Open-access Cidade, participação e cultura política: jogos e outras formas de representação e engajamento

Resumo

Este artigo aborda a relação entre participação, democracia, representação e cidade. A partir do debate sobre a crise da representação, discuto sobre qual é o papel de arquitetos e arquitetas em processos participativos. Refletindo sobre os conceitos de qualidade da democracia, confiança e cultura política, argumento em favor do uso de elementos lúdicos como formadores de cultura urbana. Apresento, então, dois jogos desenvolvidos no Brasil que têm como objetivo a contribuição para a formação da consciência urbana: o jogo Estatuto da Cidade (2001) e o jogo Agentes urbanos e a cidade participativa (2015). Por fim, questiono como os jogos podem contribuir para a autonomia dos participantes e até que ponto podem promover a imaginação de outras formas de mobilização política.

cidade; participação; democracia; cultura política; jogos

Abstract

This article discusses the relationship between participation, democracy, representation, and city. Based on a debate about the representation crisis, I discuss the role of architects in participatory processes. Reflecting on the concepts of quality of democracy, trust, and political culture, I argue in favor of using playful elements to shape urban culture. Then, I present two games developed in Brazil that aim to contribute to urban consciousness: the game Estatuto da Cidade (City Statute) (2001) and the game Agentes urbanos e a cidade participativa (Urban agents and the participatory city) (2015). Finally, I address how games can contribute to the autonomy of participants and to what extent they can promote the imagination of other forms of political mobilization.

Participação, representação e o papel social da arquitetura

O tema da participação ganhou força na arquitetura após a Segunda Guerra Mundial, em um período marcado por grandes mudanças no cenário político, econômico e social em vários países. Esse foi um momento de ebulição dos movimentos sociais em várias partes do mundo, com a Primavera de Praga na Tchecoslová-quia, a Revolução de Maio de 1968 na França e inúmeras conquistas dos movimentos negros e feministas nos EUA. Nesse contexto, as provocações levantadas pelo grupo Team X1 durante os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (Ciams) iniciaram uma crise na arquitetura ao questionarem as premissas modernas e criticarem o viés autoritário do papel social dos arquitetos e das arquitetas no modernismo.

Desde a segunda metade do século XX, portanto, temos experimentado, no campo da arquitetura e do urbanismo, processos que buscam envolver seus usuários em diferentes etapas do projeto – no levantamento de demandas, com cartografias e mapeamentos afetivos; no desenho de projeto, por meio de assessorias técnicas e movimentos sociais; durante a construção, por meio de mutirões e técnicas vernaculares – ou na forma, ao permitirem transformações e apropriações futuras. A variedade de intensidade da participação nesse histórico de práticas impossibilita uma leitura única desses processos. Como aponta a comunicadora americana Arnstein (1969), um processo participativo pode compreender desde a manipulação dos participantes – na qual a população é usada como justificativa para interesses preestabelecidos por agentes externos – até o controle popular total, sem intermediários entre a população e a fonte de recursos.

Ao formular uma “escada da participação cidadã”, a comunicadora argumenta que diferentes graus de participação demandam diferentes tempos e relações entre os agentes (ibid.). Do ponto de vista do papel de arquitetos e arquitetas ao longo desses processos, as experiências são díspares. Para alguns arquitetos, como o inglês John Turner e o brasileiro Carlos Nelson Ferreira dos Santos, por exemplo, há muito o que se aprender com a autoconstrução e a ajuda mútua em cenários onde faltam políticas públicas. Já em projetos como o Bairro da Bouça (1973-1976 e 2001-2006, Portugal) de Álvaro Siza, a Villaggio Matteotti (1970-1975, Itália) de Giancarlo de Carlo e em muitos projetos realizados pela assessoria técnica da Usina CTAH – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (desenvolvidos majoritariamente na década de 1990, no Brasil) é possível reconhecer a marca autoral dos arquitetos.

As divergências sobre a soberania da autoridade dos arquitetos ou dos usuários permanecem em questão nos dias atuais: enquanto algumas experiências buscam atribuir o máximo de poder de decisão aos usuários finais, outras enfrentam os dilemas da representação via advocacy ou lideranças sociais. Sendo assim, a questão da autoria está diretamente relacionada à questão da representação e pauta a comunicação e a dinâmica da relação entre os agentes envolvidos nos processos participativos.

No fim dos anos 1960, a palavra “participação” estava em foco no debate político ocidental. Havia uma onda de reivindicações por mais abertura à participação popular nas esferas governamentais, oriunda do pós-guerra e de processos de redemocratização para muitos países. A massificação da palavra ampliou o conceito, dando origem a vários entendimentos e interpretações. “Participação” passou a denominar uma série de situações que poderiam até se contradizer. Após a Segunda Guerra Mundial, a democracia vem se apresentando como o único regime possível a garantir a aceitação dos governados, segundo o cientista social brasileiro Miguel (2014). As sociedades são, há bastante tempo, numerosas demais para que se proponha uma democracia direta, sendo necessária a representação. Da mesma forma, a política se tornou mais complexa, exigindo mais conhecimento especializado e uma dedicação de tempo inviável para a maioria dos cidadãos. Antes, os governantes também eram governados e havia uma rotatividade; hoje, essa função se transformou numa classe. A distância entre representantes e representados é muito maior hoje em dia e esbarra na diferença dos interesses de cada um desses atores. A representação é, portanto, incontornável, como defende o autor, no entanto, ela não precisa ser a única solução para decisões coletivas em escalas menores.

