Resumo
O artigo problematiza a ênfase no tempo cronológico nas aulas de História para crianças nos primeiros anos do ensino fundamental, refletindo sobre o tempo histórico. Retoma-se a perspectiva de Koselleck para pensá-lo como conceito, assim como o relaciona com a narrativa, como tratou Ricoeur, e, fundamentalmente, compreende-o na relação entre a experiência da infância e a memória, tal como abordou Walter Benjamin. Ressalta-se a experiência do narrar e da memória na aprendizagem de temporalidades, destacando o seu lugar na experiência histórica que interessa à discussão sobre a aprendizagem diante da proposta da Base Nacional Comum Curricular. Conclui-se que esse caminho possibilita especificar a História não apenas como uma disciplina escolar, mas também como prática social.
ENSINO DE HISTÓRIA; ENSINO FUNDAMENTAL; FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Abstract
This article discusses the emphasis on chronological time in History lessons for children in the early years of elementary school by reflecting on historical time. It takes up Koselleck’s perspective to think of it as a concept, that of Ricoeur to relate it to narrative, and, fundamentally, as approached by Walter Benjamin, to understand it in the relationship between childhood experience and memory. The experience of narrating and memory in the learning of temporalities is emphasized, highlighting its place in the historical experience concerning the discussion on learning in the light of the Base Nacional Comum Curricular [National Common Curriculum Base] proposal. The conclusion is that this approach makes it possible to specify History not only as a school subject, but also as a social practice.
HISTORY TEACHING; ELEMENTARY EDUCATION; TEACHER TRAINING
Resumen
El artículo problematiza el énfasis en el tiempo cronológico en las clases de Historia para niños en los primeros años de la escuela primaria, reflexionando sobre el tiempo histórico. Se retoma la perspectiva de Koselleck para pensarlo como concepto, además de relacionarlo con la narrativa, como lo trató Ricoeur, y, fundamentalmente, entenderlo en la relación entre la experiencia de la infancia y la memoria, tal como lo abordó Walter Benjamin. Se resalta la experiencia de la narración y la memoria en el aprendizaje de temporalidades, destacando su lugar en la experiencia histórica que interesa a la discusión sobre el aprendizaje a la luz de la propuesta de la Base Nacional Comum Curricular [Base Nacional Curricular Común]. Se concluye que este camino posibilita especificar la Historia no sólo como una materia escolar, sino también como una práctica social.
ENSEÑANZA DE HISTORIA; EDUCACIÓN PRIMARIA; FORMACIÓN DOCENTE
Résumé
Cet article problématise la manière dont le temps chronologique est mis en avant dans les cours d’histoire destinés aux élèves de l’école primaire par le biais de la réfléxion sur le temps historique. Il reprend non seulement la perspective de Koselleck pour penser le temps comme concept, mais aussi celle de Ricœur pour mettre le temps en relation avec le récit et, pour comprendre son rapport avec l’expérience de l’enfance et la mémoire, il utilise l’approche de Walter Benjamin. L’expérience de la narration et de la mémoire dans l’apprentissage des temporalités est mise en avant pour démontrer son rôle dans l’expérience historique, notion non dépourvue d’intérêt pour la discussion sur l’apprentissage, proposée par la Base Nacional Comum Curricular [Base Nationale Commune des Programmes Scolaires]. Ce parcours permet de concevoir l’histoire non seulement comme matière scolaire, mais encore en tant que pratique sociale.
ENSEIGNEMENT DE L’HISTOIRE; ENSEIGNEMENT PRIMAIRE; FORMATION DES ENSEIGNANTS
A dimensão histórica do tempo e os modos como as crianças se apropriam desse conceito nas aulas de História no ensino fundamental têm sido objeto de diferentes investigações acadêmicas e experiências pedagógicas no cenário brasileiro desde a década de 1980 (Zamboni, 1985). No século XXI, trabalhos indicam que as crianças dos primeiros anos do ensino fundamental, quando indagadas sobre o que compreendem por “tempo”, em situações cotidianas de sala de aula, imediatamente o relacionam com o relógio, para, em seguida, mencionarem os dias da semana, as horas, o cronômetro e outras palavras correlatas, como calendário, sol, lua, e, em menor ocorrência, o aniversário (Reis et al., 2016). Essa observação pode confirmar, em grande medida, que a percepção temporal é uma construção apreendida socialmente na experiência individual e coletiva dos sujeitos ao se relacionarem em determinado espaço sociocultural.
A esse respeito, Norbert Elias (1998) lembra que, em sociedades contemporâneas, o relógio é cada vez mais adequado à rotina dos indivíduos, e seus ritmos e suas durações fazem da socialização um mecanismo que naturaliza a percepção temporal, fazendo-o parecer espontâneo. Isso pode explicar por que o relógio e o calendário são os objetos que as crianças, como observado, mais relacionam com o tempo nas aulas de História. E por que, por vezes, intuem que o modo de dimensionar o tempo social, por meio do relógio e do calendário, é absoluto, dificultando às crianças conceberem uma ideia de tempo histórico.
O registro dessas observações indica que a percepção temporal acontece por meio da reflexão da criança sobre sua experiência cotidiana com os objetos e os conteúdos escolares vivenciados contemporaneamente, o que abre possibilidades para problematizar as aulas desenvolvidas nos primeiros anos do ensino fundamental, que mantêm, desde os anos 1980, a ênfase no tempo cronológico. Isso porque pesquisas na área (Oliveira, 2003; Zamboni & Sabongi, 2003; Medeiros, 2010; Oliveira & Miranda, 2010; Zamboni & Fonseca, 2010) têm mostrado que, para o(a) aluno(a) se orientar socialmente, a noção de tempo histórico é fundamental, sendo compreendida à medida que ele(ela) for capaz de, por meio das memórias e narrativas orais, relacionar presente e passado pelas comparações entre o que acontece e o que aconteceu no seu cotidiano. Isso pode explicar por que, entre os fatores que influenciam a percepção e o sentido das transformações, o mais lembrado é a variação de idade, uma vez que as crianças pautaram as mudanças temporais por meio da data do seu aniversário, lugar de onde evidenciam durações memoráveis.
