Resumos
O ensaio debate, sob a perspectiva filosófica, dilemas éticos que se põem para os pesquisadores no desenvolvimento de sua prática científica no atual cenário social, que, ao mesmo tempo que é marcado por um relativismo ético universalizado, se vê interpelado pelas exigências de legitimação ética do agir. De um lado, os pesquisadores enfrentam pressões do mundo do mercado, contexto uterino em que se dá a vida humana na atualidade; de outro, são interpelados por demandas igualmente fortes de natureza moral. O presente texto discute, então, o lugar da normatividade legal na interface com a legitimidade ética, bem como a relação das determinações heteronômicas, vinculadas à lógica pragmática hegemônica na vida social contemporânea, com a sensibilidade moral que se impõe ao cientista. Busca, assim, subsidiar as discussões e as iniciativas que estão sendo conduzidas no momento pela comunidade científica nacional com vistas à elaboração e à formalização de critérios éticos para a prática investigativa, particularmente na esfera das Ciências Humanas.
Pesquisadores; Produção Técnico-Científica; Pesquisa Educacional; Ética
This essay discusses, from the philosophical perspective, ethical dilemmas posed to researchers in developing their scientific practice in the current social scenario, which is marked by a universalized ethical relativism and at the same time is challenged by the demands of ethical legitimacy of the act. On the one hand, researchers face pressure from the world market, a visceral context in which human life takes place today; on the other hand, they are challenged by equally strong demands of a moral nature. The present paper discusses the place of legal normativity in the interface with ethical legitimacy, as well as the relationship of heteronomic determination linked to the logic of hegemonic pragmatism in contemporary social life, with the moral sensibility imposed on scientists. Therefore, it attempts to support the discussions and initiatives that are currently being conducted by the national scientific community with a view to the preparation and formalization of ethical criteria for research practice, particularly in the sphere of the humanities.
Researchers; Tecnical Scientific-production; Educational Research; Ethics
El ensayo debate, desde la perspectiva filosófica, dilemas éticos que se presentan a los investigadores en el desarrollo de su práctica científica en el actual escenario social que, al mismo tiempo que es marcado por un relativismo ético universalizado, se ve interpelado por las exigencias de legitimación ética del actuar. Por una parte, los investigadores enfrentan presiones del mundo del mercado, contexto uterino en el que se da la vida humana en la actualidad; por otra, son interpelados por demandas igualmente fuertes de naturaleza moral. El presente texto discute, entonces, el lugar de la normatividad legal en la interfaz con la legitimidad ética, así como la relación de las determinaciones heteronómicas, vinculadas a la lógica pragmática hegemónica en la vida social contemporánea, con la sensibilidad moral que se impone al científico. Busca, de este modo, subsidiar las discusiones e iniciativas que son conducidas en el momento por la comunidad científica nacional con miras a la elaboración y formalización de criterios éticos para la práctica investigativa, particularmente en la esfera de las Ciencias Humanas.
Investigadores; Producción Técnica-Científica; Investigación Educativa; Ética
Devendo desenvolver sua atividade num cenário social marcado por um exacerbado relativismo moral, o pesquisador se vê diante de um conflito entre exigências de legitimação ética de seu trabalho e as pressões do mundo do mercado, contexto uterino em que se dá a vida humana na contemporaneidade. Tomo a expressão "mundo do mercado" como designativa de todas as injunções que nascem das complexas relações que entrelaçam nosso modo de vida na sociedade atual e que são impregnadas por uma valoração pragmática e comercial, de tal modo que tudo assume um valor de troca sobreposto ao valor de uso. Todas as coisas, todas as ações, todas as iniciativas e criações humanas tendem a ser apreciadas prioritariamente por seu valor econômico e não por sua qualidade existencial. O que ocorre é que o mundo da vida acaba se exaurindo no mundo do mercado, o ter prevalecendo sobre o ser (MOUNIER, 2004, p. 62-63). Essa funcionalização se insinua, ainda que muitas vezes disfarçadamente, em todas as condutas, comprometendo, assim, a eticidade de tais condutas.
