Open-access Perfil vocal de indivíduos 46,XX com hiperplasia adrenal congênita

RESUMO

Objetivo  Descrever o perfil vocal de indivíduos 46,XX com hiperplasia adrenal congênita, acompanhados no Ambulatório de Genética da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Método  Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, com corte transversal. A amostra foi de conveniência e participaram do estudo 28 voluntários, 14 diagnosticados com hiperplasia adrenal congênita, acompanhados pela equipe multiprofissional do Ambulatório de Genética da UFBA, e 14 indivíduos 46,XX sem alterações vocais e ausência de patologia de cunho endócrino e/ou genético. A coleta das vozes foi realizada individualmente, em um ambiente silencioso, com as participantes devidamente sentadas. Realizaram-se análises perceptivo-auditiva (CAPE-V) e acústica.

Resultados  Em relação ao julgamento qualitativo do pitch, verificou-se que oito (61,54%) pacientes do grupo com hiperplasia adrenal congênita apresentaram um padrão vocal agravado e 8 (61,54%) do grupo sem a doença apresentaram um padrão vocal agudizado. Houve diferença estatisticamente significante entre os grupos apenas para as medidas da análise perceptivo-auditiva (CAPE-V) grau geral (p = 0,01), rugosidade (p = 0,00) e pitch (p = 0,01). Os demais parâmetros investigados na análise acústica não diferiram significativamente (p > 0,05).

Conclusão  O presente estudo demonstrou que indivíduos 46,XX com hiperplasia adrenal congênita, mesmo submetidos à terapêutica hormonal, apresentam qualidade vocal rugosa, pitch agravado e voz desviada.

Descritores Hiperplasia Adrenal Congênita; Transtornos do Desenvolvimento Sexual; Voz; Qualidade Vocal; Percepção Auditiva

ABSTRACT

Purpose  Describe the vocal profile of 46,XX congenital adrenal hyperplasia (CAH) patients followed up at the Genetics Outpatient Clinic of the Federal University Bahia (GOC-UFBA).

Methods  This is a descriptive, exploratory, cross-sectional study. The study sample consisted of 28 volunteers: 14 individuals diagnosed with CAH, followed up by the multiprofessional team of the GOC-UFBA, and 14 46,XX individuals without vocal changes and endocrine and/or genetic pathologies. Voice sample collection was performed individually in a quiet environment with participants properly seated. Acoustic (PRAAT program) and auditory-perceptual (Consensus Auditory-Perceptual Evaluation of Voice - CAPE-V) analyses were conducted.

Results  In the qualitative assessment of pitch, eight (61.54%) patients in the CAH group showed low vocal pattern and eight (61.54%) individuals in the group without CAH presented high vocal pattern. There were statistically significant differences between the groups only for the following vocal attributes of the CAPE-V: overall severity (p=0.01), roughness (p=0.00), and pitch (p=0.01). No statistically significant difference was observed in the other acoustic parameters investigated (p>0.05).

Conclusion  The present study demonstrated that 46,XX CAH individuals, even when submitted to hormone therapy, present rough, low, deviant voice.

Keywords Congenital Adrenal Hyplerplasia; Disorders of Sex Development; Voice; Voice Quality; Auditory Perception

INTRODUÇÃO

A comunicação oral humana é algo complexo. Por meio de palavras, transmitimos uma mensagem que, impregnada de sentimentos, estabelece com o outro uma relação comunicativa. A voz encontra-se como protagonista, representando as emoções do sujeito, revelando sua identidade e suas intenções. A voz é considerada uma das expressões mais fortes da personalidade(1).

Um dos fatores orgânicos que promovem mudanças na voz do indivíduo é a influência hormonal. Em razão da influência dos diferentes hormônios sexuais, há uma diferenciação entre o padrão vocal de homens e mulheres. Essas modificações vocais se tornam mais comuns no período da puberdade e vão se estendendo até a idade adulta. Alterações nos níveis dos hormônios esteroides sexuais, ao longo do desenvolvimento do indivíduo, serão responsáveis pelas modificações anatomofisiológicas dos órgãos e/ou tecidos-alvo. Hormônios, principalmente estrogênios e androgênios, serão determinantes para o desenvolvimento da laringe, bem como para a fisiologia vocal(2,3).

