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Políticas inclusivas e compensatórias na educação básica

Resumos

Esse artigo propõe, com base em conceitos de cidadania e sobretudo de direitos humanos, mostrar como os limites das políticas inclusivas de educação esbarram, apesar de uma legislação avançada, na ausência de uma efetiva política de educação básica. Salvo o ensino fundamental, a educação infantil e o ensino médio não são universais. Nesse sentido, cursar as três etapas da educação básica ainda é um campo reservado. Além disso, a presença do Brasil no cenário internacional associada à histórica desigual distribuição de renda estimulam políticas compensatórias e focalizadas em vez de políticas públicas que garantam a igualdade de oportunidades. Mais do que as tradicionais lutas de educadores e intelectuais, só um vigoroso movimento da sociedade civil poderá tornar efetivos esses direitos proclamados.

CIDADANIA; POLÍTICAS PÚBLICAS; EDUCAÇÃO; DIREITOS HUMANOS


Based on concepts of citizenship and human rights, this article aims to show how inclusive education policies, notwithstanding the progressive legislation, are limited by the lack of an effective elementary education policy. The three stages of elementary education do not form a universal path, since kindergarten and high school are not universal. Besides, the presence of Brazil on the international scene, associated with its historical uneven distribution of wealth, stimulate targeted compensatory policies rather than public policies that would ensure equal opportunities. The traditional efforts made by educators and intellectuals are not enough, only a vigorous social movement can assure the effectiveness of these rights.

CITIZENSHIP; PUBLICS POLICIES; EDUCATION; HUMAN RIGHTS


TEMAS EM DESTAQUE

POLÍTICAS INCLUSIVAS E COMPENSATÓRIAS

Políticas inclusivas e compensatórias na educação básica

Inclusive and compensatory policies in elementary education

Carlos Roberto Jamil Cury

Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica e Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais crcury.br@terra.com.br

RESUMO

Esse artigo propõe, com base em conceitos de cidadania e sobretudo de direitos humanos, mostrar como os limites das políticas inclusivas de educação esbarram, apesar de uma legislação avançada, na ausência de uma efetiva política de educação básica. Salvo o ensino fundamental, a educação infantil e o ensino médio não são universais. Nesse sentido, cursar as três etapas da educação básica ainda é um campo reservado. Além disso, a presença do Brasil no cenário internacional associada à histórica desigual distribuição de renda estimulam políticas compensatórias e focalizadas em vez de políticas públicas que garantam a igualdade de oportunidades. Mais do que as tradicionais lutas de educadores e intelectuais, só um vigoroso movimento da sociedade civil poderá tornar efetivos esses direitos proclamados.

CIDADANIA – POLÍTICAS PÚBLICAS – EDUCAÇÃO – DIREITOS HUMANOS

ABSTRACT

Based on concepts of citizenship and human rights, this article aims to show how inclusive education policies, notwithstanding the progressive legislation, are limited by the lack of an effective elementary education policy. The three stages of elementary education do not form a universal path, since kindergarten and high school are not universal. Besides, the presence of Brazil on the international scene, associated with its historical uneven distribution of wealth, stimulate targeted compensatory policies rather than public policies that would ensure equal opportunities. The traditional efforts made by educators and intellectuals are not enough, only a vigorous social movement can assure the effectiveness of these rights.

CITIZENSHIP – PUBLICS POLICIES – EDUCATION – HUMAN RIGHTS

As possibilidades e os limites das políticas inclusivas e compensatórias no âmbito da educação básica no Brasil continuam a sofrer dos mesmos limites e possibilidades que têm acompanhado a nossa evolução histórica. Reconhecidos graus de avanço em matéria de acesso e de subvinculação de recursos, é preciso atuar sobre a natureza de tais limites e possibilidades.

Políticas inclusivas supõem uma adequação efetiva ao conceito avançado de cidadania coberto pelo ordenamento jurídico do país. É ainda dentro dos espaços nacionais, espectro privilegiado da cidadania, que se constroem políticas duradouras em vista de uma democratização de bens sociais, aí compreendida a educação escolar. Afinal, cidadania e nação são construções históricas mas não são objetos de uma relação imanente e ontológica.

Avançar no conceito de inclusão supõe a generalização e a universalização de um conceito contemporâneo de direitos humanos cujo lastro transcenda o liame tradicional e histórico entre cidadania e nação tal como desenvolvido, por exemplo, em Marshall (1967) na Inglaterra e em Carvalho (2002) no Brasil. Esse conceito deve constituir o horizonte mais amplo de convivência entre as pessoas dos diferentes povos do mundo.

Nesse sentido, políticas inclusivas começam no âmbito tradicional dos estados nacionais, deles não se podendo eximir sob o risco de tornarem-se figuras abstratas e sem efetividade. Mas elas só fazem sentido pleno em um mundo globalizado, no qual se possa realizar a essência da humanidade, pondo ênfase no que é comum à espécie humana, em que a superioridade axiológica da humanidade vista ut genus sobreponha-se a uma vista dos países uti singuli. Essa tomada de posição traz à lembrança algumas posições assumidas por intelectuais e organismos que pensaram a humanidade dessa perspectiva.

Kant (1939), à cata da "Idéia de uma história universal em sentido cosmopolita", assinala, em 1784, que o uso da razão só se desenvolve plenamente na espécie e não nos indivíduos. É da espécie humana, mediada pelos indivíduos em espaços nacionais, que o foro privilegiado da razão como apanágio da hominalidade desenvolve-se. E é a hominalidade em sua plenitude, isto é, na humanidade que a busca da "paz perpétua" se realiza.

Ora, colocar políticas inclusivas à luz da "espécie" humana é pô-las sob a guarda dos direitos humanos, cujo espectro e âmbito de aplicabilidade incorpora e transcende os direitos dos cidadãos em seus espaços nacionais. A Organização das Nações Unidas – ONU – tem como premissa de sua constituição e de suas principais declarações o centramento na defesa dos direitos humanos (Symonides, 2003).