A ênfase no tempo cronológico nas aulas de História, portanto, dificulta a compreensão pelas crianças de sua inserção em uma sociedade específica e também prejudica a agudeza de se perceberem como sujeitos históricos e autores de suas próprias narrativas, além de tolher a compreensão de que o tempo do relógio e do calendário não é a única maneira de se relacionar temporalmente. De forma que, ao refletir sobre como as crianças se apropriam do conceito de tempo, deve-se considerar o modo como vivenciam a temporalidade, o que demanda ponderar os nexos entre a memória e as narrativas imanentes da experiência com a vida coletiva.
O objetivo do presente artigo é destacar esse aspecto presente na aprendizagem nos primeiros anos do ensino fundamental, no contexto de publicação da proposta curricular para História trazida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2017. A partir desse ano, verificam-se mudanças nos currículos dos estados e municípios para se “alinharem” aos conteúdos prescritos. Ocorre que a formulação de uma Base Nacional é marcada por uma conjuntura socioeducacional de retomada de concepção de aprendizagem “relacionada à vivência da criança e a seu desenvolvimento biológico”, bem como de currículos, nas ciências humanas, baseados nos círculos concêntricos (Abud, 2012, p. 10).
No ensino de História, os círculos concêntricos tradicionalmente marcam a forma de organizar os conteúdos numa lógica ascendente do “mundo pessoal” aos tradicionais temas da história nacional, passando pela “comunidade” e o estudo da região, tendo por base as habilidades e as competências elencadas para os anos iniciais de ensino. Ressalta-se que, na pesquisa1 da qual deriva este artigo, evidenciou-se a ênfase nas competências e habilidades da “atitude historiadora” em detrimento de uma orientação teórica e metodológica baseada nos processos cognitivos da aprendizagem em história, permitindo o entendimento de que existe uma invariável e “correta aplicação” da razão, próximo do que o Ocidente moderno privilegiou historicamente como forma e principal instrumento de acesso ao conhecimento. Isso possibilita desconsiderar a relevância da experiência infantil na aprendizagem do tempo histórico e considerá-la substituível por aplicação lógica e de procedimentos ou técnicas de medidas da relação que se mantém com o tempo cronológico.
Por esse motivo, a reflexão sobre o tempo aparece, neste artigo, como questão primordial seja para pensá-lo como conceito, na perspectiva de Reinhard Koselleck (1979/2006, 2000/2014), seja para relacioná-lo em termos historiográficos com a narrativa, como tratou Paul Ricoeur (1981/1997, 1981/2010), mas, fundamentalmente, para pensá-lo na relação entre a experiência da infância e a memória, na trilha dos escritos de Walter Benjamin (1933/1970, 1936/1994, 2006, 1940/2008, 1916/2011). Como o interesse, neste texto, é enfatizar a experiência do narrar e da memória na aprendizagem do tempo histórico, esses autores são importantes pois dialogam ao realçarem o lugar da narrativa, da linguagem e da memória na experiência histórica que interessa à discussão sobre a aprendizagem de temporalidades pela criança no século XXI.
Ao situar a infância na atualidade, compreende-se o contexto desafiador em que acontece o ensino de História por se lidar (o/a professor/a) com uma “experiência empobrecida” - característica marcante da modernidade -, como afirmou Benjamin (1933/1970). Para esse autor, ao mesmo tempo que ocorreu, entre os séculos XIX e XX, o definhar da narrativa, a velocidade da informação e da técnica sobrepõe, no século XXI, a capacidade dos sujeitos de narrar o que se lhes acontece cotidianamente. De maneira que, embora a conjuntura em que Benjamin escreveu, período entre guerras, seja diferente da que se vive hoje, sua obra é atual no modo como se pode ler seus ensaios.
Entende-se que esta reflexão sobre a apropriação do tempo histórico pela criança oferece diferentes possibilidades interpretativas, no entanto, em todas elas o que torna evidente é a relevância da reflexão sobre os nexos entre narrativa e temporalidade como fundante de um ensino capaz de superar a ênfase cronológica do tempo na história ensinada; muito embora essas sejam apenas duas das facetas que indicam a importância da relação teórica entre o exercício narrativo, a escrita da história e o ensino contemporaneamente, na qual este trabalho se integra e ganha sentido.
O tempo como conceito
Estamos diante de uma expressão da assim chamada era moderna, que
só chegou a conceber-se como um tempo novo no final do século XVIII.
No conceito de progresso, que então coincidia amplamente com o de “história”,
compreendia-se um tempo histórico que continuamente se supera.
(Koselleck, 1979/2006, pp. 237-238).
Os escritos de Walter Benjamin sobre a modernidade são bastante conhecidos por sua contundente crítica ao declínio da experiência narrativa ao relacionar “a ânsia do progresso e do desenvolvimento ao empobrecimento da experiência humana e à alienação” (Oswald, 2008, p. 66). Por isso, de suas críticas importa destacar o seu intento em interromper o curso da história tradicional, contada pelo historicismo, que ignora os obstáculos e as contradições sociais para tornar a história escrita homogênea por meio de um tempo linear e uma visão continuísta que reduz a complexidade do real em nome do “progresso”. No século XX, esse pensador alemão propõe justamente o reconhecimento desses obstáculos, das contradições, dos tropeços, das fendas de uma estrutura emaranhada (constelar) em uma história escrita “a contrapelo”. Uma percepção temporal que pôde ser então percebida como um tempo emancipado da cronologia e vinculado à história humana.