Dessas injunções não escapam as atividades que constituem a prática científica. Daí surgem os esforços, o empenho e as iniciativas que visam a traçar as linhas de conduta para que os cientistas possam desenvolver suas atividades investigativas de forma a que fique assegurado o respeito aos princípios admitidos como éticos pelos segmentos institucionais da sociedade envolvidos. A criação de estatutos dessa natureza responde a essa necessidade. Assim, a formalização dos princípios éticos sob a forma de códigos de ação visa a manter os agentes, em qualquer campo de atividade, atentos e sensíveis a tais normas. Pois é da determinação interna que devem surgir as iniciativas de direcionamento de nossas decisões e ações e não da observação do fiscal ou do julgamento do juiz, de tal modo que cada um possa tomá-las e implementá-las, movido apenas pela autonomia de sua vontade e não por determinações heterônomas. Se, de um lado, a intervenção de uma norma formalmente contida num estatuto, num código ou num regimento não é suficiente para assegurar a legitimidade de uma ação; de outro, ela tem uma eficácia objetiva em assegurar o respeito devido à dignidade de terceiros. A norma jurídica, configurada em códigos positivados, tem, pois, sua relevância maior em sistematizar e circunscrever os critérios do agir. Elas não tornam as ações legítimas, mas apenas legais. Mas, ao se tornarem normas legais, assinalam um critério mais objetivo, que se dirige a todos, superando uma opção puramente subjetiva e individualizada. Ao mesmo tempo, seguir a norma, mais que garantir egoisticamente os direitos do agente, marca os limites dos direitos do agente e garante o direito dos terceiros envolvidos.
No entanto, não se trata de tarefa fácil. Situação da qual é bom exemplo o que está acontecendo com a iniciativa dos pesquisadores da área de Ciências Humanas e Sociais para construírem a proposta de Resolução sobre a Ética na Pesquisa com Sujeitos Humanos, específica para essa área. A ideia subjacente é a de que se delimitem as especificidades que marcariam as investigações nesse campo, destacando as diferenças obviamente existentes em relação àquelas desenvolvidas pelas Ciências Biomédicas, a começar por seu envolvimento e impacto diretos sobre o corpo dos sujeitos pesquisados. Essa Resolução será complementar à Resolução Geral estabelecida pelo Conselho Nacional de Saúde, ora sob sua versão 466.
Como podemos ver pelo intenso e inconcluso debate que acabou se instaurando entre o Grupo de Trabalho encarregado de elaborar a minuta da proposta da Resolução específica para a área de Ciências Humanas e os representantes da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - Conep -, não há convergência conceitual e valorativa entre as duas posições. Não cabe aqui entrar no mérito das divergências apontadas nos documentos em pauta, pois isso não integra o objetivo deste ensaio. A referência feita visa apenas a mostrar os vieses que a discussão assume, não só pela diferença de pressupostos ideológicos que se insinuam, mas também pela indevida mistura de elementos administrativos e políticos que nela se envolvem. É a espúria ingerência das relações de poder que conturbam as relações de saber... (CONEP, 2014; GRUPO DE TRABALHO, 2015).
Para o desenvolvimento da argumentação, o ensaio se abre com breve apresentação dos pressupostos da postura ética em geral, com a afirmação da dignidade humana como valor fundante de toda referência ética. No momento seguinte, é abordada a relação dos princípios éticos com as normas sistematizadas em códigos, incluindo aí a proposta de resoluções específicas para a pesquisa com seres humanos. Na sequência, trata-se da peculiaridade das demandas éticas no campo das Ciências Humanas, buscando justificar a necessidade de se dispor de um código de ética próprio da área. No último passo, são abordados os riscos de desvios éticos na prática científica em geral, com destaque para as fases da produção e da difusão dos resultados da pesquisa mediante sua publicação.
Dos pressupostos da postura ética
A situação referida, concernente à proposta de elaboração de uma resolução específica para a pesquisa na área de Ciências Humanas, nada mais faz do que confirmar e reiterar a peculiaridade da condição dos sujeitos humanos em geral. Por mais que haja um consenso quanto a princípios de fundo como, neste caso, o respeito à dignidade humana dos sujeitos cuja conduta é objeto da investigação científica, na hora de estabelecer as configurações concretas mediadoras desse respeito, as concepções não mais se coadunam entre si. A finalidade buscada e defendida é a mesma, mas os caminhos propostos pelas partes são bem diferentes. Obviamente, espera-se que a continuidade do diálogo possa assegurar uma negociação efetiva e fecunda, na medida em que o esclarecimento das posições e a capacidade de concessões recíprocas forem aplainando os caminhos...
Mas esse diálogo, para ser fecundo, pressupõe a aceitação pelas partes de duas condições básicas, sem as quais o avanço não será possível. De um lado, uma clareza mais intensa sobre os próprios princípios éticos que estão em pauta; de outro, uma igual clareza sobre as mediações concretas que possam dar sustentação jurídica e operacionalidade prática às ações que materializam sua eficácia na vida real. Essas condições expressam um princípio regulador: de nada adianta uma justificativa ética, mesmo quando conceitualmente bem fundamentada, sem uma encarnação numa norma prática objetivada; mas também de nada adianta um aparato técnico-jurídico bem operativo que não esteja vinculado umbilicalmente a um princípio ético que, supostamente, vise a implementar. Vale dizer que, em qualquer espaço de decisão sobre o agir humano, sempre estão simultaneamente envolvidos um sentido conceitual e valorativo e uma mediação concreta e prática. E esses dois polos interpelam, ao mesmo tempo, a vontade dos sujeitos que precisam tomar as decisões.