É por isso que a ONU, organismo internacional, em 10 de dezembro de 1948 proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos como expressão "do reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis".

Entre esses direitos:

1) Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementar e fundamental. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.

2) A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. (Brasil, 1997, art. 26, p.134)

Ainda que como voz de um organismo moral, não custa relembrar a invocação feita, ainda em 1963, pelo Papa João XXIII na encíclica Pacem in terris, em que se postula "uma autoridade internacional" que acabe com a corrida armamentista e defenda com eficácia os direitos universais do homem. Ele constata a fragilidade estrutural dos estados nacionais em manter a paz universal e garantir nacionalmente o que foi proclamado como direito do ser humano.

Ao mesmo tempo os poderes públicos de cada comunidade política, postos como estão em pé de igualdade jurídica entre si, mesmo que multipliquem conferências e afiem o próprio engenho para a elaboração de novos instrumentos jurídicos, não estão mais em condições de enfrentar e resolver adequadamente estes problemas, não por falta de vontade ou de iniciativa, mas por motivo de uma deficiência estrutural, por uma carência de autoridade.

Pode-se, portanto, afirmar que na presente conjuntura histórica não se verifica uma correspondência satisfatória entre a estrutura política dos Estados com o respectivo funcionamento da autoridade pública no plano mundial, e as exigências objetivas do bem comum universal. (João XXIII, 1963, p.65)

No entanto, em um mundo que alardeia o "individualismo possessivo" como critério de racionalidade, na forma de curvamento religioso ao mercado, faz sentido pensar as políticas educacionais à luz da "espécie" e da "razão".

Nesses termos, recoloca-se a importância estratégica da educação escolar que atinja todas as pessoas como indivíduos singulares e como membros de um corpo social nacional e internacional. O conhecimento, desse modo, revela seu valor universal. Se apropriado por poucos, ele deixa de ser emancipatório e se torna também instrumento de desigualdade, expressa no fosso cada vez mais fundo que separa grupos sociais e países constituídos como estados nacionais.

POLÍTICAS INCLUSIVAS: UNIVERSAIS OU FOCALIZADAS?

"Incluir" vem do latim: includere e significa "colocar algo ou alguém dentro de outro espaço/lugar". Esse verbo latino, por sua vez, é a síntese do prefixo in com verbo cludo, cludere, que significa "fechar, encerrar". Participa da origem desse verbo um substantivo em português. Trata-se do termo "claustro". Claustro é um espaço do qual alguns já "fazem parte" como "espaço delimitado, murado, rodeado". Aliás o claustro lembra uma parte de um mosteiro, próprio da vida conventual, espaço por vezes interdito a leigos e seculares. Incluir será, pois, "entrar no claustro", adentrar um lugar até então fechado e que, por encerrar determinadas vantagens, não era, até então, compartilhado com outros. A expressão popular brasileira não hesitaria em aproximar tais termos do "entrar no baile". E a canção que expressa o desejo do sujeito de entrar no circo, isto é, na festa, lamenta que "todo mundo vai ao circo, menos eu, menos eu...". Os excluídos são os "barrados no baile".

Nesse sentido, há uma dialética entre a inclusão (o de dentro) e a exclusão (o de fora) como termos relacionais em que um não existe sem o outro. Excluir é tanto a ação de afastar como a de não deixar entrar. No entanto, não se pode deixar de dizer que o preso, excluído do convívio social, é também um incluído nas grades prisionais.

Falar em políticas inclusivas supõe, pois, retomar o tema da igualdade e conseqüentemente o da diferença.

As políticas inclusivas, assim, podem ser entendidas como estratégias voltadas para a universalização de direitos civis, políticos e sociais. Elas buscam, pela presença interventora do Estado, aproximar os valores formais proclamados no ordenamento jurídico dos valores reais existentes em situações de desigualdade. Elas se voltam para indivíduo e para todos, sustentadas pelo Estado, pelo princípio da igualdade de oportunidades e pela igualdade de todos ante a lei. Assim, essas políticas públicas não são destinadas a grupos específicos enquanto tais por causa de suas raízes culturais, étnicas ou religiosas. Isso não impede a iniciativa de medidas gerais que, na prática, acabam por atingir numericamente mais indivíduos provindos das classes populares. E elas têm como meta combater todas e quaisquer formas de discriminação que impeçam o acesso a maior igualdade de oportunidades e de condições. Desse modo, as políticas públicas includentes corrigem as fragilidades de uma universalidade focalizada em todo e cada indivíduo e que, em uma sociedade de classes, apresenta graus consideráveis de desigualdade. Nesse sentido, as políticas inclusivas trabalham com os conceitos de igualdade e de universalização, tendo em vista a redução da desigualdade social.

Mas pode-se também entender o conceito de políticas inclusivas dentro daquela qualidade histórica a que Bobbio (1992) chama especificação de direitos. Trata-se do direito à diferença, no qual se mesclam as questões de gênero com as de etnia, idade, origem, religião e deficiência, entre outras. A presença de imigrantes, provindos em boa parte de ex-colônias ou de outros países, repõe não só o tema da desterritorialização e dos fluxos migratórios como também o retorno de temas como tolerância e multiculturalismo no âmbito dos espaços nacionais perante minorias ali presentes.

Tais políticas afirmam-se como estratégias voltadas para a focalização de direitos para determinados grupos marcados por uma diferença específica. A situação desses grupos é entendida como socialmente vulnerável, seja devido a uma história explicitamente marcada pela exclusão, seja devido à permanência de tais circunstâncias em seqüelas manifestas. A focalização desconfia do sucesso das políticas universalistas por uma assinalada insuficiência. Focalizar grupos específicos permitiria, então, dar mais a quem mais precisa, compensando ou reparando perversas seqüelas do passado. Isso se baseia no princípio da eqüidade, pelo qual, como já se afirmava na Antigüidade Clássica, uma das formas de fazer-se justiça é "tratar desigualmente os desiguais"1 1 . A eqüidade não é uma suavização da igualdade. Trata-se de conceito distinto porque estabelece uma dialética com a igualdade e a justiça, ou seja, entre o certo, o justo e o eqüitativo. Esse é o momento do equilíbrio balanceado que considera tanto as diferenças individuais de mérito quanto as diferenças sociais. Ela visa, sobretudo, à eliminação de discriminações. . Uma das formas mais visíveis dessas políticas pode ser verificada na polêmica questão das "cotas" como expressão de "ações afirmativas".

