Resumo:
Neste artigo, pretendo debater o ensino de filosofia como um problema genuinamente filosófico, mas que é negligenciado como tal em boa parte dos cursos de licenciatura em Filosofia, bem como em boa parte da chamada produção filosófica no Brasil. Estabeleço uma relação fundamental entre a prática filosófica e o ensino em sala de aula. Defendo a docência em filosofia como um chamado filosófico que convoca docentes e estudantes enquanto pensadores, mesmo que isso não se efetive na realidade concreta. Não pode haver um ensino verdadeiramente filosófico da filosofia se os professores não se colocarem, em sala de aula, como pensadores de fato, muito mais do que meros transmissores altamente capacitados no uso de instrumentos e ferramentas para transmitir conceitos históricos e estudantes dispostos à problematização típica da atividade filosófica. Nesse sentido, a sala de aula de Filosofia deve ser, acima de tudo, um espaço para aquilo que chamarei deatividade filosófica.
Palavras-chave: Ensino de Filosofia; atividade filosófica; sala de aula; docência
Abstract:
In this article, I intend to discuss the teaching of philosophy as a genuinely philosophical problem, but one that is neglected as such in a good part of the degree courses in philosophy, as well as in a good part of the so-called philosophical production in Brazil. I establish a fundamental relationship between philosophical practice and classroom teaching. I defend teaching in philosophy as a philosophical call that summons teachers and students as thinkers, even if this does not take place in concrete reality. There cannot be a truly philosophical teaching of philosophy if teachers do not place themselves, in the classroom, as real thinkers, much more than mere transmitters highly trained in the use of instruments and tools to transmit historical concepts and students who are disposed to the typical problematization of philosophical activity. In this sense, the philosophy classroom must be, above all, a space for what I will call philosophical activity.
Keywords: Teaching philosophy; Philosophical Activity; Classroom; teaching
"Quem é professor nato considera cada
coisa apenas em relação aos seus alunos - inclusive a si mesmo" (NIETZSCH,
JBM/BM, § 63, KSA 5.85)
A Filosofia talvez seja o único saber cujo grau de autocrítica seja tão profundo e tão constante quanto nenhum outro. É por isso que ela exige e permite que se pense a própria existência e o modo como ela é feita, transmitida e reproduzida. Pensar os fundamentos filosóficos do ensino de filosofia é pensar a própria concepção de Filosofia e a própria atividade filosófica. Sem querer parecer presunçoso, mas ensinar filosofia não é a mesma coisa que ensinar qualquer outra área, disciplina ou saber humano. Existem características no ensino da filosofia que transcendem o modo como outras áreas do conhecimento transmitem seus saberes, e isso faz do ensino de filosofia um ensino único. É por isso, também, que pensar seus fundamentos e o problema do seu ensino no Brasil é fazer uma autorreflexão profunda da qual pode emergir, inclusive, uma recusa por completo do modelo atual de ensino de filosofia.
Mas antes de adentrar especificamente no problema do ensino de filosofia, é importante mencionar o problema do ensino em geral. E quando falamos de “problema” aqui, referimo-nos não simplesmente aos problemas históricos, sociais e institucionais que envolvem o ensino como um todo, mas um problema de fundamento, um problema constitutivo do ensino, para não dizer ontológico. O ensino exige instrumentos e ferramentas para se constituir enquanto ensino. O que isso quer dizer? Quer dizer que não se ensina sem se utilizar, de alguma maneira, de ferramentas ou instrumentos adequados ao objeto (saber) ensinado. Para se ensinar História é necessário narrativas, textos, documentos históricos, diálogo, leitura, etc. Para se ensinar geometria, é necessário o recurso à imagem, a instrumentos de medição e construção gráfica das figuras, etc. De um modo geral, qualquer ensino exige o uso de instrumentos e ferramentas adequadas ao processo.