Manter-se no plano da lucidez conceitual, sem desencadear mediações práticas, é escorregar para um idealismo metafísico que se degenera facilmente em pura retórica, sem qualquer eficácia real, podendo inclusive gerar uma postura de hipocrisia e de falseamento ideológico. Mas deixar se conduzir apenas pelo praticismo formalista, aplicador mecânico de regras juridicamente formuladas em códigos de ética, leva a um pragmatismo burocrático que também acabará resvalando para outra forma de hipocrisia moral.
Por isso, o desafio encontra-se mesmo em construir e manter um tenso equilíbrio entre uma razão de ser, um sentido ético e formas técnico-jurídicas, dispositivos que, unidos e amalgamados, possam dar legalidade e legitimidade às ações relativas ao tratamento científico realizado pelos pesquisadores que investigam as condutas dos sujeitos humanos em qualquer campo de conhecimento. Estamos sempre diante do risco de nos atermos à formalização normatizante dos princípios, de nos escondermos atrás dos códigos de ética, dispensando-nos do juízo pessoal.
Contudo, toda e qualquer discussão envolvendo a dimensão ética pressupõe que se tenha claro que o valor fundante dos valores que sustentam a eticidade é aquele representado pela própria dignidade da pessoa humana, ou seja, os valores éticos fundam-se no valor da existência humana. É em função da qualidade desse existir, delineado pelas características que lhe são próprias, que se pode traçar o quadro da referência valorativa para se definir o sentido do agir humano, individual ou coletivo. Ou seja, o próprio homem já é um valor em si, em suas condições de existência, em sua radical historicidade, facticidade, corporeidade, incompletude e finitude, enfim, em sua contingência. Não há por que buscar outro fundamento fora dele mesmo.
Note-se que, à luz do entendimento filosófico, a dignidade humana é um valor, ou seja, um sentido que o homem confere aos elementos de seu existir graças a sua capacidade de atribuir sentidos, mediante atividade subjetiva de conceituação e de valoração. Os homens se atribuem então um índice qualitativo de valoração que os faz merecedores de respeito, todos os indivíduos da espécie tornando-se sujeitos de dignidade, a qual não pode ser agredida nem violentada. As exigências éticas decorrem, em última análise, do necessário respeito a essa dignidade.
A norma legal e a exigência ética
A iniciativa dos criadores das Resoluções n. 196 e n. 466, do Conselho Nacional de Saúde - CNS -, tem o mérito de chamar a atenção de todos para aqueles princípios, valores e mediações cuja implementação é garantia dos direitos e da dignidade de todos. É o próprio papel do direito positivo e da legislação que o implementa de modo formal. Delimita o campo dos direitos e deveres, dando contorno de objetividade a uma esfera que é eminentemente subjetiva. A subjetividade é território frágil, ficando fortemente atrelado e dependente da contingência pessoal, de nossas tendências muito marcadas pelo egoísmo instintivo que define nossos interesses e nossa vontade. Visa a colocar mais perto de nós os princípios. A verdadeira liberdade precisa referir-se a valores minimamente objetivos e comunitários, que escapem da força centrípeta de nosso egoísmo visceral.
A presença de registros codificados de direitos e deveres tem a finalidade de superar a fragilidade da pura iniciativa da consciência dos sujeitos, bem como evitar a mecanicidade da ação física e impositiva dos agentes externos (policial, fiscal, judiciário). Agir em conformidade com as diretrizes de um código, mesmo quando o sujeito não está consciente do ou não concorda com o mérito em si da ação, é uma forma de garantir determinado princípio que salvaguarda sobretudo direitos de terceiros. Com isso, torna a convivência social mais adequada e equitativa. Se o cientista, em consideração ao código de ética de sua instituição ou de sua categoria profissional, deixa de inventar dados para sustentar as conclusões de sua pesquisa, mais que sua reputação pessoal, está evitando enganar e prejudicar terceiros, ao induzi-los a alguma atitude errada.