Assim sendo, a busca de maior igualdade entre os grupos vulneráveis abdica as iniciativas tendentes a garantir a igualdade legal entre todos os indivíduos. Se considerarmos as graves dificuldades das contas públicas às voltas com o pagamento de dívidas e com as limitações de recursos para os investimentos em direitos sociais universais, a focalização não deixou de ser uma estratégia dos Estados para uma alocação específica de recursos (Draibe, 1989, 1993).

A relação entre o direito à igualdade de todos e o direito à eqüidade, em respeito à diferença, no eixo do dever do Estado e do direito do cidadão não é uma relação simples.

Assim, é preciso fazer a defesa da igualdade como princípio dos direitos humanos, da cidadania e da modernidade. Políticas de educação igualitária respondem por uma escolarização em que os estudantes possuem os mesmos direitos, sem nenhuma discriminação de sexo, raça, etnia, religião e capacidade, todos freqüentando os mesmos claustros, isto é, tendo acesso, permanência e sucesso nas etapas da educação básica. Trata-se de efetivar a igualdade de oportunidades e de condições ante um direito inalienável da pessoa – a cidadania e os direitos humanos (Cury, 2002).

É preciso considerar que políticas universais por vezes ficam formais e sem efetivação. As desigualdades, assim, continuam a mostrar um espectro inaceitável de qualquer ponto de vista. Um tratamento apenas formalmente igualitário não pode ser um biombo para a eternização de desigualdades e discriminações.

Mas como focalizar certos grupos diante do princípio igualitário da cidadania?

Não há sociedade que não seja plural em matéria de, por exemplo, meios sociais, culturas, sexo, etnias, religião e até mesmo de regiões. É dever do Estado gerir tais diferenças com isenção, competência e até mesmo com tolerância no âmbito público, assegurando a coesão social pela construção de uma cidadania aberta a todos, respeitados os princípios comuns da existência coletiva. É dever da sociedade e do Estado respeitar as liberdades dos indivíduos de exercerem papéis sociais diferenciados e filiarem-se a grupos sociais específicos próprios, por exemplo, de escolhas religiosas e culturais compatíveis com a cidadania e com os direitos humanos. Ora, tal pluralidade é visível sobretudo quando agrupada em manifestações fenomênicas.

Se as diferenças são visíveis, sensíveis e imediatamente perceptíveis, especialmente no caso das pessoas com necessidades especiais, o mesmo não ocorre com o princípio da igualdade. O princípio da igualdade não é visível a olho nu; seu contrário, a desigualdade, é fortemente perceptível no âmbito social.

Dessa tensão entre igualdade e diferença nascem as políticas universalistas ou focalizadas que, por sua vez, dependem das opções dos governantes e cuja implementação deve contar com a crítica dos interessados.

BRASIL: LIMITES HISTÓRICO-SOCIAIS

O Brasil é um país de riquezas enormes mas desigualmente distribuídas. Daí o "país de contrastes" em "dois brasis" cujas "raízes" nos remetem à "casa grande e senzala", aos "sobrados e mocambos", a um país tensionado entre "a palavra e o sangue".

Entre 1901 e 2000, o Brasil passou de 17,4 milhões de habitantes para 170 milhões; o Produto Interno Bruto – PIB – cresceu 110 vezes, mas a riqueza acumulada não foi redistribuída de modo justo e equilibrado nem entre indivíduos nem entre grupos e nem mesmo entre as regiões e seus municípios. Daí a enorme desigualdade em todos os sentidos, como atestam as estatísticas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE, 2003).

De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios – PNAD – de 2001, 1% dos mais ricos fica com 10% da renda e os 10% mais ricos ficam com o quinhão igual a sessenta vezes o rendimento dos 10% mais pobres. E os 50% mais pobres ficam com pouco mais de 10% da renda (FIBGE, 2002; São Paulo, 2003). A miséria absoluta, visível a olho nu, atinge 15% da população brasileira, algo em torno de 23 milhões de pessoas; já os pobres seriam em torno de 30 milhões de pessoas2 2 . Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea – , miserável é aquele cuja renda é insuficiente para cobrir os gastos mínimos com comida, habitação, transporte e vestuário. Esses não atingem 2 mil calorias diárias, índice propugnado pela ONU. .

E sabe-se perfeitamente que os brasileiros não de hoje estão às voltas com o desemprego, assim como os empregados têm rendimentos deprimidos (Dedecca et al., 2004).

Ao lado e acima dos miseráveis, está a faixa de pobreza que atinge 30 milhões de brasileiros3 3 . De acordo com o Ipea, pobre é aquele que vive com até R$80 por mês. . É daí que saem os mais de 1,3 milhão de crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos que trabalham ao invés de estudar, os quase 4 milhões de crianças entre 4 e 14 anos que estão fora da escola e as 800 mil crianças em idade escolar obrigatória também fora da escola4 4 . Cf. Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – Inep –, 2002. É preciso assinalar que esses números não se distribuem igualmente por todas as regiões do país. .

Nessa matéria o Brasil está perto da realidade de muitos países da África subsaariana, o que contrasta com o fato de ser um país próximo dos primeiros lugares no quesito jatos executivos e helicópteros privados.

