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Diários de aula e portfólios como instrumentos metodológicos da prática educativa em artes visuais

Classroom diaries and portfolios as methodological tools of educational practice in visual arts

Diarios de clase y portafolios como instrumentos metodológicos de la práctica educativa en artes visuales

Resumos

Este artigo pretende dissertar sobre nossas experiências profissionais com diários de aula e portfólios no processo formativo de professores. Como são conceituados, em que estão pautados, como podem ser organizados pelos estudantes e que lugar ocupam enquanto instrumento da prática educativa foram determinantes na forma como este texto foi organizado. A partir de uma série de autores que servem de referência, pretendemos mostrar conceitualmente como operamos com esses dois instrumentos na formação de professores, tendo a perspectiva da cultura visual como pano de fundo. Essa experiência foi vivida pelos pesquisadores em dois ambientes distintos de formação - Brasil e Portugal - e, nesse sentido, serão feitas pontualizações das especificidades e respectivas contextualizações.

Diários de Classe; Portfólios; Formação de Professores; Cultura Visual


This article aims to discuss our professional experience with class diaries and portfolios in teacher training. The way they are conceptualized, what they are based on, how they could be organized by the students and what role they play as an instrument of educational practice were very important in the organization of this text. Based on a series of authors, we intend to show conceptually how these two instruments helped in teacher training from the perspective of visual culture. The researchers went through this experience in two different training environments, Brazil and Portugal, and each country's specificities and contextualization will be discussed here.

Class Diaries; Portfolios; Teacher Training; Visual Culture


Este artículo pretende disertar sobre nuestras experiencias profesionales con diarios de clase y portafolios en el proceso formativo de profesores. Cómo los conceptualizamos, en qué se pautan, cómo pueden ser organizados por los estudiantes e qué lugar ocupan como instrumento de la práctica educativa fueron determinantes en la forma en que organizamos este texto. A partir de una serie de autores que nos sirven de referencia, pretendemos mostrar conceptualmente cómo operamos con estos dos instrumentos en la formación de profesores, con la perspectiva de la cultura visual como telón de fondo. Esta experiencia fue vivida por los investigadores en dos ambientes distintos de formación -Brasil y Portugal- y, en este sentido, señalaremos sus respectivas especificidades y contextualizaciones.

Diarios de Clase; Portafolios; Formación de Profesores; Cultura Visual


O essencial é saber ver, mas isso, triste de nós que trazemos a alma vestida, isso exige um estudo profundo, aprendizagem de desaprender. Eu prefiro despir-me do que aprendi, eu procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desembrulhar-me e ser eu.

(Alberto Caeiro)

Os principais materiais que servem de mote a este texto - diários de aula e portfólios - articulam-se e giram, em conjunto com a formação docente, no sentido da gigantesca iconosfera em que vivemos e da qual não conseguimos escapar. Também é discutida, neste artigo, certa ideia vinculada à necessidade de "desaprender" como pressuposto básico para uma (re)aprendizagem das complexas formas visuais em que se manifesta a cultura contemporânea e na qual acreditamos estar um dos focos da formação dos futuros professores de artes visuais.

Entendemos aqui o diário de aula como um instrumento metodológico presente na formação inicial do professor. No caso brasileiro, adotamos inicialmente os referenciais de Porlán e Martín (1997PORLÁN, Rafael; MARTÍN, José. El diario del profesor: un recurso para la investigación en el aula. Sevilla: Díada, 1997.), a partir do livro El diario del profesor - un recurso para la investigación en el aula, para operacionalizar o conceito de diário que buscávamos naquele momento (2002 a 2006), o qual consistia em considerá-lo um registro da prática docente: "Diário de aula como instrumento que permite ao professor investigar e refletir sobre a prática educativa, testemunho biográfico da sua experiência" (PORLÁN; MARTÍN, 1997PORLÁN, Rafael; MARTÍN, José. El diario del profesor: un recurso para la investigación en el aula. Sevilla: Díada, 1997., p. 18). Segundo esses autores, a escrita do diário com certa periodicidade permite ao professor refletir sobre seu plano de aula e suas ações educativas. Nessa concepção, o diário se torna uma espécie de guia, em que sempre é possível voltar aos registros para rever o que foi realizado. Ou, ampliando ainda mais, o diário é visto como um instrumento para detectar problemas e explicitar nossas concepções pedagógicas, didáticas, políticas e ideológicas.