Ao analisar a conjuntura da representação na política, podemos relacioná-la à representação nos processos participativos da arquitetura e do urbanismo. Quando Miguel disserta sobre o conceito de advocacy (pessoas, instituições ou organizações não governamentais que atuam em favor de uma causa ou grupo, seja por sua influência entre os agentes ou expertise), esse paralelo fica ainda mais evidente. Segundo ele, a valorização da técnica como método mais efetivo de se garantir os interesses dos representados leva a uma provável elitização dos advocates, visto que há uma desigualdade de oportunidades de especialização. O advocacy pode, então, acentuar a assimetria de poder entre representantes e representados, além de comprometer o julgamento por parte dos representados devido à falta de capacitação política, e, por fim, a representação via advocacy pode retirar a autonomia dos representados para construir suas preferências políticas. Ou seja, para ele, esse modelo, apesar de seu discurso pela eficácia, é sempre atravessado pelos problemas da desigualdade social entre os dois grupos. Em posição menos favorecida de diálogo, organização e julgamento, os representados tendem a abraçar as preferências de seus advocates. A representação através do advocacy evoca a profusão de intermediários entre o Estado e a sociedade. Em processos participativos de qualquer natureza, podemos encontrar representantes que não receberam autorização via eleições ou outros mecanismos, como lideranças comunitárias, organizações não governamentais (ONGs) e empresas. Os arquitetos e as arquitetas, quando atuando como representantes da população, podem usufruir dessas falhas para “advogar” por interesses pessoais por meio da participação popular.

A representação via advocacy, portanto, reproduz muitos dos problemas encontrados na representação política tradicional, além de criar novas questões relacionadas à autorização. O autor defende que esses novos modos de representação não venham para substituir interesses dos grupos representados. As demandas devem surgir de forma autônoma e deveria ser papel dos advocates estimular essa autonomia. Ela é importante não apenas na construção dos interesses, mas também na capacidade de renegociar as identidades do grupo. Miguel (2014) reforça que a autonomia é tanto individual quanto coletiva, é a capacidade de crítica em relação ao conjunto a que pertencemos. A autonomia individual reforça o coletivo ao tornar mais claros os compromissos e pactos. Nesse sentido, é possível pensar em formas de participação e representação que promovam a autonomia dos representados? Qual é o papel do técnico, arquiteto ou especialista na qualificação da participação como mecanismo político?

Qualidade da democracia, confiança e cultura política

A consolidação de um grande número de democracias no Ocidente após o fim da Segunda Guerra Mundial alterou a pauta das pesquisas em teoria política que hoje se concentram na busca por novos parâmetros qualitativos de avaliação – além dos econômicos e institucionais –, principalmente a influência da cultura na política. Conceitos como cultura cívica, confiança e capital social se tornaram fundamentais para o debate político contemporâneo. Estudando de que modo a confiança interpessoal e a confiança nas instituições se relacionam com a qualidade da democracia, muitas pesquisas atuais, no campo da teoria política, buscam mensurar os graus de confiança e suas consequências para as democracias contemporâneas.

Almond e Verba (1989) escreveram um dos primeiros trabalhos a abordar o tema da cultura política, em 1963, fazendo uma análise da democracia em cinco países. Os autores alertam para o fato de que há um grande crescimento da participação popular após o Iluminismo, quando o cidadão comum passa a ser politicamente relevante. Participação, contudo, não é sinônimo de democracia. Eles identificam dois tipos de participação: democrática e autoritária. Para eles, instituições como o sufrágio universal, os partidos políticos e o legislativo não são suficientes para garantir um modelo de participação democrática, afinal, elas também estão presentes em regimes totalitários. Argumentam, então, que uma forma democrática de participação exige também uma cultura política.

A partir desse argumento central, os autores analisam o grau de conhecimento dos cidadãos a respeito do sistema político e sua estrutura, dos inputs e outputs2 do processo e do seu papel individual como parte desse sistema, definindo três categorias de cultura política: paroquial, súdita e participante.

A cultura política paroquial se caracteriza por ser aquela na qual os cidadãos não possuem nenhum desses conhecimentos. Nessas sociedades não há qualquer tipo de especialização exigida dos líderes políticos, assim como não há perspectiva de mudanças por meio da política. Na cultura súdita, os cidadãos reconhecem a existência de uma estrutura política e seus outputs, porém a relação é passiva: não há o exercício político individual. Já na cultura política participante, há o conhecimento de todos os fatores e os cidadãos têm um papel ativo.

Segundo Almond e Verba (ibid.), esses diferentes tipos de cultura não são progressivos ou excludentes, eles podem se complementar e coexistir em uma mesma sociedade. Os autores também indicam que essa categorização não busca ser homogênea ou uniforme, pois sempre haverá orientações paroquiais e súditas, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas e estabilizadas como participativas e democráticas. Com isso, eles rebatem a ideia de que a qualidade da democracia depende apenas de fatores econômicos e ressaltam a importância da existência de uma cultura política. O conceito de “cultura cívica” é, então, para os autores, mais do que a história e o contexto social de determinado grupo: é o que conecta a macro-política com a micropolítica, porque envolve orientações políticas e também psicológicas.

Eles buscam, em seu trabalho, analisar como as orientações individuais se relacionam com a estrutura política e a impactam. Entendendo que o papel do cidadão participativo se soma ao do paroquial e do súdito, os autores indicam pesquisas que reiteram esse ponto ao verificarem que os cidadãos se preocupam mais com assuntos familiares e pessoais do que políticos:

[...] se o cidadão comum está interessado em assuntos políticos, é mais provável que ele esteja interessado nos outputs do que nos inputs. Ele está preocupado com quem ganha a eleição, e não com como ela aconteceu; ele se importa com quem é beneficiado pela legislação, e não com como ela foi aprovada. (Ibid., p. 117; tradução nossa)

Segundo eles, o comportamento passivo, típico do súdito, é mais comum do que o do cidadão ativo. Um comportamento ativo exigiria muito mais desse cidadão, demandando algum grau de capacitação. Ao ignorar os instrumentos de mudança política, o indivíduo se exime da responsabilidade de lutar por eles, apenas aceitando o que é decidido e sendo obediente às leis. Idealmente, em uma democracia, o poder de decisões é dividido entre os cidadãos comuns, sendo esses participantes ativos e capacitados; no entanto, o que se encontra na prática é passividade e indiferença.