Essa situação fica ainda mais crítica quando nos aproximamos da realidade dos nossos 5.560 municípios (FIBGE, 2001). Se considerarmos equipamentos culturais constituídos de biblioteca, cinema, teatro, videolocadora, museu, orquestra, emissoras de rádio AM e FM, loja de discos, banda, acesso à rede mundial de computadores, gerador de TV, centro comercial, estádio e clube, constatar-se-á que só 53 deles possuem tudo isso, atingindo um universo de 46 milhões de habitantes, ou seja, 27% da população. Em um universo de 1 milhão de habitantes, 153 municípios não possuem nada; 573 possuem entre 12 e 16 equipamentos culturais e 1.112 municípios possuem só até 3 equipamentos culturais. A média nacional é de 5,9 equipamentos culturais. Apenas 68% desses municípios possuem conselhos tutelares, exigidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

Se 45 milhões de domicílios possuem TV e rádio, só 4,7 milhões de domicílios possuem aparelhos de CD, DVD, vídeo e acesso à internet.

Essa penúria cultural limita estudantes em matéria de instrumentos de atualização. Mas tal situação é produto de um quadro mais amplo de desigualdade social e de disparidades no pacto federativo, o que coopera para algo que já se chamou dívida social.

Apesar de termos avançado muito em ordenamento jurídico, democratização política e até mesmo crescimento econômico, o quadro de pobreza e suas seqüelas pouco se alterou nos últimos vinte anos. As propaladas reformas do Estado também pouco contribuíram para a modificação desse quadro.

A pergunta mais ampla que surge diante desses "dois brasis" é óbvia: quanto de igualdade ainda é preciso para que se atinja uma cidadania nacional digna dos direitos civis, políticos e sociais? Mais do que isso: quais são as reais oportunidades de sustentação da democracia quando a desigualdade não dá mostras de recuo efetivo?

Certamente a mesma pergunta deve ser dirigida à cidadania educacional tão bem redigida em nossa Constituição de 1988.

A situação educacional do país, em contraste com os benefícios que a educação propicia e em contradição com os valores sustentados por uma legislação avançada, é ainda excludente. Por definição, a educação básica, direito constituinte do cidadão, abrange três etapas sucessivas: educação infantil, ensino fundamental e ensino médio.

A educação infantil, voltada para um universo de 22 milhões de crianças entre zero a seis anos, acolhe nas creches – primeiro segmento dessa etapa, destinado a crianças de zero a três anos – apenas 1.236.814 crianças. Dessas, 469.229 estão na rede privada. Por sua vez, a pré-escola – segundo segmento dessa etapa, destinado a crianças de quatro a seis anos – recebe 5.160.787 alunos, dos quais 1.371.679 estão na rede privada.

Dos 345.341 docentes atuando nessa etapa da educação, 230.238 possuem a formação mínima exigida por lei, o ensino normal médio, e só 97.895 possuem ensino superior. Ou seja, para cumprir o mínimo legal é preciso ainda formar 17.208 docentes, sem falar no ensino superior como meta desejável e imprescindível.

Dada a importância crescente que a educação infantil ocupa nesse ciclo da vida para a vida da criança e para outras etapas da educação escolar, é inconcebível que apenas perto de 30% do contingente total de crianças dessa faixa etária esteja na escola. E essa ausência atinge mais profundamente as crianças das classes populares, especialmente as de ascendência negra.

Se a educação infantil é a etapa "básica" da educação básica, se ela é direito, então o Estado ainda não chegou até onde deveria para corresponder ao "dever do Estado".

O ensino fundamental, gratuito, direito público subjetivo, cercado de mecanismos de assistência técnica, financeira e didática, destinado a todos os cidadãos brasileiros e obrigatório para jovens entre 7 e 14 anos, atende a 34.719.506 alunos, sendo 31.445.336 na rede pública do sistema de ensino.

Se no conjunto dos oito anos obrigatórios estão presentes na escola mais de 97% da população dessa faixa etária, ou quase 20% da população brasileira, efetivando o princípio do acesso, a trajetória escolar desses alunos revela grave deficit em matéria de permanência e qualidade. Se o número de matrículas no primeiro ano do ensino fundamental aproxima-se de 5,6 milhões, não chega a 2,9 milhões no oitavo ano. E as avaliações de desempenho escolar, como as do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico – Saeb – e do Programa Internacional de Acompanhamento das Aquisições dos Alunos – Pisa –, indicam, ainda, que muitos alunos lêem mal e escrevem com erros e muita dificuldade.

Se lugar de criança é na escola, como entender que mais de 1,4 milhão não têm sequer acesso à educação obrigatória?

Por seu lado, dos 1.603.851 docentes atuantes no conjunto do ensino obrigatório, 811.112 exercem a docência nos quatro primeiros anos do ensino fundamental. Destes, 503.664 possuem o ensino normal médio, que é o mínimo exigido por lei, e 293.083 já possuem o ensino superior. Logo, para atingir o mínimo legal, carecem de formação no normal médio 14.365 docentes. Já nos quatro anos do segundo segmento dessa etapa, contando os 823.485 docentes, 635.110 possuem o ensino superior e 188.738 possuem o ensino médio. Estes devem, forçosamente, fazer o ensino superior.

A pergunta aqui é simples: o Estado já chegou aqui, mas em que estado?

O ensino médio, adequadamente conceituado como etapa conclusiva da educação básica, voltado para jovens de 15 a 17 anos, absorve em seus três anos de duração 9.132.698 matrículas, sendo que mais da metade no turno noturno e de pessoas de mais de 17 anos. Mas o número de concluintes fica próximo de dois milhões.

Sabe-se que nas exigências formais do mercado de trabalho desta sociedade em que o conhecimento está adquirindo importância estratégica o aumento dos níveis de escolaridade exigidos torna o ensino médio objeto imediato de política de expansão. Assim, como entender que o país deixe fora da escola mais de dois milhões de jovens entre 15 e 17 anos? Quando a universalização gratuita dessa etapa, princípio constitucional, e sua progressiva obrigatoriedade, princípio legal, deixarão de ser somente um horizonte e se tornarão efetivas?

São 488.378 os docentes no ensino médio, dos quais 440.405 possuem o ensino superior.