Três grandes desafios se colocam para todos quando estão em pauta a questão ética e sua expressão em códigos de conduta. O primeiro é a própria dificuldade de estabelecer os princípios éticos; é saber onde está a eticidade, como ela se faz presente e coagente em nossa existência. O segundo desafio é o de como codificar esses princípios, apreendidos subjetivamente, em modelos concretos de ação. O terceiro é o de como assegurar a adequada interpretação das normas codificadas nos contextos reais do agir.
Com relação ao primeiro desafio, o enfrentamento pelos pesquisadores, no âmbito de sua prática científica, pressupõe levar em conta uma questão de fundo. Ocorre que no atual contexto cultural de um mundo globalizado, que está em processo de total impregnação pela ideologia neoliberal e por posições filosóficas pós-modernas, não são mais aceitas aquelas referências filosóficas e mesmo científicas da tradição cultural do Ocidente, todas consideradas, de uma forma ou de outra, metafísicas. Vivemos então um momento histórico-cultural pós-metafísico, o que quer dizer que não mais se aceitam bases objetivas, nem dentro nem fora do sujeito, que possam dar sustentação a princípios éticos, nem no plano individual nem no plano coletivo; ou seja, não há terreno sólido par firmar qualquer alicerce. Na verdade, essa posição, que tende a ser hegemônica em todas as formas do pensamento contemporâneo, é decorrente da conclusão de que o próprio ser humano não realiza uma natureza comum identitária, não passando de um evento contingente e casual como qualquer outro da natureza material. Nada nele justificaria a presença de uma essência comum universal, que servisse de base para valores igualmente universais. Daí a proclamada morte de todo humanismo e a falência de qualquer sistema universal de valores.
Por isso mesmo, quando se trata de valores éticos nestes tempos pós-modernos, prevalece o livre-arbítrio singular de cada pessoa, nenhuma referência de cunho universal precisa ser levada em consideração. Cada um poderá agir optando aleatoriamente por valores que venham a atender seus interesses individuais no momento de sua opção.1 Evidente que o sistema social, detentor de poder coercitivo, continua impondo parâmetros para a conduta humana no seio de cada sociedade, mas, nesse caso, trata-se de uma imposição pela força, pela violência física ou simbólica, imposição essa igualmente questionada. Mas, nas brechas da liberdade, cada um pode agir sem ter que se referir a valores de cunho filosófico, teológico ou mesmo científico. O indivíduo pode até se submeter por uma servidão voluntária, mas em nenhum caso estará em pauta o reconhecimento da presença de uma referência transcendente, universal, trans-histórica. Até permanecem vigentes na vida social contemporânea sistemas de moral, mas não propriamente referências éticas universais.
Esse relativismo ético passa a mensagem da total autonomia dos sujeitos agentes, cada um podendo fazer o que melhor lhe convier, sem ter que dar conta de seu agir a ninguém, a não ser a si mesmo. Qualquer limitação em seu arbítrio decorrerá tão somente da imposição violenta do sistema social ao qual necessariamente tem de se submeter. A ordem resultante é apenas aparente, pois não é fruto do reconhecimento de valores éticos, mas da força heterônoma do poder do grupo social dominante. Nessas perspectivas pós-modernas, a ética não encontra mais seus fundamentos numa suposta base teológica ou metafísica, nem no apriorismo formal dos valores, de perfil kantiano, nem no determinismo posto pelas leis naturais. No entanto, a inexistência de referenciais objetivos e universais não elimina a exigência ética de vínculo de nosso agir a valores e princípios que transcendam nossa singularidade pessoal. Mesmo não podendo pautar-nos em valores universais, previamente definidos, todos somos interpelados por uma demanda ética, por uma necessária qualificação ética de nosso agir. Os valores éticos precisam então ser construídos historicamente, ou seja, impõe-se que definamos os sentidos que precisamos imprimir em nossas ações, de modo a garantir o respeito à dignidade dos outros homens e a nossa própria dignidade como seres humanos. A dimensão ética nasce necessariamente dessa presença densa do outro, cuja dignidade precisa ser reconhecida e respeitada e que não pode ser ferida ou negligenciada.
As implicações éticas na pesquisa em Ciências Humanas
Como já adiantado, as preocupações com as implicações éticas da pesquisa com sujeitos humanos, que levaram, em nosso contexto, à elaboração de protocolos éticos, surgiram no âmbito das experiências médicas em que, em nome da ciência, pacientes foram submetidos a sofrimentos e abusos desnecessários e a danos irreparáveis (HOSSNE; VIEIRA, 2007; DELLA ROSE, 2014). Lamentavelmente, a história da humanidade moderna tem registros de casos dessa natureza, não sendo sequer necessário referir-se às experiências bárbaras do regime nazista. Aliás, foi de amargas experiências, de perfil mengeliano, que nasceu uma sensibilidade ética relacionada aos direitos dos sujeitos participantes de pesquisas (DELLA ROSE, 2014, p. 191). A ciência é, em si mesma, um procedimento epistêmico que não pode ser eticamente qualificável, mas o uso que dele se faz a implica necessariamente num prisma ético do campo médico. De igual modo, as propostas de normalização ética das atividades da pesquisa com seres humanos elaboradas, em nosso contexto, pelo CNS, têm suas origens históricas em documentos internacionais, todos eles formulados por instâncias médicas (GUERRIERO; MINAYO, 2013).