Estudos recentes apontam a presença de receptores dos hormônios esteroides sexuais (androgênicos e estrogênicos) na laringe, no músculo vocal e nos tecidos mesenquimais(3). Níveis elevados de andrógenos, então, podem levar ao aumento da massa nos tecidos da laringe, modificando o ciclo de abertura e fechamento das pregas vocais, bem como à redução na frequência fundamental(4,5).

Há evidências também de que as concentrações de hormônios sexuais com fatores antropométricos (altura, índice de massa corporal, peso corporal, relação peito-abdômen, testosterona, estradiol, desidroepiandrosterona, hormônios luteinizante e folículo-estimulante) influenciam a qualidade vocal. Um estudo na Alemanha analisou 2.381 indivíduos, na faixa etária de 40 a 79 anos, pareados por sexo e idade, tendo constatado a correlação desses fatores com níveis de pressão sonora e frequência fundamental em homens e mulheres. Quanto maior a exposição aos andrógenos, principalmente em mulheres, mais evidente o processo de virilização.

A hiperplasia adrenal congênita (HAC) é uma doença autossômica recessiva resultante da deficiência de uma das cinco enzimas necessárias à síntese de cortisol. Por essa patologia promover hiperprodução de andrógenos pela glândula adrenal, as mulheres (indivíduos 46,XX) apresentam pseudo-hermafroditismo feminino e são as mais acometidas com agravamento da voz pelo processo de virilização (masculinização)(4-6).

A aquisição do padrão vocal masculino promove inúmeros prejuízos na esfera biopsicossocial do sujeito. A exposição constante a andrógenos intensifica o processo de virilização e pode piorar o prognóstico, por isso a importância do tratamento e do acompanhamento multiprofissional desde a infância(7-9). A avaliação vocal pelas análises perceptivo-auditiva e acústica mostra-se um importante instrumento clínico para o monitoramento e o acompanhamento desses pacientes.

Estudos(10-12) relatam a importância da análise multidimensional da voz, compreendida por um conjunto de métodos que se complementam. As análises podem ser de cunho subjetivo e/ou objetivo, dependendo da necessidade do avaliador. Na prática clínica, a análise perceptivo-auditiva é a mais utilizada, considerada padrão de referência e muitas vezes soberana na avaliação vocal, apesar da sua subjetividade e limitações. Fornece dados essenciais sobre a anatomofisiologia da laringe, o que permite caracterizar o grau e o tipo do desvio vocal, quando presente. O método de análise acústica dispõe de dados objetivos e quantificados com base em programas computadorizados, como o PRAAT, gratuito e de fácil manejo, que fornecem medidas como: frequência fundamental, medidas de intensidade, ruído e perturbação de frequência e intensidade, bem como informações a respeito de alterações nos padrões vocais ligados às mudanças laríngeas(13). É possível também obter a descrição qualitativa de padrões visuais do sinal vocal por meio da análise espectrográfica, semelhante à análise perceptivo-auditiva, em razão de seu caráter subjetivo(13-16).

Apesar das discussões a respeito dos riscos da virilização precoce em indivíduos (46,XX), nos últimos dez anos, há escassez de estudos a respeito das vozes dessa população. Para proporcionar uma intervenção multiprofissional mais integrada, o presente estudo visou descrever o perfil vocal de indivíduos 46,XX com hiperplasia adrenal congênita, acompanhados em um Ambulatório de Genética.

MÉTODO

Este estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e da instituição coparticipante, o Ambulatório Magalhães Neto (AMN), tendo sido realizado em conformidade com as normas vigentes para a pesquisa envolvendo seres humanos, segundo a Resolução no 466/12, do Conselho Nacional de Saúde, sob o parecer no 5.662/2016.

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, com corte transversal. A coleta de dados foi realizada entre fevereiro e junho de 2017. Foram convidados todos os pacientes com HAC, de acordo com os critérios de inclusão da pesquisa, para o processo de amostragem, mas somente 14 aderiram ao termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). A amostra, então, foi de conveniência e participaram do estudo 28 voluntários, 14 diagnosticados com HAC (46,XX), acompanhados pela equipe multiprofissional do Ambulatório de Genética (UFBA), e 14 indivíduos 46,XX sem HAC, sadios. Ambos os grupos foram pareados por idade.