Organizávamos as aulas semanais na universidade de forma que cada um dos licenciandos pudesse ler seu diário ou, se preferisse, falar sobre a aula ministrada na escola naquela semana. Esse momento era muito especial, pois propiciava a troca de ideias e vivências pedagógicas.

Esses diários, muitas vezes, circulavam de mão em mão e era curioso observar como cada um organizava sua forma de contar os fatos sucedidos nas escolas. Assim, a partir da escrita semanal do diário, os participantes passaram a trocar informações, discutir acerca dos diversos problemas enfrentados e acolher dúvidas uns dos outros por meio dos próprios relatos apresentados. Esse intercâmbio é importante porque os diversos acontecimentos não ficam presos ou relegados a uma só pessoa. A escrita e a posterior leitura no coletivo possibilitam o fluxo das informações e a mobilidade das práticas, a fim de que cada um possa dividir seus medos, suas angústias. Essa prática promove a quebra de estereótipos e aponta novos caminhos para cada situação apresentada no grupo. Tudo o que foi escrito/descrito pelo professor - os entraves, os problemas, as dificuldades, todas as descrições das aulas, bem como as satisfações, as alegrias, as análises -, que era particular, torna-se público.

O professor em formação inicial procura organizar seu pensamento quando escreve o diário semanal após ter ministrado a aula na escola e volta a organizá-lo novamente quando exterioriza a leitura do diário ao grupo de estagiários no ambiente universitário, sendo questionado e recebendo opiniões. Assim, o que seria apenas uma escrita ultrapassa o plano silencioso do textual e ganha forma ao ser dimensionado no verbal. É esse trânsito, esse percurso, ou caminho, como queiramos denominá-lo, que potencializa o discurso. Passa de um simples relato para algo a ser problematizado pelos colegas e pelo professor. É o caráter público do diário que, em nossa opinião, redimensiona a prática pedagógica; ou, como afirmaram André e Darsie (2010ANDRÉ, Marli Elisa D. Afonso de; DARSIE, Marta Maria P. O diário reflexivo, avaliação e investigação didática. Meta: Avaliação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 13-30, jan./abr. 2010., p. 15), "vemos o diário como um instrumento de reflexões e de tomada de consciência da aprendizagem, possibilitando a reorganização e o aperfeiçoamento do ensino".

A partir de 2006, ampliamos nosso conceito de diário por meio do contato com o livro Diários de aula - um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional, de Miguel A. Zabalza, publicado no Brasil em 2004ZABALZA, Miguel. Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional. Porto Alegre: Artmed, 2004.. Nossos diários, inicialmente, eram bastante descritivos (textuais) e, a partir da inserção de Zabalza (2004ZABALZA, Miguel. Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional. Porto Alegre: Artmed, 2004.) como referencial teórico, as narrações passaram a ser mais pessoais, mais biográficas e visuais. Os professores em formação se permitiam escrever como se sentiam diante das dificuldades enfrentadas, trazendo imagens para o diálogo.

Quanto ao portfólio, temos uma concepção muito próxima daquela encontrada em Hernández (2000HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000.) e Villas Boas (2012), que o conceituam a partir de referências anglo-saxônicas (ARTER; SPANDEL, 1992ARTER, Judith A.; SPANDEL, Vicki. Using portfolios and student work in instruction and assessment. Educational Measurement: Issues and Practice, v. 11, n. 1, p. 36-44, March 1992.; BARTON; COLLINS, 1997BARTON, James; COLLINS, Angelo (Ed.). Portfolio assessment: a handbook for educators. Nova York: Dale Seymor, 1997.; EASLEY; MITCHELL, 2003EASLEY, Shirley-Dale; MITCHELL, Kay. Portfolios matter: what, where, when, why and how to use them. Ontario: Pembroke, 2003.). Não o consideramos uma mera coleção ou organização significativa de materiais que, de uma forma ou de outra, tiveram sucesso no percurso do professor em formação inicial. Isso seria ter do portfólio uma visão meramente instrumental que reduziria seu potencial crítico e reflexivo.