Em suas teses sobre a história, escritas no final de sua vida na década de 1940, Benjamin compara, especificamente na tese XIII, o tempo do progresso com um acontecimento que ocorre automaticamente em “flecha” ou “espiral” no interior de um “tempo vazio” e “homogêneo”. E considera que a crítica “de esta representación del movimento histórico debe constituir el fundamento de la crítica de la idea de progreso em general” (Benjamin, 1940/2008, p. 51). O que significa dizer que seu intento era romper esse continuum, transcorrido num tempo homogêneo, e vislumbrar um novo relacionamento do humano com o seu passado.
As rupturas na linearidade inaugurariam o Jetztzeit - o tempo de “agora” -, tempo fugaz que “relampeja” no presente e possibilita a construção de outra história. Isso porque, para Benjamin, onde o historicismo pretende apagar as lacunas por meio de narrativas conciliatórias surge o apelo dos silenciados no passado que não se querem esquecidos. Portanto, dialogar com as vozes emudecidas é realizar uma história feita não de façanhas dos vencedores, mas da vivência dos vencidos que relampeja no presente.
A relação entre passado e presente não pode ser pensada, segundo Benjamin, no modelo de uma cronologia, sucessão contínua de pontos homogêneos orientados para o progresso, pois, nesse caso, passado e presente não entrelaçariam nenhuma ligação para além da causalidade; e tampouco essa relação poderia ser pensada como repetição, uma retomada do passado no presente, pois, nesse caso, não haveria, igualmente, transformação do passado. O presente contém a “constelação”, a “imagem” que relampeja e ilumina o ocorrido. Ou seja, os acontecimentos ocorrem num espaço e nele não se apagam todos os vestígios ou os sinais do seu desaparecimento, mas tornam-se “ecos” de sua sobrevivência.
No mesmo sentido, as reflexões teóricas feitas por Reinhart Koselleck também consistem em uma rigorosa crítica ao conceito de tempo linear e progressivo que se afirmou no contexto da modernidade europeia, o que permite ponderar sobre o tempo como conceito historicamente assentado nas relações sociais, como é exemplar a epígrafe anterior.
Em seu escrito Estratos do tempo: Estudos sobre História (2000/2014), Koselleck ressalta que os conceitos são construídos e operacionalizados em contextos sociais específicos, não havendo, portanto, um conceito desconexo de uma realidade social que lhe atribui sentido e significado. É tal compreensão que o leva a ponderar a existência da diversidade temporal que compõe a experiência humana. Nesse ponto, o autor afirma que a experiência especificamente moderna do tempo, baseada na ideia de linearidade, trouxe, a partir do século XIX, indicadores de mudança fundamentados em conceitos como evolução, revolução, moderno, assim como caracterizam a própria história como progresso, por meio da
. . . experiência da singularidade, que se impôs na Europa a partir de 1770, com o horizonte do progresso técnico-industrial e de sua veemente pressão pela mudança. Desde então os acontecimentos se atropelam. Toda a história é tratada como sequência singular sob o primado da cronologia, . . . pelo fato de que também as formações sociais, ou seja, as pre- condições estruturais dos acontecimentos, se alteraram. (Koselleck, 2000/2014, pp. 76-77).
Para esse autor, a ideia de infinita novidade foi acompanhada de uma visão otimista de futuro. Nesse entendimento, o futuro não seria apenas novo, mas melhor, e o passado deveria ser superado, posto que se torna obsoleto diante da suposta evolução trazida pelo futuro. Nessa expectativa, o passado é sempre ultrapassado por eventos “novos”, levando a um perspectivismo temporal que passa pelo domínio e superação da natureza. Do ponto de vista das relações sociais, “desde então, temos um novo tipo de vencidos: os que se veem ultrapassados pela história ou pelo progresso, ou que assumiram a tarefa de alcançar ou ultrapassar esse processo” (Koselleck, 2000/2014, p. 68).
Com a modernidade o conceito de progresso desvinculou radicalmente passado e futuro, e o presente esvaziou a experiência humana de sentido histórico, de uma forma que “a posição social e econômica é que decide quem fica para trás e quem avança” (Koselleck, 2000/2014, p. 68). Tal percepção suprimiu a compreensão de que o tempo também é percebido individualmente nos diversos contextos culturais para, em contrapartida, formalizar o entendimento de uma “história única”, universal e evolutiva. Discurso europeu que propagou o entendimento de haver uma superioridade do homem branco sobre o “outro”, apresentado como selvagem, inculto e incivilizado na narrativa historiográfica. Uma abordagem da colonialidade em que, movida pela ideia de progresso, de salvação do “outro”, do desenvolvimento e de modernização das técnicas produtivas, caberia salvar as almas do “atraso”.
Desse modo, no Brasil, o ensino de História se apresenta, desde o século XIX, como um saber no qual se assimila o tempo linear por meio de acontecimentos marcados pela façanha dos colonizadores, sendo esse o conceito de tempo que se cristalizou de forma hegemônica na escola brasileira. Por isso, é primordial compreender que a datação dos acontecimentos do passado feita a partir de uma “concepção físico-matemática” do tempo - uma cronologia baseada no movimento dos astros -, embora torne-se importante para a narração e organização dos acontecimentos históricos, é, para Koselleck, incapaz de sozinha atribuir sentido ao que se chama temporalidade.
Por isso, o historiador alemão do pós-guerra reafirma, na contraposição de um tempo universal e cronológico, que as diversas sociedades humanas, em momentos distintos de sua história, reconstroem suas diversas formas de perceber, apreender, compreender, sentir e (re)significar o tempo social, não existindo uma história única com uma única noção temporal, uma vez que a experiência com o tempo modificou a maneira como são pensadas, percebidas, narradas e sentidas as relações temporais. Ou seja, os modos de perceber os nexos entre passado, presente e futuro não são únicos nas sociedades humanas.
