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Aproximando universidade e escola de educação básica pela pesquisa

Resumos

O objetivo deste trabalho é discutir a relação entre a pesquisa e o professor de educação básica a partir de dados de um programa integrado de investigação sobre o tema. A articulação entre ensino e pesquisa na formação e no trabalho do professor da educação básica é algo que há algum tempo tem sido abordado na literatura acadêmica, mas pouco se sabe sobre o seu alcance entre os professores desse nível de ensino. Neste texto apresentamos a proposta e alguns dos resultados de nosso estudo, considerando as três etapas que o constituem: 1. a visão de professores da educação básica sobre a pesquisa e sua preparação para exercê-la, bem como as condições e os estímulos para a sua realização; 2. a opinião de professores da universidade responsáveis pela formação desses professores sobre a importância, a necessidade e a viabilidade da pesquisa, tanto na formação quanto no trabalho do futuro professor, abordando, ainda, os dispositivos empregados pela sua universidade na formação dos licenciandos como futuros pesquisadores; 3. a proposta de investigar a posição dos que decidem sobre pesquisa, uma etapa do estudo em pleno andamento, buscando divisar os elementos levados em conta por essas pessoas. Como conclusão, são apresentadas algumas reflexões acerca da situação atual da pesquisa em educação e o desafio da formação de professores, evidenciando a importância de aproximar a pesquisa em educação das duas realidades que lhe dizem respeito: a da universidade e a da escola de educação básica.

EDUCAÇÃO BÁSICA; ENSINO SUPERIOR; PESQUISA EDUCACIONAL; PROFESSOR


The aim of this paper is to discuss the relationship between research and the elementary school teacher, based on data from an integrated research project on this theme. The articulation between teaching and research in elementary school teacher training and practice is something that has been widely discussed in the academic literature. However, very little is actually known about its effectiveness and power among teachers on this level. In this text we present the proposal and some of the results of our study, considering the three stages that constitute the project: 1. the view elementary school teachers have about research and the training they received to develop it, as well as the conditions and the stimulus for it to take place in their teaching practice; 2. the opinion of university teachers responsible for their training, focusing on the importance, the need and the viability of doing research not only in teacher training, but also in teaching practice including the means employed by their university in the training of undergraduates as future researchers; 3. the position adopted by those who decide about research itself, a stage of the study which is now in progress, attempting to detect the elements which are taken into consideration by these people. We conclude with some reflections on the present status of research in education and the challenge of training teachers, highlighting the importance of approaching research in education based on the two contexts that concern it: the university and elementary school institutions.

BASIC EDUCATION; HIGHER EDUCATION; EDUCATIONAL RESEARCH; TEACHER


TEMA EM DESTAQUE

PESQUISA E FORMAÇÃO DOCENTE

Aproximando universidade e escola de educação básica pela pesquisa

Menga LüdkeI; Giseli Barreto da CruzII

IDepartamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, menga@edu.puc-rio.br

IIDoutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, gibacruz@ig.com.br

RESUMO

O objetivo deste trabalho é discutir a relação entre a pesquisa e o professor de educação básica a partir de dados de um programa integrado de investigação sobre o tema. A articulação entre ensino e pesquisa na formação e no trabalho do professor da educação básica é algo que há algum tempo tem sido abordado na literatura acadêmica, mas pouco se sabe sobre o seu alcance entre os professores desse nível de ensino. Neste texto apresentamos a proposta e alguns dos resultados de nosso estudo, considerando as três etapas que o constituem: 1. a visão de professores da educação básica sobre a pesquisa e sua preparação para exercê-la, bem como as condições e os estímulos para a sua realização; 2. a opinião de professores da universidade responsáveis pela formação desses professores sobre a importância, a necessidade e a viabilidade da pesquisa, tanto na formação quanto no trabalho do futuro professor, abordando, ainda, os dispositivos empregados pela sua universidade na formação dos licenciandos como futuros pesquisadores; 3. a proposta de investigar a posição dos que decidem sobre pesquisa, uma etapa do estudo em pleno andamento, buscando divisar os elementos levados em conta por essas pessoas. Como conclusão, são apresentadas algumas reflexões acerca da situação atual da pesquisa em educação e o desafio da formação de professores, evidenciando a importância de aproximar a pesquisa em educação das duas realidades que lhe dizem respeito: a da universidade e a da escola de educação básica.

EDUCAÇÃO BÁSICA – ENSINO SUPERIOR – PESQUISA EDUCACIONAL – PROFESSOR

A concepção do professor como pesquisador, a possibilidade de que ele desenvolva a prática da pesquisa no trabalho docente, a preparação para essa prática são questões amplamente discutidas hoje pela comunidade acadêmica, ao lado e, por vezes, em conjunto com as idéias de "professor reflexivo", muito difundidas pela obra de Schön (1983), e a de saber docente, introduzida entre nós por um artigo de Tardif, Lessard e Lahaye, de 1991. Os debates em torno dessas e de outras idéias a elas correlatas têm se tornado cada vez mais intensos, e nos interessam de modo especial, pois estamos desenvolvendo uma investigação a seu respeito. Antes de apresentarmos os andamentos de nossa pesquisa, gostaríamos de comentar alguns pontos críticos particularmente instigantes para o trabalho, suscitados em artigo de Duarte. Eles estão sumariados no trecho a seguir:

De pouco ou nada servirá mantermos a formação de professores nas universidades, se o conteúdo dessa formação for maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão sobre os saberes profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado, subjetivo etc. De pouco ou nada adiantará defendermos a necessidade de os formadores de professores serem pesquisadores em educação, se as pesquisas em educação se renderem ao "recuo da teoria". (2003, p.620)

O primeiro ponto refere-se ao risco que corre hoje a formação de futuros professores na universidade, se os cursos ali oferecidos se concentrarem predominantemente no exercício de uma reflexão de caráter pessoal, particular, sobre a própria prática do estudante, futuro professor, num esforço subjetivo e isolado do contexto em que se dará essa prática. Já tivemos ocasião de comentar (Lüdke, 2001, 2001a, 2001b) os possíveis efeitos de uma ampliação desmesurada do conceito de reflexão, tal como proposto por Schön (1983), em seu esforço de neutralizar o predomínio crescente da racionalidade técnica, na compreensão do trabalho e da formação de profissionais. Embora não tenha focalizado os professores em sua pesquisa publicada em 1983, esta acabou tendo uma imensa repercussão no campo da educação, e recebeu do autor atenção especial posteriormente (Schön, 1992). A idéia de reflexão sobre a ação, seja durante o seu desenrolar, seja após sua conclusão e representando um esforço de abranger não apenas a ação concluída, mas também a reflexão sobre ela, constitui um reconhecimento explícito do que implicitamente já fazem os professores, ao se perguntarem por que algo deu certo ou errado em seu trabalho docente. A novidade (de Schön) é levantar o alerta sobre o interesse de se manter essa pergunta durante o desenrolar do trabalho, e também, por certo, em seguida a seu término. Com isto se assegura ao professor o acompanhamento do fio da meada, que vai desenrolando pelo seu trabalho e que hoje alguns estudiosos procuram captar e entender, por meio de investigações do campo da ergonomia (Durand, apud Therrien, Loiola, 2001). Não há dúvidas sobre o interesse de ressaltar a importância da reflexão como parte integrante fundamental do trabalho do professor. Entretanto, convertê-la em eixo central de cursos de formação de futuros professores constitui um risco a ser prontamente evitado, sob pena de sacrificar outros aspectos também importantes.