Se tomarmos como indicativo a exigência do Plano Nacional de Educação – PNE – de 70% dos docentes da educação infantil e do ensino fundamental (quatro primeiros anos do sistema de ensino) terem o ensino superior nos próximos seis anos, chegamos ao número de mais de 800 mil docentes que ainda devem fazer o ensino superior.

O salário médio dos professores da educação infantil é próximo de R$430,00, o de 1º a 4º ano aproxima-se de R$470,00. O docente de 5º a 8º ano ganha em torno de R$605,00 e o de ensino médio, R$700,00.

Vê-se que a chegada do Estado por essa etapa é insuficiente.

Com esses dados relativos às condições salariais fica difícil não articular o desempenho precário do processo de aprendizagem com quem se vê obrigado a perfazer dois ou até três turnos de trabalho para complementar o salário. Como não enxergar aí um índice de subvalorização social do docente? Como não ver aí um elemento forte de resistência dos professores contra as "reformas"? Como postular uma atualização de conhecimentos e mudanças nas práticas educacionais quando se observa tal situação? Qual a legitimidade que a sociedade pode atribuir a uma formação docente que se reduz a 2.800 horas em três anos? Como não enxergar aí um complicador cotidiano para um processo qualitativo da aprendizagem?

Vê-se claramente que, comparado a um time de futebol, o Brasil vai mal de pontas. Tanto a ponta esquerda (educação infantil) como a ponta direita (ensino médio) estão desguarnecidos. Só o ensino fundamental é objeto de uma gratuidade ativa já que conta com o aporte subvinculado de recursos financeiros (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – Fundef), de recursos técnicos, como o livro didático, de recursos assistenciais, como a merenda escolar, e de políticas de assistência, como a bolsa-escola.

E o que dizer de uma herança pesada que identifica 15 milhões de brasileiros com 15 anos ou mais sem escolaridade e sem acesso ao potencial trazido pela educação de jovens e de adultos?

E os chamados analfabetos funcionais que beiram os 33 milhões de pessoas?

A dívida da União para com o Fundef, de 1997 a 2002, marcada pelo não-cumprimento do espírito e da letra que criaram esse fundo, é de 9 bilhões de reais.

Essa situação agrava-se com a revelada pela falta de inclusão digital da maioria dos estudantes e de suas famílias, sem desconsiderar o citado fato de muitos municípios serem carentes desses indispensáveis equipamentos. Nesse sentido, o limitado acesso às infovias torna-se outro obstáculo à construção de um novo espaço de cidadania.

Será que as grandes transformações pelas quais o mundo está passando em termos de epistemologia, tecnologia e processos deve ficar liderada por dimensões administrativas?

A pergunta a ser repetida, perante esse quadro ainda excludente, é lógica: quanto de igualdade educacional ainda é preciso para que se efetive uma cidadania educacional digna dos princípios, objetivos, metas e planos da educação?

Esse é o campo predominante para uma atuação inclusiva, se por exclusão entender-se lacunas, barreiras, ausências no que é direito de todos, no que é considerado indispensável para o acesso, a permanência e a qualidade de todos na educação básica.

BRASIL: UM PAÍS QUE DISCRIMINA

Se a história da educação brasileira é uma história marcada pela exclusão, ela se torna mais complexa porque a desigualdade acaba compondo-se com a discriminação cuja especificidade atingiu e continua atingindo negros, índios, migrantes e trabalhadores braçais. Trata-se de uma herança histórica associada a formas específicas de colonização que potencializaram a já existente exclusão maior. Tal é o caso de uma colonização orientada pela Contra-Reforma em que o acesso à escrita e à leitura era reservado a muito poucos e estava sob o domínio de um projeto colonial explicitamente excludente.

Outro segmento que sofreu preconceitos foi o das pessoas com necessidades especiais.

Estamos, pois, diante de uma associação perversa, barreira estruturante, marcada por uma herança pesada, que impõe sérios limites tanto a uma vontade política consciente quanto a promessas de cunho populista ou demagógico. Mas é preciso deixar claro: a imposição de limites é também um desafio para não eternizar situações históricas advindas do passado, e um convite para a vontade política consciente de buscar iniciativas conseqüentes que desconstruam tal herança no horizonte da sociedade democrática.

O fruto dessa herança discriminatória e desigual é a manifestação de um Brasil branco e de um Brasil negro mesmo após 116 anos da Abolição da Escravatura (Brandão, 2003).

Os indicadores sociais, as pesquisas, os relatórios e os depoimentos são convincentes e, do ponto de vista dos direitos humanos, intoleráveis. Por exemplo, o estudo sobre os Indicadores de Desenvolvimento Humano – IDH –, desenvolvido no projeto "Brasil 2000 – novos marcos para as relações raciais", de responsabilidade da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional – Fase –, deixa claro que a arquitetura sociopolítica do Brasil foi e é dual também do ponto de vista das relações raciais. Onde houver necessidade de renda para usufruir determinados bens sociais, aí o Brasil é predominantemente branco.

Por esse estudo, que utilizou dados da PNAD de 1998, de 174 países, o Brasil, em matéria de IDH, ocuparia o 70º posto. Mas, se reaplicada a metodologia para o país, distinguindo negros e pardos de brancos, o Brasil negro ocuparia o 108º lugar e o Brasil branco, o 49º. O mesmo estudo aponta que os índices educacionais dos brancos se aproximavam dos do Chile, enquanto os dos negros eram semelhantes aos piores índices obtidos por países pobres da África. Tais dados confirmam a existência real dos "dois brasis" em um só território, ou seja, duas cidadanias e um desrespeito aos direitos humanos.

Em nenhum estado da federação o IDH dos negros foi maior que o da população branca. A expectativa de vida dos negros era cinco anos menor que a dos brancos em média nacional, chegando mesmo em regiões mais pobres, como o Norte e o Nordeste, a uma diferença para menos de até 12 anos.