A diversidade temporal e a experiência humana com o tempo, diferente de um encadeamento causal inerente a um processo linear, resultam, por sua vez, na compreensão de que o primeiro conhecimento sobre o tempo diz respeito não ao conceito, mas sim à temporalidade. Essa que é percebida na reflexão sobre as vivências e na capacidade de narrá-las temporalmente, experiência que pouco tem a ver com o tempo físico da natureza. Koselleck entende que, no tempo histórico, no espaço contemporâneo convivem simultaneamente diversos tempos anteriores preservados e incorporados no cotidiano dos sujeitos sociais. Ao relacionar tempo e experiência temporal, numa determinada espacialidade, a narrativa histórica é, para esse autor, “a expressão mais pura de uma ciência da experiência” (2000/2014, p. 20).
Críticos das certezas fortemente ancoradas nas crenças no progresso como história, na percepção uniforme do tempo, na técnica como superação do “atraso”, esses pensadores se deparam em suas análises com um tempo outro. Atrelado ao âmbito político-econômico e sociocultural, o tempo imanente à história aparece, em suas reflexões, como fruto das experiências e expectativas de homens (entendidos como humanidade) e instituições, cujas ações concebem não um tempo único e universal, como o proporcionado pela cronologia, mas diversos ritmos temporais que lhes são próprios assim como a vivência em sociedade. Os ritmos temporais constituem-se como categorias sociais, históricas e culturais, que recompõem permanentemente a experiência dos sujeitos.
Para Koselleck, na atualidade, trata-se de recuperar a importância da experiência indivi- dual e coletiva com o tempo histórico por meio da temporalidade percebida, vínculo que ressalta a importância da narrativa historiográfica no fazer histórico. Como entende Benjamin, assim como Koselleck, para uma aproximação compreensiva da experiência humana com o tempo histórico, é necessário reconhecer que o tempo do historiador se mostra no enredo narrativo, sendo a temporalidade narrada uma construção derivada da experiência dos sujeitos.
A temporalidade como apropriação narrativa
. . . o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado
de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na
medida em que esboça os traços da experiência temporal.
(Ricoeur, 1981/2010, p. 9).
Nas discussões sobre os nexos entre temporalidade e narrativa, é importante lembrar Paul Ricoeur e seu trabalho sobre a problemática do tempo no contexto da sua teoria da narrativa. Na obra Tempo e narrativa, publicada inicialmente em 1984, traduzida no Brasil em 1994, em três volumes, o autor afirma que é a narrativa que torna acessível a experiência humana do tempo, uma vez que a temporalidade só se torna humana por seu intermédio. Ao se referir a essa obra, ele informa:
. . . os três volumes de Tempo e narrativa não fazem nada além de desenvolver, complicar e, definitivamente, corrigir a ideia diretriz presente desde esses primeiros ensaios muito rápidos, ou seja, a ideia que a narrativa completa seu curso somente na experiência do leitor, da qual ele “refigura” a experiência temporal. Segundo esta hipótese, o tempo é de qualquer forma o referente da narrativa, enquanto a função da narrativa é de articular o tempo de modo a conferir-lhe a forma de uma experiência humana. (Ricoeur, 1981/1997, p. 78).
Para o filósofo francês, que foi também professor na Sorbonne, a narrativa seria mediadora entre a experiência, a linguagem e a memória. Experiência e memória ligariam a explicação à compreensão, superando a distância entre compreender e explicar um fenômeno social. Para Ricoeur, é por meio da linguagem e da memória que o homem mostra seu potencial criador, uma vez que o narrar implica um exercício mimético. Avalia, enfim, que a dimensão mimética da linguagem é o que caracteriza a verdadeira experiência histórica. Não é à toa que ele se dedicou também ao tema da memória e do esquecimento (Ricoeur, 2000/2007) como elementos de definição de identi- dades culturais.
Ao explorar o potencial narrativo para a compreensão da temporalidade, Ricoeur sugere uma assimetria entre os modos referenciais da narrativa histórica e aqueles da narrativa de ficção. Observa que a referência da historiografia é dada pelos traços do passado, tornados documentos para o historiador, porém, é, igualmente, a narração que articula a experiência temporal humana relacionando presente e passado. A narrativa histórica e a narrativa ficcional podem refigurar o tempo linear e progressivo da modernidade.
Quer se trate de afirmar a identidade estrutural entre a historiografia e a narrativa de ficção . . . quer se trate de afirmar a profunda afinidade entre a exigência de verdade de cada um dos modos narrativos, como faremos na quarta parte [da obra], uma pressuposição domina todas as outras, qual seja, a de que a problemática última, tanto da identidade estrutural da função narrativa como da exigência de verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana. (Ricoeur, 1981/2010, p. 9).
Importa ressaltar, portanto, que existe implicação mútua entre tempo e essa atividade humana. De maneira que a narrativa histórica alcança sua significação plena quando se torna uma condição da existência temporal, pois é ela - a experiência temporal -, vivenciada e expressa na linguagem, o articulador prioritário pelo qual o sujeito compreende a si mesmo quando se pensa como ser individual e coletivo.
Em O narrador, obra de 1936, Benjamin (1936/1994) também tratou dessa questão e permite compreender o importante papel da narração para assimilar a história e relacioná-la com a infância. Para ele, narrar é uma maneira de elaborar a própria experiência, transformando tal atividade num “reencontro” com o passado. A conservação da narrativa impede que a experiência temporal se perca por completo, por isso ela é também recurso de acesso à meditação acerca do tempo, produzindo no sujeito a esperança de se aproximar de alguma verdade sobre a história. A esse respeito, Benjamin (1940/2008, pp. 36-37) indaga:
Acaso no nos roza, a nosotros también, uma ráfaga del aire que envolvia a los de antes? ¿Acaso em las voces a las que prestamos oído no resuena el eco de otras voces que dejaron de sonar? ¿Acaso las mujeres a las que hoy cortejamos no tienen hermanas que ellas ya no llegaron a conocer? Si es así, um secreto compromiso de encuentro [Verabredung] está entonces vigente entre las generaciones del pasado y la nuestra.
