Open-access DIÁLOGO E CULTURA: UM OLHAR EDUCACIONAL INCLUSIVO

Nogueira, S. G.. Psicologia Afrocentrada no Brasil: Psicologia da educação em diálogo com saberes tradicionais. Pedro & João Editores, 2023

Os saberes tradicionais afrocentrados são aqueles adquiridos e repassados de geração em geração, em grande parte por meio da oralidade, dos mais velhos para os mais novos, seguindo uma forma de pensar e organizar as relações diferente da que o Ocidente considera conhecimento técnico-científico.

A educação eurocentrada, amplamente disseminada pelo Ocidente, tem dividido (/) e subtraído (-) a existência de vários grupos sociais, considerando sobretudo a relação do ser humano consigo mesmo e com o outro e a relação de todos com o meio ambiente.

Tendo em vista os conflitos e contradições que envolvem a complexidade das relações sociais, o livro Psicologia Afrocentrada no Brasil: Psicologia da educação em diálogo com saberes tradicionais (Nogueira, 2023) provoca o leitor a pensar sobre somar (+) e multiplicar (×) oportunidades e caminhos por meio de um saber tradicional que não se apresenta como opositor ao conhecimento ocidentalizado, mas sim propõe um diálogo que estimula e reforça uma vida com respeitabilidade de existência para todas as pessoas em suas diferentes culturas.

A obra, lançada em 2023, apresenta importantes contribuições para uma reflexão mais aprofundada sobre as relações humanas em sociedade, a cultura e o processo de ensino-aprendizagem da população negra, considerando diferentes experiências e contextos. Sua organizadora, Simone Gibran Nogueira, tem pós-doutoramento em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), é doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com estágio internacional na Georgia State University (GSU) em Atlanta, Estados Unidos, mestra em Educação e psicóloga graduada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Além disso, é professora de Capoeira Angola no Centro Esportivo de Capoeira Angola - Academia João Pequeno de Pastinha (Ceca-AJPP), tendo sido formada por Mestre Pé de Chumbo e iniciada no candomblé pela Yalorixá Nadia Santana e pelo Mestre Lumumba Amauro. Psicóloga e educadora social, com formação corpóreo- -intelectual embasada pela prática da Capoeira Angola e nos estudos negro-africanos, é comprometida “glocalmente” com a promoção de processos de libertação das opressões físicas, mentais, emocionais e espirituais.

O livro, em primeira análise, desenvolve reflexões sobre a valorização de saberes, práticas e experiências das culturas africanas e afrodescendentes na prática educacional e psicológica. Isso se dá pelo estímulo e reforço do reconhecimento da diversidade cultural e étnica, integrando os saberes tradicionais africanos e afrodescendentes ao currículo educacional, e com a inclusão de conhecimentos sobre história, cultura, arte, religião, música, dança e tradições orais em uma sociedade historicamente discriminatória e racista.

Dessa forma, aponta-se que a desconstrução de estereótipos e preconceitos é essencial para o desenvolvimento de práticas educacionais inclusivas e não violentas. Tais estereótipos e preconceitos foram estabelecidos a partir, sobretudo, da percepção discriminatória de origem europeia e estadunidense em relação à população negra que é prejudicada, promovendo uma educação segregadora que estimula e reforça diferentes tipos de violências.

No livro Como ser um educador antirracista, a professora Bárbara Carine Soares Pinheiro (2023) explica o papel da colonização na construção humana dos brasileiros, em especial os negros, que são educados a seguirem caminhos preestabelecidos e esperados da sociedade para pessoas com suas características físicas, através dos processos sociais de desenvolvimento e apropriação da cultura.

O incentivo e o fomento à contribuição dos saberes tradicionais em diferentes áreas do conhecimento visam, assim, ao desenvolvimento de ações antirracistas, bem como à valorização da identidade e da autoestima da população negra.

Nesse sentido, a construção do conteúdo do livro, por meio de diferentes experiências, mostra-se como uma oportunidade para o leitor não somente se permitir conhecer saberes básicos da humanidade, como também se aproximar, em alguma medida, da realidade social envolvida nas relações entre pessoas brancas e não brancas. Ainda pensando nas diferentes experiências e saberes, os autores compartilham estudos em psicologia e educação afrocentrada na lusofonia, com metodologia que abrange a intersubjetivação afro-moçambicana.

Uma análise crítica do livro pode ser desenvolvida por meio de uma perspectiva materialista histórico-dialética (ainda que esse não seja, evidentemente, o único caminho de análise) sobre o que é apontado no prefácio e em seus oito capítulos. Essa análise pode considerar o momento histórico, o tipo de sistema educacional e sua organização, a legislação vigente, os desafios da educação afrocentrada, o sistema político e a percepção de responsabilidade da educação inclusiva no Brasil.