Os requisitos de inclusão dos participantes com HAC foram: Indivíduos 46, com hiperplasia adrenal congênita, na faixa etária de 12 a 45 anos; não estar em tratamento hormonal; ser alfabetizado; contar com acompanhamento multiprofissional em saúde; aceitar participar da pesquisa e assinar o TCLE dos sujeitos ou o termo de assentimento.

Os critérios de não inclusão dos indivíduos com HAC foram: apresentar alguma alteração neurológica e/ou psiquiátrica que inviabilizasse a coleta de dados; apresentar alterações vocais decorrentes de abuso vocal, tabagismo, etilismo e outras síndromes endócrinas e/ou congênitas. Os critérios de exclusão dos participantes com HAC foram: interrupção do tratamento adotado; desistência a qualquer momento do estudo; não coleta de dados para avaliação vocal; irregularidades no acompanhamento multiprofissional.

Os critérios de inclusão para o grupo sem HAC foram: indivíduos 46, na faixa etária de 12 a 45 anos; não apresentar queixas vocais decorrentes de abuso vocal, tabagismo, etilismo nem outras síndromes endócrinas e/ou congênitas; não relatar alterações vocais decorrentes do período menstrual, pré-menstrual ou gravidez, bem como gripe e/ou alergias respiratórias no dia da coleta; ser alfabetizado; aceitar participar da pesquisa e assinar o TCLE dos sujeitos ou o termo de assentimento (indivíduos menores de 18 anos).

Para caracterizar a amostra, foram coletados dos prontuários: idade, identidade do gênero adotada, classificação clínica, casos na família (herança genética), tipo de tratamento (medicamentoso e/ou cirúrgico), uso do medicamento (regular ou irregular), níveis séricos de hormônios esteroides (testosterona, 17-hidroxiprogesterona, LH e FSH), cariótipo, data do diagnóstico e intervenção multiprofissional.

Para agendar o dia da avaliação vocal, a pesquisadora entrou em contato com os participantes interessados no estudo. Foi salientada a importância do repouso vocal no dia da avaliação vocal e das contraindicações ao procedimento (presença de azia/refluxo, resfriados, inflamações de garganta e qualquer patologia do trato respiratório).

A coleta das vozes foi realizada individualmente, em um ambiente silencioso (nível de ruído ambiental < 45 dB), com as participantes devidamente sentadas, utilizando-se o Programa PRAAT. As emissões foram captadas por microfone Karsect HT9 acoplado ao adaptador PureAudioTM USB-AS, posicionado a 4 cm da boca com ângulo de captação direcional de 45o, o qual converte o som integrado do notebook Lenovo (modelo: Ideapad 320) em um som de alta qualidade, eliminando o ruído.Solicitou-se ao participante: emissão do /Ɛ:/ longo em tom e intensidade habitual; /Ɛ:/ produzido do mais grave ao mais agudo que conseguisse; contagem de 1 a 30; produção de sentenças propostas pelo CAPE-V(17) e fala espontânea (Como está sua voz?). Houve adaptação do Protocolo CAPE-V, tendo se utilizado a vogal /Ɛ:/ para facilitar a análise acústica posterior.

Para a análise perceptivo-auditiva, optou-se pelo Protocolo CAPE-V (Consensus Auditory – Perceptual Evaluation of Voice – ASHA, 2003), uma escala analógico-visual (EVA) em que seis parâmetros predeterminados (grau geral, rugosidade, soprosidade, tensão, pitch, loudness) são avaliados por meio de uma marcação analógica linear em centímetros (0 a 10 cm). A ressonância, pitch e loudness, foi avaliada também de maneira qualitativa.

Participaram três juízes fonoaudiólogos, especialistas na área de voz, atuantes em análise acústica computadorizada e com experiência na aplicação do CAPE-V no período de três a oito anos. O Programa PRAAT 5.2.0 foi utilizado para analisar as medidas acústicas: frequência fundamental (f0), extensão vocal, medidas de perturbação de jitter local (%) e shimmer local (%), proporção harmônico-ruído (dB). A taxa de fo usada para análise das amostras de fala foi de 8.000 Hz. Foram considerados os seguintes valores de normalidade para mulheres: jitter local < 1% e shimmer local < 3%. A extensão vocal foi obtida do intervalo de menor e maior fo alcançada durante a produção da vogal sustentada. Realizou-se também análise espectrográfica(18) (forma do traçado, grau de escurecimento, estabilidade do traçado, presença de ruído e de sub- harmônicos). Uma das limitações da análise acústica foi a falta de correlação entre as medidas acústicas e o espectrograma.