Um risco talvez bem mais próximo da atuação do professor é a conversão da reflexão, um componente natural de seu trabalho, em um esforço autocentrado exclusivamente sobre sua própria experiência individual, isolada das condições e fatores que compõem a situação na qual ele e seus alunos estão envolvidos. Não apenas a situação imediata que os cerca na escola, como, sobretudo, a situação geral de sua comunidade, sua região, seu país e de seu tempo. E para dar conta disso é preciso que, em sua formação, o professor receba os fundamentos oferecidos pelo esforço de construção teórica desenvolvido pelas disciplinas que estudam a educação, como a Sociologia, a Psicologia, a História, a Antropologia e de modo especial a Filosofia. Só assim, armado com esses recursos, o futuro professor vai poder enfrentar os desafios decorrentes de sua incumbência, ou de seu mandato, como herdeiro, mediador, intérprete e crítico, na expressão de Mellouki e Gauthier (2004). E aqui tocamos no outro ponto crítico sensível, mencionado no trecho citado: o "recuo da teoria", por parte da pesquisa em educação. Nesse caso existe um risco sério há muito tempo rondando nossa produção dita acadêmica em educação. Não se trata de um problema registrado recentemente com a entrada do papel da reflexão nas discussões sobre formação de professores. Ele está relacionado com fatores bem mais básicos, entre eles a própria natureza do campo educacional, sem definição clara de seu recorte epistemológico, como foco de confluência da contribuição de várias disciplinas. A questão é tão grave, a ponto de levar pesquisadores experientes, profundos conhecedores da realidade educacional de seu país, a afirmarem que, para se tornar um pesquisador, o futuro professor deveria especializar-se em uma das ciências que servem o campo da educação. Em artigo sucinto, mas muito incisivo, Isambert-Jamati (1992) aponta a importância, para o pesquisador em educação, de dispor de uma base sólida em uma das disciplinas científicas a ela confluentes, para fundamentar com segurança suas análises teóricas.

Outro ponto agravante desse risco se liga ao grande desenvolvimento do apelo à abordagem qualitativa na pesquisa em educação. O inegável aporte trazido por essa abordagem para melhor aproximação dos objetos de estudo próprios do campo educacional, devido à sua grande complexidade, dificilmente contemplada satisfatoriamente pelas metodologias quantitativas, não impede que reconheçamos certos excessos cometidos por inúmeros seguidores daquele apelo. De modo especial, pesquisadores iniciantes sentiram-se atraídos pelas aparentes facilidades do trabalho metodológico com a pesquisa qualitativa, em grande parte devido ao desconhecimento dos recursos oferecidos pelos métodos quantitativos, insubstituíveis em determinados problemas de pesquisa. Hoje já começamos a reconhecer e a tentar reparar os males ocasionados por esse desconhecimento, procurando oferecer formação sobre técnicas e conceitos próprios da investigação quantitativa, em nossos cursos de graduação e de mestrado em educação. Mas ainda podemos registrar grande quantidade de "pesquisas" que se limitam a transcrever dados obtidos por entrevistas, ou narrativas de professores sobre suas carreiras docentes ou trajetórias de vida, ou por observação de seu trabalho em sala de aula, sem cuidar da análise desses dados à luz de teorias que possam ajudar a esclarecer o problema investigado, estimulando o pesquisador a buscar soluções próprias para cada caso, com base em recursos disponíveis no acervo de análises teóricas da área e dos que o próprio pesquisador irá propor. Para tanto é necessário, porém, que ele se apóie nas pistas fornecidas pelos estudiosos que já se debruçaram sobre os mesmos problemas e impulsionam a criatividade dos novos pesquisadores. As teorias funcionam como impulsos provocadores de novas percepções a serem exploradas e expandidas pelos talentos dos investigadores que se seguem.

A supervalorização dos aspectos ligados à experiência, ao trabalho, à prática do professor, de certa forma favorecida pelo desenvolvimento das idéias de reflexão e de saber docente, não pode representar um empecilho, ou mesmo uma dificuldade à atuação indispensável do componente teórico em todo trabalho de pesquisa. Pode-se compreender que tenha ocorrido um aparente desequilíbrio nas argumentações a respeito desses temas, num esforço de resgatar a importância devida à dimensão da prática, considerada por alguns autores como subestimada em relação à teoria nas discussões sobre a formação e o trabalho do professor. Entendemos, porém, que esse esforço não justifica, ou mesmo representa, recuo algum relativo ao papel desempenhado pela teoria na cena da pesquisa, mas apenas reivindica um restabelecimento de sua parceria em relação ao da prática. Nesse sentido, insistimos sobre a centralidade da formação teórica do professor, tanto no período chamado de pré-serviço, quanto no de formação continuada ao longo de sua carreira. Um equilíbrio, ainda não plenamente encontrado em nossos atuais cursos de formação, permitiria assegurar ao futuro professor o domínio dos conceitos-chave, dentro de quadros teóricos abrangentes, capazes de ajudá-lo a equacionar os problemas da nossa realidade educacional, que iriam se revelando no lado prático de sua formação. Ele sairia dessa preparação contando com recursos indispensáveis para iniciar seu trabalho docente e o próprio desenvolvimento profissional, inclusive como pesquisador.

Nossos cursos de formação de professores têm sofrido as conseqüências de um defeito congênito de sua constituição: a separação entre teoria e prática no esforço de formação, colocando, em geral, em posição precedente a teoria, vindo a prática sempre depois, por meio de estágios de duração insuficiente e, sobretudo, de concepção precária. Não é possível nos determos mais sobre esse ponto, que exige, porém, atenção urgente e cuidadosa, pois suas conseqüências atingem vários aspectos, inclusive a questão da construção do saber docente, hoje tão discutida por autores que se preocupam exatamente com a imprópria hierarquização entre teoria e prática. Superar essa hierarquia poderá contribuir para esclarecer a complicada questão.

Neste texto1 1 . Algumas das idéias apresentadas neste texto já foram trabalhadas em publicações anteriores que constam das referências bibliográficas. , vamos apresentar a proposta e alguns dos resultados de um estudo que temos desenvolvido desde 1998, sobre a complexa relação entre o professor da educação básica e a prática de pesquisa. Estamos na terceira etapa do estudo, em pleno desenvolvimento, e já publicamos alguns trabalhos que divulgaram informações sobre as etapas anteriores. Aqui pretendemos retomar e aprofundar alguns dos pontos que consideramos principais, procurando articulá-los com a discussão intensa que tem sido desenvolvida recentemente sobre o tema, inclusive pelos autores que serão mencionados nesta seção.

A PESQUISA E O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

A possível articulação entre ensino e pesquisa no trabalho do professor da educação básica é algo que há algum tempo tem merecido atenção de nossa parte e de outros colegas que se dedicam ao seu estudo. Desde a década de 90 o tema "professor pesquisador" tem ganhado espaço no cenário de discussão acadêmica, sobretudo, como já mencionamos, com a repercussão que teve entre nós o trabalho de D. Schön (1983) sobre o reflective practitioner.

As idéias de Schön, inicialmente, não abordaram diretamente o professor, mas ao centrarem-se na valorização da reflexão na experiência, com base em Dewey, e do conhecimento tácito, com base em Polanyi, acabaram atraindo uma imensa atenção no meio docente e impulsionando uma gama variada de produções sobre a importância de o professor refletir sobre a sua prática, antes, durante e depois dela. Contrapondo-se à racionalidade técnica, Schön defende um tipo de epistemologia da prática, em que o sujeito posiciona-se em uma atitude de análise, produção e criação a respeito da sua ação ao enfrentar situações desafiadoras.