Para esse autor, a interdependência da experiência com a memória e a narrativa é indispensável para o processo de conhecimento histórico. As reflexões sobre a história não devem se processar de modo a isolar um desses aspectos, mas, a depender do interesse, focar um deles deixando os outros subentendidos. De maneira que a memória não deve ser apenas um recurso para conservar o passado das gerações, mas para relacioná-lo diretamente com o presente, de modo a “devolver vida aos mortos”. Benjamin insiste que a continuidade da história acontece pela presença contínua dos “ecos”, dos vestígios, das “irmãs” que sobrevivem ao passar do tempo e possibilitam o encontro com o passado.
Portanto, em Benjamin, não se trata de priorizar o presente em relação ao passado, mas sim valorizá-lo como momento decisivo para compreender a história. A possibilidade de um encontro está nos “ecos” das vozes emudecidas, por isso cabe ao sujeito apropriar-se do tempo considerando esses encontros sem discriminar se são “grandes” ou “pequenos” os seus ecos. É esse, por exemplo, o valor do cronista.
El cronista que hace la relación de los acontecimientos sin distinguir entre los grandes y los los pequenos responde com ello a la verdade de que nada de lo que tuvo lugar alguna vez debe darse por perdido para la historia. Aunque, por supuesto, sólo a la humanidade redimida le concierne enteramente su pasado. Lo que quiere decir: sólo a la humanidade redimi- da se le ha vuelto citable su pasado em cada uno de sus momentos. Cada uno de sus instantes vividos se convierte em un punto em la orden del día. (Benjamin, 1940/2008, p. 37).
Na narrativa do cronista não existe linearidade que explique uma homogeneidade histórica, mas sua narração permite uma captação dos fragmentos históricos citáveis do passado. Para Machado (2015), em Benjamin se verifica que a narrativa ficcional, característica da literatura, materializa na linguagem um saber histórico e institui um método de apropriação da realidade: a montagem literária. Ela diz respeito à ideia de “imagem” (representação do real) e ao fato de que entre a organização da escrita e a estrutura do pensamento (as formas cognitivas) existe uma estreita relação. Isso porque a memória é instrumento da produção de “imagens” do passado.
Diferentemente do que pensava o historicismo - conhecer o passado tal como ele foi -, os fatos históricos são construções, passam por um processo de representação que, por intermédio da linguagem, se materializa como discursos de diferentes naturezas. Discursos que podem se imbricar inclusive em uma narrativa de natureza ficcional, tencionando imagens plurais, às vezes, dicotomizadas entre a consagração - ecos do colonialismo, por exemplo - e a criticidade de um mesmo referente e tratamento dado ao passado.
Compreende-se que esses autores, ao ressaltarem a experiência narrativa e enfatizarem que a dimensão mimética e a linguagem são o que permite narrar a experiência histórica desde a infância, apresentam, em face das questões históricas e historiográficas de seu tempo, referências que permitem retornar à discussão sobre a apropriação da temporalidade no ensino de História pelas crianças dos primeiros anos do ensino fundamental. A sua apropriação na infância por meio de narrativas das crianças sobre sua vivência é um caminho aberto atualmente. Mesmo porque parte das memórias da infância só recebe sentido por meio do testemunho de familiares, além do confronto com objetos, fotografias e outros registros que permitem estabelecer mediações com o tempo histórico.
Verifica-se, portanto, que as relações da narrativa com a memória ganham um lugar de relevo na produção do conhecimento histórico em fins do século XX e no século XXI, a partir das quais historiadores brasileiros refletem para pesquisar, escrever e ensinar história.
Temporalidade e infância: A memória e a narrativa
Nunca me cansei de pôr à prova esse exercício. Ele ensinou-me que a forma
e o conteúdo, o invólucro e o que ele envolve, são uma e a mesma coisa.
E levou-me a extrair da literatura a verdade com tanto cuidado
quanto a mão da criança ia buscar a meia dentro de sua bolsa.
(Benjamin, 1934/2022, p. 101).
Publicado originalmente em meados da década de 1930, o ensaio Infância em Berlim em 1900 narra parte das brincadeiras que Benjamin fazia quando criança com objetos do seu cotidiano. Por meio dessas lembranças, o autor ressalta a importância da memória e da narrativa para confirmar a ideia de “verdade” sobre sua vivência: seu tempo de vida (como passado), a temporalidade vivida (como presente) e sua experiência como sujeito histórico num espaço determinado (a grande cidade). Ao tornar presente a sua experiência da infância, Benjamin busca compreender a realidade de sua época, baseada na visão específica de um menino por compreender que as crianças possuem formas peculiares de ver e estar no mundo. Em seu escrito encontra-se um tópico denominado, na versão traduzida, de “A meia”. Nele, se lê:
Debaixo das camisas, das calças, dos coletes aí guardados encontrava-se aquilo que fazia da cômoda uma aventura. Tinha de abrir caminho até o seu canto mais escondido para encontrar o montinho das minhas meias, enroladas e viradas à maneira tradicional. Cada par parecia uma pequena bolsa. Nada me dava mais prazer do que enfiar a mão por elas adentro, o mais profundo possível. . . . O que me atraía para aquelas profundezas era antes “o que eu trazia comigo”, na mão que descia ao seu interior enrolado. Depois de a ter agarrado com a mão fechada e ter confirmado a minha posse daquela massa de lã macia, começava a segunda parte do jogo, que trazia consigo a revelação. Agora, tentava tirar para fora da bolsa de lã “o que trazia comigo”. Puxava, puxava, até que qualquer coisa de perturbador acontecia: eu tinha retirado “o que trazia comigo”, mas “a bolsa” onde isso estava já não existia. (Benjamin, 1934/2022, p. 101).