Entende-se, então, por que o desencadeamento das iniciativas de criação de códigos de ética tenha ocorrido majoritariamente no campo das pesquisas na área da saúde. Mas, na verdade, esse protagonismo deveria ser da própria área das Ciências Humanas, levando-se em conta a especificidade do existir humano e o lugar prioritário que a eticidade ocupa em sua condição existencial (SEVERINO, 2014).
Contudo, devendo praticar o conhecimento sobre o próprio homem, as Ciências Humanas atuam sob o regime epistemológico da cientificidade, envolvendo todos os pressupostos da modalidade de conhecimento em jogo. Lembra-nos Heloani que a ciência, em qualquer forma, não é inocente (FORPRED, 2013, p. 4). Inclusive cabe a ela demonstrar que toda bioética precisa ser, antes de tudo, uma antropoética, como reivindica Von Zuben (2006).
Repercutindo o impacto que sofrera da leitura de Dewey, o antropólogo Clifford Geertz (2001, p. 30) afirma ter chegado "à doutrina sucinta e fria de que pensamento é conduta e deve ser moralmente julgado como tal [...] que o pensar é sério por ser um ato social, e de que, portanto, somos responsáveis por ele quanto por qualquer ato social" e, "talvez mais ainda, pois o pensamento é o ato social de maiores consequências a longo prazo". Segundo esse autor:
[...] a qualidade moral da experiência dos cientistas sociais atuantes, a vida ética que levam enquanto fazem suas pesquisas, nunca é discutida, exceto nos termos mais genéricos. Esta deveria ser uma investigação rigorosa de um aspecto central da consciência moderna. Infelizmente, transformou-se em uma troca de opiniões entre guardiães do jogo cultural [...]. (GEERTZ, 2001, p. 31)
Geertz justifica essa exigência pelo impacto do saber científico sobre as pessoas envolvidas direta ou indiretamente:
A maior parte das pesquisas em ciências sociais envolve contatos, íntimos diretos e mais ou menos perturbadores com os detalhes imediatos da vida contemporânea, contatos de um tipo que dificilmente pode deixar de afetar a sensibilidade das pessoas que os realizam. E, como toda disciplina é o que fazem dela as pessoas que a praticam, tal sensibilidade está inserida em sua constituição do mesmo modo como as sensibilidades de uma época se inserem na cultura dessa época. Uma avaliação das implicações morais do estudo científico da vida humana que não se limite a elegantes zombarias ou celebrações inconsequentes deve começar por uma análise da pesquisa social científica como uma modalidade de experiência moral. (GEERTZ, 2001, p. 31)
Da interpelação ética na produção e na difusão dos resultados da pesquisa científica
Apesar de ser cada pesquisador um agente autor que atua individualmente, não há que se perder de vista o caráter coletivo da construção do conhecimento científico. A ciência, em seu alcance geral, é uma obra coletiva, essencialmente solidária, pressupondo a união de muitas forças. Isso ocorre mesmo quando o pesquisador desenvolve solitariamente uma investigação, mesmo quando não está integrado a um grupo de pesquisa ou a um projeto coletivo. Está sempre numa teia de relações, participando de uma comunidade invisível de investigação, embora de maneira invisível.
É essa solidariedade intrínseca à construção científica que vincula eticamente o pesquisador a sua atividade de construção de conhecimento. Esta é originária e fundamentalmente uma atividade epistêmica que, ao envolver sujeitos terceiros, implica necessariamente uma dimensão ética. Os "outros sujeitos", de que se trata aqui, não são apenas as pessoas investigadas, mas também os eventuais parceiros do pesquisador, seus colegas de grupo, os integrantes das comunidades científicas e a própria sociedade como um todo.