No caso da filosofia isso é um pouco mais complicado, pois quando falamos do ensino de filosofia parece que estamos apontando para algo manuseável, objetificado, acabado e que, simplesmente, podemos manipular sem muitas dificuldades. O ponto é que não bastam ferramentas ou instrumentos para o ensino de filosofia, é necessário filosofar, e filosofar não se resume a instrumentos ou ferramentas adequadas para a transmissão da filosofia. Mas abordaremos melhor isso mais à frente, bastando-nos agora simplesmente afirmar que o ensino de filosofia é muito mais que o mero uso de ferramentas e instrumentos adequados para sua transmissão, e que isso não seja entendido aqui como uma redução do ensino de outras áreas do conhecimento. Logo, a docência em filosofia é um chamado filosófico que convoca docentes e estudantes enquanto pensadores. Não pode haver um ensino verdadeiramente filosófico da filosofia se os professores não se colocarem como pensadores de fato, muito mais do que meros transmissores altamente capacitados no uso de instrumentos e ferramentas para transmitir conceitos históricos e estudantes dispostos à problematização típica da atividade filosófica. Mas afinal, o que é ensinar filosofia? É possível ensinar filosofia? Uma resposta imediata e rasteira seria aquela que diz que o ensino de filosofia é a transmissão de conteúdos filosóficos elaborados ao longo da história por filósofos. De certa maneira, não se pode negar que isso seria um tipo de ensino de filosofia, mas de uma filosofia objetificada/reificada, manuseável e supostamente fechada. Um ensino estéril, uma vez que a mera transmissão do conteúdo não faz com que o educando reflita sobre ele, nem que o professor torne o conteúdo ensinado uma experiência filosófica.
Discutir o ensino de filosofia passa necessariamente pela discussão sobre a definição de filosofia e o que é o próprio ato de filosofar. Nenhum dos dois problemas foi tratado de maneira unívoca por aqueles que se propuseram a defini-los, e a história da filosofia está recheada de tentativas, das mais variadas, em conceituar a filosofia e o filosofar. Todo esse debate acaba influenciando o sentido de ensinar ou transmitir a filosofia. Para além dessa discussão, existe aquela mais específica que diz respeito à formalização e institucionalização do ensino que torna o ensino de filosofia restrito ao conteúdo proposto pelo Estado e às instituições responsáveis. A resposta às perguntas mencionadas acima afetará diretamente o modo como se ensina a filosofia e seu papel em um cenário onde a educação se tornou uma mercadoria controlada e organizada por instituições que se colocam acima dela. Não falamos mais de escolas filosóficas, com seu próprio programa e conteúdo a ser discutido e debatido, estamos hoje no cenário de um controle educacional, onde os conteúdos e critérios são preestabelecidos pelo Estado e por uma lógica mercadológica. No final das contas, toda a discussão sobre filosofia e seu ensino passa necessariamente por esse roteiro de discussão.
Fazer filosofia depende, ao nosso ver, necessariamente daquilo que chamaremos aqui de postura filosófica1. A postura filosófica é uma postura de abertura ao diálogo, à investigação profunda, ao questionamento das estruturas que condicionam a própria arte de pensar, de educar e transmitir informação e a orientação para uma ação direta visando a transformação ou conservação das estruturas. Nesse sentido, e enquanto atividade constante, “filosofia” não é definível, pois é prática constante e constituinte. No lugar de se dizer “ensinar filosofia”, defendemos dizer “ensinar a prática filosófica a partir da atividade filosófica”. Essa atividade é, desde já, a adoção de inúmeros elementos históricos (inclusive o acervo histórico) que precisam ser, a todo instante, revisados, reavaliados e usados como ferramenta de crítica, construção ou desconstrução, como também uma proposta de intervenção direta, à sua maneira, na realidade concreta.