É evidente que selecionar e guardar, para usos futuros, os projetos e propostas didáticas que tiveram grande impacto junto aos jovens estudantes nas escolas é de grande utilidade. O trabalho docente apoiado em experiências significativas concretas exige uma pedagogia e uma didática pragmáticas mais próximas da realidade vivida pelos acadêmicos do que o trabalho letivo apoiado em didáticas formalistas, demasiado condutivistas e repetitivas, que em regra se encontram encerradas nos manuais de estudo. Por isso,

[...] um portfólio é algo mais do que uma recopilação de trabalhos colocados numa pasta, ou os apontamentos e notas tomadas em sala de aula passadas a limpo, ou uma coleção de lembretes de aula colados num álbum. Um portfólio não significa apenas selecionar, ordenar evidências de aprendizagem e colocá-las num formato para serem apresentadas. Como diz Gardner1 1 GARDNER, Howard. Educación artística y desarrollo humano. Barcelona: Paidós, 1994. (1994, p. 84) no portfólio é possível identificar questões relacionadas ao modo como os estudantes e os educadores refletem sobre quais os reais objetivos de sua aprendizagem, quais foram cumpridos e quais não foram alcançados, onde, quando, e porque houve um enfoque inadequado, tanto em relação ao esforço quanto às estratégias de aprendizagem de cada estudante, e aponta a direção para a qual será mais promissor a projeção de um enfoque futuro. (HERNÁNDEZ, 2000HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000., p. 166)

Em certa medida, o portfólio pode ser entendido como uma "lente macro" que procura abranger todo um horizonte de formação elaborado em determinado momento cronológico. Uma espécie de grande-angular, que procura não deixar de fora aspectos importantes, quer pertençam em concreto à profissão docente, quer integrem o complexo ambiente cultural que caracteriza as escolas e as sociedades contemporâneas.

Assim, como mostrado no esquema da Figura 1, o campo da cultura visual intersecta inevitavelmente os campos do portfólio e dos diários de aula. Nesse esquema também procuramos evidenciar como se torna inevitável, hoje em dia, o choque da formação docente com a cultura visual. Acreditamos que em muitas, ou em quase todas as áreas do conhecimento, se têm elaborado novos aportes didáticos explorando formas persuasivas de abordagem a determinados tipos de conhecimento, tendo as imagens como principais vetores.

FIGURA 1
Esquema conceitual da interação entre portfólios e diários de aula na formação docente, tendo a cultura visual como campo de intersecção e confluência

No período formativo, os diários de aula podem ser as "lentes micro" que ajudam o estudante a se aproximar daquilo que procura compreender melhor. Trata-se de observação mais próxima do dia a dia da escola, anotando e refletindo sobre detalhes que podem (ou não puderam) fazer funcionar melhor uma aula, mas também olhando para o interior de si mesmo, para os receios e as angústias que tolheram seus movimentos enquanto estudante em formação (apresentar-se e falar em público, o medo das lapsus memoriae...), para as dificuldades que sentiu, como as procurou ultrapassar ou, ainda, como pensa posicionar-se para ultrapassá-las no futuro, enquanto docente (PANIZ; FREITAS, 2011PANIZ, Catiane Mazocco; FREITAS, Deise Sangoi. O uso de diários na formação inicial de professores. Jundiaí: Paco, 2011.; DARSIE, 1998DARSIE, Marta Maria P. A reflexão distanciada na construção dos conhecimentos profissionais do professor em curso de formação inicial. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.).

O diário de aula registra o que foi vivido e o que ainda permanece suficientemente "quente" para permitir capturar com mais intensidade os pormenores da experiência formativa que podem vir a fazer a diferença num futuro próximo, qualificando-a. O diário de aula, tal e como o viemos operando, não exige uma escrita diária, mas é fato que demanda certa periodicidade. "O importante é manter uma linha de continuidade na coleta e na redação das narrações (que não seja uma atividade intermitente, feita apenas de vez em quando e sem nenhuma sistematicidade)" (ZABALZA, 2004ZABALZA, Miguel. Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional. Porto Alegre: Artmed, 2004., p. 14).