Considera, ainda, que essas “aventuras” tinham uma equivalência aos contos de fada que, do mesmo modo, o convidavam para o “mundo dos espíritos” ou da magia para, afinal, lhe devolver à realidade crua. No mesmo sentido, a relativa simplicidade do movimento de envolver a mão e desfazer a bolsa é uma metáfora que faz referência ao processo do pensar para o resgate de uma “totalidade histórica”. É também referência ao ato de narrar, como um conto de fadas, cuja pista é o encontro com o par de meias e o ponto de partida da sua reflexão. A lembrança do par de meias em um fazer-desfazer é evocada como uma “imagem histórica” construída por todas as circunstâncias que constituíam o universo desse passado vivido individualmente.
Essa aventura, segundo Benjamin, lhe permitia retirar com muita sutileza a “verdade” ou a realidade “nua e crua”. Cada par de meias, enrolado e dobrado sobre si mesmo, que se apresentava à sua mão, continha uma forma e um conteúdo, de maneira que aquele pequeno bolso era uma pequena totalidade sobre a qual ele “retirava” e “incorporava”, desfazendo seu conteúdo e forma. Isso porque, como criança, não se contentava em aceitar o mistério que envolvia a bolsa de lã, de modo que procurava extrair “o que vinha junto” ao desfazer aquela forma. O que “vinha junto” era a descoberta/produção de um novo conhecimento e uma possibilidade de ruptura com o trajeto linear. Tal aventura, na análise de Benjamin, era um ritual mimético, sendo essa capacidade característica da maior parte das brincadeiras de criança.
Na teoria mimética da linguagem do autor está implícita que essa atividade, o rito das brincadeiras infantis, é uma mediação simbólica produzida pela criança. Alega, por exemplo, que o “jogo infantil acha-se completamente saturado de condutas miméticas e seu campo não se encontra, de nenhum modo, limitado ao que um indivíduo pode imitar doutro” (Benjamin, 1933/1970, p. 49). A mimesis é, para Benjamin, dinâmica cultural e não repetição, de modo que na brincadeira a criança não apenas imita o adulto quando “brinca de comerciante ou professor”, mas também brinca de “moinho de vento e locomotiva”, portanto, não são apenas simulação de pessoas, mas também de animais e objetos (Benjamin, 1933/1970, p. 49). Além disso, no exercício mimético, a criança transforma os objetos em caminhos para um novo saber.
A criança escondida atrás das cortinas torna-se ela própria algo de esvoaçante e branco, um fantasma. A mesa da sala de jantar, debaixo da qual se acocorou, transforma-a em ídolo num templo em que as pernas torneadas são as quatro colunas. E atrás de uma porta ela própria é porta, recoberta por ela, máscara pesada, mago que enfeitiçará todos os que entrarem desprevenidos. Por nada deste mundo pode ser descoberta. Quando faz caretas, dizem-lhe que se o relógio bater ela ficará assim para sempre (Benjamin, 1934/2022, pp. 102-103).
Benjamin reconhece que nas brincadeiras as crianças constroem um mundo particular e ressignificam os objetos, as pessoas, as histórias ouvidas, enfim, a vida. Situação percebida no desenvolvimento da linguagem.
Na década de 1910, esse autor escreveu o ensaio intitulado Sobre a capacidade mimética. Nesse escrito, ele sugere que a linguagem pode ser vista como campo para a ressignificação do sujeito e da história. Ao escrever sobre a “aptidão” humana de mimetizar, de imitar, de copiar, afirmou que “a capacidade mimética historicamente não desapareceu com a modernidade, em proveito de uma maneira de pensar abstrata e racional, mas se refugiou e se concentrou na linguagem e na escrita” (Benjamin, 1933/1970, p. 51). De modo que o mesmo movimento mimético do brincar encontra-se no aprendizado da escrita.
Para ele, quando a criança “começa a escrever, quando ela desenha a letra, ela não só imita o modelo proposto pelo adulto”, mas, “ao escrever a palavra, ela desenha uma imagem (não uma cópia)”, trazendo algo à representação, “estabelecendo semelhança figurativa com o objeto” (Gagnebin, 1993, p. 81). Por isso, Benjamin afirma que saber ler, por exemplo, o futuro nas entranhas do animal sacrificado ou saber ler uma história nos caracteres escritos sobre uma página significa reconhecer não uma relação de causa e efeito entre a coisa e as palavras ou as vísceras, mas uma relação comum de configuração. Ou seja, “acarreta também uma transformação da definição do sentido” (Gagnebin, 1993, p. 82), deslocando a questão para a linguagem e o campo da cultura.
A capacidade mimética é uma forma de atuação recordativa, retroativa, que busca ressignificar, por intermédio da memória e da linguagem, as potencialidades do passado. Portanto a visão histórica de Benjamin não é dissociada da compreensão da linguagem, tomada como a expressão do pensamento, medium-de-reflexão (Agamben, 2001/2012). A atividade intelectual geradora de ideias (de tempo, por exemplo) é algo que se comunica na linguagem, a atividade intelectual ela própria é linguagem além de escrita. Em Benjamin, é a linguagem e não a comunicação de conteúdo que inscreve a natureza no “mundo do sentido”, possibilitando à criança desnaturalizá-la e produzir cultura (Galzerani, 2002; Marchi, 2011). Um universo cultural reconhecido nas brincadeiras infantis por meio do qual se estabelece outra relação com o tempo: o tempo do brincar é outro, não se olha o tempo passar (Kishimoto, 2014). Isso porque, como interpreta Eloiza Gurgel Pires (2014, p. 824):
O movimento do pensar das crianças, parecido com o percurso dos poetas, dos artistas ou dos cineastas quando penetram na linguagem, criando seus caminhos, suas errâncias, suas obras, suas montagens, estabelecendo uma relação com o tempo que não é, ne- cessariamente, aquela do tempo linear, cronológico, homogêneo e vazio.