Essa discussão em torno da especialização e da capacitação levou os autores a pesquisarem como o cidadão comum (aquele que não é um especialista, um representante autorizado ou um líder comunitário) quer participar. O cidadão que participa não deixa de ser o cidadão que obedece às leis e que tem interesses pessoais. Esses dois papéis se sobrepõem e estão em constante conflito. Almond e Verba (ibid.) concluem que para haver um governo democrático em que os cidadãos comuns participem, é preciso haver uma cultura política que consista em uma série de valores, atitudes e normas. Esses fatores são afetados pela estrutura da comunidade local, mas apenas mudanças institucionais não bastam para garantir que a participação seja efetiva.

O descompasso entre as instituições e a cultura política das sociedades apresentado por Almond e Verba nos anos 1960 fez-se ainda mais evidente, em vários países, nas décadas que se seguiram. O cientista político americano Putnam (1997) escreveu um dos primeiros estudos sobre a influência da cultura cívica na política. Expondo sua pesquisa sobre a Itália, o livro apresenta como a mesma configuração de instituições públicas no país gerou experiências e resultados díspares de acordo com as diferentes províncias italianas.

Para analisar os diferentes contextos das regiões Norte e Sul da Itália, o autor refere-se ao “círculo vicioso autoritário” e ao “círculo virtuoso democrático”. A vertente autoritária faz uso do medo e da repressão em detrimento da confiança. A democrática parte do princípio de que existem regras que devem ser cumpridas por todos, apoiando-se no compromisso e na troca de parte da liberdade por compensações futuras. No círculo democrático, há um entendimento de que a sua quebra resultará em uma perda para todos, enquanto o círculo autoritário é fruto de um poder vertical.

Para exemplificar sua teoria, o autor faz uma analogia entre essas duas vertentes e o “dilema do prisioneiro” (ibid.).3 Quando os cidadãos estão inseridos em um ambiente de cooperação e horizontalidade, entende-se que o comportamento individual pode ser replicado pelos demais jogadores e jogadoras, inibindo-se a ação individual em busca de favorecimentos. Da mesma maneira, um ambiente em que as regras do jogo parecem frágeis ou instáveis gera um desejo nas jogadoras e nos jogadores de abandonar ou boicotar a partida antes de serem prejudicados pela mudança repentina das regras. Sendo assim, o círculo democrático é mais instável que o autoritário por depender de cooperação e, consequentemente, de confiança.

Segundo Putnam (ibid.), o que explicaria o desempenho tão distinto para as mesmas instituições italianas seria o “capital social” ou a “comunidade cívica” medidos através de alguns índices (participação em referendos, leitura de jornais, associações, etc.).

O capital social influencia o desempenho institucional por meio da confiança interpessoal: “[...] o capital social diz respeito a características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas” (ibid., p. 177). Segundo o autor, uma sociedade em que não há confiança interpessoal está desperdiçando seu potencial – o que provoca maior necessidade de capital físico.

O Brasil é um bom exemplo de como aparatos institucionais participativos não garantem por si só a qualidade da democracia. O reflexo da falta de engajamento político pode ser constatado na nossa frágil democracia – com um histórico de golpes, ditaduras e instabilidade de poder, de direitos e de liberdades – e, consequentemente, nas nossas cidades. Frequentemente, as cidades brasileiras são afetadas por políticas públicas que não respeitam a nossa história – apagando a memória dos povos originários, dos negros e de grupos mais vulneráveis – e que acentuam as desigualdades sociais, visando ao lucro e ao interesse de poucos. Desde as reformas urbanas higienistas do início do século XX até os megaeventos (como, por exemplo, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016, realizados no Brasil), as decisões parecem ser tomadas sem a participação da população. Mas, se a implantação de instrumentos de participação não basta, como estimular os cidadãos e as cidadãs a exercerem o papel político que lhes cabe?

Nosso mais recente processo de democratização, iniciado no final da década de 1980, após o longo período da Ditadura Civil-militar de 1964, trouxe muitas esperanças ao criar uma constituição progressista que definiu instrumentos reais de participação para além das eleições. Passados mais de 30 anos da Constituinte, é evidente, no entanto, a necessidade de uma revisão crítica desses mecanismos a partir da análise de seus erros e acertos.

A principal ferramenta de participação direta instaurada pela Constituição da República Federativa do Brasil foi o conselho comunitário: um mecanismo de participação social instituído na Constituição de 1988 para promover o diálogo com a população a partir de canais consultivos ou deliberativos entre o poder público e membros da sociedade civil nas áreas de segurança, saúde e assistência social. Vários pesquisadores têm se dedicado ao assunto desde então, buscando avaliar seus potenciais e suas fragilidades.

O economista brasileiro Abramovay (2001), em um texto focado no estudo sobre os conselhos gestores de desenvolvimento rural, levanta importantes pontos sobre as falhas dessa experiência. Ele reconhece o potencial de transformação política que os conselhos representam, mas argumenta que há, em geral, uma submissão a poderes locais dominantes. Analisando especificamente os conselhos de desenvolvimento rural (criados a partir de 1997 para aprovar planos de desenvolvimento rural e receber os recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf), ele reconhece que há uma inovação no fato de os recursos passarem pela mediação de membros da sociedade civil, mas alerta: “[...] para que esta conquista marque um fortalecimento da sociedade civil, é necessário que ela se traduza em real aumento da capacidade de geração de renda e da confiança da sociedade em suas possibilidades de desenvolvimento” (ibid., p. 122).