A questão ética na atividade científica, quando interpelada pela presença de outros sujeitos, pode situar-se em diversas esferas. A primeira é aquela bem abrangente em que está envolvida a relação do conhecimento científico com a vida social, em seu todo. É quando se coloca o problema do uso da ciência na condução da vida das pessoas. Nesse caso, a ação e a responsabilidade dos indivíduos isolados não têm um alcance maior, já que esta é uma esfera em que a determinação é fundamentalmente política e econômica e, consequentemente, envolve processos que transcendem as opções e as decisões das pessoas singulares. Nos planos político e econômico, as exigências éticas concernem prioritariamente aos governos e aos grandes grupos econômicos mundiais que tomam e implementam as grandes decisões, cujos resultados atingem as coletividades humanas, os povos do mundo. É quando então, por exemplo, a ciência e a tecnologia são usadas para a expropriação dos recursos dos povos mais fracos, para a fabricação de artefatos e instrumentos de guerra, sob todas suas modalidades. É a esfera da dominação política e da exploração econômica. Quando se agride universalmente o meio ambiente, quando se tomam medidas, lastreadas em tecnologias e no conhecimento científico, que submetem o planeta e a humanidade a grandes riscos à própria sobrevivência. Nessa primeira esfera, estamos diante de uma ética global, que questiona valorativamente decisões políticas e econômicas. É dessa dimensão que trata o alentado trabalho de Hans Kung, Uma ética global para a política e a economia mundiais (1999). Argumentando de uma perspectiva filosófica crítica, o autor defende que a política e a economia necessitam de uma orientação ética básica, com a qual todas as sociedades deveriam se sentir comprometidas. Sem isso, o mundo não poderá ser mais pacífico, mais justo e mais humano. Para esboçar um futuro aceitável para a humanidade, impõe-se a necessidade de uma consciência ética mundial. Interpelar os gestores da política e da economia mundiais, o que pode até ser absolutamente inútil e ineficaz, cobrando-lhes respeito pela vida das populações, é reconhecer e reafirmar a dignidade dos seres humanos. O mesmo significado têm a luta contra a fome, a denúncia da desumanização de milhões de pessoas que ela acarreta.
Contudo, a relação da ética com a pesquisa científica se coloca também no âmbito mais restrito das iniciativas institucionais de uma sociedade nacional, cujo governo também responde por ações políticas e econômicas que dizem respeito ao conjunto dessa sociedade. Nessa esfera ainda ampla, mas de amplitude menor, a reação dos pesquisadores já tem repercussão maior, particularmente por meio da intervenção de suas associações e entidades representativas. Aqui o compromisso ético para o pesquisador é engajar-se nas lutas de reivindicação de políticas públicas nacionais que coloquem os resultados do conhecimento científico a serviço dos interesses públicos nacionais.
Numa terceira esfera, a exigência ética envolve mais direta e individualmente o pesquisador em duas frentes. Como produtor de conhecimento, aplica procedimentos epistêmicos, próprios da operação lógica da produção científica, geralmente no seio de uma entidade acadêmica (universidades, institutos de pesquisa, hospitais etc.), mas sempre com uma autoria e responsabilidade individualizada. Nesse âmbito, prevalecem as exigências da objetividade, do rigor epistemológico, da coerência lógica, da consistência metodológica. Aqui precedem os critérios de qualidade do próprio ato investigativo, que asseguram o valor de autenticidade e de verdade do conhecimento alcançado. As exigências éticas nessa fase de construção do conhecimento concernem ao respeito devido a esses critérios, pois seu descumprimento induz os outros a enganos e erros.
Já na fase de divulgação e de publicação dos resultados da pesquisa, como difusor do conhecimento que produz, o pesquisador enfrenta outros tantos desafios éticos. Adotar procedimentos para burlar as exigências de integridade da pesquisa e da divulgação de seus resultados, lançar mão de artifícios "maliciosos" para publicar trabalhos que não atendem os requisitos qualitativos da produção são bons exemplos de posturas que ferem a ética. O aumento de tais e de outros desvios tem sido reforçado pela pressão produtivista decorrente dos sistemas de avaliação a que são submetidas atualmente as publicações. Os resultados dessa avaliação tornaram-se os critérios para a sustentação do status institucional de programas de pós-graduação bem como habilitação para recebimento de verbas para pesquisas junto às agências de fomento.
De toda essa situação, decorrem duas constelações de problemas: em primeiro lugar, os problemas éticos na própria produção do conhecimento, no ato de realização da pesquisa; em segundo lugar, na divulgação de seus resultados. Nóvoa (2014) relata e comenta alguns desses graves desvios. Um autor conseguiu publicar diferentes versões de um "falso artigo" científico em 157 periódicos de livre acesso, alguns sob responsabilidade de famosas editoras internacionais; outro cientista falseou imagens num trabalho sobre células-tronco. Destaca esses casos como exemplos de um "sintoma de um mal-estar mais profundo que afeta a vida acadêmica e universitária. São sinais que têm vindo a multiplicar-se a um ritmo alarmante nos últimos anos, sintomas de uma corrosão das universidades e das ciências que não podemos ignorar" (NÓVOA, 2014, p. 115). Serve-se, para sua análise, de quatro conceitos (todos começando pela letra E...), que considera "tóxicos" por tramarem a ideologia geradora desse ambiente que está comprometendo a vida acadêmica e a prática científica: excelência, empreendedorismo, empregabilidade, aos quais acrescenta a europeização.