Tal perspectiva, aliada àquela anteriormente proposta por L. Stenhouse (1975), baseada no princípio de que o professor precisa assumir-se como pesquisador da própria prática, encaminhando crítica e sistematicamente sua atividade para identificar os eixos estruturantes de cada situação de ensino, tem impulsionado uma série de trabalhos voltados para a idéia de um professor mais autônomo. Para Stenhouse, a pesquisa deveria ser a base do ensino dos professores, tendo como foco central o currículo, uma vez que é por seu intermédio que se transmite o conhecimento na escola. De acordo com o que propunha Stenhouse, as reformas precisariam incluir em seu interior o desenvolvimento profissional dos professores como pesquisadores de suas próprias práticas, que fazem de suas salas de aula típicos laboratórios de ensino.

O alcance desses pensamentos entre nós, bem como os de várias outros autores (Elliott, 1989; Zeichner, 1992; Giroux, 1990; Contreras, 1997; Perrenoud, 1996), tem valorizado cada vez mais a perspectiva da pesquisa na formação e na atuação do professor. Essa perspectiva é apontada por diversos autores, e mesmo pela legislação, como algo importante para o preparo e o trabalho do professor e por isso deve ser introduzida na formação inicial e continuada dos professores da educação básica.

Pouco se sabe entre nós, todavia, sobre o que ocorre de fato a esse respeito entre os professores desse nível de ensino. Como concebem eles o papel da pesquisa em suas escolas? Que formação receberam e de que condições dispõem para realizá-la? Que tipo de pesquisas de fato realizam? Onde as divulgam? É possível e viável ao professor investigar a sua própria prática? Essas e outras questões têm-nos motivado à concepção e implementação de um programa integrado de pesquisa, que busca uma possível articulação entre pesquisa e ensino no trabalho do professor.

A motivação inicial para a investigação sobre o professor da escola básica e a pesquisa surgiu quando do desenvolvimento de uma pesquisa voltada para o processo de socialização profissional de professores (Lüdke, 1998). Uma de suas constatações instigou-nos sobremaneira: a prática de pesquisa e mesmo a formação para ela não foram apontadas como importantes por professores formadores de futuros docentes, em cursos de ensino médio e de licenciatura para o magistério. Os professores desses cursos, nossos entrevistados, de modo geral não consideraram o componente pesquisa entre os apontados como necessários para a formação do futuro professor. A tal ponto surpreendeu-nos essa ausência, que decidimos propor uma investigação a respeito.

A primeira etapa da investigação voltou-se para o campo de trabalho do professor da educação básica. Como é vista sua relação com a pesquisa? Interessava-nos saber se no cotidiano das escolas haveria professores exercendo atividades específicas de pesquisa, paralelamente às suas atividades docentes.

Adotamos como campo de trabalho quatro estabelecimentos de ensino da rede pública da educação básica, da cidade do Rio de Janeiro, considerados privilegiados, por serem dotados de recursos básicos para a realização de atividades de pesquisa, tais como, complementação salarial, carga horária específica e infra-estrutura física. As escolas foram escolhidas com base em critérios que nos assegurassem as condições da prática de pesquisa entre os professores. Por isso, selecionamos dois colégios de aplicação, ligados a universidades públicas, uma escola com longa história e um regime de contratação próprio, ligado ao sistema federal e uma outra de criação recente, concebida segundo um projeto de inovação pedagógica, ligada a uma grande instituição de pesquisa na área da saúde. Elas contam com características de certa forma especiais, em termos de instalações e regime de contratação de pessoal, constituindo campos privilegiados para a busca que empreendíamos: contextos que favorecem de alguma forma o exercício da pesquisa, em que seria esta uma das possíveis atividades do professor.

Interessados em revelar a pesquisa dos docentes da escola básica fomos a campo e, com base na visita aos quatro estabelecimentos mencionados, no estudo dos documentos recolhidos e, principalmente, nas entrevistas realizadas, conseguimos reunir um conjunto valioso de informações sobre o alcance da prática de pesquisa na escola básica. Para as entrevistas foram selecionados professores das várias áreas do currículo que, segundo indicação dos coordenadores, provavelmente desenvolviam atividades de pesquisa. Dessa forma, alcançamos cerca de 70 professores, cujas entrevistas ensejaram interessantes pistas para análise.

O trabalho investigativo revelou-nos a visão desses professores sobre a pesquisa e sua preparação para exercê-la, bem como as condições e os estímulos para a sua realização. Para tanto, partimos de alguns pontos básicos, assumidos como questões-chave para orientar as entrevistas com os professores. Foram determinantes para o encaminhamento do estudo questionamentos sobre: o tipo de pesquisa feito nas instituições, a concepção de pesquisa que embasa as atividades dos entrevistados, as condições, o apoio e a recompensa para a pesquisa, bem como a formação para a pesquisa do professor entrevistado e o programa de formação continuada que sustenta o trabalho de pesquisa desse professor.

Um dos objetivos do estudo foi trazer à tona as concepções que os professores têm de pesquisa e analisar os trabalhos que realizam sob essa designação. Cerca de metade dos professores entrevistados declara fazer pesquisa. Muitos voltados para pesquisas pessoais, ligadas aos seus cursos de pós-graduação; outros participando de associações científicas, realizando pesquisa como atividade integrada ao trabalho docente ou como atividade paralela ao seu trabalho na escola; e alguns desenvolvendo pesquisa em equipe, geralmente voltada para a produção de material didático.

Apesar das condições favoráveis nas escolas estudadas, nem todos os professores entrevistados declararam "estar fazendo pesquisa", e isso parece de certa forma surpreendente, uma vez que a pesquisa constitui parte da obrigação docente, com carga horária prevista e algum estímulo financeiro em pelo menos três das escolas investigadas.

De modo geral, há uma certa flexibilidade no controle das atividades de pesquisa pelo professor, por parte das instituições. Desde o próprio projeto de pesquisa, até o seu relatório final, ou algum outro documento que possa dar conta de seu desenvolvimento, não são devidamente registrados, classificados e disponibilizados para consultas vindas do exterior da escola ou mesmo para os colegas que nela trabalham.

É oportuno lembrar a distinção proposta Beillerot (1991) entre "estar em pesquisa, fazer pesquisa e ser pesquisador". O fato de participar de um trabalho de pesquisa pode permitir a uma pessoa sentir-se ligada a essa atividade, e declarar-se como tal. Já a expressão "fazer pesquisa" indica uma responsabilidade maior sobre essa atividade, que se for realizada com regularidade e autonomia pode então conduzir ao status de pesquisador, com a distinção e o reconhecimento correspondentes, sobretudo na academia. Nossos professores encontram-se, em geral, numa situação aproximada à de "estar em pesquisa", indicada de um modo bastante amplo por um "projeto", nem sempre identificável como projeto de pesquisa. De modo geral, o estudo revela um número razoável de trabalhos mais próximos do conceito corrente de pesquisa, quando seus autores são professores ligados a programas de pós-graduação, de mestrado ou doutorado, ou a grupos de pesquisa vinculados a universidades e centros de pesquisa.

Uma outra importante constatação do estudo reside na ambigüidade que cerca o conceito de pesquisa. Mergulhados nos problemas do dia-a-dia das escolas, nossos entrevistados percebem que para enfrentá-los não é possível, nem conveniente, seguir os passos sistematizados pelo modelo acadêmico, embora reconheçam a sua "superioridade".

Como já tivemos oportunidade de comentar (Lüdke, 2001a), a dificuldade diante de um conceito não consensual de pesquisa por vezes ocasiona distorções que acabam limitando a própria concepção de pesquisa. Um exemplo disso reside na relação entre reflexão e pesquisa. A reflexão na e sobre a ação é uma estratégia que pode servir para os professores problematizarem, analisarem, criticarem e compreenderem suas práticas, produzindo significado e conhecimento que direcionam para o processo de transformação das práticas escolares. Todavia, reflexão não é sinônimo de pesquisa e o professor que reflete sobre a sua prática pode produzir conhecimento sem, necessariamente, ser um pesquisador. Quando ele avança, indo ainda além da reflexão, do ato de debruçar-se outra vez para entender o fenômeno, encurta a distância que o separa do trabalho de pesquisar, que apresenta, entretanto, outras exigências, entre as quais a análise à luz da teoria.