O "portfólio reflexivo de formação", como gostamos de designá-lo, pode então integrar e dar sentido a um conjunto de diários de aula, tomando-se como princípio que um bom portfólio requer a inclusão de bons diários de aula (que objetivamente são bem mais do que meros planos de aula) e estes podem ser elaborados sabendo-se de antemão que poderão vir a proporcionar uma posterior leitura transversal de uma experiência que requer essa visão alargada.

Assim, o que definitivamente particulariza o portfólio

[...] é o processo constante de reflexão, de contraste entre as finalidades educativas e as atividades realizadas para sua concepção, a maneira como cada aluno explica seu próprio processo de aprendizagem, como dialoga com os problemas e temas da série e os momentos-chave em que o estudante considera (e coloca para contraste com o grupo e com o professor) em que medida superou ou localizou um problema que dificulta ou permite continuar aprendendo. (HERNÁNDEZ, 2000HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000., p. 166)

Talvez seja possível afirmar que o que é comum em ambos os instrumentos metodológicos da prática educativa - diários de aula e portfólios - é a descoberta das inconsistências e a menção das tensões e conflitos que são as consequências inevitáveis de viver num mundo civilizado, e ensinar nele. Aqui, pelo menos duas espécies de distanciamento têm lugar: primeiro, o fato de investigar de modo mais profundo a experiência cotidiana, explorando seu significado de acordo com as perspectivas pessoais e biográficas; e, em segundo lugar, recuar até a experiência cotidiana e olhá-la a partir de contextos mais latos e menos pessoais. "A questão do distanciamento da experiência consiste em desenvolver perspectivas alternativas e em identificar diferentes dimensões do que parecia unidimensional" (HOLLY, 1995HOLLY, Mary Louise. Investigando a vida profissional dos professores: diários gráficos. In: NÓVOA, António (Org.). Vidas de professores. Porto: Porto, 1995. p. 79-109., p. 104).

Ambos os instrumentos "extrapolam o relato de experiência de um professor em formação, pois exprimem uma concepção de pesquisa de notada complexidade e de rara sensibilidade, num exercício intelectual de imersão e afastamento digno de nota" (AMBRÓSIO, 2013AMBRÓSIO, Márcia. O uso do portfólio no ensino superior. Rio de Janeiro: Vozes, 2013., p. 11). Nesse sentido, os dois instrumentos fornecem elementos para pensar a prática educativa como instrumentalização, como aporte metodológico.

Contribuições da cultura visual

O uso crescente e sistemático de imagens como "materiais científicos" em disciplinas acadêmicas, que tradicionalmente se fundamentavam em textos, vem provar que hoje, inexoravelmente, temos a necessidade e a obrigação de lançar um olhar mais cuidadoso e atento sobre a extraordinária miríade de imagens que nos circundam. Isso levando em consideração uma evidência destacada por Mitchell (1994MITCHELL, W. T. J. Picture theory. Chicago: The University of Chicago, 1994., p. 13), frequentemente referida por muitos autores, segundo a qual "não sabemos o que são as imagens, que relação têm com a linguagem, como operam nos observadores e no mundo, como é que sua história é compreendida e o que se fará com elas e sobre elas".

A constituição tradicional do conhecimento em campos específicos teve como consequência uma série de disciplinas que objetivamente se debruçam sobre as imagens (como a Iconologia e a Iconografia, por exemplo), sem ter um enfoque que expanda o significado contido numa imagem para além das evidentes relações com uma simbologia construída historicamente. Resumindo, esse corpus disciplinar tradicional, de demarcada matriz enciclopédica que, claro, integra também a História da Arte, não consegue evidenciar os discursos subliminares que uma boa parte das imagens contém.

Dessa forma, são tais narrativas críticas que justificam seu uso na educação contemporânea a partir de agendas pedagógicas preocupadas com questões sociais emergentes e com a construção de subjetividades capazes de aceitar e desenvolver novas estéticas e "modos de endereçamento" muito particulares que impliquem, entre outras ousadias, um "desaprender" prévio (o despir-se de preconceitos) por parte dos professores em formação inicial.