Por trás do conceito de excelência, "está a tendência para um produtivismo que enfraquece as bases da profissão académica" (NÓVOA, 2014, p. 14). E continua afirmando, com veemência:
Estamos perante a indução de um produtivismo que conduz à banalização de práticas inaceitáveis, como o auto-plágio, a auto-citação ou o "fatiamento" de artigos. Há mesmo quem se orgulhe de ter publicado centenas e centenas de artigos ao longo da sua vida académica. Será isto uma coroa de glória ou de demência? Cada dia se publica mais. Cada dia se lê menos. Há pressões cada vez maiores para impor uma cultura de produtivismo. Não podemos ser cúmplices desta corrupção da ciência e das universidades que está a destruir a vida académica. É tempo de dizer "não". (NÓVOA, 2014, p. 15)
Já com relação ao empreendedorismo, a crítica de Nóvoa se dirige ao significado negativo do termo: a predominância de uma gestão compromissada apenas com a funcionalidade administrativa em detrimento da produção acadêmica realizada com tempo e com calma. Refere-se às "tendências dominantes de governo das universidades, construídas em torno de ideias como eficiência, rendibilidade e competitividade, ideias que estão a arruinar a liberdade académica" (NÓVOA, 2014, p. 15).
Quanto à empregabilidade, sintetiza sua posição afirmando que as:
[...] universidades foram incorporando a ideia de empregabilidade, abdicando de grande parte das suas missões educacionais e culturais, para se focarem, primordialmente, na preparação para os empregos ou, melhor dizendo, para futuros empregos. (NÓVOA, 2014, p. 16)
A europeização diz respeito à política da União Europeia no tocante ao ensino superior e à divisão de tarefas impostas aos países membros; na verdade, a imposição dos três processos acima descritos aos países integrantes, comprometendo qualquer iniciativa autônoma, inclusive na alocação dos próprios recursos financeiros:
Depois de quase três décadas na União Europeia, Portugal continua a ser um contribuinte líquido para os fundos europeus de ciência. Ironicamente, poder-se-ia argumentar que os cidadãos dos países menos desenvolvidos estão a pagar a ciência que se faz nos países mais desenvolvidos. Que estranha Europeização. (NÓVOA, 2014, p. 17)
Como bem mostram os exemplos arrolados por Nóvoa, o modo de difundir os resultados das pesquisas mediante publicação de trabalhos em veículos multiplicadores do acesso suscita muitas preocupações de fundo ético. Candotti reforça a responsabilidade do pesquisador nesse quesito:
A publicação das pesquisas nas revistas especializadas não é apenas página de literatura, mas exercício de reflexão sobre impactos sociais e culturais de nossas descobertas. (CANDOTTI, 2002, p. 16-17)
A responsabilidade maior que temos, acadêmicos e cientistas, é a de educar. Para entender e transformar o mundo. Para torná-lo mais justo e igualitário. (CANDOTTI, 2002, p. 21-22)
As exigências de natureza ética que se impõem aos pesquisadores, as quais se buscam definir e formalizar no respectivo código de ética, não dizem respeito apenas aos sujeitos imediatamente envolvidos nos protocolos da pesquisa. O respeito ou o desrespeito a determinados princípios e direitos respingam simultaneamente no todo da sociedade, nas instituições enquanto entidades sociais e em todos aqueles que indiretamente colaboram com a realização da pesquisa ou que são seus destinatários.
Falsear dados em suas publicações induz a erro e engano os destinatários leitores e aqueles que os iriam utilizar para outros estudos; sonegar os créditos de eventuais colaboradores ou atribuí-los a si mesmo ou a terceiros, além de falha epistêmica, é apropriação indébita de direitos legítimos dos verdadeiros autores; afirmar como originais resultados já divulgados, falsear dados sobre sua própria qualificação são outros tantos vieses que ferem os padrões éticos e acadêmicos que precisam nortear a prática da pesquisa.