Os mesmos juízes que realizaram a análise espectrográfica das amostras das vozes foram convocados para a análise perceptivo-auditiva. O material foi enviado por e-mail, no formato PDF (Ficha e Instruções Iniciais) e WAV (Vozes), e os juízes foram cegados quanto à faixa etária e às queixas vocais dos pacientes, sendo informados apenas dos objetivos do estudo e orientados a escutar as vozes quantas vezes fossem necessárias em ambiente silencioso (nível de ruído ambiental < 45 dB), seguindo o Protocolo CAPE-V adaptado.

Após a avaliação das vozes pelos juízes, foi realizada a análise estatística descritiva por meio do software STATA (Stata Corporation, College Station, Texas), versão 12.0, com valores de média, mediana e porcentagem simples. As variáveis ordinais (grau geral, rugosidade, soprosidade, tensão, pitch e loudness) e numéricas (frequência fundamental [f0], extensão vocal, medidas de perturbação de jitter e shimmer e proporção harmônico-ruído) foram analisadas estatisticamente, por meio do teste não paramétrico Mann-Whitney, adotando-se o nível de significância de 5%.

O kappa varia entre 0 e 1, podendo ser analisado da seguinte maneira: K < 0,4 é pobre; 0,4 ≤ K < 0,75 é satisfatório a bom; K ≥ 0,75 é excelente (FLEISS, 1981). A confiabilidade interavaliadores, por meio do coeficiente de Kappa, das três juízas foi de 0,6, sendo considerada boa. Com base nas três análises, foi realizada uma média para cada parâmetro da escala CAPE-V.

Para classificar o grau de desvio geral na escala CAPE-V, optou-se pelo padrão brasileiro(17), no qual os escores entre zero e 35,5% são considerados normais; entre 35,6% e 50,5%, desvio leve; de 50,6% a 90,5%, desvio moderado e, a partir de 90,6%, desvio intenso.

RESULTADOS

Foram estudados 12 (85,71%) pacientes com a forma clássica da HAC e dois (14,29%) com HAC perdedora de sal. Entre os 14 participantes, dois (14, 28%) tinham entre 12 e 18 anos, sete (50%), entre 19 e 30 anos e cinco (35,72%), mais de 30 anos. As Tabelas 1 e 2 sumarizam as características clínicas das participantes com HAC e sem HAC desse estudo.

Tabela 1
Características clínicas dos pacientes avaliados com hiperplasia adrenal congênita (n = 14)
Tabela 2
Características clínicas dos pacientes avaliados sem hiperplasia adrenal congênita (n = 14)

Os resultados descritivos das avaliações vocais perceptivo-auditiva (CAPE-V) e acústica (análise espectrográfica) realizadas pelos três juízes fonoaudiólogos são demonstrados na Tabela 3. Para analisar as variáveis anteriormente citadas, foi necessário isolar da análise estatística uma única paciente que não fazia uso da medicação regularmente, para evitar interferências nas avaliações perceptivo-auditiva e acústica de fonte glótica.

Tabela 3
Resultados descritivos das avaliações perceptivo-auditiva e acústica da voz em ambos os grupos (n = 26)

Nota-se que parâmetros perceptivo-auditivos, grau geral, rugosidade, soprosidade, tensão, pitch e ressonância encontram-se desviados no grupo com HAC. Quanto à análise do espectrograma, verificou-se predomínio de instabilidade e ruído no traçado de indivíduos com HAC.

Em relação à Tabela 4, nota-se que há uma diferença estatisticamente significante entre os grupos, apenas para as medidas da análise perceptivo-auditiva (CAPE-V) grau geral (p = 0,01), rugosidade (p = 0,00) e pitch (p = 0,01). Para as medidas da análise acústica, não se observaram diferenças estatisticamente significantes entre os grupos com HAC e sem HAC para nenhuma das medidas.