Concordamos com Cerletti (2009) quando este diz que o ensino de filosofia está muito mais preso ao próprio ato de filosofar do que a aspectos pedagógicos ou didáticos. É obvio que isso não significa que rejeitamos critérios pedagógicos e didáticos quando se trata de ensinar filosofia. A bem da verdade, não se ensina nada sem que critérios didáticos e pedagógicos estejam pressupostos. Mas ao se tratar da filosofia, seu ensino está muito mais condicionado pelo seu próprio significado que remete ao ato de filosofar do que por esses critérios. O ensino de filosofia e a sala de aula de filosofia não podem assumir de bom grado a estrutura tradicional sobre a qual a educação formal e institucional se erigiu, o que demonstra uma contradição histórico-social típica da nossa formação social, pois ao mesmo tempo que esse ensino ativo da filosofia não deve assumir os pressupostos das estruturas educacionais dispostas pelas instituições que controlam a educação, ele, ainda assim, se dará dentro desses mesmos limites da sociedade que permitem a sustentação dessas estruturas. É um jogo de constante oposição entre a realidade que determina as estruturas educacionais e de ensino e a possibilidade de superação dessa mesma realidade. Nessa estrutura determinada historicamente e socialmente, fica claro que os papéis estão bem delimitados durante o processo de formação e cada um deve cumprir com sua função predeterminada. Essa estrutura de ensino tradicional, que se reproduz na maioria das instituições de ensino do Brasil, prima por uma relação básica quadripartite: 1) aquele que (supostamente) sabe (o professor); 2) aquele que (supostamente) não sabe (aluno); 3) a transmissão do conteúdo predeterminado (pelo estado ou instituição competente); 4) verificação do apreendido (seja através de sistemas de avaliação ou pelo mercado de trabalho).
Todo esse processo revela uma estrutura de ensino acrítica e estéril que presta a um único propósito: a manutenção das relações sociais a partir da reprodução, via educação, das condições fundamentais de produção dessa sociedade. Nesse cenário, o ensino de filosofia que se submete a esse processo esterilizante de conhecimento, um processo pedagógico que cria servos do sistema dispostos a comporem as suas engrenagens de reprodução, será um ensino contrário ao sentido próprio da filosofia e do ato de filosofar. Sentido esse que também entendemos de forma semelhante a Deleuze e Guattari (1992). A filosofia é criação de conceitos, é invenção e reinvenção2. Para além destes autores, fazer filosofia, como diria Kant (2003), é dar uma finalidade última ao pensamento, ser capaz de pensar por si mesmo na produção de conhecimentos, e não uma mera repetição de conceitos consagrados historicamente. Tomando Sócrates como uma referência fundamental, filosofar é atividade interrogativa, investigativa e crítica, não escapando nada a seu crivo. Muito mais que resolução de problemas, a filosofia se coloca como criadora e identificadora de problemas na realidade. Esses fundamentos devem nortear todo e qualquer ensino de Filosofia, seja no ensino médio, seja no ensino superior.
Resgatando o sentido da filosofia a partir do próprio binômio (Filos+sofos) que lhe dá origem, podemos muito bem caracterizá-la como uma constante ausência. Esse saber que ansiamos sempre e constantemente não pode jamais ser assumido como alcançado no sentido de findado, acabado. A filosofia é busca constante, investigação constante e problematização de todo e qualquer fato na realidade. É sobre esses fundamentos que o ensino de filosofia deve se construir, não sobre a estrutura engessada que a tradição do ensino insiste em defender ou apenas a partir da reprodução mecanizada do acervo histórico.
É nesse sentido que defendemos juntamente com Cerletti (CERLETTI, 2009, p.09) que aprender e ensinar filosofia não está desligado do próprio ato de fazer filosofia (ato de filosofar). Filosofia e filosofar caminham juntos. Por isso é de extrema importância que o ensino de filosofia seja capaz de criar espaços para o pensamento, para a produção, problematização e investigação filosófica. Longe disso, o ensino de filosofia não passa de mera reprodução mecânica de conceitos consagrados pela história.
