa, como o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), o Estatuto das Cidades (Lei n. 10.257/2001) e a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n. 6.938/ 1981). Nesse sentido, nossas análises vão ao encontro do estudo de Mayka (2019) sobre os conselhos de saúde ao indicarem que áreas de política que passam por reformas mais substantivas tendem a possuir conselhos com maior força institucional e que essas mudanças ocorrem ao longo do tempo – e não imediatamente em função da criação de legislações. A continuidade do fortalecimento dos perfis institucionais, nesse caso, precisa ser reforçada por regulações específicas das áreas de política, no sentido de empoderar cada vez mais os conselhos nos subsistemas, como aconteceu no caso dos conselhos de saúde (ibid.).

Apesar disso, é preciso ponderar esse avanço em função dos demais resultados, pois verifica-se que o IDHM, em 2009, segue como uma variável explicativa importante para a melhoria do perfil institucional dos conselhos nos municípios (0,172), conforme também sinalizou o estudo de Lavalle e Barone (2015). Embora com uma relação mais fraca em nosso modelo, o número de OSCs (0,005) e o tamanho da população (0,034) também parecem importar para o fortalecimento do perfil institucional nos anos estudados. Essas estatísticas corroboram as descobertas de Almeida et al. (2021), ao apontarem, em relação aos dados de 2013 e de 2014, que o porte populacional e a mobilização social da sociedade civil eram elementos centrais para a estruturação de conselhos municipais.

Por sua vez, o coeficiente de Gini é significativo e apresenta correlação fraca e negativa (-0,033), mostrando que municípios com menor desigualdade de renda avançaram mais no fortalecimento do perfil institucional. Os coeficientes estimados para as variáveis de ideologia política são estatisticamente significativos somente para Direita_2012, com sinal negativo e nível de confiança de 90%. Sinalizam, portanto, que municípios que elegeram prefeitos com ideologia política de direita, no ano de 2012, exibem menor variação no IPICM, consonante com os achados de Lavalle e Barone (2015) sobre os governos do Partido dos Trabalhadores terem média maior de conselhos e de Fedozzi Ramos e Gonçalves (2020) sobre os governos municipais de esquerda terem mais chances de implementar OPs.

Por fim, ao inserirmos as regiões do Brasil como variável independente, podemos corroborar o que as análises descritivas informaram. A variável binária adicionada para a região Sul é significativa e mostra que a região cresceu em termos estatísticos em relação ao Sudeste na estruturação de seus conselhos. Por outro lado, Nordeste, Norte e Centro-Oeste apresentam coeficientes negativos, o que indica um crescimento comparativamente menor do IPICM em relação ao Sudeste. Como as regiões Sul e Sudeste são aquelas com melhores índices de desenvolvimento socioeconômico, podemos inferir que se manteve um padrão territorial desigual de convergência no perfil institucional, apesar da ampliação geral do número de conselhos paritários e deliberativos.

Dessa forma, como fenômeno complexo e multicausal, a mudança no perfil institucional dos conselhos nesse período parece se tratar, por um lado, de um processo de convergência moderada dos perfis institucionais dos conselhos e, por outro, de um processo influenciado principalmente pelo IDHM, seguido pelo porte populacional, pelo Índice de Gini e pela mobilização social via OSCs. Assim sendo, temos que o perfil institucional dos municípios melhorou de forma generalizada no País e apresentou um processo incipiente de homogeneização no período delimitado neste trabalho. Apesar do mantenimento das diferenças regionais, as análises apontam que ocorreu um crescimento, em locais que postergaram o desenvolvimento de seus conselhos, influenciado por variáveis socioeconômicas, principalmente o IDH municipal. Com isso, longe de esgotarmos as possibilidades de análise dos dados, entendemos que é indispensável seguirmos aprimorando e refletindo sobre as variáveis explicativas e os indicadores que mensuram os fenômenos relativos às instituições participativas.

Considerações finais

Buscamos, neste trabalho, oferecer um panorama para entender as mudanças e permanências no Perfil Institucional dos Conselhos Municipais (IPICM) no País nos últimos anos, refletindo sobre os fatores que influenciaram esse processo. Para tanto, mobilizamos metodologia descritiva e inferencial a partir dos bancos de dados disponibilizados pelo IBGE. Nossas análises trazem elementos importantes que tanto corroboram as considerações da literatura especializada quanto indicam caminhos e possibilidades para futuros estudos.

As estatísticas descritivas mostram, em relação aos municípios, que, seja por porte populacional, seja por regiões do Brasil, todos os estratos cresceram no IPICM ao longo do período estudado. Por um lado, a regressão estimada mostrou um processo no qual os municípios com os menores indicadores, em 2009, foram os que mais cresceram nos anos subsequentes. As análises ainda indicam que esse fenômeno ocorreu em municípios com características específicas, principalmente naqueles com melhor IDHM. Por outro lado, apesar do maior fortalecimento do perfil institucional adquirido pelos conselhos ao longo desses anos, persiste a distribuição desigual ao longo do território nacional.

Assim, passados 30 anos da Constituição de 1988 e dos esforços para a efetivação da participação em níveis nacional e subnacional, nossa análise sugere que gradativamente o perfil institucional dos conselhos nos municípios está se alterando, no sentido de abarcar um número maior de conselhos, de caráter paritário e deliberativo. No entanto, retomando nossas hipóteses e observando as desigualdades na distribuição dos conselhos ao longo do território nacional, verifica-se um processo que levará mais tempo para tomar contornos mais homogêneos.

Com isso, esta pesquisa indica caminhos para estudos futuros, como analisar subáreas de atuação dos conselhos gestores, visualizar o processo de indução federal e difusão (Shipan e Volden, 2008) dos conselhos, bem como detalhar o impacto do MROSC e a importância das OSCs nesse processo. A recente literatura sobre efetividade da participação (Nunes e Resende, 2022) evidencia a importância das Instituições Participativas para a melhoria de indicadores de gestão pública. No entanto, é preciso reduzir as desigualdades de acesso à participação para permitir oportunidades políticas em contextos nos quais elas ainda não existem, sobretudo para grupos vulneráveis que demandam acesso à administração pública.

Tabela 3
– Estatísticas descritivas IPICM de 2009 e 2019-2021

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Notas

  • 1
    Segundo a autora, esse número ainda é maior, uma vez que os dados utilizados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais – IBGE/Munic (2009) não cobriam todas as políticas para as quais é possível a existência de conselho.
  • 2
    A partir da própria definição do IBGE/Munic, conselhos com a sigla LGBTT significam os conselhos de direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
  • 3
    A tabulação de dados para os anos de 2019, 2020 e 2021, e não apenas para o ano de 2019, deve-se à presença de restrições na disponibilidade dos dados, uma vez que a pesquisa Munic levanta informações específicas de conselhos para cada ano.
  • 4
    Dados que poderiam auxiliar nesse sentido, como a quantidade de reuniões nos últimos 12 meses, não estão disponíveis para 2009.
  • 5
    Em função da disponibilidade de dados para os anos aqui analisados, não conseguimos analisar os seguintes conselhos presentes no trabalho de Almeida et al. (2021): Direitos da Mulher, Assistência Social e Juventude. No entanto, incluímos conselhos não analisados pelos autores, a saber: Cultura, Habitação, Esporte e Transporte.
  • 6
    Dados de classe populacional retirados da Munic (2021).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2025

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2024
  • Aceito
    07 Jan 2025
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