Abramovay (ibid.) demonstra que, na prática, os conselhos nem sempre funcionam como instrumentos de capacitação dos cidadãos. Isso se deve a dois fatores principais. O primeiro problema é explicitado pelo autor ao apresentar dados que apontam que a maioria dos conselhos surgiu após a previsão legal de sua existência para a obtenção de recursos públicos. Sua criação foi, portanto, a partir de um interesse econômico, e não oriunda de uma cultura política de participação, e os valores, comportamentos e a confiança interpessoal não foram gerados automaticamente com a criação dos conselhos. Segundo o autor, esse cenário tem relação direta com o segundo fator, que é a falta de ampla participação da sociedade nos conselhos, em geral compostos majoritariamente por especialistas, sendo especialmente baixa a participação de jovens e mulheres.

Ele assinala o custo da participação aos indivíduos devido ao elevado número de reuniões e o acúmulo de funções sobre os mesmos indivíduos. Mais uma vez, o tema da especialização aparece como desafio principal de processos participativos, visto que, como falta preparo técnico para participar de forma efetiva nos debates, o público se torna restrito a um número pequeno de pessoas especializadas. De acordo com o autor, tais fatores levam a uma fadiga da participação, fazendo com que o capital social seja desperdiçado e, em muitos casos, gerando, inclusive, resistência por parte da população.

A descrença nas instituições participativas parece ser uma repetição da desconfiança nas instituições públicas, conforme afirma Moisés (2008), cientista político brasileiro. Ele associa a descrença atual dos brasileiros nas instituições públicas e no sistema político com heranças do período ditatorial. Segundo o autor, carregamos, em nossas instituições e no “presidencialismo de coalizão” – termo cunhado por Abranches, em 1988, referindo-se ao regime multipartidário proporcional brasileiro, que exige ao presidente fazer alianças com outros partidos para conseguir maioria no Congresso e aprovar suas medidas –, resquícios de autoritarismo que levam à desconfiança e à insatisfação com a democracia por parte da população:

A insatisfação com a democracia e a desconfiança de suas instituições indicam que eles não sentem que seus direitos de participação e representação – de que dependem a igualdade política e seus corolários, como a igualdade social e econômica – sejam canais efetivos para enfrentar problemas como a corrupção ou as dificuldades econômicas. (Ibid., p. 36)

De fato, os argumentos de Abramovay (2001) e Moisés (2008) corroboram com a ideia de que o Brasil avançou em termos legais de maneira mais rápida do que sua cultura política. As consequências políticas desse cenário talvez só estejam se tornando evidentes décadas depois da Constituição de 1988, diante da crise de representatividade que explodiu em manifestações pelo País em 2013.4 Entretanto, pesquisas como a World Values Survey – WVS (Inglehart et al., 2014)5 já indicavam que o Brasil apresenta, historicamente, uma taxa muito baixa de confiança interpessoal.

O cientista político americano Inglehart (1999), diretor do WVS, apresenta alguns indicadores do nível de confiança interpessoal relacionados ao desenvolvimento econômico de vários países. Sua tese é de que sociedades mais ricas apresentam um grau maior de confiança, uma vez que esta seria pré-requisito para o desenvolvimento social. Ele também afirma que é mais provável confiar nas outras pessoas quando se tem um nível básico de desenvolvimento econômico. Em situações de extrema pobreza, a quebra de confiança pode ter consequências fatais.

Por reconhecer que a relação entre confiança e desenvolvimento socioeconômico não é simples e direta, Inglehart (ibid.) acrescenta outros fatores que alimentam essa equação, como a educação, a religião e a história política do país. Para ele, o desenvolvimento econômico encoraja uma cultura política que ajuda a estabilizar as democracias. O autor identifica que esses fatores têm sido pouco estudados em análises empíricas – o que levou a WVS a testar essas premissas. Comparando os indicadores de liberdade civil e direitos políticos da Freedom House6 com o nível de confiança interpessoal, a WVS produziu gráficos analisando países com diferentes graus de estabilidade de democracia. No período de 1972 a 1997, os gráficos confirmam a hipótese de que governos mais democráticos também apresentam maiores índices de confiança: “[...] sua [da democracia] sobrevivência a longo prazo está relacionada a índices relativamente altos de bem-estar subjetivo e confiança interpessoal. Esses fatores, por sua vez, parecem refletir tanto o desenvolvimento econômico quanto a herança cultural dessas sociedades” (ibid., pp. 118-119; tradução nossa).

Nessa pesquisa, que engloba mais de 50 países, o Brasil aparece com o menor índice de confiança,7 assinalando a fragilidade da nossa democracia. Esse dado embasa os argumentos de Abramovay e Moisés ao demonstrar que o País carece de cultura política, apesar dos esforços de constituir um Estado “participacionista”. A afirmação final de Inglehart ressalta a importância do cidadão comum na efetividade da democracia: “sua [da democracia] sobrevivência também depende do que as pessoas comuns pensam e sentem” (ibid., p. 119).

É precisamente para esse descompasso entre as instituições e a população que alerta o arquiteto inglês Miessen (2010). Convergindo com Abramovay (2001), entende que existem cada vez mais mecanismos de participação e cada vez menos pessoas participando. Em seu trabalho, ele alerta para o perigo de uma possível “violência da participação”, quando esta acaba se tornando uma obrigação, e não um desejo. Para ele, o conceito de participação foi se generalizando, sendo quase sempre entendido, de maneira romântica e ingênua, como algo necessariamente positivo.