Até agora temos então que o ensino de filosofia, para ser verdadeiramente filosófico, deve respeitar aos seguintes fundamentos: ser investigativo, crítico, problematizador, dotado de um questionamento constante a todo e qualquer aspecto da realidade, permitir o espaço para o pensamento autônomo e para a criação de conceitos ou a reprodução crítica dos conceitos históricos ou sua rejeição. Este último elemento deixa bem claro que o ensino de filosofia não deve prescindir do acervo histórico disponível ao professor. Pelo contrário, esse acervo é ferramenta fundamental para a produção filosófica. O que não pode acontecer é um ensino completamente voltado para a transmissão mecânica desse saber, sem pensá-lo de maneira autônoma. Todas essas condições tornam o ensino de filosofia um ensino vivo e constante.
A aula de filosofia não acaba com o encerrar do horário ou com o fim do texto. Ela permanece, uma vez que é atividade constante, durante todo o tempo em que o problema permanecer vivo no investigador. É tarefa do professor promover essa vivacidade da filosofia para que ela se estenda para além da sala de aula. O perguntar filosófico é colocar o próprio ato de questionar em evidência e constância, um perguntar que não cessa e se reconstitui, mesmo após o encerramento de uma aula. Por isso, o ensino de filosofia foge ao modelo e estrutura tradicionais, é um ensino que não deve e não pode se limitar às paredes da sala de aula. Enquanto provocação à investigação constante, o ensino de filosofia se coloca como uma permanência. Como diria Cerletti “em sentido estrito, o perguntar filosófico não se detém nunca, porque, para um filósofo, o amor ou o desejo pelo saber nunca é preenchido.” (CERLETTI, 2009, p.23ss). Portanto, o ensino de filosofia deve se voltar para as condições de possibilidades de perguntas filosóficas e de autonomia para os estudantes. Interessante que, do que dissemos, podemos concluir que filosofia é ao mesmo tempo ausência e permanência. Ausência de um saber acabado e ausência do saber sempre buscado. Permanência do aspecto problematizador, permanência da inquietação e da investigação, inclusive para além dos muros da escola. A filosofia e seu ensino jamais deveriam se vestir de respostas prontas e conceitos encerrados em si mesmos.
Na sala de aula, o professor deve saber lidar com a inquietação própria da filosofia e provocá-la nos alunos. Mais do que ensinar conceitos históricos consagrados, o professor deve ensinar o desejo de filosofar, o desejo de desenvolver essa inquietação constante. Fica claro que o ato filosófico na sala de aula não está reduzido ao domínio do acervo histórico nem à erudição. Fazer filosofia está para além de apenas dominar e manusear os conceitos dos filósofos. Entendido dessa maneira, ensinar filosofia é ensinar a filosofar estimulando a intenção e a atitude insistente de perguntar, de problematizar, de criar e desconstruir conceitos e da busca por respostas, mesmo que, como de praxe, essas não apareçam tão facilmente. É ensinar a filosofar provocando o ato reflexivo, provocando a investigação, provocando a problematização.
É sempre bom reforçar que em nenhum desses casos se exclui o uso do acervo histórico. O que estamos defendendo aqui é que a reprodução mecanizada em sala de aula desse acervo não é fundamento suficiente para se classificar um ensino como filosófico, pelo contrário. A filosofia se constitui e se reconstitui a partir dos problemas históricos apontados e reconhecidos pelos próprios autores, pelos próprios agentes políticos mergulhados em uma formação histórico social específica. Não se deve negar isso. Mas em uma aula de filosofia, o espaço para a criação e recriação deve ser fundamental para a atividade filosófica. É por isso que podemos falar de repetição e criação na filosofia (Deleuze e Guattari, 1992). A originalidade estaria na capacidade tanto do professor quanto dos alunos de transformar o repetido, de gerar um descontínuo neste. É por isso que a filosofia está para além do campo da mera repetição, presa ao conteúdo escolástico e predeterminado pelas instituições de ensino. É nesse sentido que também podemos falar que a filosofia se coloca sempre como subversiva3, pois não pode ser moldada ou determinada por uma instituição que visa limitar a atividade filosófica, tornando a sala de aula de filosofia em uma simples repetição de conceitos. A filosofia exige, de seu praticante, autonomia, a simples reprodução de conceitos consagrados ou seu manuseio técnico, nem tanto.