Desaprender é algo mais do que aprender coisas opostas sobre um mesmo tema, assunto, valor, questão da vida. Desaprender pode até indicar erradamente, a ideia de esquecer o aprendido. Porém, o seu significado e intenção é exatamente o contrário. Tal é a força de irreversibilidade da aprendizagem, que desaprender significa fundamentalmente lembrar as coisas aprendidas que querem ser desaprendidas. Desaprender é aprender a não querê-las mais para si; a não outorgar mais o estatuto de verdade, de sentido ou de interesse. Verdade aprendida com outros, desde sempre, adquire valor inquestionável. Desaprender é animar-se a questionar tais verdades. Desaprender e, também, fazer o esforço de conscientizar todo o vivido na contramão, evocando o impacto histórico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada. (FRESQUET, 2007, p. 49)

Nesse sentido, tanto os diários de aula como os portfólios representam grandes contribuições para que seja possível fazer essa movimentação. São instrumentos que evidenciam nossa prática, que potencializam nossas ações, sublimam nossas crenças e, portanto, colocam foco de luz nas nossas ações diárias, sendo, dessa maneira, como uma lupa que aumenta as proporções. Adriana Fresquet (2007FRESQUET, Adriana. Imagens do desaprender: uma experiência de aprender com o cinema. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. , p. 51) mostra que:

Re-aprender é algo mais que aprender. Coloca em cena a flexibilidade, o uso da memória para lembrar fatos vinculados a essas aprendizagens, estratégias utilizadas, consequências, efeitos sociais, etc.; a disposição para estabelecer mudanças que podem desequilibrar aspectos bem compensados de personalidade e de relação com os outros, aceitação dos fracassos, perdas, limitações; pulsão para a geração de novos desejos e conquistas.

Assim, concebemos a cultura visual como um contributo ou um pano de fundo que nos possibilita explorar os diários de aula e os portfólios no que se refere não apenas ao campo imagético, mas também ao posicionamento epistemológico que acionamos quando estabelecemos relação entre uma imagem e outra, quando colocamos em diálogo um texto com um filme e problematizamos ambos. Fato esse que é muito diferente do que, simplesmente, elaborar perguntas ou questões sobre o filme. A contribuição da cultura visual para pensar os diários de aula, inicialmente, e os portfólios, posteriormente, reside no que esse campo pode gerar como movimentação propulsora, ou seja, como campo conceitual adisciplinar que nos permite estabelecer inúmeras relações entre os conceitos, entre um conceito e a produção de uma imagem, entre uma imagem e outra, entre uma história em quadrinhos e um outdoor, entre inúmeras outras que poderíamos ainda mencionar.

Assim, a produção desses instrumentos da prática educativa a partir da concepção da cultura visual faz parte de uma engrenagem que precisa funcionar. São várias peças em movimento que necessitam ajustar-se umas às outras, como procuramos mostrar no esquema da Figura 1.

Desse modo, a perspectiva da cultura visual como pano de fundo e engrenagem para pensar os diários de aula e os portfólios é mais que um conceito operacionalizável, assumindo um posicionamento político e epistemológico. Conforme Oliveira (2013OLIVEIRA, Marilda Oliveira de. O que pode diário de aula? In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (Org.). Processos e práticas de pesquisa em cultura visual e educação. Santa Maria: Editora da UFSM, 2013. p. 225-236., p. 226-227): "Trata da maneira como nos relacionamos com as visualidades, sejam elas da história da arte, sejam do cinema, das histórias em quadrinhos - HQs -, da publicidade, da moda, do design, etc.". Além disso, ela está focada no olhar do observador, no objeto/visualidade observada, bem como no que podemos construir no processo, no percurso.

Portfólio e diário de aula: dimensões avaliativas dos dois instrumentos

Desde alguns anos temos nos debruçado sobre o uso desses instrumentos na formação docente. Partimos do princípio de que eles são complementares e atuam de forma interativa/associativa.

O portfólio, a partir das experiências vivenciadas em Portugal, sempre serviu como instrumento de avaliação para o professor universitário ou orientador de estágio. Restringi-lo apenas ao processo avaliativo significa desperdiçar seu enorme potencial pedagógico como instrumento de autorreflexão contínua sobre o processo em curso para o qual é solicitado. Digamos que, para o professor/orientador, trata-se de um instrumento de monitorização e de "medição" (qualitativa) do crescimento intelectual que o estudante/estagiário irá revelar, na forma como utiliza o conhecimento, onde o procura, como manifesta suas competências e como apresenta suas atitudes em relação a determinada área do saber (ou disciplina).