Tabela 4
Comparação da mediana dos valores referentes à análise perceptivo-auditiva (CAPE-V) e análise acústica (PRAAT) em pacientes com HAC e sem HAC, segundo o Teste de Mann-whitney (*P-valor < 5%)

DISCUSSÃO

Os resultados encontrados na análise perceptivo-auditiva (CAPE-V) estavam mais desviados em pacientes com hiperplasia adrenal congênita (HAC), em comparação a pacientes sadios. Apresentaram significância estatística os parâmetros de grau geral, rugosidade e pitch.

Apesar de inúmeras discussões a respeito da influência hormonal na qualidade vocal de indivíduos 46,XX, há escassez de publicações discutindo o padrão vocal na HAC. Estudos envolvendo homens transexuais submetidos à harmonização hormonal e seus reflexos na voz humana são comuns na literatura, apesar de as portadoras de HAC serem comparadas a esse grupo. Optou-se por confrontar conceitualmente os achados encontrados com estudos existentes na área. A laringe é um órgão hormônio-dependente, fato que a torna suscetível a alterações hormonais ao longo do desenvolvimento do indivíduo. A testosterona é um dos hormônios androgênicos responsável pelo crescimento anterior-posterior da laringe, abaixamento e aumento no tamanho e volume das pregas vocais. Essa mudança é mais evidente em meninos, durante a muda vocal(19,20).

A puberdade precoce em meninas com HAC colabora para o aparecimento de alterações laríngeas e vocais. Um estudo(7) comparou a laringe de uma criança com HAC, aos 4 anos de idade, com uma de 10 anos de idade, destacando a semelhança no tamanho em razão da influência hormonal, evidenciando a presença de caracteres masculinos secundários androgênicos (pelos pubianos, aumento da massa muscular e pitch agravado). De acordo com a literatura, não há diferenciação no padrão vocal de meninos e meninas durante a infância(21-23). Após a puberdade, sob influência hormonal, a laringe sofrerá modificações anatomofisiológicas e fará a transição de infantil para adulta(24).

Em mulheres com HAC, mesmo após terapêutica hormonal, há tendência a virilização corporal e, consequentemente, agravamento da voz, por ação androgênica. Diagnóstico tardio colabora para mais exposição dos pacientes aos hormônios andrógenos. A maioria das participantes do grupo com HAC apresentou alterações nos parâmetros perceptivo-auditivos da voz, principalmente na análise qualitativa do pitch, concordando com alguns estudos(2-6). A maior parte dos pacientes do grupo com HAC apresenta padrão vocal agravado e a maioria dos pacientes sadios apresenta um padrão vocal agudizado.

Na prática clínica, a análise perceptivo-auditiva é considerada o padrão-ouro, portanto soberana em relação às outras(1,25). Por meio de um fenômeno essencialmente auditivo, é possível identificar e diferenciar uma voz normal de uma extremamente comprometida, fato que colabora para os achados deste estudo. Na análise vocal perceptivo-auditiva do grupo com HAC, os parâmetros grau geral, rugosidade, soprosidade e pitch apresentaram um desvio leve, diferentemente da loudness e da tensão, com valores dentro da variabilidade normal da voz.

O sistema de ressonância vocal consiste no conjunto de elementos do aparelho fonador que guardam íntima relação entre si, visando à moldagem e à projeção vocal(1,25). O uso equilibrado desse sistema confere à emissão um ajuste perfeito e uma qualidade sonora difusa, dando a sensação de que aquela voz pertence ao falante. O predomínio de um foco ressonantal compromete a interação fonte-filtro, tornando-a menos eficiente pela excessiva concentração de energia em uma área específica do aparelho fonador. A amplificação torna-se pobre e não há presença de harmônicos definidos(1,25). Na amostra de pacientes com HAC, constataram-se alterações no foco ressonantal e, consequentemente, reflexos na qualidade vocal.

Na literatura(1,25), pacientes com o foco laringofaríngeo apresentam qualidade vocal tensa-estrangulada, comprimida, com pouca projeção, em razão do tensionamento do conjunto laringe e faringe. Na maioria dos casos, é encontrada em indivíduos com dificuldade de expressar sentimentos de agressividade. A compensação nasal pode ocorrer nos casos de foco vertical baixo intenso(1).