O autor chega a afirmar que, às vezes, democracias totalmente inclusivas devem ser evitadas, já que as pessoas nem sempre têm boas intenções, e a vontade da maioria nem sempre é positiva ou benéfica. Nesse sentido, sua visão se aproxima dos estudos de Almond e Verba (1989), além de Putnam (1997), ao assumir que participação não é necessariamente sinônimo de democracia. Para esses autores, a vontade da maioria nem sempre é democrática, assim como uma cultura cívica nem sempre é uma cultura cívica participativa. O exercício e a construção de uma participação democrática passam pela formação da cultura. Miessen (2010) chega a afirmar que “a dificuldade central com a noção romantizada do projeto participativo é que ela assume que todos devem se sentar à mesa para tomar decisões. Porém, esse talvez não seja o interesse geral” (ibid., p. 245).

O entendimento da participação como algo atrelado às ideias de consenso e inclusão representa, para Miessen (2010), uma visão oportunista e manipuladora que não se propõe a acrescentar algo ao debate arquitetônico, e, sim, realizar algo predeterminado: “Participação é guerra. [...] Qualquer forma de participação já é uma forma de conflito. [...] Para participar em qualquer ambiente ou situação, é preciso entender as forças em conflito que agem nesse ambiente” (ibid., p. 53). Assim, os referendos e plebiscitos, por exemplo, são vistos como mecanismos utilizados por políticos para se eximirem de suas responsabilidades, configurando uma diluição do modelo democrático. O autor, portanto, instiga uma prática do conflito que contribua para um pensamento crítico. A busca pelo consenso – além de impossível – é, para ele, paralisante, por impedir o engajamento crítico. É preciso assumir os riscos e as responsabilidades de um processo do qual o fracasso e o conflito façam parte.

Para isso, Miessen (ibid.) defende uma prática autônoma e independente, em que arquitetas e arquitetos possam agir como ativado-res externos que levantem questionamentos e debates de maneira provocativa e produtiva. Para ele, o conformismo das arquitetas e dos arquitetos em apenas interferir onde são chamados ou seguindo ordens de clientes se relaciona com a crise da profissão e contribui para a perda de espaço e de valorização da prática arquitetônica.

Então, como saída para a crise – da participação, da política e da arquitetura –, é necessário rever a práxis, repensar os modos de ação. Assim, talvez, a participação possa ser entendida não como “guerra”, mas como “jogo”, no sentido da disputa, do reconhecimento das forças, da negociação, do conflito necessário e da vitória nem sempre alcançada.

A associação estabelecida por Putnam (1997) entre as estruturas do círculo vicioso autoritário e do virtuoso democrático com a estrutura dos jogos parece algo instrumental para o seu pensamento, como uma ferramenta analógica para desenvolver de maneira mais evidente suas ideias. Ainda assim, essa aproximação também ressalta o caráter lúdico do jogo democrático. Por ser uma estrutura de poder com diferentes personagens e regras, a democracia segue uma estrutura de certo modo análoga à dos jogos. Putnam (ibid.) ressalta como a repetição, a variação dos agentes e o número de jogadores influencia no jogo. É essa analogia, somada à ideia de que os jogos são formadores de cultura, que tem guiado iniciativas ligadas ao desenvolvimento de jogos como ferramentas de participação popular.

Enxergo, na possibilidade do jogo como ferramenta de participação, uma forte relação com o questionamento acerca da falta de cultura política no Brasil. Embora haja avanços do ponto de vista legal quanto aos instrumentos de participação, conforme ressalta Abramovay (2001), parece faltar vontade de participar. O abismo da especialização, a falta de educação básica e os graves níveis de desigualdade social afastam boa parte da população dos instrumentos de participação, perpetuando o que Almond e Verba (1989) definem como uma orientação política paroquial e súdita (aquelas em que os cidadãos desconhecem ou são passivos ao sistema político). Enquanto o debate sobre democracia, em certos países, está sendo atualizado, superando a definição do conceito inicial e partindo para o estudo da avaliação de sua qualidade, no Brasil, os anos de regimes autoritários, a nossa formação colonial e as enormes desigualdades internas configuram uma democracia frágil. Ainda assim, não devemos nos furtar ao debate sobre a qualidade da nossa democracia. Apesar da fragilidade das nossas instituições e do cenário político incerto, podemos pensar, com visão otimista, em desenvolver nossa democracia tendo como pauta a participação efetiva por meio da formação política. Desse modo, teríamos como finalidade evitar o descompasso entre a evolução das instituições democráticas e a cultura política do País.

O papel dos jogos na formação da cultura urbana

A ideia de que os jogos são formadores de cultura foi a tese central defendida em 1938 pelo historiador holandês Huizinga (1971). Para ele, o jogo é apresentado como um componente da cultura caracterizado como uma esfera de exceção do cotidiano e uma atividade necessariamente voluntária, capaz de simular a realidade e ir além do mundo real. Assim, segundo o autor, os jogos conseguem acessar o imaginário coletivo e revelar informações, sentimentos e desejos.

Na sua concepção, o jogo é algo além da atividade física ou biológica, pois possui ação significante. Seu fator simbólico faz com que ultrapasse os limites da realidade, instituindo uma realidade autônoma. Assim, o jogo não faz parte do cotidiano, da vida ordinária, é uma atividade com tempo e espaço próprios, uma esfera de exceção.

Com duração própria e limitada, o jogo instaura um intervalo na vida comum – o que lhe agrega o sentido de divertimento e despre-tensão compartilhado por um grupo. Necessariamente uma atividade voluntária, o jogo pressupõe que se jogue até um fim determinado, podendo recomeçar quantas vezes se desejar. A ligação estabelecida entre quem joga e o que foi compartilhado durante o jogo não termina quando o jogo acaba, segundo Huizinga (ibid.). Há algo que nasce do jogo e aproxima as jogadoras e os jogadores:

As comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo. [...] a sensação de estar “separadamente juntos”, numa situação excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração de cada jogo. (Ibid., p. 15)

Nesse sentido, a partir da formação de “comunidades”, é possível pensar a importância dos jogos na formação das civilizações. Huizinga relaciona-os aos rituais, aos cultos, ao mito, à linguagem, ao teatro e às demais “atividades arquetípicas” das sociedades. Ele define duas funções para o jogo: a luta por alguma coisa e a representação de alguma coisa. O autor ressalta que: “[...] estas duas funções podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo passe a ‘representar’ uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor representação de alguma coisa” (ibid., p. 16). Ou seja, “[...] mais do que uma realidade falsa, sua [do jogo] representação é a realização de uma aparência: é ‘imaginação’, no sentido original do termo” (ibid., p. 17).