Daí vem todo o sentido em enquadrá-lo no sistema avaliativo conhecido como "avaliação contínua" ou "frequência", pois o fator tempo é fundamental para a sua realização e a interação do conhecimento com o sujeito. Portanto, o ideal do ponto de vista avaliativo é que o professor/orientador realize mais do que um momento de avaliação ao longo do processo educativo (avaliação contínua) tomado como cenário. É interessante que essa avaliação seja essencialmente personalizada, que um contrato de confiança seja instituído entre docente e discente logo no início do ano/semestre. Trata-se de, nessas avaliações parciais, rever trajetórias e apresentar alternativas que sejam mais assertivas para o estudante/estagiário e que o façam chegar com mais facilidade aos objetivos a que se propôs.

No que respeita ao estudante, o portfólio deverá ser tomado como um amigo de todas as horas. Numa sociedade em que tudo parece ser volátil, a afixação do conhecimento (independentemente dos suportes que podem ser utilizados) é uma urgência e uma necessidade. Por isso, o portfólio será também uma espécie de "base de dados" organizada segundo critérios precisos (aos quais nos referiremos mais adiante), de modo que seja facilmente manipulável.

Todavia o traço distintivo mais importante do portfólio é o de constituir uma espécie de autoavaliação para o estudante/estagiário, levando-o, constantemente, a pensar nos materiais que selecionou ou elaborou, tomando consciência do seu próprio processo de construção do conhecimento e da sua utilização perante um contexto dado. Para que isso seja possível, o portfólio deverá ter itens, alíneas ou capítulos.

Para Villas Boas, o uso do portfólio como instrumento de avaliação dá relevância a um papel que normalmente não é atribuído aos estudantes.

O portfólio é um procedimento de avaliação que permite aos alunos participar da formulação dos objetivos de sua aprendizagem e avaliar o seu progresso, eles são portanto participantes ativos da avaliação, selecionando as melhores amostras de seu trabalho para incluí-las no portfólio. (VILLAS BOAS, 2012, p. 38)

Para reforçar a relação de confiança que deve ser estabelecida entre professor/orientador e estudante/estagiário, é muito importante que haja uma espécie de negociação prévia sobre a composição do portfólio, a sua estruturação, em que momentos será avaliado, etc. É fundamental que o estagiário/professor em formação sinta que, em parte, não só é dono, como também é, como já mencionamos anteriormente, o principal responsável pelo seu próprio processo de busca e construção do conhecimento. Para não se tornar um depósito de tudo o que o estudante (estagiário/professor em formação) produz ou recolhe, durante um período mais ou menos extenso, o portfólio deve conter o que se entender por produtos, trabalhos ou informações "representativos" para determinada área de saber.

O professor em formação deve impor sobre a sua própria prática de desenvolvimento do portfólio uma seletividade criteriosa. Essa característica, por si só, já demonstra ao avaliador algo sobre o espírito analítico-sintético do estudante. Trata-se de um critério avaliativo positivo num mundo onde a quantidade de informação que circula é de tal ordem e assume um volume tal, que se torna urgente sua seleção em função daquilo que se quer verdadeiramente saber e dominar.

Os "materiais" que deverão fazer parte do portfólio variarão conforme a área do conhecimento, a disciplina ou o âmbito para o qual é elaborado, podendo haver especificidades referentes a algumas áreas que não façam sentido em outras áreas ou disciplinas. Deve-se evitar a tendência de colocar e acumular "tudo" no portfólio. É a qualidade e não a quantidade dos conteúdos que será determinante no processo global de análise.

No portfólio, deverão ser aceitáveis tanto os "trabalhos acabados" como os "trabalhos em processo" ou "rascunhos" e "esboços iniciais", que são os melhores índices de comprovação da movimentação do pensamento do estagiário/professor em formação, até chegar ao trabalho final.

Por outro lado, também convém sublinhar que o percurso de uma ideia ou a aquisição de determinado conhecimento e sua manipulação e aplicação a uma nova situação deverão ser devidamente valorizados. Trata-se, nesse sentido, de uma das melhores formas de se provar que certo conhecimento é dado como válido.