O pensar, sentir e agir para a escrita do livro consideram uma perspectiva afrocentrada que enfatiza a importância de uma educação comprometida com a valorização da diversidade, cultura e promoção de equidade racial, também apontando saberes tradicionais africanos e afro-brasileiros para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável. Ao considerar perspectivas afrocentradas no contexto do ensino-aprendizagem, os autores estimulam e reforçam a importância de fortalecer a identidade da população afro-brasileira, destacando a construção de uma educação inclusiva e emancipatória.

Nesse campo de atuação, a promoção da diversidade curricular é vista como fundamental para o resgate, por parte da sociedade brasileira, de seu poder e influência, com o objetivo de equilibrar as relações que atravessam fortemente a população negra no que diz respeito às condições básicas para existir, como na esfera da educação, do trabalho ou da interação em sociedade, possibilitando o desenvolvimento de competências e habilidades necessárias para um processo de ensino-aprendizagem mais satisfatório.

Dessa forma, a utilização de práticas pedagógicas que valorizem e incorporem saberes e experiências das culturas africanas e afrodescendentes - por meio do cotidiano e usando elementos da cultura, como o uso de contos e mitos africanos, música, dança afro-brasileira - e a incorporação de referências culturais negras no ensino que passem por diferentes áreas do conhecimento são fundamentais para o combate à discriminação e para uma formação educacional cidadã.

Com o objetivo de equilibrar as relações raciais e contribuir para uma sociedade sustentável econômica, política e socialmente, o empoderamento e o fortalecimento da identidade da população negra são essenciais para a humanidade e a existência da vida humana. A promoção dessas ações tem como objetivo proporcionar um ambiente educacional que reconheça, valorize e celebre a herança cultural e étnica africana e afrodescendente, e que capacite as pessoas a entenderem e combaterem o racismo e a discriminação de forma crítica e reflexiva.

Para tanto, formar pessoas com pensamento crítico é fundamental para o desenvolvimento de competências e habilidades que contribuam para uma participação mais consciente na sociedade, envolvendo, em especial, a população afro-brasileira na coletividade e capacitando-a a se tornar agente de mudança em suas comunidades e a lutar por justiça social, igualdade e equidade.

A contribuição desse material, envolvendo questões psicológicas e educacionais, apresenta aspectos importantes que pretendem gerar estímulos à pesquisa e à produção de conhecimento sobre a história e as culturas africanas e afrodescendentes, no sentido de incentivar os estudantes a investigarem e compartilharem suas próprias histórias e experiências, colaborando, assim, para a construção de uma base de conhecimento mais inclusiva e diversificada.

Dialogar com saberes afro é possibilitar uma educação inclusiva, buscando provocar a conscientização e estimulando a reflexão crítica em uma sociedade que despotencializa a existência, os saberes e a inteligência dos grupos considerando aspectos étnico-raciais, em especial a população negra (Nogueira, 2022, p. 20). Desse modo, intencionamos, com a resenha deste artigo, levantar questões sociais envolvendo a educação, relacionando-as com o ensino da matemática.

No capítulo 1, intitulado “A chegança”, Bruno Reis aponta os fundamentos e as bases conceituais do conhecimento afrocentrado, salientando a importância do protagonismo negro na construção de saberes e práticas da psicologia educacional. Nesse sentido, o autor provoca uma nova forma de pensar e fazer psicologia no contexto educacional, ancorada na valorização da cultura e da história afrodescendente. Reis ressalta, ainda, a própria identidade enquanto pessoa negra atravessada pelos saberes eurocentristas em suas práticas como terapeuta. Aponta o sistema educacional como algo pensado para um determinado modelo de ser humano e que, dessa forma, acaba excluindo pessoas que não contemplam tal modelo de organização social. Ressalta, ainda, como os elementos da cultura afro, em alguma medida, permeiam de maneira perversa, neurótica e até mesmo psicótica o imaginário de pessoas com descendência europeia nas diferentes relações sociais.

No capítulo 2, “Transitando entre o eu e nós”, Elcimar Dias Pereira aponta sua experiência de diálogo com detentoras de saberes de uma comunidade de matriz africana. Por meio dessa experiência, podemos refletir sobre as múltiplas formas de conhecimento no processo de ensino-aprendizagem, presentes nas tradições africanas e afro-brasileiras, assim como sobre a importância do reconhecimento e respeito a esses saberes na prática psicológica.