A partir de Sócrates e Kant, é possível pensar uma relação direta entre a atividade filosófica e a autonomia do sujeito pensante no uso público de sua razão. A atividade socrática preza, fundamentalmente, pela capacidade crítica e uma visão do conhecimento enquanto processo contínuo, o que é contrário à noção de saber acabado e fechado. Em Kant, é a partir do uso público da razão que sou capaz de, autonomamente, desvencilhar-me da razão conduzida por outro e produzir filosofia de fato, não mera reprodução ao estilo escolástico. É por isso que também concordamos com Alain Badiou (2007) quando este diz que filosofia é repetição criativa. Uma tensão entre afirmação, oposição e a criação. Não há anulação de saberes como na ciência, pois a repetição criativa, a reinvenção, o processo de conhecimento contínuo e produção filosófica se faz e refaz na leitura dos clássicos e na problematização da realidade. No final, o que a filosofia repete não é o conhecimento determinado em si, mas o gesto de alterar a continuidade do que foi dito, eis a repetição criativa. Essa deve ser uma das características fundamentais da sala de aula de filosofia, um espaço de tensão entre a criação, repetição e, em acréscimo, desconstrução criativa de conceitos. A composição desses elementos em uma sala de aula de filosofia é que nos permite defender a ideia de um ensino verdadeiramente filosófico e não meramente reprodutivo.
Embora todo esse roteiro filosófico seja maravilhoso no papel, na prática ele depende de algo bem fundamental e que está fora do alcance do professor e de qualquer método de ensino: o desejo por filosofar. Mesmo que o ensino de filosofia seja pautado por todos os fundamentos que mencionamos, que seja capaz de criar espaços para o pensamento e problematização dos textos e da realidade, o desejo e o querer filosofar continua sendo um princípio de ação subjetivo, e o professor não pode incutir esse desejo de maneira forçosa no aluno, apenas provocá-lo. Se no final o aluno optar por não querer filosofar, não haverá nada que se possa fazer.
Mas nada disso isenta os cursos de formação de professores de um problema grave no debate sobre o ensino de filosofia, que é o caráter acrítico que por vezes a licenciatura, e até mesmo o bacharelado, assume. A formação acrítica impõe um acervo de leituras específico e um modo de ensinar voltado apenas para a reprodução dos conceitos e a leitura exegética dos textos. Isso ocorre porque, em sua maioria, os cursos de filosofia não colocam a questão do “como ensinar filosofia?” como um problema realmente filosófico. Ao nosso ver, o ensino de filosofia deveria ser objeto de problematização filosófica desde o início dos cursos de licenciatura e também de bacharelado, uma vez que o problema filosófico não se resume a um cronograma específico de curso. Essa formação acrítica certamente gera no aluno uma acomodação ao modelo de ensino e de atividade filosófica institucionalizada. O aluno que se prepara para ser professor acaba reproduzindo um modo de ensino estéril e acrítico, meramente reprodutivo, condicionado pela imposição do modelo educacional institucionalizado. O que temos é um modelo de curso que preza pelo acúmulo de conteúdos durante uma sequência pré-determinada de semestres letivos desde o início do curso, e somente no final, quase como um apêndice ao processo de investigação filosófica, é que aparece uma ou outra disciplina voltada, na maior parte das vezes, para a discussão sobre os instrumentos básicos para a reprodução daquele acúmulo de conteúdos filosóficos abordados desde o início do curso. Esse modelo é contrário à natureza da filosofia que deve se colocar enquanto problema constantemente. O ensino de filosofia deve ser um problema filosófico abordado desde o início dos cursos de graduação. Resolver o problema de “como ensinar filosofia?” deve ser pauta central nos cursos de licenciatura, para que isso não se torne um empecilho para a atividade filosófica durante a atividade docente, seja no próprio ensino superior, seja no ensino médio.