Outro eixo de análise do estudo refere-se às condições encontradas nas escolas para o desenvolvimento das atividades esperadas do professor pesquisador. Foi possível constatar que as quatro escolas têm um incentivo financeiro à titulação, o que, de alguma forma, explica o número de docentes com curso de mestrado e doutorado. Uma dessas escolas, além desse incentivo financeiro à titulação, oferece complementação salarial aos contratados que desenvolvem projetos de pesquisa. A carga horária dos docentes varia muito. Os dados indicaram que os professores com menor número de aulas semanais e maior carga horária contratada exercem pesquisa com mais regularidade. De qualquer forma, as quatro escolas, apesar de apresentar algumas possibilidades de tempo para pesquisa, não contam com espaços suficientemente adequados para as atividades dessa natureza. Apenas uma conta com melhores espaços e recursos.

Reside nesse ponto um aspecto de extrema importância para a pesquisa por parte do professor. Para que o seu exercício na educação básica deixe de ser algo distanciado da realidade escolar é importante que seja assumido como atividade orgânica da escola, contando com fatores como contrato de trabalho, tempos para a pesquisa, apoio financeiro e infra-estrutura física para a realização das atividades de investigação.

Outro aspecto focalizado pelo estudo refere-se à formação para a pesquisa dos professores da escola básica. Pelo relato de 48 dos 70 entrevistados, foi possível identificar um ressentimento em relação à ausência de qualquer indício de formação para a pesquisa nos cursos de graduação. Ainda assim, a contribuição da universidade, com seus cursos de graduação e pós-graduação, mais as experiências acumuladas ao longo da vida e da carreira docente, foram apontadas por vários deles como as principais instâncias de preparação para a pesquisa. O reconhecimento dessa importância não nega, entretanto, os limites da preparação hoje oferecida pela universidade. Vários sinalizaram a ausência de disciplinas específicas sobre o assunto e a falta de possibilidade de participação em programas de iniciação científica.

Por conta dos limites da formação vivenciada e das precárias condições de trabalho do professor, em geral, a pesquisa que poderia e deveria ser desenvolvida por ele acaba sendo também muito reduzida. Seria muito bom que a relação do professor com a pesquisa não se restringisse apenas ao papel de fornecer dados que vão contribuir para o trabalho de outros investigadores, mas fosse acrescida da investigação crítica relativa aos problemas da própria prática profissional. Diante do quadro esboçado, a questão é: como levar professores, tais como os entrevistados, a assumirem sua responsabilidade e sua capacidade para fazer pesquisa, se a própria representação de pesquisa que os orienta inibe-os, impede-os de se proporem como tais, como dizem alguns pesquisadores franceses? (Fleury et al., 1994). Em outras palavras, a formação para a pesquisa tal como acontece, quando acontece, tende a gerar nos professores representações sobre a pesquisa impregnadas pela conotação acadêmica, não deixando muito espaço, nem estofo, para o desenvolvimento de concepções paralelas mais amplas, que permitam abrigar o trabalho voltado para questões diárias das escolas, sem abrir mão, entretanto, dos cuidados que devem nortear toda forma de pesquisa.

A PESQUISA E OS FORMADORES DE PROFESSORES

Como vimos, entre as constatações do estudo, destacou-se a visão de nossos entrevistados sobre a precária formação que receberam para o seu desenvolvimento como pesquisadores. Esse dado provocou-nos a interrogação sobre como se dá, ou deveria dar-se, a formação do futuro professor para a prática de pesquisa, não apenas nos cursos de mestrado e doutorado, mas nos cursos em que todos eles se preparam, os de licenciatura. Como seus formadores, professores desses cursos, vêem essa formação, e como planejam torná-la efetiva e adequada às condições de trabalho que seu aluno, futuro professor, vai enfrentar nas escolas da rede pública?

Nosso trabalho procurou cobrir a distância em geral existente entre as discussões teóricas das grandes questões sobre formação de professores, feitas acaloradamente no âmbito da universidade e de seus pesquisadores, e o que se passa na realidade vivida pelos profissionais encarregados de levar a cabo as tarefas relativas a essa formação. São os professores dos cursos de licenciatura que devem se desincumbir das espinhosas responsabilidades envolvidas nesse esforço. Sobre eles recaem repercussões dos problemas advindos das novas propostas de legislação, das disputas internas nas instituições formadoras, dos confrontos típicos entre disciplinas de conteúdos específicos e conteúdos pedagógicos, da clássica falta de definição adequada entre formação teórica e prática, entre outros. Nosso estudo procurou, assim, focalizar a visão desses profissionais formadores, buscando saber como eles vêem os problemas principais em seu trabalho de preparação do futuro professor como pesquisador e como eles mesmos, e seus colegas, têm enfrentado esses problemas.

Para tanto, foram entrevistados professores dos cursos de licenciatura das duas universidades públicas às quais estavam ligadas duas escolas básicas do estudo anterior. Decidimos escolher alguns dos cursos responsáveis pela formação de professores para as matérias fundamentais do currículo da educação básica. Assim, foram selecionados os cursos que formam professores de Matemática, Português (Letras), Geografia, História, Ciências e Educação Física, além das disciplinas pedagógicas, que entram também na formação dos futuros docentes (Fundamentos da Educação e Prática de Ensino). A partir de contatos iniciais com os coordenadores, chegamos aos professores que gostaríamos de contemplar: professores das disciplinas básicas, das disciplinas específicas para a licenciatura e das disciplinas pedagógicas, particularmente envolvidos com as questões da pesquisa e da formação de professores.

Foram efetuadas 44 entrevistas com esses professores e, se considerarmos também as entrevistas para teste do roteiro (que foram muito valiosas), chegamos a 50. Elas seguiram um roteiro bem estruturado, embora flexível, que cobria quatro eixos básicos: o primeiro sobre informações relativas ao próprio entrevistado, como sua formação, experiência de trabalho e de pesquisa; o segundo focalizando as questões fundamentais do estudo, ou seja, a importância, a necessidade e a viabilidade da pesquisa, tanto na formação quanto no trabalho do futuro professor; o terceiro, focalizando os recursos e dispositivos empregados pela sua universidade na formação dos licenciandos como futuros pesquisadores; finalmente, no quarto eixo, perguntamos sobre a concepção de pesquisa do entrevistado e sua atividade de pesquisa atual.

Os cursos de licenciatura têm sido objeto de intensos debates no cenário educacional, tendo em vista as limitações que cercam sua estruturação. Inúmeros estudos e pesquisas sinalizam os problemas da área (Candau et al., 1988; Lüdke, 1994). Uma crítica bastante recorrente é a que se refere à estrutura 3+1, que reforça o predomínio da formação dos conteúdos em relação à formação pedagógica, provocando a separação entre as duas dimensões e, geralmente, considerando a licenciatura como um apêndice do bacharelado. Essa dinâmica revela sinais do modelo da racionalidade técnica, predominante na organização dos currículos de formação de professores. Sob o ponto de vista dessa racionalidade, calcada na separação entre teoria e prática e na supervalorização da área do conhecimento específico que se vai ensinar, a solução para os problemas que perpassam a ação docente está posta pela teoria, bastando, simplesmente, a sua aplicação. O currículo dos cursos de formação organizados nessa perspectiva apresenta, geralmente, uma ciência básica, uma ciência aplicada e, finalmente, um espaço de ensino prático, no qual se espera que os alunos aprendam a aplicar o conhecimento adquirido aos problemas da prática cotidiana. A prática pedagógica, no entanto, é marcada por uma grande complexidade, o que exige mais do que soluções prontas e produzidas fora do contexto.