Portanto, é no processo de educação que se abre a probabilidade de a criança vivenciar e se adaptar às formas temporais do adulto, que, na tradição historiográfica, trata-se de um tempo marcado pela sujeição do homem ao contínuo do relógio. O que mostra que são os ritmos e disposições temporais adquiridos mimeticamente que instituem o ponto de partida para uma relação autônoma com o tempo.
. . . não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não uma progressão, e sim uma imagem, que salta. (Benjamin, 2006, p. 504).
O passado encontra o presente num “agora”, como experiência de recuperação dos “restos”, dos rastros, dos vestígios, ativando a percepção de todos os sinais (os lampejos) do passado que se torna disponível. O “agora” não é o “presente”, mas o tempo da presença do passado no presente. Além disso, ele não é apenas uma transição para o futuro, mas a chance de “resgatar” o passado, sendo também o momento capaz de romper com a linearidade. Para ver o passado no presente entre os espaços, é necessário expor os acontecimentos simultaneamente. De modo que não é, necessariamente, a espacialidade que determinará a temporalidade em um conteúdo a ser estudado, mas sim a escolha do objeto a ser investigado. Para tanto, trata-se de pensar não cronologicamente, mas tematicamente, devendo-se substituir o diacrônico pelo sincrônico, a sucessão pela simultaneidade.
Por isso, em Benjamin, o indício de verdade da narrativa não deve ser procurado no seu desenrolar, mas, justamente, naquilo que ao mesmo tempo lhe escapa e se esconde, mas relampeja nos tropeços, nos “restos” e nos silêncios. Benjamin confere ao presente e ao particular um lugar dentro de um contexto maior. Apropriar-se da história é, nessa perspectiva, compreender o processo de “intercambiar” tempos supostamente autônomos. A alternativa à ideia de tempo linear é romper com a ideia de progresso em favor de uma compreensão da história que valoriza o singular, o conflituoso, o fragmentário, os “cacos”, para demonstrar a não homogeneidade social e a ideia de que se caminha para o progresso. Ao mesmo tempo, enfatizar a articulação de diferentes temporalidades distantes e próximas a fim de juntar os fragmentos e produzir uma história que não se defina a priori por um conceito, mas que recebe sentido baseada na experiência com o tempo social. A essa temporalidade Benjamin chama de “tempo de kairós”. Como menciona Monique Trédé, o kairós “é fugidio, imprevisível, irreversível . . . não se oferece à captura senão no instante mesmo em que se apresenta. O em seguida é demasiado tarde. Kairós!” (Trédé, como citado em Pinho, 2020, p. 199). Para Agamben (2001/2012, p. 126):
. . . o tempo da história é o cairós em que a iniciativa do homem colhe a oportunidade favorável e decide no átimo a própria liberdade. Assim como ao tempo vazio, contínuo e infinito do historicismo vulgar deve-se opor o tempo pleno, descontínuo, finito e completo do prazer, ao tempo cronológico da pseudo-história deve-se opor o tempo cairológico da história autêntica.
Os rituais da infância são retomados pelo pensador alemão como importantes fontes para o entendimento dos processos históricos de construção dos saberes pela criança e fundamentam um método de conhecimento baseado na produção de “imagens dialéticas”. A metáfora do par de meias remete à “imagem” como categoria central no seu pensamento. Trata-se de uma referência metafórica, na qual a realidade é desdobrada, enrolada e refeita, sendo a referência direta à objetividade da vida social. É esse movimento do refletir que permitiu a Benjamin destacar a descontinuidade na continuidade dos processos históricos, seus momentos de ruptura por meio dos lampejos do passado.
A imagem é elemento construtivo e imanente das formas cognitivas, pois estabelece um vínculo no limiar entre o real e o imaginário, lugar de onde se mostra a tarefa da memória. A ficção seria, então, este olhar especulativo que, a partir de sua natureza imagética, recolhe em meio aos resíduos (os cacos) do real - da história - o ponto desencadeador de um saber, cujo resultado pretendido é a ampliação da capacidade figurativa e da narração.
Tal qual o exercício reflexivo de linguagem metafórica (como o das meias), o ofício do historiador permite avaliar a importância da narrativa das crianças com o seu passado para a apropriação do tempo histórico. Nos processos mentais da imagem dialética, Benjamin vincula a materialidade à sensibilidade para chegar à realidade. As obras artísticas, em que se incluem a literatura, são espaços extraordinários, pois permitem aproximar escrita e figura de linguagem (alegoria), criando condições de refletir acerca de narrativas sobre a vivência temporal. Isso porque “a alegoria busca sentido no mundo histórico” (Junkes, 1994, p. 128).
Ao tratar da linguagem, Benjamin consente pensar a importância da narrativa para a constituição do sujeito e a percepção do tempo histórico na infância. Ele sugere, ainda, que os objetos se tornam vestígios manifestos que permitem o acesso ao passado ou se abrem ao acesso a ele. Para o autor, a criança vive imersa numa realidade composta de elementos espaciais e temporais produzidos por gerações anteriores que lhe permite perceber que o tempo passa e nas paisagens urbanas encontram-se os “cacos” do passado (Alves, 2018).