Isso nos leva a outro problema histórico que influencia sobremaneira o ensino de filosofia: a compatibilização da liberdade do ensino de filosofia com as exigências próprias da institucionalização dos saberes. Sócrates pode ser considerado como o marco histórico dessa institucionalização da filosofia e do controle do pensamento. Ao matar Sócrates, o Estado está dizendo que a atividade filosófica tem certos limites e que esta deve respeitar certo ordenamento constituído e reconhecido socialmente. Uma vez que o espírito investigativo que move a filosofia e o filósofo é ilimitado, que seu caráter crítico é radical e profundo, qualquer tentativa de ditar à filosofia como ela deve ser feita se torna incompatível com sua própria definição. A liberdade filosófica é inegociável, só podendo ser controlada à força, que é justamente o papel do Estado, tanto aquele que matou Sócrates, quanto este de hoje que predetermina conteúdos ou criminaliza a liberdade de pensamento e a atividade filosófica. A partir desse marco histórico, em que a morte de Sócrates representa a intervenção externa a fim de matar o pensamento que se faz livre das amarras da instituição, podemos dizer que passa a existir uma relação de incomensurabilidade entre a circulação livre da palavra filosófica e o controle estatal.
Esse controle da filosofia assume o caráter de escolarização a partir do momento em que todo e qualquer ensino de filosofia passa, de certa maneira, por um tipo de controle institucional. Essa escolarização pode retirar do ensino da filosofia um de seus fundamentos, qual seja, seu caráter subversivo. Em seu modus operandi, o Estado e as instituições sociais tendem a rejeitar qualquer prática que possa, eventualmente ou potencialmente, se tornar elemento de subversão. Um ensino de filosofia pautado nas condições aqui defendidas certamente será considerado dessa maneira. Quando a filosofia passa a ser tutelada, seu caráter subversivo é praticamente anulado e ela perde parte de seu poder de intervenção. Historicamente, a morte de Sócrates vem em nosso auxílio para representar essa esterilização do pensamento. Um pensador de seu tempo, crítico da realidade que o cercava, instigador da dúvida e do questionamento, colocou em xeque valores e instituições de seu período, tudo isso a seu modo e sem um caráter escolástico ou institucionalizado. Sócrates, se assim podemos dizer, era inimigo das instituições, do Estado e da educação formal e engessada (defendida, inclusive, pelos sofistas). Sua morte representa, em certa medida, a morte do pensamento livre e a violência das instituições contra aqueles que se propõem a filosofar. A mesma análise pode ser feita para a educação contemporânea como um todo, uma educação que se alicerça na lógica capitalista e, consequentemente, na racionalidade tecnológica assumindo o estatuto da centralidade. Segundo Mészáros, uma das funções principais da educação formal no sistema capitalista é a de produzir entre os educandos uma conformidade ou consenso no mais alto grau possível, e tudo isso dentro e por meio dos próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados (MÉSZÁROS, 2009). Nesse modelo de educação, a ideia é assegurar que cada indivíduo adote como suas as próprias metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema. É absurdo pensar educação hoje sem integrar essa ao modo de produção na qual ela se insere, mais absurdo ainda seria pensar uma educação institucionalizada que se proponha de maneira contrária ao que o sistema impõe. Essa é uma das contradições fundamentais que o ensino de filosofia deve enfrentar.