As licenciaturas oferecidas pelas instituições investigadas inserem-se no contexto descrito, apesar da posição crítica de nossos entrevistados a respeito da polarização estabelecida entre conteúdo específico e sua aplicação. As duas universidades investigadas são públicas, de grande porte e bastante conceituadas, mantendo, cada uma, um colégio de aplicação. Apresentam, portanto, ampla experiência na formação de professores, condição decisiva para a realização da pesquisa em relato.

Todavia, as duas instituições se diferenciam em alguns aspectos. A universidade mais antiga reúne uma clara tradição de pesquisa. Seu contexto institucional é fortemente marcado pela produção de conhecimento científico, destacando-se nos cenários nacional e internacional. A Universidade mais nova, no entanto, não conta com semelhante tradição. Contudo, no que se refere aos cursos de licenciatura, nossas constatações apontam que a tradição de pesquisa da universidade mais experiente se circunscreve, predominantemente, aos cursos de bacharelado, pouco alcançando os alunos de licenciatura. O que não acontece com a mais nova, cuja experiência com a pesquisa tem evoluído e se estendido a todos os seus cursos, inclusive os de licenciatura. Temos diante de nós duas grandes instituições formadoras de professores para as diferentes áreas do ensino. Entretanto, aquela que mais experiência reúne em relação à prática de pesquisa, aparentemente não é a que mais contribuições oferece à formação do futuro professor para a pesquisa.

Considerando o primeiro eixo do roteiro, os dados sinalizam que nossos entrevistados nem sempre são possuidores do título de doutor, embora vários estejam se preparando para chegar lá. Todos são portadores do título de mestre, vários fizeram estudos no exterior. Cerca de três quartos se formaram em cursos de licenciatura, portanto, para um bom número deles, cerca de um quarto, não houve oportunidade de sentirem pessoalmente em sua formação os problemas que hoje enfrentam na preparação de futuros professores. O mesmo se diga de boa parte deles (cerca de um quarto), que declara não ter tido experiência docente em estabelecimentos de educação básica. Nem todos tiveram, segundo declararam, experiência de pesquisa em seus cursos de graduação, embora essa situação apresente diferenças entre as diversas áreas.

As questões focalizadas no segundo eixo do roteiro, sobre a importância, a necessidade e a viabilidade da pesquisa na formação e no trabalho do professor, foram respondidas por nossos entrevistados de maneira bastante uniforme. Quase todos declararam que a pesquisa é muito importante e necessária, tanto nas instituições de preparação, quanto nas de exercício do magistério. Uma análise mais detalhada das respostas mostra, entretanto, certas nuanças nas afirmações recolhidas, revelando posições dúbias a respeito do próprio conceito ou do tipo de pesquisa mais apropriado ao magistério na escola básica. Alguns chegaram até a estabelecer diferenças claras entre a pesquisa "científica", feita com rigor e precisão de laboratório na universidade, e aquela possível de ser realizada pelo professor em sua escola, especialmente na rede pública. Com relação à viabilidade da pesquisa aí realizada, as respostas dos nossos entrevistados são ainda mais céticas, talvez com base na percepção que têm da vida na escola de educação básica, pela sua própria experiência docente, e também pelo do contato com os licenciandos que já lecionam.

As dúvidas e hesitações não os impedem, de modo geral, de confirmar a importância do lugar da pesquisa na formação e no trabalho do professor, seja ela mais próxima do modelo dominante na universidade, ou procurando formas mais ligadas às necessidades e problemas vividos pelos docentes da educação básica. Alguns chegaram mesmo a afirmar que, embora reconheçam diferenças entre tipos de pesquisa para diferentes níveis de ensino, não aceitam qualquer discriminação que estabeleça hierarquias entre eles.

Os temas da importância e da necessidade da pesquisa na escola básica quase sempre vieram acompanhados de um discurso sobre a profissão docente e não poucas vezes associados à relação entre formação inicial e prática docente. A pesquisa foi considerada importante e necessária para dar conta da atualização profissional dos professores. É consenso entre os entrevistados que a formação inicial sozinha não basta à construção de um profissional docente, que responda satisfatoriamente aos reais desafios da escola básica.

As condições de trabalho do professor da escola básica são fundamentais para a viabilidade da realização de pesquisas, de acordo com a opinião dos poucos entrevistados que insistiam em assegurar essa possibilidade. Aqui também verificamos maior convicção entre aqueles profissionais que já atuaram na escola básica. A falta de recursos específicos, de tempo do professor, a inadequação das estruturas e a ausência de órgãos de fomento são as principais dificuldades apontadas. Como informam vários entrevistados, num contexto em que faltam professores em sala de aula e os orçamentos quase não sustentam o pagamento dos professores que têm unicamente a missão de ensinar, fica difícil pensar a viabilidade da pesquisa na escola de educação básica, sem o aporte de recursos específicos para tal finalidade. A realidade é apresentada pelos entrevistados de forma crua: nenhum órgão oficial destinado ao desenvolvimento da pesquisa libera verbas para a pesquisa na escola básica. Algumas iniciativas nesse sentido já alcançaram algum reconhecimento na área de Matemática, em ambas as instituições estudadas, conseguindo envolver professores que estão atuando na educação básica. Mas isso ainda está longe de ter um impacto significativo na construção de uma mentalidade acadêmica que contemple a pesquisa do professor das séries iniciais.

Foi interessante constatar a segurança com que alguns entrevistados, mormente aqueles que trabalham na escola básica, insistiam na viabilidade da realização de pesquisa. Aos seus olhos, o professor que realmente encara a necessidade da pesquisa para a realização do seu trabalho, contra todas as dificuldades, sempre acaba experimentando algum sucesso em suas iniciativas. Gimeno Sacristán (1999) ressalta as motivações pessoais como determinantes na ação educativa dos professores. O professor que deseja realizar pesquisa no ambiente do ensino secundário sempre conseguirá algum resultado. Para isso, é fundamental que traga na sua bagagem a pesquisa como parte integrante de sua vivência profissional, afirma o autor.

O terceiro eixo de nosso roteiro de entrevista visava a obter junto aos entrevistados informações sobre como eles vêem e fazem a integração da pesquisa na formação dos licenciandos e, na medida do possível, como acham que ela é feita entre seus colegas de área, também formadores de futuros professores. Esperávamos, com as respostas, poder compor um quadro indicativo de mudanças em direção a dispositivos e recursos que venham ao encontro do desejado desenvolvimento do pesquisador, dentro do próprio processo de formação do futuro professor.

Segundo revelam alguns entrevistados, a formação para a pesquisa tem sido encaminhada, predominantemente, a partir da iniciativa de determinados docentes da universidade. Isso se manifesta principalmente por convites aos alunos para participarem de seus grupos de pesquisa, monitoria, pesquisa de campo para subsidiar o trabalho de conclusão da sua disciplina, participação em eventos científicos, dentre outras. Na medida em que os alunos aproveitam as possibilidades criadas, vão se familiarizando com vários aspectos que envolvem uma atividade de pesquisa. Na organização curricular dos cursos, no entanto, isso não aparece explicitamente.