Seguindo os passos de Huizinga, é possível identificar no jogo, por conseguinte, uma ferramenta de construção social através da representação. O mundo lúdico permite tratar de assuntos do mundo real sem uma seriedade que poderia ser comprometedora. Por meio do divertimento, atingem-se memórias, criam-se laços sociais e, através da imaginação e da cumplicidade, uma nova compreensão do mundo real pode surgir.

Como, então, os jogos podem ser usados hoje para engajar o público no debate sobre as cidades de maneira mais atraente do que assembleias, reuniões, questionários e outros métodos normalmente utilizados em processos participativos?

Ao longo da história da humanidade, jogos de vários tipos foram encontrados. Descobertas arqueológicas indicam a presença de jogos em civilizações antigas, há mais de 5 mil anos. A importância dos jogos na formação das sociedades é evidente, tendo como exemplo máximo o protagonismo dos jogos de competição como as Olimpíadas e a Copa do Mundo – dentre outros eventos milenares e centenários que mobilizam, sociopoliticamente e economicamente, muitas nações. É possível, então, identificar diferentes abordagens e funções ligadas aos jogos: entretenimento, propaganda, isolamento, manipulação, crítica, etc. Todavia, tenho como foco a questão do papel dos elementos lúdicos em processos participativos. Busco entender como o imaginário e a ficção fazem parte da construção das cidades, e como os jogos funcionam como uma ferramenta para a participação nessa construção. Portanto, estou me referindo, necessariamente, aos jogos coletivos e presenciais.

Nesse sentido, é importante lembrar que experiências lúdicas, no campo da arquitetura e da arte, vêm sendo desenvolvidas pelo menos desde a década de 1960, quando grupos exploraram a participação do espectador ou do usuário em suas obras, questionando, assim, a autoria, a rigidez e a previsibilidade de obras e projetos, além de buscarem uma visão mais lúdica da vivência urbana (como, por exemplo, os surrealistas, a Internacional Situacionista, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Team X, dentre outros). Dentro do universo dos jogos presenciais e coletivos, destaco, a seguir, dois exemplos de experiências lúdicas contemporâneas escolhidas por tratarem de temas urbanos e buscarem, de algum modo, fomentar uma conscientização urbana. Selecionei dois jogos brasileiros para ilustrar as experiências que surgiram nesse sentido no País com o processo de redemocratização na década de 1990 e a partir do marco do Estatuto da Cidade (Brasil, 2001).

Jogo Estatuto da Cidade

O jogo Estatuto da Cidade foi criado em 2002, pela ONG Instituto Pólis, e tem autoria de Renato Cymbalista, Raquel Rolnik, Paula Santoro e Uirá Kayano Nóbrega. Sua intenção é apresentar o Estatuto da Cidade e tornar suas jogadoras e seus jogadores familiarizados com seus instrumentos por meio de um jogo de interpretação de papéis. O jogo apresenta três cidades fictícias e situações urbanas similares às encontradas em diversas cidades do País, como déficit habitacional, falta de mobilidade urbana, especulação imobiliária, etc. As jogadoras e os jogadores decidem com qual das cidades querem jogar e escutam do mediador as características dessa cidade.

As cartas do jogo são os instrumentos do Estatuto da Cidade (consórcio imobiliário, transferência do direito de construir, outorga onerosa, operações urbanas consorciadas, usucapião, audiências públicas, etc.) e as cartas com as personagens da cidade (prefeito, vereador, fazendeiro, presidente da associação de moradores, jornalista, secretário de habitação). Cada jogadora ou jogador escolhe ou sorteia uma personagem, lê para todos a sua descrição e guarda para si os segredos da personagem descritos na carta. A mediadora ou o mediador lê a “situação problema” do município e as jogadoras e os jogadores começam a discutir para sugerir soluções através das cartas dos instrumentos. Cada jogadora e jogador deve usar pelo menos uma carta de instrumento. A partida termina quando uma proposta de solução for encontrada ou quando o mediador determinar.

Figura 1
Carta de personagem e cidade fictícia do jogo Estatuto da Cidade

Nesse jogo, não há competição. As jogadoras e os jogadores devem trabalhar em conjunto para a resolução dos problemas apresentados. Também parece haver a necessidade de um conhecimento prévio seja sobre o Estatuto da Cidade, seja sobre as funções de cada agente interpretado. As cartas de instrumentos do jogo Estatuto da Cidade trazem uma descrição longa de artifícios complexos do planejamento urbano. A necessidade de um mediador também aponta para problemas na dinâmica do jogo e enfatiza a necessidade de alguém com certo grau de especialização para coordenar a partida – o que parece contraditório com a proposta do jogo.

Jogo Agentes urbanos e a cidade participativa

Outra experiência similar vem sendo desenvolvida no campo acadêmico. Desde 2015, o projeto de extensão universitária Cartilha da Cidade também vem trabalhando o tema da conscientização urbana a partir de jogos na Universidade de São Paulo, em São Carlos. Com coordenação do professor Miguel Buzzar e equipe formada por Desirée Figueiredo Carneiro, Gabriele de Campos Trombeta, Matheus Motta Vaz e Mayara Vivian dos Prazeres Cruz, o jogo Agentes urbanos e a cidade participativa envolve estudantes de graduação e pós-graduação da universidade, além de estudantes de Ensino Fundamental e Médio da rede pública de ensino. O objetivo do jogo é aproximar os temas e debates urbanos do cotidiano dos jovens, bem como promover a formação cidadã e o senso crítico em relação à cidade.