Mário José Chanja, no capítulo 3, “Um diálogo entre psicologia e afrocentricidade”, estimula importantes reflexões sobre a intersecção entre a psicologia e a afrocentricidade, com contribuições a partir de sua experiência como psicólogo angolano, por meio de uma análise provocadora que busca fazer o leitor repensar as bases epistemológicas da psicologia e considerar novos horizontes teóricos e metodológicos em pesquisas sobre esse tema.

No capítulo 4, “Diálogos entre constelação familiar e epistemologias de terreiro: Revisitando o conceito de hierarquia”, Itiana Rochele Pedroso da Silva e Sidnei Barreto Nogueira exploram as intersecções entre a constelação familiar e os saberes das religiões de matriz africana. Os autores apresentam uma reflexão crítica sobre o conceito de hierarquia e suas implicações nas relações sociais, considerando o contexto e o percurso histórico. Nesse sentido, apontam também para a importância de reconhecer e valorizar as epistemologias afrocentradas na prática psicológica, evidenciando a necessidade de uma abordagem inclusiva e respeitosa das diferenças culturais.

No capítulo 5, Érica Aparecida Kawakami e Geranilde Costa e Silva apresentam contribuições acerca da “Psicologia africana na Unilab: Estratégias didático- -pedagógicas para a consciência de libertação psicológica”. São apresentadas importantes reflexões sobre as estratégias de ensino utilizadas na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), de forma a promover uma consciência de libertação psicológica entre os estudantes. Ao destacar a importância de uma educação crítica e emancipatória, as autoras ressaltam o papel da psicologia africana como instrumento de resistência e transformação social, evidenciando a relevância de uma abordagem pedagógica que valorize a diversidade cultural e promova a inclusão.

Seguindo a perspectiva afrocentrada do material, podemos observar, no capítulo 6, importantes contribuições envolvendo a “Psicologia da psicologia africana: Perspectivas, conceitualizações e tensões”. Érica Aparecida Kawakami, Nando Paulo Suma e Yohana Cristina Rosa consideram perspectivas e conceitualizações presentes na psicologia africana, destacando as tensões e desafios enfrentados no processo de construção de uma psicologia afrocentrada no Brasil. Vale destacar que, por meio de uma análise crítica e reflexiva, os autores problematizam as representações hegemônicas da psicologia ocidental e apontam para a necessidade de uma descolonização epistêmica no campo da psicologia, visando a promover uma maior valorização e legitimação dos saberes africanos e afro-brasileiros.

No capítulo 7, “Educação pela tradição oral de matriz africana na diáspora: Diálogos em afro perspectiva e histórico culturais”, Daniela Barros Pontes e Silva aponta a importância da tradição oral na transmissão e preservação dos conhecimentos ancestrais nas comunidades afrodescendentes. Ao destacar a oralidade como um elemento central na construção da identidade e da memória coletiva, a autora ressalta a necessidade de valorizar e integrar esses saberes no contexto educacional, considerando sua relevância para a formação integral dos estudantes e para o fortalecimento da cultura afro-brasileira.

André L. C. Camargo, no capítulo 8, “Produção de uma educação afrocentrada junto ao currículo escolar formal: Uma experiência de criação”, apresenta uma experiência prática de implementação da educação afrocentrada em um contexto escolar formal. Por meio de uma abordagem interdisciplinar e contextualizada, o autor propõe estratégias pedagógicas que têm como finalidade promover a consciência histórica e cultural dos estudantes, incentivando a reflexão crítica sobre as relações étnico-raciais e o combate ao racismo estrutural presente na sociedade brasileira.

Em suma, o livro Psicologia afrocentrada no Brasil: Psicologia da educação em diálogo com saberes tradicionais é uma importante reflexão que apresenta como as experiências e os saberes podem contribuir com a sociedade no sentido de somar (+) e multiplicar (×) conhecimentos, considerando as diferentes relações em sociedade, a fim de possibilitar o existir, o pensar e o sentir sem diminuir (-) e dividir (/) a vida das pessoas.

  • Como citar esta resenha
    Souza, E. R. de, & Fusaro, M. (2025). Diálogo e cultura: Um olhar educacional inclusivo [Resenha do livro Psicologia Afrocentrada no Brasil: Psicologia da educação em diálogo com saberes tradicionais, de S. G. Nogueira]. Cadernos de Pesquisa, 55, Resenha e11518. https://doi.org/10.1590/1980531411518

Referências

  • Nogueira, S. G. (2022). Libertação, descolonização e africanização da psicologia: Breve introdução à psicologia africana EdUFSCar.
  • Nogueira, S. G. (Org.). (2023). Psicologia Afrocentrada no Brasil: Psicologia da educação em diálogo com saberes tradicionais Pedro & João Editores.
  • Pinheiro, B. C. S. (2023). Como ser um educador antirracista Planeta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2024
  • Aceito
    26 Nov 2024
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