Os professores reconhecem que para favorecer a formação para a pesquisa torna-se necessário que ela seja assumida como um princípio básico na proposta curricular. Nesse sentido, o curso forçosamente criaria uma ambiência para a pesquisa, em que os alunos seriam estimulados, entre outras coisas, a se inserirem em grupos de pesquisa estruturados. Diferentemente disso, a pesquisa acaba sendo mais trabalhada apenas com os alunos que têm bolsa de iniciação científica. De um modo geral, os professores concordam que a iniciação científica representa uma idéia bastante salutar no que se refere à formação inicial para a pesquisa, não podendo, entretanto, significar o único contato que o aluno da graduação tem com essa atividade. Para os que prosseguem na pós-graduação esse parece ser um caminho natural, em todas as áreas nas quais selecionamos nossos entrevistados. Entretanto, para os que pretendem tornar-se professores a iniciação científica ainda não figura como parte integrante e indispensável no curso de formação, o que constitui indiscutível falha aos olhos dos nossos entrevistados.

É oportuno introduzir aqui uma informação, oferecida por vários deles, que pode ajudar a entender um pouco melhor essa inaceitável duplicidade de caminhos em relação à pesquisa. Dizem alguns que a pesquisa oferecida na formação do bacharel é aquela própria do meio acadêmico, em todas as áreas ditas científicas e a pesquisa oferecida ao futuro professor deveria ser voltada para questões mais práticas, relativas a problemas de ensino e aprendizagem concernentes aos alunos da faixa etária da educação básica, sobretudo levando-se em conta a enorme expansão registrada nas redes de ensino desse nível. É preciso, entretanto, lembrar o risco envolvido nessa posição, que pode ensejar o surgimento de dois tipos hierarquizados de pesquisa, um deles, próprio do âmbito universitário, o científico, o outro, adequado ao nível da educação básica, o pedagógico.

A monografia, ou trabalho de final de curso, também foi mencionada por quase todos os entrevistados, nem todos favoravelmente. Alguns consideram a monografia como um obstáculo que atrasa a conclusão do curso, visto que muitos alunos não conseguem cumpri-la satisfatoriamente. Outros defendem que a monografia é uma tentativa de aproximar o aluno da atividade de pesquisa e, por isso, deve continuar sendo exigência. E alguns outros, ainda, consideram que a monografia é importante para habilitar o estudante para o hábito de escrever, articular idéias, criticar, o que não significa afirmar que o fato de uma graduação contar com a monografia esteja formando para a atividade de pesquisa. Para alguns, esse trabalho final pode constituir um espaço seguro para o aluno ensaiar os primeiros passos em direção à atividade de pesquisa, sob a supervisão de um pesquisador, seu professor orientador, que assume a responsabilidade de guiar esses passos e de amparar os primeiros tropeços. O que acaba nem sempre acontecendo de fato, já que nem todos os professores da graduação estão dispostos, por uma série de razões, a assumirem o importante papel de orientar um trabalho de iniciante, com todos os percalços que ele apresenta, contribuindo, assim, para reforçar a prática predominante de monografia como um exercício de mera repetição de idéias recolhidas de vários autores.

Entre as medidas sugeridas para aproximar o curso de licenciatura de um atendimento mais satisfatório quanto à formação de professores pesquisadores, aparecem sugestões relativas à reformulação do currículo do curso. Algumas sugestões já foram implantadas sob forma de novas disciplinas ligadas à metodologia da pesquisa ou com a oportunidade efetiva de participação dos alunos em projetos desenvolvidos por seus professores.

O que se evidencia no discurso da maioria dos professores de ambas as instituições é a idéia de que para formar o futuro professor afinado com a atividade de pesquisa, o encaminhamento do curso precisa mudar, possibilitando um contato mais direto do aluno com a pesquisa. O conteúdo ainda é considerado o aspecto que mais impulsiona a formação dos professores. Trabalha-se, sobretudo, para que o aluno saia da licenciatura com o maior domínio possível do conhecimento a ser ensinado.

Uma outra informação, bastante ressaltada pelos nossos entrevistados, merece destaque neste balanço de achados. Muitos deles se referiram à expansão dos programas de pós-graduação, como fonte responsável pelo crescimento das atividades de pesquisa, por parte dos próprios professores formadores e, em decorrência, também pelos seus alunos, inclusive os da licenciatura. Temas de teses e dissertações, em preparação ou já defendidas, acabam repercutindo sobre o trabalho dos professores em seus cursos, beneficiando assim colegas e alunos da instituição à qual estão vinculados, iniciando o que gostaríamos de considerar como uma nova cultura na vida universitária. Para tanto é necessário que estejam disponíveis estímulos e condições nas instituições de ensino superior, o que dificilmente ocorre fora das universidades e, mesmo assim, nem em todas elas.

Temos entendido que a pesquisa pode representar um componente a mais na formação do professor. Ela pode conferir ao professor uma ótima condição para o exercício de uma atividade criativa e crítica, onde há o questionamento, mas, também, a indicação de soluções para os problemas investigados. Mas para isso é preciso superar os obstáculos, sendo um deles a própria formação docente. Como formar profissionais práticos, reflexivos, capazes de analisar, de teorizar sobre suas ações, e, mais do que isso, de pesquisar?

Como já tivemos oportunidade de comentar (Lüdke, 2001), a criação e instalação na França de um sistema de formação de professores (os Institutos Universitários para a Formação de Mestres – IUFMs), em um locus novo, fora da universidade e também do antigo nicho centrado nas escolas normais, apresenta a pesquisa como um dos componentes básicos da nova proposta de formação. Pela evolução dos estabelecimentos já implantados desde o início dos anos 90, percebe-se, entretanto, uma orientação demasiadamente voltada para a prática pedagógica, em detrimento de uma introdução mais vigorosa na prática de pesquisa (Bourdoncle, 1997).

O quarto eixo tocado nas entrevistas refere-se à concepção de pesquisa do entrevistado. A ambigüidade que cerca o conceito de pesquisa observada entre os nossos entrevistados da primeira etapa, professores do ensino médio, de alguma forma aparece entre os seus formadores. Encontramos visões que vão desde a mais ampla, em que qualquer tipo de investigação pode ser considerado pesquisa, até outra extremamente restrita, para a qual só se pode considerar pesquisa a investigação que seguir o rigor acadêmico, com destaque para a metodologia, preocupação com a produção de conhecimentos novos e obrigatoriedade de publicação dos resultados para ampla discussão entre os pares.

É certo que o predomínio de uma visão clássica estrita de pesquisa limita a possibilidade de sua realização por professores da escola básica. Para que a pesquisa de tais professores seja reconhecida socialmente, é necessário que se amplie o conceito de pesquisa empregado tradicionalmente pela academia. Cochran-Smith e Lytle (1999) e Anderson e Herr (1999), pesquisadores americanos, já mencionados por nós (Lüdke, 2001), analisam a prevalência de critérios que dão conta de alguns tipos de pesquisa, mas não de outros e, nessa direção, propõem alguns que consideram mais próximos do tipo de pesquisa que o professor da educação básica faz ou pode fazer. Os critérios propostos estão voltados para formas de validação e de veiculação dos trabalhos de pesquisa mais integrados à realidade da vida das escolas, ao tipo de relacionamento entre seus professores, à oralidade, ao diálogo, à conversação, à participação democrática, entre outras características. Como se trata de um campo de estudo em plena construção, não é fácil a definição de critérios que contemplem diferentes tipos de pesquisa e o natural anseio por uma definição consensual.

Nessa perspectiva, é importante relembrar a idéia de continuum mencionado por Beillerot (1991) e já comentada por nós (Lüdke, 2001). O autor alerta sobre o perigo de classificar e valorizar como "superiores" e "científicas", as pesquisas feitas na universidade, deixando de considerar a seqüência das anteriores, que vieram preparando o caminho pelo qual os pesquisadores de nível superior chegam às suas descobertas.