Conclusão
É nesse contexto que gostaria de levantar, para concluir esta reflexão, os desafios que enfrentamos no atual momento que a pós-graduação brasileira está atravessando e que é marcado, sobretudo, pelas exigências do modelo avaliativo conduzido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (2011). Uma grave confusão parece ter se assenhorado de nossos propósitos investigativos: visavam a produzir conhecimento e estão se direcionando para a produção de textos. Ao pressionar na direção de um produtivismo institucionalizado, esse modelo aumenta igualmente os riscos de desvios éticos na prática científica.
Lucídio Bianchetti e Ana Maria Netto Machado, estudiosos que têm se preocupado com as questões relacionadas às condições de trabalho dos pesquisadores, apresentaram um instigante trabalho na Anped intitulado "Reféns da produtividade: sobre produção do conhecimento, saúde dos pesquisadores e intensificação do trabalho na pós-graduação", no qual retomam essa problemática. Apoiando-se em pesquisas especializadas e em estatísticas oficiais, concluem que o modelo implementado pela Capes, a partir da última década do século XX, aumentou a produção científica brasileira, fazendo o país ingressar nos rankings internacionais como gerador de conhecimentos. Mas isso se deu a um alto custo: de um lado, o crescimento da ciência brasileira está causando um enorme desgaste emocional das pessoas envolvidas e a pressão para se publicar em periódicos indexados está desvirtuando a finalidade da pesquisa científica, fazendo dos escritos um fim em si mesmos e deixando em segundo plano o fato de que eles não passam de meios para divulgar descobertas, inovações ou avanços do conhecimento (BIANCHETTI; MACHADO, 2007, p. 2-3). Além desse impacto negativo na saúde física dos pesquisadores, o produtivismo ameaça a eticidade dos procedimentos por eles adotados.
Por sua vez, Moysés Kuhlmann Jr. (2014), apoiando-se em consolidada experiência de editor científico, apresenta detida análise da presença e dos impactos do produtivismo que vêm atropelando o processo de divulgação do conhecimento científico nos periódicos especializados, discutindo questões relacionadas à integridade epistêmica da produção e à correção ética da divulgação do conhecimento. Questiona a recorrente alegação de que a baixa qualidade dos trabalhos encaminhados para publicação ou eventualmente publicados seja decorrência da pressão exercida sobre os pesquisadores para publicarem, quando o problema está, de fato, no próprio processo da produção científica, muitas vezes comprometido pela falta do devido rigor ou então por expedientes ardilosos dos autores. Na sua visão:
[...] a rápida adesão ao que se poderia chamar, mais do que produtivismo, de publicacionismo, poderia também ser vista como uma forma renovada de luta pelo poder e da acomodação com o conhecimento aligeirado, que não são decorrência de tal ou qual política de avaliação, mas que sempre se fizeram presentes no ambiente acadêmico. (KUHLMANN JR., 2014, p. 22)
O autor também alerta quanto ao risco de uma identificação apressada do produtivismo como a "expressão hodierna de uma mercantilização da ciência". A economia e o mercado sempre se fizeram presentes na produção do conhecimento, assim como nas instituições de ensino e de pesquisa. A atividade científica se dá dentro de limites de ordem econômica e social e deve ser avaliada nesse quadro (KUHLMANN JR., 2014, p. 20).
Em se tratando das responsabilidades, tanto políticas quanto éticas, de todos os indivíduos, grupos e instituições envolvidos com a produção de conhecimento científico, e levando em conta o compromisso da própria ciência com a sociedade, há que se exigir competência técnica, postura crítica e sensibilidade ética ao longo de todo o processo. E esse processo demanda planejamento, acompanhamento avaliativo, bem como retorno à comunidade via difusão sistemática dos resultados, o que implica a publicação.
Considerando-se ainda que a pós-graduação tem sido entre nós o local privilegiado não só da produção científica, mas também da formação de novos pesquisadores, cabe insistir que sua finalidade substantiva, seja em sua função de pesquisa, seja em sua função de ensino, é fazer descobertas de novos aspectos do real; publicar os resultados deve ser decorrência para torná-los socialmente fecundantes. Parece comprometedor atribuir a essa divulgação uma prioridade como critério de avaliação da produtividade dos pesquisadores, mas será igualmente comprometedor desqualificar seu papel na cultura científica.
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Registre-se, à guisa de exemplo, a interpretação do incesto apresentada por Hélio Schwartsman, em sua coluna na Folha de São Paulo, em fevereiro de 2015. Se for de pleno consenso de um casal de irmãos, nada impede que possam se relacionar sexualmente. Essa decisão e essa prática em nada feririam qualquer valor ético, já que em nada ofenderiam a dignidade de terceiros.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2015
Histórico
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Recebido
Jun 2015 -
Aceito
Jun 2015