Se na faixa etária de zero a seis anos 51% da população é constituída de pobres, 66% deles são crianças negras. E se o acesso à educação infantil pública é ainda limitado, se a associação entre grande pobreza e ausência de escolaridade nesse ciclo da vida é um fato, disso resulta um prejuízo quase intransponível para os ciclos posteriores. Os dados estatísticos, cada vez mais sofisticados, revelam que o salário médio mensal dos brancos é maior do que o dos negros. São negros 64% dos pobres e 69% dos miseráveis. A taxa de analfabetismo entre os negros é três vezes maior do que entre os brancos e os jovens brancos levam vantagem em número de anos de estudo.

Segundo Cavalleiro, a omissão e o silêncio dos professores diante dos estereótipos, dos estigmas impostos às crianças negras na escola:

...grita inferioridade, desrespeito e desprezo. Neste espaço, a vergonha de hoje somada à de ontem e, muito provavelmente, à de amanhã leva a criança negra a represar suas emoções, conter seus gestos e falar para quem sabe, passar despercebida num "espaço que não é o seu". (2000, p.100)

Nesse sentido, sendo a educação um instrumento de mobilidade social, o racismo mostra um lado perverso que reproduz as condições de desigualdade e, ao fazê-lo, as mantém como tal. Segundo dados do PNAD (1999), entre as crianças de 9 a 5 anos em regime de trabalho infantil, proibido por lei, há 62% de negras e pardas e 38% de outras. Entre as crianças de 10 a 14 anos que trabalham, 63% são negras e pardas e 37% pertencem a outras etnias.

O Brasil dos brancos é mais rico que o Brasil dos negros, segundo os dados do Ministério da Justiça de 1988, e o rendimento nacional médio por cor era: homem branco, 6,3 salários mínimos; mulher branca, 3,6 salários mínimos; homem negro, 2,9 salários mínimos; mulher negra, 1,7 salários mínimo.

Com todos esses limites, é preciso perguntar-se se as políticas universalistas são capazes de superar a persistência dessa desigualdade "da cabeça aos pés". Para tal superação, mais do que o apelo à cidadania, só mesmo o imperativo categórico da razão prática pode alçar a exigência de políticas inclusivas com focalização específica à luz dos direitos humanos. Esses, por terem por base a dignidade do homem como princípio essencial do ser humano em sua indivisibilidade, não só condenam toda a forma de discriminação como apontam, positivamente, para o princípio igualitário. As políticas inclusivas compensatórias visam, então, a corrigir as lacunas deixadas pelas insuficiências das políticas universalistas. Com isso se pretende equilibrar uma situação em que a balança sempre tendeu a favorecer grupos hegemônicos no acesso aos bens sociais, conjugando assim ao mesmo tempo, por justiça, os princípios de igualdade com o de eqüidade. Além disso, compreendida a melhor escolaridade, elas atendem à dimensão de uma inserção profissional mais qualificada e com isso ancoram em uma base maior de inteligência o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Mas não se pode ignorar um certo risco populista que as políticas diferencialistas podem incorporar.

POLÍTICAS DE NATUREZA INCLUSIVA

Recentemente o Conselho Nacional de Educação, em articulação com o Ministério da Educação – MEC –, aprovou em seu Conselho Pleno – CP – o parecer CNE/CP 03/04 e também a resolução CNE/CP 01/04, que instituem as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Homologado o parecer pelo ministro da Educação, a citada resolução passou a ter força de lei e o assunto despertou polêmica na imprensa. Na verdade, o CNE apenas buscou interpretar uma série de dispositivos constitucionais e legais (Cury, 1999) já existentes sobre o assunto, fartamente citados no Parecer CNE/CP 03/045 5 . Entre outros podem-se apontar os artigos 3º, 4º, 5º, 215 e 216 da Constituição Federal, o artigo 26 da LDB e, em especial, a Lei n. 10.639/03. .

O mesmo colegiado já havia aprovado o Parecer CNE/Câmara da Educação Básica – CEB –, n.14/99, a propósito da educação indígena, de cuja homologação ministerial resultou a Resolução CNE/CEB n. 03/99. Ambos os instrumentos normativos apóiam-se em injunções do ordenamento jurídico nacional, como é o caso do art. 231 da Constituição Federal de 1988 e do art. 78 da Lei de Diretrizes e Bases – LDB –, entre outros6 6 . Para uma visão mais ampla desse segmento grupal, ver Rouland, 2004, especialmente a parte III. .

No mesmo sentido vão as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Especial, conseqüentes aos Pareceres CNE/CEB 17/01 e 04/02, acompanhados da Resolução CNE/CEB 02/01, os quais despertaram também muita polêmica que envolveu desde associações beneficentes até o Ministério Público.

Deve-se apontar também, como modalidade pedagógica própria, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e Adultos dadas pelo Parecer CNE/CEB 11/00 e pela Resolução CNE/CEB 01/00.

Na medida em que o ordenamento jurídico nacional reconhece explicitamente o direito à diferença, ancorando-o no direito à igualdade, vê-se que o órgão normativo encarregado de normatizar a legislação educacional desincumbiu-se de suas funções transferindo às instituições de pesquisa, aos sistemas de ensino e a outros órgãos implicados tanto a aplicação dessas normas quanto a sua análise crítica.

Também o órgão executivo federal responsável pela educação tem tomado medidas que impulsionam iniciativas tendentes a implementar programas queatingem a educação básica no que se refere às políticas inclusivas e compensatórias.

Ao reorganizar seu aparato administrativo, o MEC criou a Secretaria de Educação Básica – SEB –, com a finalidade de articular as iniciativas referentes às etapas da educação básica e suas modalidades.