Como já tivemos oportunidade de comentar (Lüdke, 2001a), temos procurado um consenso em torno do conceito de pesquisa e levantado as peculiaridades tanto da pesquisa universitária quanto daquela realizada pelo professor da escola básica, sem que o reconhecimento das diferenças signifique hierarquização entre as duas atividades.

A PESQUISA E OS QUE DECIDEM SOBRE ELA

Considerando a ambigüidade que cerca o conceito de pesquisa, revelada nas duas etapas da investigação já realizadas, ficamos bastante instigados a tentar cotejar essa questão com a opinião daqueles que decidem sobre pesquisa. Para poder divisar quais são os elementos levados em conta por pessoas que decidem sobre concessão de financiamento, bolsas para o pesquisador, publicação do seu relatório e espaços em encontros científicos, propusemos uma terceira etapa do nosso estudo, em pleno andamento, para investigar o que realmente conta como pesquisa.

Na universidade nota-se a preocupação com a formação do professor para a pesquisa mais evidente no discurso do que na prática. Esta continua efetivamente priorizando a formação do bacharelando como a de pesquisador. Igualmente a pesquisa realizada na universidade não é, em geral, caracterizada por uma preocupação clara com os problemas da escola básica. Além disso, ainda há autores como Hammersley (1993) que defendem a distinção entre ensino e pesquisa, acreditando que a atuação concomitante das duas funções pode ficar comprometida para ambos. Denunciam o risco de reforçar a supremacia da pesquisa sobre o ensino e o prejuízo que pode advir, tanto para o ensino, quanto para a pesquisa, se procuramos aglutinar na figura do docente os dois papéis, o de professor e o de pesquisador.

Além disso, como já assinalamos, tem crescido e ocupado cada vez mais espaço na literatura a preocupação com a pesquisa do professor. Trabalhos como os de Zeichner e Noffke (2001), Cochran-Smith e Lytle (1999), Anderson e Herr (1999), Lagemann e Shulman (1999) nos EUA, e os de André (1994, 2001), Geraldi, Fiorentini e Pereira (1998), Diniz-Pereira e Zeichner (2002), Fiorentini (2004), entre outros, no Brasil, revelam o grande interesse e atualidade desse tema.

Continua, entretanto, bastante obscura a questão da própria identidade da pesquisa do professor da educação básica. Aos seus próprios olhos, e aos de seus formadores, essa forma de pesquisar tem sido considerada importante, por todos eles, como mostram nossas entrevistas. Mas quando se trata de assegurar as condições que permitam ao docente levar a cabo essa importante função, ergue-se uma barreira quase intransponível, formada por componentes de natureza burocrática, como carga horária de aulas e outras obrigações do trabalho escolar, mas também de características pessoais do professor e de sua formação, assim como da instituição, na qual trabalha, tais como, a integração com grupos de colegas, a colaboração com professores da universidade e, sobretudo, a possibilidade de receber uma bolsa ou um auxílio financeiro para o desempenho dessa atividade.

No domínio do desenvolvimento de pesquisa por professores, temo-nos deparado com uma fértil literatura, apresentando propostas que apontam para a pesquisa-ação ou pesquisa cooperativa ou, ainda, pesquisa em colaboração (Diniz-Pereira, 2002; Kemmis e Wilkinson, 2002; Fiorentini, 2004).

A pesquisa-ação ou pesquisa colaborativa tem sido apontada como uma alternativa viável, como opção metodológica para o professor desenvolver atividade de pesquisa. Todavia não podemos deixar de mencionar algumas reservas, amplamente conhecidas pelo meio acadêmico, quanto ao emprego desse tipo de pesquisa. As críticas mais comuns à pesquisa-ação recaem, justamente, sobre o risco de rebaixamento do nível de exigência acadêmica. A dificuldade enfrentada pelo pesquisador para desenvolver sua análise com objetividade e rigor acaba constituindo também um obstáculo ao sucesso do trabalho investigativo. O fato é que vários trabalhos intitulam-se pesquisa-ação, mas se aproximam muito mais de relatos de experiência. Não podemos perder de vista que pesquisa é construção de conhecimento e pesquisa-ação é construção de conhecimento mais ação. Em vários casos, ou observamos uma coisa ou outra, ou nenhuma coisa, nem outra. Ou seja, não se faz a pesquisa, nem a ação proposta.

Reconhecemos que existe uma dimensão educativa muito forte na pesquisa-ação, tornando-a uma abordagem favorável ao estudo da escola, mas não somos inclinados à idéia de restringir a pesquisa do professor a esse tipo de abordagem metodológica. A própria complexidade que cerca o conceito e os critérios de validação de uma pesquisa nos leva a não aceitar que postulemos à pesquisa do professor um tipo próprio, sob o risco de minimizarmos as suas possibilidades investigativas.

Neste sentido, diante de um cenário pouco definidor de critérios claros, próprio talvez do período de construção (e desconstrução) que vivemos, como bem mostra Shulman (1999), é bom saber quais os itens, as características, os elementos levados em conta por quem julga, quem decide se o trabalho merece ou não ser contemplado com o título de pesquisa e o que lhe for atribuível. Nosso trabalho pretende, assim, contribuir para desvelar a cultura de pesquisa dominante entre nós.

CONCLUSÕES

As considerações feitas com base na investigação que temos realizado e também nossas observações e reflexões a respeito do que se tem produzido e discutido a propósito da complexa relação entre o professor da educação básica e a pesquisa, estimulam-nos a propor algumas reflexões como conclusão. Dois aspectos básicos merecem uma atenção especial, pelas implicações que têm com a questão focalizada: a própria situação atual da pesquisa em educação e o perene desafio da formação de professores em nosso país.

Quanto à pesquisa em educação, embora não pretendamos, nem possamos, fazer um balanço do seu estado no presente, queremos, pelo menos, apontar alguns problemas particularmente significativos para a nossa discussão. Em recente apresentação em reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – Anped –, André e Lüdke (2004) desenvolveram uma análise sobre pesquisas acerca do tema da formação de professores na última década, sob a forma de dissertações de mestrado e teses de doutorado, em aproximadamente 60 programas de pós-graduação em educação do país. André tomou por base um estudo já feito no início da década de 1990 e atualizou suas análises até o ano de 2002. Em suas análises, apontou vários problemas, dentre os quais vamos destacar aqueles que têm maior repercussão sobre a questão por nós estudada. Um primeiro ponto refere-se ao excesso de estudos baseados em opiniões de professores, obtidas por meio de entrevistas. Essas opiniões têm ficado, em geral, restritas a um nível de simples transcrição, sem as necessárias análises que aprofundariam os seus possíveis sentidos em conexão com a reflexão teórica disponível e a própria reflexão do pesquisador.

Um outro ponto levantado revela a falta de clareza em relação ao próprio objeto em estudo. Trata-se de uma questão grave, uma vez que um número considerável de pesquisadores iniciantes, alunos de mestrado e doutorado, não conseguem chegar a uma definição e delimitação claras do seu problema de pesquisa, o que compromete todo o trabalho na sua essência. Qual é a contribuição que o pós-graduando se propõe oferecer? Ele está se beneficiando de um programa de mestrado ou de doutorado, com todos os recursos aí envolvidos, sobretudo, com um tempo de sua formação dedicado especificamente a essa tarefa. Sabemos que muitas vezes esse tempo é dividido entre várias funções, mas acreditamos que a concomitância da função docente com a de pós-graduação poderá representar uma via muito importante para assegurar a vinculação do estudo de mestrado ou doutorado aos problemas vividos nas escolas. No fundo o estabelecimento do problema a ser estudado pelo pós-graduando representa um dos mais sérios desafios em seus estudos. Não sabemos se os programas têm conseguido oferecer recursos para que eles enfrentem com sucesso esse desafio.