Figura 2
Tabuleiro-maquete do jogo Agentes urbanos e a cidade participativa

O jogo consiste em uma maquete de uma cidade fictícia e três cartas com problemas dessa cidade. As jogadoras e os jogadores se dividem no papel dos agentes: prefeitura, Câmara Municipal, secretarias, Ministério Público, associação de moradores, movimentos sociais, ONGs e empreendedor imobiliário. O objetivo do jogo é resolver os problemas da cidade consensualmente, não havendo uma vencedora ou um vencedor. O jogo termina quando o tempo determinado para a partida acaba, ou quando as jogadoras e os jogadores conseguem chegar a uma solução para os problemas.

Esse jogo segue a mesma estrutura do jogo Estatuto da Cidade. A interpretação de papéis pelos jogadores busca familiarizá-los com os níveis de representação política e apresentá-los aos instrumentos da democracia representativa. Assim, essas experiências têm grande mérito ao usar a linguagem lúdica para promover o debate urbano de forma mais acessível. O fato de os jogos serem cooperativos – não terem um vencedor único – também contribui para a ideia de cidade como uma construção coletiva.

Do ponto de vista da representação gráfica, essas experiências buscam fugir da representação técnica comum à arquitetura. A representação lúdica tem a capacidade de comunicar a um público mais amplo e não especializado, diferentemente dos desenhos técnicos, que demandam um avançado grau de abstração. Pensar outras formas de representação gráfica que possam democratizar o debate é uma forma de contribuir para a construção de uma cultura política participativa.

Porém, ambos os jogos se propõem a apresentar os agentes políticos e os mecanismos do sistema de representação política, sem considerar outras formas de mobilização. Ao se limitarem a tratar das ferramentas institucionais e representativas, esses jogos deixam de aproveitar a imaginação acionada pelo simbolismo para discutir e pensar outros modos de organização política e de atuação na cidade. Ao priorizar a solução de problemas e o consenso, eles também deixam de lado o potencial dos conflitos como ativadores urbanos. Como, então, essas ferramentas encaram a crescente descrença nas representações políticas tradicionais? Por que pensar a participação apenas pela chave do consenso se caminhamos para uma crise da democracia representativa?

Conflito, dissenso e outras formas de organização política

De fato, a década de 1960 ficou marcada como um momento de efervescência do debate em torno do conceito de participação – seja em projetos de arquitetura, no campo das artes plásticas ou em políticas públicas. Não obstante, é evidente que esse período acendeu questões sobre outras formas de representação e de mobilização que permanecem ativas e tem sido atualizadas. A filósofa belga Stengers (2015) analisa como a crise econômica de 2008 alertou para a necessidade de mudança em nossa relação com o sistema político-econômico e com o planeta. Para ela, as questões postas naquele momento se repetiriam por outros momentos de crise, já que, dificilmente, o sistema mudaria. A autora fala de um sentimento de paralisia diante da impossibilidade de mudança pelas vias usuais de representação política e da necessidade de “reinventar modos de produção e de cooperação que escapem às evidências do crescimento e da competição” (ibid., p. 15). A filósofa caracteriza os mecanismos de participação atuais como “domesticados”, por restringi-la a opiniões “construtivas” que, na verdade, apenas validam que tudo permaneça igual. Dessa maneira, ela defende que não é mais possível esperar alguma mudança por parte do Estado, sendo urgente pensar em outros modos de resistência. Segundo a autora, “[...] é preciso ficar atento ao surgimento contemporâneo de ‘outras narrativas’” (ibid., p. 71). Ao fazer uma crítica à especialização e ao distanciamento da ciência do cotidiano popular, a filósofa enfatiza a importância da autonomia e a “saturação das narrativas consensuais”.

Essa busca por outras formas de organização política pode ser observada, especialmente, a partir da década de 2010, quando uma nova onda de manifestações ao redor do mundo indicou a insatisfação dos representados com seus representantes e críticas à democracia atual.

No Brasil, as manifestações de junho de 2013, em várias capitais, demonstraram alto grau de indignação popular. Tendo como pauta inicial a defesa do transporte de qualidade e gratuito, os protestos também foram contra a realização dos megaeventos e culminaram em pedidos de impeachment da presidente. A fragmentação política brasileira ficou evidente quando parte dos manifestantes começou a negar a representação por partidos e políticos em argumentos por vezes anárquicos, por vezes reacionários. Apesar da dispersão das reivindicações e frentes, a pauta da mobilidade urbana e dos grandes eventos foi central, principalmente no estado do Rio de Janeiro.

No cenário político global, é possível destacar momentos como a Primavera Árabe, em 2010, que inspirou o movimento Occupy, iniciado em Wall Street-Nova York (2011) e disseminado por outras capitais do mundo. No Brasil, as jornadas de junho de 2013 tiveram desdobramentos até 2016, denunciando esquemas de corrupção nas obras voltadas para a Copa de 2014 e para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016 e demandando investimentos da mesma ordem de grandeza em saúde e educação. Ponto marcante dessa série de mobilizações foi o movimento de ocupação das escolas por estudantes secundaristas em algumas capitais do País, em 2015 e 2016, protestando contra medidas de corte de gastos na educação por meio de um sistema de autogestão das escolas com atividades culturais.