O projeto mais ousado relativo ao apoio de políticas universalistas é a criação do Fundo Permanente da Educação Básica – Fundeb –, por meio de emenda constitucional para substituir o Fundef, de méritos inegáveis como o disciplinamento dos recursos pela via dos Tribunais de Contas e pelos Conselhos de Acompanhamento. Mas o próprio Fundef não deixa de ser universalizante apenas para o ensino obrigatório e, nesse sentido, ele é focalizado. O Fundeb pretende ser um mecanismo de financiamento para todas as etapas da educação básica e suas modalidades7 7 . Em matéria de política, ambas as propostas revelam o papel protagonista que o MEC pode assumir no pacto federativo. . O novo fundo pretende equalizar dentro dos estados os valores de investimento mínimo por aluno e visa a aplicar 80% dos recursos subvinculados na valorização dos docentes da educação básica e também dos profissionais não-docentes atuantes nas escolas. Os recursos serão distribuídos de acordo com as matrículas nas diferentes etapas. O Fundeb prevê a participação de 25% de todos os impostos que hoje compõem o Fundef e acrescenta idêntica participação sobre o Imposto de Propriedade de Veículos Automotores – IPVA –, o Imposto de Transmissão de Causa Mortis – ITCM –, Imposto Territorial Rural – ITR – e o Imposto de Renda dos servidores estaduais e municipais. Já os impostos próprios dos municípios, como é o caso do Imposto Territorial e Urbano – IPTU –, Imposto Sobre Serviços – ISS – e Imposto de Transmissão de Bens Intervivos – ITBI –, ficam de fora do fundo. O fundo terá um ajuste progressivo durante cinco anos, para atingir um valor que garanta o "padrão mínimo de qualidade".

Talvez em razão disso, o MEC haja instituído, pela Portaria de 19 de agosto de 2004, um Comitê Nacional de Políticas de Educação Básica a fim de "apoiar e acompanhar a implementação da Política Nacional de Educação Básica e viabilizar a articulação entre as diferentes entidades, órgãos e instituições que atuam na Educação Básica".

A SEB ainda atua tanto para cumprir a meta de nove anos de ensino obrigatório, do Plano Nacional de Educação, pela aplicação de políticas indutoras nos estados e municípios, quanto na direção de uma política de formação continuada dos docentes em exercício, por meio de uma rede nacional que articule instituições formadoras e sistemas de ensino.

Os limites dessas iniciativas dão-se por vários ângulos. A organização da educação nacional teria de efetivar o regime de colaboração já que o legislador optou por um sistema federativo e articulado de educação. E nesse sistema o regime de colaboração é essencial. Contudo, a exigência desse regime por meio de lei complementar, posta na Constituição (§ único do art. 23), até hoje, passados 16 anos, ainda não saiu do papel. Isso, apesar das metas e objetivos do Plano Nacional de Educação, faz com que estados e municípios não avancem na (progressiva) obrigatoriedade do ensino médio e sua universalização, nem sequer no aumento da oferta de vagas para a enorme demanda represada na educação infantil.

Portanto, salvo aprovação substantiva do Fundeb, a universalização do ensino fundamental continuará a ser a prioridade. Com isso, avanços na educação básica como um todo ficarão comprometidos e as metas não serão realizadas. Nesse sentido, o direito à educação básica, no seu mais lídimo significado, fica comprometido e pode deslocar seu potencial para políticas de focalização, o que, nesse caso, será prejudicial tanto à teoria e prática da cidadania e dos direitos humanos como à obtenção de graus mais amplos da educação básica por todos. A carência da educação infantil prejudica as camadas mais pobres da população e que, como já vimos, atinge de modo especial os segmentos de grupos afro-descendentes justamente na etapa inicial da educação básica. Ao limitar a presença desses e de outros grupos vulneráveis ao ensino fundamental, tanto a sua trajetória nessa etapa quanto a dos que conseguem aceder ao ensino médio fica prejudicada. O acesso à educação infantil em atenção à demanda expressa e o acesso ao ensino médio obrigatório são a melhor forma de atender a uma ação afirmativa em prol da cidadania e dos direitos humanos.

Além disso, a proposta do Fundeb não explicita, para além da vinculação hoje existente, recursos novos para fazer frente à demanda crescente de crianças, adolescentes e jovens que querem uma escolaridade mais ampla: a jusante na educação infantil e a montante no ensino médio.

E não se pode ignorar o papel das instituições formadoras no sentido de uma adequação às novas orientações, em especial no campo da formação de docentes.

Dentro da Secretaria de Educação Básica situa-se a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Lançado pelo Governo Federal em 2003, o programa Brasil Alfabetizado visa à inclusão educacional. Nesse mesmo ano, o programa atendeu 1,92 milhão de jovens e adultos com pouca ou nenhuma escolaridade formal, aplicando um total de R$175 milhões. A Coordenação Geral da Educação de Jovens e Adultos – Coeja – cuida dessa modalidade da educação básica. Seu programa mais importante é o de apoio a estados e municípios – Fazendo Escola – que repassa recursos (380 milhões) para os entes federativos com IDH menor ou igual a 0,5 a fim de que instituam a Educação de Jovens e Adultos – EJA – como política pública.

Cabe, nessa Secretaria, à Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas – CGAEI –, o apoio a uma política pública educacional para tais escolas, de acordo com as reivindicações dos diversos povos indígenas e com os princípios estabelecidos pela Constituição de 1988. O programa de grande destaque é o Referencial Curricular Nacional, para docentes e formação de docentes voltados para essas comunidades.

Nessa Secretaria situa-se outro programa, o Rede Nacional de Formação Continuada de Docentes da Educação Básica.

A Secretaria de Educação Especial – SEESP – volta-se para assegurar o atendimento das necessidades educacionais especiais dos alunos com deficiência. Seu programa-chefe é o "Educação inclusiva: direito à diversidade", que visa a formar gestores e educadores capazes de atenderem a exigências legais de inclusão desse segmento social. Municípios-pólo (114) capacitam gestores e educadores que se obrigam a tornar-se agentes multiplicadores para cerca de outros 2 mil municípios. A pós-graduação das universidades pode investir em projetos, estudos e cursos, para qualificar profissionais com competência em educação especial e que venham a atuar nas etapas da educação básica do sistema de ensino. Tal programa efetiva-se em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior – Capes.