Entende-se que a escola é a instância capaz de oferecer mediação entre a memória individual e coletiva como função do ensino de História, atribuindo a ele um lugar na construção das memórias individuais e na mediação entre essas e a memória coletiva, movimento que não se realiza se não tematizar as experiências. Para Benjamin, a tentativa de conceituação da história (por definição fixa) para a criança parte de um ideal que acompanha o presente como uma espécie de espelho, que lhe mostra suas imperfeições, porque a realidade é dinâmica, não se deixando captar num conceito. O que indica, como se entende, que não se trata de ensinar às crianças um conceito de tempo, mas sim possibilitar a apropriação da temporalidade no processo reflexivo da sua experiência histórica com o tempo social. A tarefa de compreender o próprio presente é indissociável da compreensão dos nexos entre o presente e o passado. Enfim, a preocupação de Benjamin parece se orientar muito mais pelo esforço de estabelecer uma relação viva e crítica com o passado, num contexto em que a relação entre passado, presente e futuro não é mais regulada pela tradi- ção historiográfica.
No momento histórico da modernidade, em que os laços que unem os sujeitos à experiên- cia passada se enfraquecem, aumentando a descontinuidade entre as gerações, torna-se uma necessidade do tempo presente elaborar formas relacionais com o passado que não se guiem por mera conservação, como valor desconectado das exigências do tempo presente em favor de um tempo linear, cujo ponto de partida foi o Ocidente. Esse que produziu “uma narrativa que constrói a civilização ocidental ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao mesmo tempo, o seu lado mais escuro, a ‘colonialidade’” (Mignolo, 2017, p. 2).
Distintas, porém intensamente imbricadas, história e memória se constituem em cenários históricos em que relações de força e arenas de conflitos se estabelecem e são percebidas nas narrativas do vivido e dizem respeito às memórias e identidades individuais e coletivas produzidas socialmente. O reconhecimento da existência dessas relações de força, por sua vez, atribui sentido político ao ensino de História, (re)conduzindo à questão: por que ensinar História nos primeiros anos do ensino fundamental no século XXI?
Considerações finais
A orientação curricular da Base Nacional, prevalecente na atualidade, mantém uma proposta para o ensino de História nos anos iniciais do ensino fundamental que, embora não desconsidere a vivência das crianças em seu pertencimento social como constituintes de uma aprendizagem temporal, não elabora o referencial teórico sobre a aprendizagem do tempo histórico e o trato pedagógico capaz de nortear as práticas curriculares dos estados e municípios nesse sentido. Do mesmo modo, não são reconhecidas contribuições metodológicas para que possam refletir sobre a apropriação pela criança da temporalidade no espaço em que vive. De maneira que a BNCC enleia o debate sobre a necessidade de superar o tempo como conceito da modernidade, na medida em que não o elabora, não o explicita e não o critica.
Considerando tal problemática, neste trabalho refletiu-se sobre o conceito de tempo histórico situando-o no contexto da modernidade e levantando hipótese sobre o porquê de ser o tempo cronológico, o relógio e o calendário que as crianças, como observado em pesquisas atuais, mais relacionam com o tempo nas aulas de História.
Para essa reflexão, tomaram-se os estudos de Koselleck, Ricoeur e Benjamin no sentido de refletir sobre os nexos entre temporalidade e infância, considerando que, para além de possíveis divergências teóricas, esses autores relacionam o tempo com a experiência narrativa, a linguagem e a memória, acenando para construções teóricas e práticas passíveis de elucidar relações temporais capazes de privilegiar a dimensão histórica do tempo e da existência humana em suas mais diversas manifestações socioculturais.
Para Koselleck, a diversidade temporal, diferente de um encadeamento causal inerente a um processo linear, resulta na compreensão de que o primeiro conhecimento sobre o tempo diz respeito não ao conceito, mas sim à temporalidade. Essa que é sentida e significada por meio da percepção humana, da linguagem e da reflexão sobre as experiências e a capacidade de narrar o tempo, experiência que pouco tem a ver com o tempo físico da natureza.
Com Ricoeur é possível reconhecer a importância da narrativa na produção historiográfica do tempo histórico. Ela seria mediadora entre a experiência, a linguagem e a memória, ligando a explicação à compreensão, superando a distância entre compreender e explicar um fenômeno social. Para Ricoeur, é por meio da linguagem e da memória que o homem mostra seu potencial criador, uma vez que o narrar implica um exercício mimético. Esse autor avalia que a dimensão mimética da linguagem é o que caracteriza a “verdadeira experiência histórica”.
Em Benjamin destacou-se a centralidade da linguagem para o desvelamento da memória como fundamento da experiência, ressaltando uma concepção de infância em que as crianças são produtoras de cultura. Uma cultura que relaciona a memória de suas experiências aos “restos” que as crianças recolhem e transformam - no tempo do “agora” - em narrativas temporais que dizem respeito à atualidade do passado em função de uma reflexão a respeito do próprio presente.
Um ensino voltado para os primeiros anos do fundamental que considera tais questões destaca o modo como as crianças produzem saberes temporais, uma vez que são vistas como criativas e criadoras, podendo estabelecer, a partir de si, na relação com o “outro”, um novo conjunto de conhecimentos discursivos provenientes da percepção temporal de sua vivência individual e coletiva. Percepção que se associa a um movimento irregular, descontínuo e desestruturador do conteúdo escolar, com o qual a História ensinada não tem conseguido lidar.
Pensar essas questões exige ir além da proposta curricular atual e do seu exame como temática no interior da BNCC. Elas também dizem respeito à possibilidade de avaliar a atualidade do passado de um ensino em função de uma reflexão a respeito do próprio presente, pois ajuda a compreender que a história, antes de se constituir como uma disciplina escolar, é uma prática social e a infância precisa ser compreendida nesse contexto.
Em suma, se quiser ir além da constatação de que as coisas mudam, de que cada momento é diferente do outro, é necessário reconhecer que o passado é objeto de um processo histórico e que esse processo é objeto de disputa social no presente. Disputa verificável no atual cenário político brasileiro, no qual grande parte dos sujeitos escolhe fazer história enaltecendo ditaduras civil- -militares e golpes de Estado na contraposição de considerar governos democráticos.
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Disponibilidade de dados
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
18 Nov 2023 -
Aceito
19 Jun 2024