Um estudo com DDS(7) apontou problemas relacionados à terapêutica hormonal, como abandono do tratamento em razão de seus efeitos, falta de recursos para a compra de medicamentos ou demora para consegui-los no Sistema Único de Saúde, inadequação na administração da medicação (pais ou cuidadores não letrados). Esse fato, associado à precoce puberdade, na maioria das meninas com HAC, propicia alterações vocais e gera conflitos quanto à imagem corporal. Das 14 pacientes acompanhadas, somente uma paciente não fazia uso regular da medicação. Todos os parâmetros perceptivo-auditivos apresentaram desvio moderado e, quanto à análise acústica, a frequência fundamental média estava em 120 Hz.

A mudança no padrão vocal de homens transexuais após terapia hormonal assemelha-se aos efeitos sofridos pelas portadoras de hiperplasia adrenal congênita após exposição a andrógenos. Um estudo(26) prospectivo, no período de 12 horas, analisou os reflexos na qualidade vocal de sete homens transexuais após terapia hormonal com testosterona. Houve abaixamento na frequência fundamental, após seis meses de terapia hormonal.

Apesar de o padrão-ouro na análise vocal ser a análise perceptivo-auditiva, têm-se usado programas computacionais para fornecer dados quantificáveis e mais objetivos, por meio de análise acústica. Os parâmetros acústicos podem variar e sofrem influência dos instrumentos utilizados na avaliação, ruído ambiental, sexo e idade do falante. Ajudam o clínico a entender o mecanismo de fonação nas diferentes realidades vocais; apesar de ser uma análise objetiva e não invasiva, ainda é considerada uma avaliação complementar em relação à análise perceptivo-auditiva. Permite descrever quase completamente a voz humana por meio da análise da frequência fundamental (f0), medidas de perturbação (shimmer e jitter) e medidas de ruído (HNR)(27-29).

A frequência fundamental representa o número de ciclos glóticos realizados pelas pregas vocais por segundo(1). Resulta da interação do comprimento, tensão e massa das pregas vocais durante a fonação. Um trato vocal mais longo e maior, como o do sexo masculino, alcança sons graves com facilidade.

A voz de homens e a de mulheres resultam de características anatômicas e fisiológicas particulares de cada aparelho fonador. Em geral, um trato mais alongado apresenta pregas vocais (ppvv) compridas e produz extensão vocal em baixos tons; já um trato vocal mais curto tem ppvv curtas e extensão vocal em frequências altas.

Estudos(27,30) apontam para a frequência fundamental média esperada para mulheres adultas em torno de 205 Hz; no sexo masculino, 113 Hz. Apesar de a análise perceptivo-auditiva qualitativa do pitch destacar a presença de um padrão vocal grave das pacientes com HAC, na análise acústica a mediana do grupo apresentou valores esperados para normalidade (Md: 200,66). Os valores encontrados para o grupo com HAC estão dentro da normalidade, apesar de o grupo sem HAC apresentar uma mediana maior do que o grupo com HAC.

Torna-se necessário salientar que a quantidade de participantes foi um aspecto limitador do presente estudo. Por se tratar de uma amostra de conveniência, baseada em uma amostragem não probabilística, não é possível realizar generalizações quanto à população estudada. Contudo, para reduzir as variáveis confundidoras, optou-se por utilizar um grupo comparação pareado por idade. Além disso, não foi possível realizar avaliação otorrinolaringológica, bem como aplicar o Protocolo de Autopercepção Vocal (IDV), complementares a uma análise multidimensional mais fidedigna da voz e da laringe, permitindo, assim, identificar possíveis alterações laringológicas e suas repercussões na qualidade vocal do indivíduo, essenciais à intervenção multiprofissional.

CONCLUSÃO

O presente estudo demonstrou que indivíduos 46,XX com hiperplasia adrenal congênita, mesmo submetidos à terapêutica hormonal, mantêm tendência ao agravamento da voz, possivelmente por influência androgênica. Indivíduos com HAC apresentaram qualidade vocal rugosa, pitch agravado e desviada. Torna-se necessária a realização de novos estudos envolvendo não somente a análise vocal, tendo em vista que a alteração vocal interfere na qualidade de vida do sujeito.

  • Trabalho realizado na Universidade Federal da Bahia – UFBA - Salvador (BA), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nada a declarar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2018
  • Aceito
    13 Set 2019
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