Também a partir de 2013, tem se constituído uma nova insurgência do movimento negro nos EUA, motivada por uma série de assassinatos de pessoas negras durante abordagens policiais violentas. O movimento Black Lives Matter se espalhou por várias cidades e vários países, de forma não centralizada, através de manifestações ao longo dos últimos anos. No entanto, durante a pandemia da covid-19 em 2020, novos assassinatos provocaram a retomada da onda de protestos em diversas cidades americanas, apesar da imposição de isolamento social. A urgência do tema e a histórica falta de respostas por parte dos governos fez com que, apesar da quarentena global, pessoas ocupassem seis quarteirões da cidade de Seattle, criando uma zona livre de policiamento gerida comunitariamente, denominada Capitol Hill Autonomous Zone (Chaz) ou Capitol Hill Organized Protest (Chop).

O contexto de emergência sanitária global está sendo, em alguns casos, um chamado à auto-organização. O impacto econômico gerado pela necessidade do isolamento social afetou muitas famílias, principalmente as que já estavam em condições de vulnerabilidade social. Para as favelas, o isolamento social é quase inviável devido ao seu tecido urbano. Diante da falta de políticas públicas, no Brasil, voltadas para essa população, muitas favelas se organizaram para prover cestas básicas e outras doações a partir da articulação de coletivos, sem apoio do governo ou de partidos políticos. O caso mais impressionante talvez seja o de Paraisópolis, em São Paulo, no qual a favela, por meio de doações e parcerias com empresas, conseguiu contratar três ambulâncias, capacitar 240 socorristas, montar 60 bases de atendimento, transformar duas escolas em casas de acolhimento e definir 652 “presidentes de rua” (moradores voluntários responsáveis por verificar as necessidades das famílias e acionar as ambulâncias). Já na primeira semana da chegada da pandemia no Brasil, Paraisópolis ajudou a organizar o G10 Favelas, um grupo de ajuda mútua entre as dez maiores favelas do País.

Mesmo com pautas distintas, essas mobilizações têm em comum a crítica ao sistema político-econômico hegemônico, a demanda pelo reconhecimento de forças insurgentes e a defesa por uma democracia mais direta e radical. Essas experiências também apontam para outra maneira de organização política: a articulação se deu via Internet e, em sua maioria, desvinculada de partidos políticos e representações políticas tradicionais.

A rapidez e a eficiência da criação de redes de mobilização e solidariedade a partir de questões urgentes demonstram a força da autonomia de organização da população, bem como revelam o total abandono por parte do Estado. Porém, da mesma forma que essas formas não tradicionais de mobilização apontam para uma democracia radical, também podem indicar respostas liberais e tendências populistas para a crise democrática. Desse modo, é preciso atentar para a possibilidade de uma participação autoritária, como definem Almond e Verba (1989). De que maneira é possível pensar em representações alternativas que busquem a autonomia cidadã, e não o assistencialismo, sem deixar de considerar o papel estatal?

Fica o questionamento sobre qual é o papel dos arquitetos e arquitetas na formação de uma cultura política democrática. A linguagem lúdica parece ter grande contribuição para a formulação de outros mecanismos de comunicação entre agentes nos processos participativos. Todavia, seria possível pensar, no âmbito do universo dos jogos cooperativos, em práticas que estimulassem a autonomia dos jogadores e das jogadoras? Até que ponto os jogos aqui apresentados não estão apenas reproduzindo as relações políticas tradicionais e existentes? Jogos que valorizassem a formação de conflitos poderiam incentivar a invenção de outras possibilidades de organização política, independentes do Estado e voltadas para as demandas particulares de cada contexto. Poderiam os jogos favorecerem a articulação de respostas autogestionadas aos conflitos dos seus territórios, valorizando, assim, os saberes comuns e a micropolítica?

Notas

  • 1
    Em 1953, no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) IX, o tema da habitação no pós-guerra foi motivo de preocupações. Nele, um grupo formado pelos membros mais jovens começou a demonstrar divergências quanto ao posicionamento dos fundadores da organização. O principal objetivo do encontro era formular um documento suplementar à Carta de Atenas, a Carta do Habitat. Porém, os arquitetos mais jovens e a velha guarda da instituição discordavam dos caminhos a serem tomados e o impasse ficou claro. O Ciam X, em 1956, seguiu com o mesmo tema, mas, dessa vez, foi organizado pelos membros mais jovens, que deram origem ao Team X.
  • 2
    Por input entende-se o que o sistema demanda e por output o que o sistema fornece para a sociedade.
  • 3
    Esse termo é utilizado na Teoria dos Jogos, um campo do pensamento matemático que estuda modelos de estratégia a partir da ação de jogadores com o fim de aplicar esses estudos de comportamento em diversas áreas do conhecimento.
  • 4
    Em junho de 2013, várias manifestações tomaram conta das principais capitais do País. Inicialmente tendo como pauta a defesa do passe livre após um aumento no preço das passagens, outras pautas foram somadas ao descontentamento, como a corrupção política, a realização da Copa do Mundo no País e o pedido de impeachment da então presidente Dilma Roussef. Um dos lemas das ruas nas Jornadas de Julho foi a frase “não me representa”, direcionada à classe política.
  • 5
    Base de dados e grupo de pesquisa criada em 1981, reunindo profissionais de diversos países que estudam sobre o impacto social e político das mudanças de valores culturais e crenças.
  • 6
    Organização independente em defesa dos direitos políticos e das liberdades civis criada em 1941 para ranquear a expansão da liberdade e da democracia no mundo.
  • 7
    A pesquisa realizada pelo WVS avalia a confiança interpessoal a partir do questionamento ao entrevistado se é possível ou não confiar na maioria das pessoas. A partir dessa pergunta bastante geral e simples, os índices indicam que mais de 90% dos brasileiros optam por não confiar nas pessoas.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Abr 2025

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2020
  • Aceito
    11 Dez 2020
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