O caráter radical da filosofia, que consideramos ser um de seus principais fundamentos e condição imprescindível para seu ensino, é uma ameaça constante ao Estado e suas instituições. Não só ao Estado enquanto máquina artificial, mas também às instituições culturais, sociais, morais e políticas de uma sociedade. É importante deixar claro aqui que essa leitura não pretende ser uma idealização da filosofia e da atividade filosófica, e isso é fundamental ressaltar. A mesma filosofia (expressão que agora é tomada no seu sentido mais geral), que pode ser subversiva, pode ser também aquela utilizada para justificar a manutenção de certas instituições reguladoras. O que não falta são exemplos de autoras e autores, pensadoras e pensadores que, enquanto filhos e filhas do seu tempo, colaboram e colaboraram na produção de ideias cuja principal intenção era a reprodução das relações sociais e a confirmação/manutenção da realidade como esta se apresentava naquele determinado período histórico. Mas isso não é impedimento para reafirmarmos o desejo por um ensino de filosofia desalienante, subversivo e profundamente crítico. É possível pensar a educação em geral e o ensino de filosofia em específico como um processo de “transcendência positiva” da autoalienação típica da sociedade do Capital (MÈZÁROS, 2015, p. 59).
Isso é algo que não podemos deixar de apontar. Ao falarmos sobre os fundamentos filosóficos do ensino de filosofia, estamos também falando das características do ensino de filosofia em contraposição ao modelo que é proposto pelo Estado. A educação e o ensino são regulados pelo Estado. E é dentro desse modelo regulado de ensino que a filosofia, atualmente, se insere. Limitada aos critérios estabelecidos pelas instituições responsáveis pelo ensino dentro do Estado, nesse modelo de educação a filosofia torna-se instrumento condicionado. Ela deixa de se valer de seus próprios fundamentos e se vê tolhida e enviesada. Uma verdadeira filosofia pensa toda e qualquer categoria social, qualquer fato ou problema social. Mas as instituições, ao transformarem o modelo de ensino a partir de elementos e critérios predeterminados, reduz o ensino da filosofia a um ensino acrítico e mecânico, que incorpora e transmite aquelas categorias que antes deveriam ser, no mínimo, objetos de análise crítica.
Não há nada que não possa ser submetido ao crivo da crítica filosófica, mas quando o ensino dessa passa a ser parte integrante de um modelo institucionalizado e controlado, a filosofia torna-se estéril e seu ensino uma ferramenta para a manutenção dos modelos já propostos. Dentro desse modelo, o professor se vê obrigado a adequar-se aos critérios estipulados, tanto no ensino básico como no ensino superior. À potencialidade crítica se coloca uma funcionalidade prática para o ensino de filosofia, descaracterizando totalmente seu sentido e propósito histórico. Esse é o caso do ensino de filosofia voltado para a memorização de recortes de conceitos históricos visando unicamente o processo seletivo do vestibular. Sendo fundamental para formar sujeitos críticos capazes de questionar a realidade social, o ensino de filosofia deve se propor a partir de fundamentos que remontem ao seu sentido originário e permitam tanto ao professor quanto ao estudante desmistificar a realidade naturalizada.
É nesse sentido que devemos defender um ensino filosófico voltado para os fundamentos da própria filosofia e da atividade filosófica. O ensino de filosofia não deveria estar atrelado a mecanismos e critérios predeterminados por instituições supostamente responsáveis pela educação em geral. Mais do que critérios pedagógicos e didáticos, o ensino de filosofia remete a uma postura, uma tomada de posição, tanto do professor quanto dos estudantes em sala de aula. É fundamental que o ensino de filosofia não se construa limitado pela reprodução acrítica dos conceitos consagrados historicamente nem pelas exigências pragmáticas de uma produção acadêmica que visa apenas a quantidade e não a qualidade, e que, por muitas vezes, não respondem aos anseios da própria comunidade. A sala de aula não pode ser uma prisão, nem para o professor, nem para os estudantes, e o objetivo daquele, consciente de que todo o processo de ensino de filosofia exige uma retomada do próprio conceito originário de filosofia, é criar um espaço para que seus estudantes também possam ser filósofos ou, no mínimo, praticarem a atividade filosófica neste mesmo espaço. Não que isso certamente vá se realizar, mas essa deve ser a meta do ensino de filosofia e um de seus maiores fundamentos. O professor deve criar o espaço para a atitude e a atividade filosófica. Isso não excluí o uso do acervo histórico, mas este último deve ser meio para a criação, e não fim último do processo de ensino em filosofia. Por fim, por mais que o filosofar dependa de uma decisão subjetiva, pois não se pode obrigar ninguém a desejar filosofar, isso não é empecilho para que o ensino de filosofia se proponha como um espaço para se fazer filósofos e criar, ou desconstruir, conceitos.