Outro ponto apontado por André, e que consideramos crítico para as relações entre o professor e a pesquisa, é a própria concepção de pesquisa qualitativa que tem predominado nos estudos de dissertações e teses. Registra-se uma certa confusão entre as várias modalidades consideradas incluídas sob o termo pesquisa qualitativa. Nem sempre são respeitadas as especificidades dessas modalidades, ocasionando uma apropriação indevida de terminologias e aplicações inadequadas de soluções metodológicas. A pesquisa de tipo qualitativo é muito ampla, englobando várias tendências e procedimentos, o que requer um domínio teórico e metodológico sobre seus princípios epistemológicos e suas possíveis aplicações, sob o risco de cair em desvios e abusar de suas possibilidades.

Lüdke confirmou os pontos vulneráveis apontados por André e insistiu, em especial, sobre a precariedade das análises teóricas em grande parte das pesquisas focalizadas. Destacou que parte desse problema se origina da própria constituição da área da educacão, como campo de confluência de várias disciplinas e também da fragilidade da formação teórica dos educadores, justamente pela multiplicidade de aportes, dos quais não consegue dar conta por completo. Assim, justifica-se a, já citada, perspectiva de Isambert-Jamati (1992), sobre a importância do aprofundamento em uma dessas disciplinas, por parte do futuro pesquisador.

Outro ponto crítico trazido por Lüdke foi a entrada avassaladora da idéia de reflexão como recurso para os problemas do trabalho do professor, em substituição, e mesmo em detrimento, do componente de pesquisa, que deveria ser valorizado nesse contexto, tanto para a formação, quanto para a atuação do docente. A entrada decisiva dos métodos próprios da abordagem qualitativa também acabou contribuindo para um certo afrouxamento dos cuidados com os aspectos teóricos e metodológicos, que devem orientar todo trabalho de pesquisa. Alguns desses trabalhos, tal como foi ilustrado por André em sua apresentação, não passam de simples relatos de experiência, ou justaposições de afirmações dos informantes, em geral professores, sem a devida concatenação dentro de um quadro teórico ou mesmo a clara conexão com um problema de pesquisa, que pudesse apontar a possível contribuição dos trabalhos analisados, para o enfrentamento das dificuldades sofridas pelos professores e alunos da escola de educação básica.

Por certo, em sua apresentação, André e Lüdke referiram-se apenas a uma parte da pesquisa em educação realizada no país, representada pelo conjunto de estudos dedicados à formação de professores em teses e dissertações. Entretanto, esse segmento é o mais volumoso do conjunto recente de estudos defendidos por mestres e doutores em educação e pode servir como ilustração dos problemas da pesquisa nessa área.

Um estudo recente, feito por Carvalho (2004) em tese de doutorado, focalizando pesquisas efetuadas por docentes universitários sobre a rede pública de ensino fundamental, também ilustra tais problemas. A autora analisou pesquisas feitas com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, o mais importante órgão governamental de financiamento de pesquisa, em todas as áreas, no país. Suas conclusões são intrigantes, ainda que decepcionem um tanto: grande parte dessas pesquisas (cerca de 70%) sobre a escola pública do ensino fundamental "não deixam claro o avanço teórico, experimental ou prático obtido por elas, nos projetos e relatórios de pesquisa" (p.160). O pesquisador da universidade encontra-se muito bem preparado teórica e metodologicamente, muito bem informado sobre a produção acadêmica de colegas de outros países, mas não tem sido capaz de chegar com seus recursos até os problemas vividos pelos professores da escola básica e seus alunos, segundo a autora.

O que queremos extrair das duas contribuições para nossas conclusões é a distância registrada entre a pesquisa em educação e o cumprimento de seu papel, junto às instituições de educação básica. Seja pelo distanciamento do foco que orienta o trabalho do pesquisador universitário, apontado pelo estudo de Carvalho (2004), seja pela precariedade de boa parte das pesquisas, comentada por André e Lüdke (2004). Não apenas em nosso país se lastima esse desencontro entre a pesquisa e os problemas da educação básica, haja vista a aguda análise de Labaree (1992), nos E.U.A. e a relativa ao Canadá, em artigo de Tardif e Zourhlal, publicado neste número.

No lado da formação dos professores, persistem os problemas há muito registrados e sentidos pela comunidade educacional, como pano de fundo. Nos cursos de licenciatura, a marcante separação entre as disciplinas de conteúdos específicos e as voltadas para a preparação chamada pedagógica. Também a distância entre a formação de cunho teórico e a de cunho prático, concentrada em estágios e práticas de ensino de duração muito reduzida e, de modo geral, situados em fase posterior e com status inferior ao da formação teórica. O curso de pedagogia sofre também com problemas semelhantes a esses, acrescidos hoje com o de uma certa crise de identidade, ocasionada pela indefinição da atual legislação a seu respeito e pela criação de novas instituições para a formação de professores, como o curso normal superior e os institutos superiores de educação. Continua-se a constatar uma clara associação entre a preparação para o trabalho em pesquisa e a formação do futuro pesquisador por meio dos cursos de bacharelado, nas diferentes áreas do conhecimento, em detrimento dos cursos de licenciatura.

A preparação do investigador e o exercício da pesquisa continuam privilégios da universidade. A pesquisa continua a ser a moeda mais valiosa na contabilidade da carreira do professor universitário. Como aproximar a pesquisa em educação das duas realidades que lhe dizem respeito: a da universidade, onde ela é habitualmente feita, e a da escola de educação básica, onde ela é requisitada para atender os problemas mais vitais? Eis aí o desafio hoje enfrentado por inúmeros colegas, pesquisadores que, como nós, procuram descobrir os caminhos para superar os obstáculos e construir as pontes entre essas duas realidades. A pesquisa efetuada na universidade beneficia-se dos recursos e da preparação dos pesquisadores, que exercem essa atividade como própria de seu status e de suas atribuições. Entretanto, temos que reconhecer a falta de produtividade, ou mesmo de alcance da pesquisa universitária junto à escola básica e a evidência de que os professores dessa escola estão mais habilitados para perceber melhor os problemas cruciais que afligem esse nível de ensino. Ao mesmo tempo, esses professores, que foram formados pela universidade, deveriam ter recebido ali sua devida iniciação à pesquisa, para poderem se desenvolver plenamente como profissionais autônomos, na melhor acepção do termo "profissional", por mais discutível que reconheçamos que ele seja.

Uma possível pista de aproximação começa a ser vislumbrada na terceira etapa de nossa pesquisa: a opção por trabalhos "híbridos", isto é, elaborados em conjunto por docentes da escola básica e seus professores nos cursos de mestrado. Quem sabe não descobriremos aí os alicerces de uma ponte, cuja construção deveria ter sido lançada há muito tempo, ou talvez até já tenha sido, sem que tenhamos, entretanto, tido o cuidado de explorar devidamente toda a riqueza dessa possibilidade em favor de um desenvolvimento mútuo. De um lado, crescem a escola básica e seus professores, recebendo estes uma complementação da formação obtida na licenciatura, e ao longo de toda a sua carreira, por certo. De outro lado, cresce a universidade, pelo contato direto com os problemas vitais da educação básica, assegurado pelos seus mestrandos-professores.

Recebido em: janeiro 2005

Aprovado para publicação em: janeiro 2005

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  • 1
    . Algumas das idéias apresentadas neste texto já foram trabalhadas em publicações anteriores que constam das referências bibliográficas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Maio 2005

    Histórico

    • Aceito
      Jan 2005
    • Recebido
      Jan 2005
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