  1. Intenções. Espera-se que um portfólio contenha uma apresentação que reflita, por si só, os interesses, as atitudes do estudante/estagiário pela área do conhecimento ou disciplina para a qual é realizado, entendendo que o portfolio é de sua propriedade, sendo um recurso educativo que ele elabora, continuamente, para seu próprio benefício.

  2. Organização. O portfólio deve ter um índice ou tabela que inclua, de forma clara e organizada, todos os formatos, itens, componentes ou conteúdos do material, o que possibilita aceder-se rapidamente a qualquer conteúdo. Por isso sua organização, distribuição e sequencialização são importantes.

  3. Sinalizações conceituais. É esperado que haja comentários reflexivos produzidos pelo professor em formação acerca dos conteúdos, explicando igualmente quais as razões que o levaram a organizar de determinada maneira os conteúdos, bem como a selecionar (e/ou a excluir) determinados materiais.

  4. Avaliações parciais e finais. Deve haver um espaço destinado aos momentos avaliativos intermediários e ao momento avaliativo final do ano letivo, em que integrar-se-ão as reflexões pessoais do professor em formação e as indicações e encaminhamentos do professor/orientador. Considerações sobre a visita na escola, por exemplo.

  5. Encaminhamentos futuros. Trata-se dos objetivos negociados entre o professor em formação e o professor/orientador, a serem alcançados a curto, médio e longo prazos. Num contexto de educação continuada, são indicações úteis para o próximo professor relativamente à performance do professor em formação inicial: aquilo que ainda não conseguiu atingir; onde pode qualificar mais o seu trabalho.

Ideias e itens a considerar na estruturação de um portfólio. Como organizá-lo?

Na continuidade das ideias-chave indicadas anteriormente, é muito importante que o portfólio tenha uma organização e uma estrturação que o tornem uma ferramenta útil para o seu autor-usuário e para o professor/orientador. Os pontos que se seguem foram adaptados para o que deverá ser o "processo de estágio". No entanto deverá ser relativamente fácil readaptá-lo/pensá-lo para níveis de educação infantil, ensino fundamental ou médio. A ordem dos itens também pode ser alterada em função do contexto. Do mesmo modo, podem ser acrescentados índices específicos, propostos pelos estagiários, que encontrem maior proximidade com sua realidade escolar.

  • alguns trabalhos individuais da sua produção em ateliê, relacionados com a área disciplinar. Por exemplo, para um estagiário da Licenciatura em Artes Visuais, uma síntese dos seus próprios trabalhos de gravura, desenho, ilustração, pintura, etc. pode ser muito útil na hora de mostrar exemplos prévios de resultados de projetos de trabalhos artísticos solicitados aos estudantes das escolas;

  • atestados de comunicações relacionadas com a área de conhecimento e apresentadas em eventos de caráter científico (congressos, conferências, palestras, etc. sobre determinado assunto que também pertença ao portfólio);

  • apontamentos e registros de aulas assistidas pelo estagiário a sessões de outros estagiários da mesma área (aspectos positivos que possam ter influenciado como um estímulo);

  • organização de registros de aulas significativas ou planificações de aulas (apresentadas em fluxogramas, organogramas ou tabelas esquemáticas, com ou sem reflexõs críticas e outras indicações);

  • questões concretas colocadas ao(s) orientador(es) e respectiva(s) resposta(s);

  • dúvidas apresentadas ao(s) orientador(es) e respectiva(s) resposta(s);

  • "ferramentas" e materiais de apoio à prática letiva elaborados individualmente pelo estagiário (banco de imagens, resumos, memorandos, material didático, maquetes e protótipos que ajudem a visualizar melhor conceitos abstratos, etc.);

  • trabalhos individuais solicitados pelo(s) orientador(es);

  • trabalhos de iniciativa individual (entrevistas a entidades, gestores de escolas, presidentes de conselhos executivos, dirigentes sindicais, etc. Reflexões pessoais sobre temas da atualidade educativa, tais como violência escolar, políticas educativas, etc.);

  • trabalho cooperativo de natureza pedagógica, com inclusão dos cooperadores (redação de relatórios, artigos, relatos de experiências a serem apresentadas em grupo em eventuais reuniões de estagiários, balanços finais do estágio ou em outras reuniões científicas de profissionais da educação);