"Os filósofos propriamente ditos, porém, são comandantes e legisladores: eles dizem ‘Assim deve ser!’; são eles que determinam o Para-onde? e o Para-quê? do homem e para isso têm a seu dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os dominadores do passado ( estendem suas mãos criadoras em direção ao futuro, e tudo o que é e foi se torna para eles meio, instrumento, martelo. Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é uma legislação, sua vontade de verdade é vontade de potência ( Há hoje tais filósofos? Houve já tais filósofos? Não é preciso haver tais filósofos?...” (JBM/BM § 203, KSA, 5.126).
Referências
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- SILVEIRA. M. A dança na filosofia: uma análise a partir do pensamento de Nietzsche na obra O lobo da Estepe de Hermann Griot: Revista de Filosofia, Amargosa -BA, v.22, n.2, p.242-252, junho, 2022.
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1
Com relação a este ponto, convém indicar a leitura de MACIEL (2015, p. 97) sobre o valor da autonomia no texto Schopenhauer educador de Nietzsche em que lemos: “Para realçar a ótica nietzschiana e suas influências no meio educacional, em particular na formação crítica do educador contemporâneo, Ghedin ajuíza que “pensar não é seguir outros pensamentos; pensar é atirar-se na direção da pergunta tendo como única segurança a liberdade que não se segura senão na história de nossa existência” (2003, p.186). Ainda de acordo com o pesquisador, “aquele que pretende enveredar-se pelos caminhos da Filosofia, há de se livrar das amarras massificantes, decifrar ideologias opressoras que se escondem por detrás das belas mentiras que parecem verdades, buscar a independência” (2003, p.186). É esta independência que o caráter educacional de Nietzsche permeia, e consente que o sujeito conquiste sua autonomia, outrora, fundamentado na prática”.
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2
Em nota no livro Nietzsche e a aurora de uma nova ética, AZEREDO (2021, p. 22) remete à criação de conceitos deleuziana à interpretação em Nietzsche: “Efetivamente, a definição da filosofia como criação de conceitos é de Deleuze e Guattari. No livro O que é a filosofia, eles rejeitam defini-la como contemplação, reflexão e comunicação, reconhecendo no filósofo um amigo do conceito, por o ter em potência, e na filosofia o domínio de sua criação: "A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos", escrevem (DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a filosofia. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Muñoz. São Paulo: editora 34, 1992, p. 13). Todavia, essa nova compreensão tem uma genealogia que reconhece em Nietzsche sua possibilidade de afirmação quando a ele remete: "...segundo o veredicto nietzschiano, você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria..." (op. cit., p.15). (...) Nietzsche permite que se entenda um conceito na filosofia como construção, invenção, criação, que remonta à interpretação desde as lutas entre vontades de potência enquanto interpretação”.
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3
Em nossa ótica, se não houver algo de subversivo na filosofia, ela se constituirá em crença passiva consoante a Nietzsche.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Dez 2022 -
Data do Fascículo
Sep-Nov 2022
Histórico
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Recebido
10 Jul 2022 -
Aceito
31 Out 2022