Por tratar-se da educação básica, por ser ela um direito do cidadão e dever do Estado8 8 . O ensino fundamental destaca-se dentro desse direito/dever por ser um direito público subjetivo, sendo assim resguardado por múltiplos instrumentos de financiamento, exigibilidade e recursos técnicos e por iniciativas compensatórias. , por ser um momento privilegiado em que a igualdade cruza com a eqüidade, as pessoas portadoras de necessidades educacionais especiais e os grupos sociais como o dos afro-descendentes, devem ser sujeitos de um atendimento que leve à desconstrução de estereótipos, preconceitos e discriminações, tanto pelo papel socializador da escola quanto por seu papel de transmissão de conhecimentos científicos, verazes e significativos.

Já os jovens e adultos que não tiveram oportunidade de escolarizarem-se na idade própria podem e devem ser sujeitos de um modelo pedagógico próprio, apoiado com recursos que proporcionem a esses sujeitos o recomeço de sua escolaridade sem a sombra de um novo fracasso.

As comunidades indígenas também devem ser sujeitos de um modelo próprio de escola, guarnecido de recursos e respeito à sua identidade cultural peculiar.

O reconhecimento das diferenças nesse momento da escolaridade é factível com o reconhecimento da igualdade.

É certo que as dificuldades para a realização de um ideal igualitário e universalista, propugnado pelo Estado de bem-estar social, ensejou o surgimento efetivo de lacunas, dando margem à separação da defesa do direito à diferença de sua base fundante no direito à igualdade. Sem esse último, o direito à diferença corre o risco de políticas erráticas e flutuantes ao sabor de cada diferença. Por isso, a educação básica deve ser objeto de uma política educacional de igualdade concreta e que faça jus à educação como o primeiro dos direitos sociais inscrito em nossa Constituição, como direito civil inalienável dos direitos humanos e como direito político da cidadania.

LIMITES E POSSIBILIDADES

No decurso desse ensaio ficaram claros alguns dos limites mais importantes que impedem uma política social mais ampla. Há problemas que perpassam a escola – estão nela mas não são dela, como: desigual distribuição da renda e a incapacidade do país de redistribuí-la de modo mais eqüitativo; pacto federativo carente de um modelo de cooperação recíproca em que a divisão dos impostos seja mais equilibrada; número exorbitante de municípios pequenos e pobres sem recursos próprios, dependentes de recursos de transferências legais; dívida do país com empréstimos externos e, por vezes, a má administração e aplicação dos recursos existentes.

Essa realidade vê-se confrontada com discriminações de toda ordem. As políticas de caráter universalista não têm conseguido efetivar o que prometem: tratar a todos igualmente. Acontece que nossa sociedade, tão desigual e discriminatória, acaba por reproduzir a desigualdade enquanto tal. Mantida, pois, uma base universalista comum, é possível e desejável focalizar crianças de grupos vulneráveis como segmentos étnicos e regiões empobrecidas das grandes cidades ou mesmo de muitos interiores do país por meio de políticas compensatórias. Tal é o caso da bolsa-escola, bolsa-família, ampliação da merenda escolar para a educação básica e políticas de apoio ao ensino noturno e às regiões vulneráveis.

Por outro lado, há problemas que estão na escola e são dela. É o caso da formação dos docentes, sua valorização no exercício profissional por meio de carreira atraente, salários condignos e competitivos e abertura para uma formação continuada. Com essa valorização, a avaliação de desempenho deixa de ser um princípio de punição para converter-se em mais um pilar de sustentação profissional.

É nela, mas não só nela, que se pode ajudar a desconstruir mentalidades, posturas e comportamentos que atingem a alteridade com preconceito e discriminação. Nisso o múnus do professor é insubstituível, no sentido de estar preparado para enfrentar a questão da alteridade na diferença.

Também não se pode deixar de apontar que a importância da educação escolar ainda não conseguiu chegar a ponto de mobilizar agressivamente a sociedade civil em prol de sua dignidade e valor. É preciso que essa bandeira chegue à população e que ela possa injetar novo ânimo aos educadores identificados com a cidadania e com os direitos humanos e possa cobrar dos governos o devido empenho para com um direito que deve conjugar a igualdade jurídica com a igualdade substantiva. Decorre daí a impulsão para modelos de gestão mais transparentes e abertos, a busca de novos recursos e um planejamento estratégico que consubstancie uma vontade política adequada ao valor proclamado da educação para todos.

Recebido em: outubro 2004

Aprovado para publicação em: outubro 2004

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  • 1
    . A eqüidade não é uma suavização da igualdade. Trata-se de conceito distinto porque estabelece uma dialética com a igualdade e a justiça, ou seja, entre o certo, o justo e o eqüitativo. Esse é o momento do equilíbrio balanceado que considera tanto as diferenças individuais de mérito quanto as diferenças sociais. Ela visa, sobretudo, à eliminação de discriminações.
  • 2
    . Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea – , miserável é aquele cuja renda é insuficiente para cobrir os gastos mínimos com comida, habitação, transporte e vestuário. Esses não atingem 2 mil calorias diárias, índice propugnado pela ONU.
  • 3
    . De acordo com o Ipea, pobre é aquele que vive com até R$80 por mês.
  • 4
    . Cf. Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – Inep –, 2002. É preciso assinalar que esses números não se distribuem igualmente por todas as regiões do país.
  • 5
    . Entre outros podem-se apontar os artigos 3º, 4º, 5º, 215 e 216 da Constituição Federal, o artigo 26 da LDB e, em especial, a Lei n. 10.639/03.
  • 6
    . Para uma visão mais ampla desse segmento grupal, ver Rouland, 2004, especialmente a parte III.
  • 7
    . Em matéria de política, ambas as propostas revelam o papel protagonista que o MEC pode assumir no pacto federativo.
  • 8
    . O ensino fundamental destaca-se dentro desse direito/dever por ser um direito público subjetivo, sendo assim resguardado por múltiplos instrumentos de financiamento, exigibilidade e recursos técnicos e por iniciativas compensatórias.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2005

    Histórico

    • Aceito
      Out 2004
    • Recebido
      Out 2004
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