  • trabalho cooperativo de natureza cultural (dinamização e organização de exposições de ciência na escola, na biblioteca municipal, ou no museu ou espaço cultural local; organização de palestras e seminários com especialistas convidados, etc.);

  • experiências de oficinas ou laboratoriais, com relatório de execução e de avaliação;

  • produtos de trabalhos de grupo, com os colegas do núcleo de estágio (planificações, provas de diagnóstico, testes de avaliação, protocolos laboratoriais, etc.);

  • registros de imprensa relacionados com a área de conhecimento (artigos de jornal, revista, vídeos gravados na TV ou salvos da internet);

  • registros de audio-vídeo de performances e atividades individuais ou de grupo (aulas de regência filmadas, experiências oficinais ou laboratoriais, atividades culturais realizadas no âmbito da dinamização cultural da escola, representação dramática, declamação poética, audição musical, exposição artística, etc.);

  • inventário organizado de fontes de pesquisa e recursos de apoio aos conteúdos do(s) programa(s) de estudos (bibliografias, iconografias, videografias, revistas, websites, portais web, e-zines, etc.);

  • comentário individual e recensões críticas a conteúdos e aspectos dos programas de estudos, manuais de estudo, obras bibliográficas consultadas, websites visitados, etc.;

  • artigos publicados (no jornal da escola, ou em periódicos locais ou nacionais);

  • aplicação, na comunidade, dos conhecimentos adquiridos (se aplicável, com ou sem colaboração do núcleo de estágio);

  • autoavaliação do estagiário (e/ou reflexão crítica. Pode ser parcial ou no final de cada ano letivo);

  • avaliação do orientador (e/ou reflexão crítica. Pode ser parcial ou no final do processo de estágio).

Essa lista tem o objetivo de ampliar o olhar de ambos, orientador e orientado. Trata-se de possibilidades. Cada caso deve ser observado particularmente. Tudo pode ser potencialmente considerado material possível de compor um portfólio.

Algumas considerações a modo de conclusão

Este texto teve a intenção de compartilhar nossa experiência profissional com diários de aula e portfólios no processo formativo de professores em dois países distintos, Brasil e Portugal. Buscamos trabalhar seus conceitos, em que estão pautados, como são organizados pelos estudantes da graduação e o lugar que ocupam como instrumento da prática educativa. A partir de uma série de autores que nos servem de referência, buscamos mostrar conceitualmente como operamos com estes dois instrumentos na formação de professores, tendo a perspectiva da cultura visual como pano de fundo.

As novas tecnologias, sem dúvida, têm contribuído fortemente para qualificar os diários de aula e os portfólios, pois facilitam a troca de informação entre o estagiário e o orientador e evitam o transporte físico do diário e do portfolio, tendo em vista que, muitas vezes, estes só existem em formato digital. Igualmente elas contribuem para a inserção de imagens, gráficos e links com outros sites da rede.

No entanto, acreditamos que a característica mais importante dos diários de aula (OLIVEIRA, 2014______. Diário de aula como instrumento metodológico da prática educativa. Revista Lusófona de Educação, Lisboa, v. 27, n. 27, p. 111-126, maio/ago. 2014.) e dos portfólios é que as suas partes (diários), ou o seu todo (portfólio), podem constituir-se numa ferramenta essencial para que o professor ou orientador de estágio também avalie suas próprias práticas profissionais, bem como os materiais que tem oferecido aos seus estudantes. Dessa maneira, é possível observar a importância atribuída pelo estagiário aos materiais que foram disponibilizados pelo professor, a utilização feita pelos professores em formação e em que medida foi útil para o seu desempenho acadêmico/profissional.

Não há um modelo de diário ou de portfólio, pois cada estudante/professor em formação irá fazer suas escolhas por uma determinada linguagem, irá utilizar-se mais ou menos da tecnologia, irá valer-se mais ou menos das imagens, enfim, tudo dependerá do seu percurso formativo.

Vale ainda mencionar que o mais importante em relação a esses instrumentos metodológicos da prática pedagógica é o fato de que eles precisam ser úteis ao que se propõem, ou seja, qualificar o trabalho docente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    Jul 2014
  • Aceito
    Abr 2015
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